Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5392/2006-1
Relator: FOLQUE DE MAGALHÃES
Descritores: POSSE
REQUISITOS
TRANSMISSÃO DA POSSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - Da conjugação do disposto nos art. 1251º e 1253º do C.Cv. resulta que o nosso Código Civil recebeu uma noção de posse que não se contenta apenas com a relação material entre o sujeito e a coisa – o corpus – exigindo, para que se dê a figura da posse, a presença da intenção – o animus - com que se estabeleceu essa relação corporal, não considerando verdadeiros possuidores, antes meros detentores, aqueles a cuja “posse” falte o animus.
II – Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse ao antecessor (art. 1256º, nº 1 do CC), pelo que a sucessão na posse terá de ser antes do mais um acto entre vivos.
III - O legislador quis prever todo e qualquer acto translativo da posse. Mas é necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse que que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores.
(F.G.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:(...)
1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
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1.3. Objecto da apelação:
1. A sentença de fls. 362 a 374, pela qual a acção foi julgada improcedente parcialmente.
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1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:
1. Da nulidade da sentença.
2. Da não verificação da acessão de posses.
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2. SANEAMENTO:
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.
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3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
Os constantes de fls. 365 a 369, do ponto 2. da sentença recorrida, para os quais se remete, nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.C., em virtude de não terem sido impugnados nem se revelar ser de alterar oficiosamente.
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3.2. De direito:
1. Da nulidade da sentença.
2. Nas alíneas l), a n) das conclusões das alegações, a Recorrente apoda a sentença de nula por falta de pronúncia quanto à matéria da junção de posses.
3. Crê-se, porém, que não assiste razão à Recorrente, pois ficou provado que João se apossou do imóvel em causa, nos idos de 1970 (factos 14 e 15) e que, após a constituição da R., as questões relativas ao imóvel são resolvidas através desta (facto 28). E, com base nestes factos, considerou que a R., por si e seus antecessores tem usado e fruído o prédio, há mais de vinte anos.
4. Por isso, não se pode dizer que tenha havido omissão de pronúncia quanto a esta matéria, com o que se julga improcedente a posição da Recorrente quanto a esta questão.
5. Da não verificação da acessão de posses.
6. Como é sabido, da conjugação do disposto nos art. 1251º e 1253º do C.Cv. resulta que o nosso Código Civil recebeu uma noção de posse que não se contenta apenas com a relação material entre o sujeito e a coisa – o corpus – exigindo, para que se dê a figura da posse, a presença da intenção – o animus - com que se estabeleceu essa relação corporal, não considerando verdadeiros possuidores, antes meros detentores, aqueles a cuja “posse” falte o animus.
7. Ora, se bem se atentar nos factos dados como provados verifica-se que eles existem exuberantemente no sentido da prova da existência do corpus incluindo a investidura na posse, por parte de João Jorge Duarte Loureiro, mas já não quanto ao animus com que este exerceu o corpus.
8. Note-se que, no ensinamento do Prof. Oliveira Ascensão (in Direitos Reais, p. 247 a 251) sendo a posse unilateral, isto é, resultante de ocupação ou esbulho, o animus deve assentar na vontade concreta do possuidor. É certo que “esse animus se terá de induzir de circunstâncias objectivas”. Isto é, terão de se provar factos que permitam concluir existir uma actuação por parte do possuidor reveladora da sua intenção de agir como titular de um qualquer direito real, seja ele o de propriedade, o máximo, seja um dos menores.
9. Voltando aos factos provados nesta acção, como acima se disse, eles provam abundantemente o corpus mas não revelam inequivocamente o animus com que foi exercido esse corpus.
10. Repare-se que a “história” começa, quando, após o “25 de Abril” cessaram as ocupações selvagens do prédio dos autos, efectuadas por múltiplas pessoas não identificadas, altura em que o referido João, vivendo perto dos imóveis dos autos, se apercebe que os mesmos estão devolutos e votados ao abandono (factos 8 a 11).
11. Então, pelos finais da década de setenta, carecendo de um espaço para exercer a sua actividade teatral, como actor e como encenador, entra no imóvel e retira o lixo e entulho, pinta paredes, reactiva a instalação eléctrica e instala trincos e fechaduras (factos 15 a 17), passando a usar o imóvel a seu belo prazer.
12. A partir de então, o imóvel foi usado por si ou com sua autorização para fins recreativos, com ou sem retribuição, aplicando esta, quando existia, à limpeza e manutenção do edifício (factos 19 a 27).
13. Os factos relativos ao João esgotam-se aqui. Deles resulta a intenção com que exerceu o corpus? Pode dizer-se que agiu com a intenção idêntica à do titular do direito de propriedade? Ou do usufrutuário, uma vez que a certa altura deixou de exercer o corpus em favor da R.? Ou de mero usuário, visto que do imóvel apenas retirou a possibilidade que o mesmo conferia de exercer actividades teatrais e outros espectáculos? Ou, ainda, como distinguir a sua actuação da do mero detentor: o comportamento externo é igual ao do verdadeiro possuidor, só se distingue pelo animus. E onde está aquele ou aqueles factos que fazem a diferença específica duma para outra situação? Eles não existem.
14. Por isso, não se pode dizer com segurança que, face aos factos dados como provados, o Jorge exerceu a posse relativa a um qualquer direito real.
15. Ao que se deixou dito acresce ainda um outro argumento que se prende com o que se dirá a seguir relativamente à acessão da posse.
16. Como foi tido em consideração na sentença (pese embora a Recorrente alegar que não) o tempo pelo qual a R. vem possuindo, desde 1993, não é suficiente para operar a aquisição do imóvel por usucapião. Daí, a necessidade de somar esse tempo ao do antepossuidor, o do referido João.
17. Na verdade, dispõe o art. 1256º nº 1 do C.Cv. que aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse ao antecessor.
18. Ora, como é que se dá essa sucessão na posse?
19. Terá de ser antes do mais um acto entre vivos, visto que é o próprio preceito que exclui a sucessão por morte da figura ora sob análise – a acessão na posse.
20. Mas poderá ser de qualquer maneira?
21. Os Prof. Pires de Lima e A. Varela, (in CCvA, em anotação ao art. 1256º) dizem que “o legislador quis prever todo e qualquer acto translativo da posse. (...) Mas é necessário que haja um verdadeiro acto translactivo da posse que haja uma relação jurídica entre os dois possuidores”.
22. Ora, no caso dos autos, ficaram provados uma série de actos possessivos por parte do João até ao facto 27, e a seguir (facto 28) diz-se que “A partir da constituição da R., todas as questões relacionadas com o edifício são resolvidas através da R., que tem por associado João, entre outros”.
23. Ou seja, não ficou provado por que acto jurídico se deu a translação da posse que João vinha exercendo sobre o imóvel para a esfera jurídica da R.
24. Daqui, duas consequências importa retirar.
25. A primeira, não há título translativo da posse, não se verificando por isso os elementos necessários à figura da acessão na posse. Há apenas uma justaposição de duas posses cujos tempos de cada uma não é legítimo somar, em ordem à verificação do requisito temporal da usucapião.
26. A segunda, a falta desse acto translactivo da posse aponta no sentido de que o João não possuía com verdadeiro animus possidendi, antes como mero detentor que se aproveitou da inércia do autêntico dono do imóvel, para nele ir exercitando a sua arte dramática.
27. Assim sendo, sem necessidade de outros considerandos, julga-se procedente a posição da Recorrente quanto a esta questão.
28. Em consequência, a A. não pode deixar de ver a sua petição quanto a este imóvel procedente, pois provou o seu direito derivado, sem que se lhe opusesse validamente a aquisição originária sobre o mesmo prédio.
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4 DECISÃO:
1. Por tudo o exposto, concede-se provimento à apelação, e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, na parte b), e, em substituição, julga-se provada e procedente a acção, condenando a R. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o imóvel constituído pelo prédio urbano sito na Calçada Duque de Lafões, em Lisboa (…), bem como a restituí-lo à A. Em consequência, julga-se improcedente o pedido reconvencional formulado pela R.
Custas pela R. na acção e reconvenção.
2. Custas, no recurso, pela parte Recorrida (art. 446º nº 2 CPC).

Lisboa, 12 de Dezembro de 2006.
(Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Grácio)