Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
255/20.4PALSB-A.L1-9
Relator: ANTÓNIO CARNEIRO DA SILVA
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
SILÊNCIO DO ARGUIDO
DEDUÇÃO DE ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2022
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário: I- A forma processualmente correcta de reagir face a decisão do Ministério Público que põe fim ao inquérito reconduz-se à formulação de pedido, perante o juiz de instrução criminal, de judicialmente comprovar tal decisão no caso, entendendo o arguido não se encontrarem reunidos os pressupostos legalmente previstos para a suspensão provisória do processo, deveria ter requerido a abertura de instrução por forma a judicialmente comprovar a decisão de não submissão da causa a julgamento;
II- Persistindo o arguido no entendimento que verteu no recurso agora em análise isto é, que não se mostram reunidos os pressupostos da suspensão provisória do processo, bastar-lhe-á que não cumpra qualquer das injunções concretamente fixadas para que o processo prossiga – alínea a) do nº 4 do artigo 282º do Código de Processo Penal;
III-Não é admissível recurso de qualquer decisão do Ministério, sendo que o recurso interposto é claramente extemporâneo por ter sido interposto largos meses após o despacho Judicial recorrido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I
No âmbito do processo de inquérito nº 255/20.4PALSB, do DIAP de Lisboa (13ª secção), porque o arguido nem sequer se pronunciou quanto à proposta de suspensão provisória do processo que lhe foi endereçada a 16 de Junho [suspensão pelo prazo de 4 meses, sujeita à obrigação de entregar € 500,00 ao Banco Alimentar e ao cumprimento de cumprir 3 meses de inibição de conduzir], o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo abreviado, contra AA, devidamente identificado nos autos, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelas normas consagradas no nº 1 do artigo 292º e na alínea a) do nº 1 do artigo 69º, ambos do Código Penal.
Recebida a acusação, foi agendado o dia 22 de Outubro de 2020 para realização da audiência de julgamento, diligência posteriormente adiada, a pedido do arguido, para 17 de Dezembro de 2020.
O arguido apresentou contestação, na qual, além do mais, recorda ter sido notificado para se pronunciar quanto à suspensão provisória do processo que nos autos foi proposta, mas afirma não se ter apercebido do conteúdo da notificação por desconhecer a língua portuguesa, e, no momento em que do facto informou o seu mandatário havia já decorrido o prazo para declarar a aceitação da suspensão proposta.
Acresce que, alega, o mandatário que constituiu apenas foi autorizado a consultar o processo após a dedução da acusação.
Defende ter sido violado o disposto nas alíneas g) e h) do nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal.
Afirma que poderia o arguido ter vindo a aceitar a suspensão provisória caso lhe tivesse sido permitida a consulta do processo.
Pede, entre o mais, a declaração da nulidade do processado.
Na sequência, por despacho de 16 de Dezembro de 2021 [referência nº 401412706] foi declarada a irregularidade do processo posterior à notificação do arguido se pronunciar quanto à proposta de suspensão provisória do processo, com fundamento na falta da sua tradução e não concessão ao Exmº. Mandatário do arguido da possibilidade de consultar o processo no prazo fixado para o arguido se pronunciar quanto à proposta de suspensão, e, após trânsito em julgado, a remessa dos autos ao Ministério Público.
O arguido foi notificado do teor desta decisão, na pessoa do seu Exmº. Mandatário constituído, por notificação elaborada e remetida nesse mesmo dia 16 de Dezembro de 2020, não tendo reagido.
Devolvido o processo aos serviços do Ministério Público, foi renovada a proposta de suspensão provisória do processo anteriormente apresentada [despacho de 12 de Fevereiro de 2021, referência nº 402771583], afirmando-se agora que o arguido havia manifestado a sua concordância à suspensão nos termos propostos.
Remetidos os autos ao juiz de instrução criminal, por este foi proferido despacho [a 20 de Abril de 2021, referência nº 404618183] em que manifesta concordância com a suspensão nos termos propostos pelo Ministério Público.
Na sequência, pelo Ministério Público foi declarada a suspensão provisória do processo [despacho proferido a 03 de Maio de 2021, referência nº 404770223], nos termos anteriormente propostos, decisão notificada ao arguido e ao seu Exmº. Mandatário a 17 de Agosto de 2021.
É desta decisão que o arguido vem interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1- Vem o Recorrente interpor Recurso da Decisão datada de 03.05.2021, que lhe determinou a aplicação da Suspensão Provisória do Processo (SPP), nos termos do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Penal, bem como da omissão de pronúncia do Tribunal a quo sobre a arguição de nulidade.
2- Refere o n.º 6 do artigo 281.º que “A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é suscetível de impugnação”, de onde se depreende que, caso a decisão de suspensão não esteja em conformidade com o n.º 1, isto é, não se mostrem verificados os requisitos de que depende, a mesma é suscetível de impugnação.
3- A decisão de aplicação não está em conformidade com o n.º 1, uma vez que não se mostram verificados os requisitos de que depende, designadamente a alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º, uma vez que o Recorrente não deu a sua concordância à SPP quando a mesma lhe foi remetida.
4- Após apresentação da contestação do arguido, veio o Meritíssimo Juiz remeter o processo novamente ao M.P., para que seja repetida a proposta de Suspensão Provisória do Processo, tendo sido realizada nova proposta, notificada ao Arguido, o mesmo não respondeu o que não fez porque não havia sido apreciada a nulidade por si levantada, e porque não pode, de todo o processo, depois de distribuído e autuado, voltar ao MP.
5- Nos termos do CPP, após acusação, apenas pode haver lugar a SPP nos casos em que seja admissível e requerida a abertura de instrução e tal venha a resultar da respetiva decisão instrutória, o que não foi o caso, e só pode o processo ser reenviado ao MP nos casos previstos no artigo 390.º do CPP e não noutros, na medida em que não pode o juiz, ainda que reconhecendo irregularidade, determinar a anulação de atos de inquérito, como o foram nestes autos, desde a notificação irregular da SPP ao arguido.
6- Pelo que, não só não houve concordância do arguido relativamente à SPP, o que impossibilita a sua decisão, pondo em crise o Despacho Recorrido, como existe omissão de pronúncia relativamente à nulidade invocada pelo Arguido e também existe nulidade do Despacho agora recorrido porquanto determina a SPP em função de novos atos de inquérito, proferidos pelo MP após o processo ter sido recebido pelo juiz, que ilegalmente, o reenviou, à margem da lei, de novo ao MP.
7- Nos termos do n.º 2 do artigo 58.º do CPP “A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe”.
8- Sendo imperioso, pois, declarar a nulidade do processo, uma vez que ocorreram ilegalidades muito antes da notificação da SPP, nomeadamente com a constituição de arguido sem interprete, o que gera a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2 alínea c) do CPP, que tendo o Tribunal a quo omitido a decisão sobre tal arguição, deve este Venerando Tribunal declará-la.
9- Entende, assim, o Arguido, que o Despacho recorrido deve ser anulado porquanto existe falta de um requisito essencial à determinação da SPP – o consentimento do arguido.
10- Bem como deve o Tribunal apreciar a nulidade resultante do reenvio do processo ao MP após acusação e autuação e distribuição do Processo, o que ocorreu ao arrepio do CPP.
11- Devendo, igualmente, ser declarada a nulidade do Despacho com a referência 401412706.
O recurso foi admitido por despacho proferido a 07 de Outubro de 2021 [referência nº 409163285], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Pelo Ministério Público foi apresentada resposta, na qual, em súmula, defende que a declaração de nulidade do processo e a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público, determinada pela decisão judicial proferida a 16 de Dezembro de 2020, corresponde ao cumprimento do disposto do regime legal decorrente da afirmação de uma concreta invalidade processual.
Quanto ao acordo do arguido na suspensão provisória do processo, defende que este existiu, designadamente na contestação por si apresentada ainda no âmbito da tramitação do processo abreviado posteriormente invalidada.
Conclui pedindo a improcedência do recurso.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Exmª. Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer, no qual, em súmula, declara acompanhar a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância.
Afirma ainda que o despacho que declara a suspensão provisória do processo, tendo sido proferido pelo Ministério Público, é insusceptível de recurso; re-afirma que o arguido deu o seu consentimento à suspensão na contestação que apresentou ainda no âmbito da tramitação do processo abreviado posteriormente invalidada; e recorda que a decisão judicial que a 16 de Dezembro de 2020 determinou o reenvio do processo aos serviços do Ministério Público transitou já em julgado.
Conclui pedindo a improcedência do recurso.
No exame liminar determinou-se a alteração do efeito em primeira instância atribuído ao recurso interposto, fixando-se-lhe o efeito suspensivo do processado em 1ª instância.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II -
Como decorre de lei expressa (nº 3 do artigo 414º do Código de Processo Penal), a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior.
E, no caso, afigura-se sem qualquer dúvida que o recurso interposto não é admissível – em parte por extemporaneidade, em parte por a decisão contra que o recorrente declara pretender reagir não admite recurso.
Mas vejamos.
A)
Como resulta da simples consulta do processo principal através da plataforma citius, a decisão judicial proferida a 16 de Dezembro de 2020, que determinou a devolução dos autos à fase de inquérito, foi notificada ao Ministério Público e ao Exmº. Mandatário do recorrente por expediente elaborado nesse mesmo dia 16 de Dezembro de 2020 [referência nº 401413097].
O arguido, eficazmente notificado, apenas através do presente recurso formula reacção a essa decisão, recurso apresentado em juízo a 29 de Setembro de 2021, ou seja, muitos meses (mais de 9 !!) após a prolação da decisão cuja invalidade agora pretende ver apreciada, e, portanto, incontestavelmente para lá do prazo geral de 30 dias fixado pela alínea a) do nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal para a interposição de recurso de uma decisão judicial.
O recurso é, quanto àquela decisão, claramente extemporâneo.
O Código de Processo Penal vigente, ao contrário do Código de Processo Penal de 1929, não regula os efeitos do caso julgado penal.
Mas absolutamente nenhuma dúvida jamais existiu quanto à definitividade das decisões judiciais transitadas em julgado no âmbito do processo penal - toda e qualquer decisão (tornada incontes­tável) tomada por um juiz implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no pro­cedimento).
E este mecanismo vale para qualquer tipo de decisão, independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão «processual» [cfr, por todos, Prof. Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória”, Livraria Almedina, 2002, página, 143; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 2010, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/7A5EC29D348534AB80257885004DC331].
Ora, na hipótese em apreço, a concreta decisão contra que o recorrente apenas agora se declara insurgir foi proferida mais de 9 meses antes do recurso agora interposto, por isso se tornando definitiva.
Consequentemente, face ao caso julgado intra-processual formado, que tornou irrecorrível e insusceptível de reclamação a decisão judicial proferida a 16 de Dezembro de 2020 [referência nº 401412706], não há que apreciar da sua invalidade.
B)
Por decisão de 03 de Maio de 2021 [referência nº 40477022], o Ministério Público, com a concordância pelo menos do Juiz de Instrução Criminal [cfr despacho judicial de 20 de Abril de 2021, referência nº 404618183] decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 282º do Código de Processo Penal, suspender provisoriamente o presente processo, relativo à prática pelo arguido de um crime de condução de veículo sob o efeito de álcool, pelo período de 4 meses, suspensão subordinada ao cumprimento de 2 injunções – entregar € 500,00 a uma IPSS, e cumprir um período de 3 meses de inibição de conduzir.
Vem agora o arguido, declarando não ter dado o seu consentimento à suspensão, requerer a anulação da decisão de suspensão provisória.
Não obstante o insólito de toda a situação, principiar-se-á por dizer que impugnação e recorribilidade são 2 conceitos que não se confundem – e, com todo o respeito, a confusão do recorrente a este propósito não deixa de surpreender.
Recorríveis são apenas os acórdãos, as sentenças e os despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei [artigo 399º do Código de Processo Penal] - acórdãos, sentenças e despachos (óbvia e naturalmente, dir-se-ia) judicialmente proferidos, na medida em que apenas as decisões judiciais admitem recurso [nº 1 e 2 do artigo 97º do Código de Processo penal; nº 1 do artigo 627º do Código de Processo Civil].
Por seu turno, é admissível a impugnação de determinados despachos pelo Ministério Público proferidos no processo penal, mas por outras vias – a reclamação hierárquica; a abertura de instrução.
Ora, a decisão de suspensão provisória do processo tomada ao abrigo do disposto no artigo 281º do Código de Processo Penal, sendo susceptível de impugnação quando não verificados todos os pressupostos para o efeito legalmente estabelecidos (nº 6 desse artigo 281º), verdadeiramente constitui uma forma de «arquivamento com injunções e regras de conduta, isto é, um arquivamento condicionado ao prévio cumprimento de injunções e regras de conduta. Evidentemente que nem as injunções e regras de conduta são penas, nem a suspensão provisória do processo é um despacho condenatório, ou sequer uma decisão assente num propósito de censura ético-jurídica. De uma forma linear pode-se afirmar que o instituto em causa é uma espécie de transacção segundo a qual o arguido aceita respeitar determinadas injunções, e regras de conduta, e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo» [acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 16/2009, de 24 de Dezembro de 2009, disponível em www.dgsi.jstj.pt/].
Logo, e face ao disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a forma processualmente correcta de reagir face a decisão do Ministério Público que põe fim ao inquérito reconduz-se à formulação de pedido, perante o juiz de instrução criminal, de judicialmente comprovar tal decisão – no caso, entendendo o arguido não se encontrarem reunidos os pressupostos legalmente previstos para a suspensão provisória do processo, deveria ter requerido a abertura de instrução por forma a judicialmente comprovar a decisão de não submissão da causa a julgamento.
Seja como for, mantendo o arguido o entendimento que verteu no recurso agora em análise (isto é, que não se mostram reunidos os pressupostos da suspensão provisória do processo), bastar-lhe-á que não cumpra qualquer das injunções concretamente fixadas para que o processo prossiga – alínea a) do nº 4 do artigo 282º do Código de Processo Penal.
O que se afigura perfeitamente claro é não ser admissível recurso de qualquer decisão do Ministério Público que seja.
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III -
Pelo exposto, com base no disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 420º, na alínea b) do nº 6 do artigo 417º, no nº 2 do artigo 414º, no nº 1 do artigo 411º e no artigo 399º, todos do Código de Processo Penal, rejeito o recurso interposto pelo arguido AA.
Mais se condena o recorrente nas custas do recurso, fixando-se em 4 Ucs o valor da taxa de justiça devida – nº 3 do artigo 420º do Código de Processo Penal.
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Notifique.
Lisboa, 09-02-2022,
António Carneiro da Silva