Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
159/19.3YUSTR-E.L1-PICRS
Relator: PAULA POTT
Descritores: CONFIDENCIALIDADE
SEGREDOS DE NEGÓCIO
VÍCIOS DECISÓRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA EM MATÉRIA DE CONTRAORDENAÇÕES
Decisão: DECLARADA NULA A SENTENÇA
Sumário: Impugnação judicial – Segredos de negócio – Vícios decisórios devidos a omissão de pronúncia e falta de fundamentação – Artigos 30.º e 85.º do Regime Jurídico da Concorrência e 410.º do Código de Processo Penal

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa



1.–A visada/recorrente, veio interpor o presente recurso da decisão judicial proferida em 28.1.2022 pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (doravante também Tribunal de primeira instância ou Tribunal a quo), que julgou improcedente o recurso interposto da decisão interlocutória da AdC, com a referência S-AdC/2021/1883 que indeferiu o pedido de protecção de informações confidenciais constantes de 348 documentos apreendidos por meio de busca, no processo de contraordenação PRC/2019/02.

2.–Do mandado de busca, emitido pelo digno magistrado do Ministério Público, resulta que os documentos em crise foram recolhidos para instruir um processo sancionatório relativo a práticas proibidas, instaurado pela AdC ao abrigo do artigo 9.º n.º 1– a) da Lei 19/2012 (Regime Jurídico da Concorrência, doravante também RJC) (cf. mandado de busca de 6.5.2019 que se encontra entre os documentos juntos aos autos com a referência citius 312760).

3.–No presente recurso a visada pede a este Tribunal se digne:

i.- declarar o vício da Sentença decorrente da contradição insanável entre a sua fundamentação e a decisão nela plasmadas, ordenando a devolução ao Tribunal a quo para aí ser proferida uma nova sentença que proceda à sanação do vício apontado e, de forma coerente e fundamentada, se pronuncie sobre o mérito do recurso da Recorrente;
ii.- declarar a nulidade da Sentença por omissão de pronúncia ou, pelo menos, caso se entenda que tal omissão não ocorreu, por falta de fundamentação das questões que Recorrente crê não terem sido objeto de pronúncia pelo Tribunal a quo, ordenando a sua substituição por outra que conheça, de forma efetiva, do mérito do recurso interposto pela Lusíadas SGPS e aprecie a natureza confidencial e a necessidade de proteção da informação que consta dos documentos que constituem o objeto do recurso, bem como a questão de constitucionalidade suscitada;
iii.- revogar a Decisão de Indeferimento de Confidencialidades da AdC, na parte em que indeferiu os pedidos de proteção de informação confidencial constante dos documentos mencionados no presente recurso, e substituí-la por outra que declare a confidencialidade das informações cuja proteção a Recorrente requereu. 

4.–A recorrente alega, em síntese, os seguintes fundamentos que, nas conclusões do recurso qualifica como (i) contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, (ii) nulidade da sentença por omissão de pronuncia ou, pelo menos, falta de fundamentação, (iii) e erro de direito ou de julgamento:

Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
  • A recorrente qualifica este vício à luz do disposto no artigo 410.º n.º 2-b) do Código de Processo Penal (doravante CPP);
  • Nos parágrafos 10, 11 e 36 da sentença recorrida o Tribunal a quo refere que não aprecia o mérito da decisão administrativa (de classificação dos 348 documentos objecto do recurso) porque isso não é judicialmente sindicável, embora a recorrente entenda que é; no entanto, ao julgar improcedente o recurso, o Tribunal a quo incorre em contradição porque só é possível julgar improcedente um recurso cujo mérito se pode apreciar caso contrário o mesmo deve ser rejeitado por inadmissível.

Nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou, pelo menos, falta de fundamentação
  • A recorrente qualifica este vício à luz do disposto no artigo 379.º n.º 1 - c) do CPP;
  • Alega que a decisão recorrida não se debruçou, em absoluto, sobre os concretos documentos a seguir enunciados e respetiva informação, que fundamentaram a impugnação judicial da decisão administrativa, não tendo as questões objeto dessa impugnação sido apreciadas pelo Tribunal a quo;
  • O Tribunal a quo não apreciou omérito do recurso, nem a correcçãoda decisão da AdC que indeferiu a proteção da confidencialidade dos documentos seguintes:
  • LusiadasSA-0040, LusiadasSA-0375, LusiadasSA-0381, LusiadasSA-0476, LusiadasSA-0480, LusiadasSA-0482, LusiadasSA-0483, LusiadasSA-0484, LusiadasSA-0532, LusiadasSA-0550, LusiadasSA-0593, LusiadasSA-0665, LusiadasSA-0674, LusiadasSA-0675, LusiadasSA-0682, LusiadasSA-0700, LusiadasSA-0755, LusiadasSA-0779, LusiadasSA-0835, LusiadasSA-0839, LusiadasSA-0854, LusiadasSA-0868, LusiadasSA-0869, LusiadasSA-0885, LusiadasSA-0956, LusiadasSA-1001, LusiadasSA-1004, LusiadasSA-1006, LusiadasSA-1009, LusiadasSA-1019, LusiadasSA-1027, LusiadasSA-1028, LusiadasSA-1032, LusiadasSA-1063, LusiadasSA-1070, LusiadasSA-1074, LusiadasSA-1080, LusiadasSA-1452, LusiadasSA-1453, LusiadasSA-1474, LusiadasSA-1475, LusiadasSA-1563, LusiadasSA-1575, LusiadasSA-1581, LusiadasSA-1583, LusiadasSA-1587, LusiadasSA-1588, LusiadasSA-1592, LusiadasSA-1593, LusiadasSA-1594, LusiadasSA-1595, LusiadasSA-1604, LusiadasSA-1606, LusiadasSA-1612, LusiadasSA-1915, LusiadasSA-2037, LusiadasSA-2051, LusiadasSA-2107, LusiadasSA-2116, LusiadasSA-2122, LusiadasSA-2131, LusiadasSA-2132, LusiadasSA-2133, LusiadasSA-2135, LusiadasSA-2177, LusiadasSA-2181, LusiadasSA-2201, LusiadasSA-2245, LusiadasSA-2253,LusiadasSA-2254, LusiadasSA-2257, LusiadasSA-2259
  • O fundamento de recusa da protecção da confidencialidade destes documentos, invocado pela AdC, consiste essencialmente em que os mesmos integram a prática de uma infracção e, por isso, os interesses em questão não são dignos de protecção legal;
  • A recorrente defende que, tal interpretação do artigo 30.º n.º 1 do RJC feita pela AdC é contrária aos artigos 20.º n.ºs 1 e 4, 32.º n.ºs 2 e 10, 26.º, 61.º n.º 1 e 62.º da Constituição da República Portuguesa (doravante também CRP) e ao artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante também CEDH); o que, esvazia de sentido o regime legal da protecção dos segredos de negócio, constante dos artigos 31.º e 33.º da RJC; não tendo o Tribunal a quo apreciado essa questão, apesar de suscitada no recurso de impugnação judicial;
  • Documentos LusiadasSA-0129, LusiadasSA-0138, LusiadasSA-0188, LusiadasSA-0232, LusiadasSA-0246, LusiadasSA-0254, LusiadasSA-0330, LusiadasSA-0358, LusiadasSA-0398, LusiadasSA-0469, LusiadasSA-0472, LusiadasSA-0498, LusiadasSA-0514, LusiadasSA-0561, LusiadasSA-0570, LusiadasSA-0579, LusiadasSA-0595, LusiadasSA-0600, LusiadasSA-0614, LusiadasSA-0618, LusiadasSA-0624, LusiadasSA-0629, LusiadasSA-0634, LusiadasSA-0649, LusiadasSA-0657, LusiadasSA-0711, LusiadasSA-0712, LusiadasSA-0732, LusiadasSA-0733, LusiadasSA-0756, LusiadasSA-0767, LusiadasSA-0771, LusiadasSA-0831, LusiadasSA-0837, LusiadasSA-0865, LusiadasSA-0888, LusiadasSA-0983, LusiadasSA-1043, LusiadasSA-1044, LusiadasSA-1046, LusiadasSA-1069, LusiadasSA-1088, LusiadasSA-1090, LusiadasSA-1091, LusiadasSA-1096, LusiadasSA-1100, LusiadasSA-1110, LusiadasSA-1115, LusiadasSA-1122, LusiadasSA-1124, LusiadasSA-1126, LusiadasSA-1131, LusiadasSA-1135, LusiadasSA-1143, LusiadasSA-1149, LusiadasSA-1158, LusiadasSA-1176, LusiadasSA-1206, LusiadasSA-1209, LusiadasSA-1212, LusiadasSA-1215, LusiadasSA-1218, LusiadasSA-1223, LusiadasSA-1239, LusiadasSA-1241, LusiadasSA-1248, LusiadasSA-1253, LusiadasSA-1256, LusiadasSA-1257, LusiadasSA-1260, LusiadasSA-1261, LusiadasSA-1266, LusiadasSA-1272, LusiadasSA-1289, LusiadasSA-1291, LusiadasSA-1292, LusiadasSA-1295, LusiadasSA-1296, LusiadasSA-1308, LusiadasSA-1315, LusiadasSA-1333, LusiadasSA-1334, LusiadasSA-1341, LusiadasSA-1344, LusiadasSA-1348, LusiadasSA-1356, LusiadasSA-1361, LusiadasSA-1364, LusiadasSA-1385, LusiadasSA-1386, LusiadasSA-1388, LusiadasSA-1392, LusiadasSA-1397, LusiadasSA-1403, LusiadasSA-1407, LusiadasSA-1413, LusiadasSA-1418, LusiadasSA-1419, LusiadasSA-1424, LusiadasSA-1466, LusiadasSA-1467, LusiadasSA-1481, LusiadasSA-1483, LusiadasSA-1512, LusiadasSA-1517, LusiadasSA-1522, LusiadasSA-1526, LusiadasSA-1527, LusiadasSA-1528, LusiadasSA-1535, LusiadasSA-1552, LusiadasSA-1554, LusiadasSA-1599, LusiadasSA-1600, LusiadasSA-1618, LusiadasSA-1620, LusiadasSA-1626, LusiadasSA-1628, LusiadasSA-1632, LusiadasSA-1634, LusiadasSA-1635, LusiadasSA-1637, LusiadasSA-1645, LusiadasSA-1664, LusiadasSA-1666, LusiadasSA-1677, LusiadasSA-1678, LusiadasSA-1680, LusiadasSA-1681, LusiadasSA-1709, LusiadasSA-1715, LusiadasSA-1722, LusiadasSA-1723, LusiadasSA-1728, LusiadasSA-1729, LusiadasSA-1732, LusiadasSA-1735, LusiadasSA-1737, LusiadasSA-1738, LusiadasSA-1739, LusiadasSA-1740, LusiadasSA-1741, LusiadasSA-1742, LusiadasSA-1747, LusiadasSA-1750, LusiadasSA-1751, LusiadasSA-1752, LusiadasSA-1753, LusiadasSA-1754, LusiadasSA-1757, LusiadasSA-1759, LusiadasSA-1760, LusiadasSA-1761, LusiadasSA-1762, LusiadasSA-1763, LusiadasSA-1764, LusiadasSA-1784, LusiadasSA-1789, LusiadasSA-1797, LusiadasSA-1800, LusiadasSA-1801, LusiadasSA-1804, LusiadasSA-1810, LusiadasSA-1813, LusiadasSA-1816, LusiadasSA-1817, LusiadasSA-1821, LusiadasSA-1825, LusiadasSA-1826, LusiadasSA-1828, LusiadasSA-1831, LusiadasSA-1834, LusiadasSA-1835, LusiadasSA-1836, LusiadasSA-1837, LusiadasSA-1838, LusiadasSA-1843, LusiadasSA-1856, LusiadasSA-1858, LusiadasSA-1863, LusiadasSA-1867, LusiadasSA-1869, LusiadasSA-1872, LusiadasSA-1874, LusiadasSA-1875, LusiadasSA-1876, LusiadasSA-1877, LusiadasSA-1881, LusiadasSA-1882, LusiadasSA-1883, LusiadasSA-1895, LusiadasSA-1896, LusiadasSA-1900, LusiadasSA-1905, LusiadasSA-1907, LusiadasSA-1913, LusiadasSA-1918, LusiadasSA-1921, LusiadasSA-1922, LusiadasSA-1934, LusiadasSA-1939, LusiadasSA-1941, LusiadasSA-1942, LusiadasSA-1944, LusiadasSA-1950, LusiadasSA-1955, LusiadasSA-1957, LusiadasSA-1962, LusiadasSA-1964, LusiadasSA-1968, LusiadasSA-1969, LusiadasSA-1972, LusiadasSA-1977, LusiadasSA-1987, LusiadasSA-1990, LusiadasSA-1991, LusiadasSA-1993, LusiadasSA-1995, LusiadasSA-1996, LusiadasSA-1997, LusiadasSA-2000, LusiadasSA-2001, LusiadasSA-2002, LusiadasSA-2008, LusiadasSA-2015, LusiadasSA-2017, LusiadasSA-2022, LusiadasSA-2023, LusiadasSA-2024, LusiadasSA-2029, LusiadasSA-2030, LusiadasSA-2032, LusiadasSA-2034, LusiadasSA-2035, LusiadasSA-2036, LusiadasSA-2057, LusiadasSA-2062, LusiadasSA-2068, LusiadasSA-2069, LusiadasSA-2072, LusiadasSA-2073, LusiadasSA-2086, LusiadasSA-2087, LusiadasSA-2088, LusiadasSA-2090, LusiadasSA-2100, LusiadasSA-2127, LusiadasSA-2129, LusiadasSA-2130, LusiadasSA-2145, LusiadasSA-2146, LusiadasSA-2151, LusiadasSA-2165, LusiadasSA-2175, LusiadasSA-2186, LusiadasSA-2188, LusiadasSA-2191, LusiadasSA-2193, LusiadasSA-2206, LusiadasSA-2209, LusiadasSA-2211, LusiadasSA-2216, LusiadasSA-2239, LusiadasSA-2242, LusiadasSA-2244, LusiadasSA-2251, LusiadasSA-2260, LusiadasSA-2288, LusiadasSA-2320, LusiadasSA-2322, LusiadasSA-2323, LusiadasSA-2327, LusiadasSA-2329
  • A AdC recusou a protecção da confidencialidade destes documentos por constituírem elementos da infracção e por não ter ficado demonstrado que a sua divulgação implique perda de capacidade competitiva da recorrente ou lhe acarrete prejuízo sério;
  • A recorrente cumpriu o ónus de: (i)-identificar as informações que considera confidenciais; (ii)-fundamentar essa identificação; (iii)-fornecer uma cópia não confidencial desses documentos, expurgados os elementos confidenciais; adicionalmente, a recorrente identificou as informações que eram do conhecimento de um número restrito de pessoas e justificou porque que é que a sua divulgação era suscetível de lhe causar um prejuízo sério;
  • A recorrente, porém, não impugnou o procedimento de classificação de segredos de negócio, diversamente, impugnou a decisão da AdC que considerou que os interesses em causa não são dignos de protecção legal e que, a divulgação dessa informação não acarreta perda de capacidade competitiva;
  • O Tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão; limitou-se a apreciar o procedimento de classificação de segredos de negócio e o vício de falta de fundamentação da decisão administrativa, questões que não foram suscitadas pela recorrente na impugnação judicial.

Erro de direito ou de julgamento
  • O Tribunal a quo, ao definir o objecto da impugnação judicial no parágrafo 16 da sentença recorrida, excluiu do âmbito da apreciação judicial a informação que, ainda que possa ser confidencial, esteja relacionada com a prática da infracção;
  • Uma tal interpretação, conduz a uma solução que infringe o regime previsto nos artigos 30.º, 31º e 33.º do RJC e nos artigos 20.º n.ºs 1 e 4, 32.º n.ºs 2 e 10, 26.º, 61.º n.º 1 e 62.º da CRP;
  • A exigência, feita pela AdC e pelo Tribunal a quo, nos parágrafos 21 e 22 da sentença recorrida, de um ónus acrescido de fundamentação da confidencialidade por parte da recorrente, de tal modo que isso implica a divulgação à AdC de informação adicional protegida pelo regime dos segredos de negócio, é contraria ao princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º n.º 2 da CRP;
  • A recorrente invoca as inconstitucionalidades acima apontadas nos termos dos artigos 70.º e 71.º da Lei orgânica do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro).

5.–A AdC respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso, concluindo, em síntese, que:
  • A AdC não antevê qualquer vício ou erro de julgamento na sentença recorrida;
  • Para ser considerada segredo de negócio, é necessário que a informação que se quer confidencial cumpra, cumulativamente, três requisitos: seja do conhecimento restrito de certas pessoas; possa causar um prejuízo sério à empresa caso seja divulgada; e os interesses que possam ser lesados pela divulgação da informação sejam objetivamente dignos de proteção;
  • De acordo com a jurisprudência europeia e nacional, a informação que ateste práticas comerciais ilícitas não poderá consubstanciar interesses dignos de proteção e, por isso, não cumpre o terceiro requisito;
  • O ónus de demonstrar que a informação aqui em causa é digna de protecção confidencial impende sobre a recorrente que não logrou cumpri-lo.

6.–O Ministério Público respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, concluindo, em síntese, que:
  • Os vícios invocados pela recorrente e previstos no artigo 410.º do CPP têm de resultar tão somente da leitura da decisão recorrida, ou, quanto muito, dessa leitura conjugada com as regras da experiência comum, o que não sucede no caso em análise uma vez que a leitura da sentença recorrida não evidencia tais vícios;
  • Nos termos do artigo 75.º do Regime Geral das Contraordenações (doravante também RGCO), os poderes de cognição do Tribunal da Relação restringem-se à matéria de direito;
  • Os vícios que a recorrente alega devem qualificar-se, antes, como mera discordância sobre a natureza do recurso previsto no artigo 85.º do RJC;
  • É duvidoso que o disposto no artigo 20.º n.º 5 da CRP se aplique às pessoas colectivas, como defende a recorrente;
  • A impugnação judicial da decisão administrativa interlocutória foi configurada pelo legislador como um recurso de anulação não podendo o Tribunal a quo substituir-se à autoridade administrativa como sucede no recurso da decisão final;
  • Sem que isso signifique que a bondade da decisão interlocutória da AdC esteja subtraída ao controlo judicial;
  • Em matéria de recursos existem, porém, diferenças entre as garantias em processo penal e em processo contraordenacional, solução que é conforme ao artigo 8.º da CRP;
  • Dentro do quadro legal, constitucional e jurisprudêncial aplicável, Tribunal a quo avaliou correctamente a suficiência e a racionalidade da fundamentação da decisão da AdC.

7.Foi cumprido o disposto no artigo 417.º do CPP, tendo o digno magistrado do Ministério Público na segunda instância emitido parecer que acompanha a resposta ao recurso apresentada pelo digno magistrado do Ministério Publico na primeira instância.

8.Admitido o recurso, mantido o seu efeito e corridos os vistos, cumpre decidir.

Delimitação do âmbito do recurso

9.São as seguintes, as questões suscitadas com relevo para a decisão do recurso:

A.Poderes de cognição do Tribunal da Relação
B.Omissão de pronúncia
C.Contradição insanável entre a decisão judicial e os seus fundamentos e natureza do recurso de decisão interlocutória da AdC
D.Falta de fundamentação
E.Erro de direito na apreciação do regime dos segredos de negócio.

Factos provados constantes da decisão recorrida
Nota preliminar: as alíneas indicadas na decisão recorrida mantêm-se infra, para facilitar a leitura.

10.a)-O PRC 2019/2 corre termos na Autoridade da Concorrência visando, entre outras, LUSÍADAS, SA, pelo incurso em alegadas práticas restritivas da concorrência.

11.b)-A Autoridade da Concorrência notificou a Recorrente, através do ofício 2020/5558, datado de 21 de dezembro de 2020, com vista a iniciar o procedimento de classificação de eventuais segredos de negócio, assim identificando, de maneira fundamentada, as informações apreendidas consideradas confidenciais por motivo de segredo de negócio, e sendo o caso juntarem versão não confidencial desses documentos (mais se informando as empresas de que, nos termos da lei, a não identificação de eventuais confidencialidades, a falta de fundamentação ou a falta de envio de versão não confidencial de documentos confidenciais determina a publicidade da informação), bem como para identificarem, de maneira fundamentada, as informações constantes das respostas aos pedidos de elementos consideradas confidenciais, tudo seguido em ficheiros excel, cujo conteúdo se considera reproduzido.

12.c)-A Recorrente, após o deferimento de prorrogações de prazo, apresentou pronúncia a 20 de Abril de 2021.

13.d)-A Autoridade da Concorrência apresentou, a 28 de Maio de 2021 (ofício número 2021/1491), o sentido provável de decisão, concedendo uma nova oportunidade à recorrente para se pronunciar e bem assim remeter as versões não confidenciais.

14.e)-A recorrente, a 22 de junho de 2021, respondeu ao ofício mencionado.

15.f)-A Autoridade da Concorrência veio a proferir decisão final, através do ofício com o número 2021/1883, de 6 de julho de 2021, na qual indeferiu o pedido de proteção de confidencialidades da recorrente.

16.g)-A 29.07.2021, Autoridade da Concorrência adoptou nota de ilicitude contra, entre outras, a aqui recorrente.

Apreciação do recurso

17.Quadro legal relevante para a decisão:

Código de Processo Penal ou CPP
  • Artigo 123.º n.º 2
(...)2- Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
  • Artigo 374.º nº 2
Requisitos da sentença
(...)2-Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (...)
  • Artigo 379.º
Nulidade da sentença
1- É nula a sentença:
a)- Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b)- Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c)- Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2- As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3- Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.
  • Artigo 410.º
Fundamentos do recurso
1- Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)- Erro notório na apreciação da prova.
3-O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Regime Geral das Contraordenações
  • Artigo 41.º n.º 1
1- Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. (...)
  • Artigo 74.º n.º 4
(...)4- O recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma.
  • Artigo 75.º
Âmbito e efeitos do recurso
1- Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2- A decisão do recurso poderá:
a)-Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A;
b)- Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.

Regime Jurídico da Concorrência
  • Artigo 9.º
Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas
1São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em:
a)- Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação;
b)- Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
c)- Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
d)- Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;
e)- Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
f)- Estabelecer, no âmbito do fornecimento de bens ou serviços de alojamento em empreendimentos turísticos ou estabelecimentos de alojamento local, que o outro contraente ou qualquer outra entidade não podem oferecer, em plataforma eletrónica ou em estabelecimento em espaço físico, preços ou outras condições de venda do mesmo bem ou serviço que sejam mais vantajosas do que as praticadas por intermediário, que atue através de plataforma eletrónica.
2Exceto nos casos em que se considerem justificados, nos termos do artigo seguinte, são nulos os acordos entre empresas e as decisões de associações de empresas proibidos pelo número anterior.
  • Artigo 13.º n.º 1
1 Os processos por infração ao disposto nos artigos 9.º, 11.º e 12.º regem-se pelo previsto na presente lei e, subsidiariamente, pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. (...)
  • Artigo 30.º
Segredos de negócio
1Na instrução dos processos, a Autoridade da Concorrência acautela o interesse legítimo das empresas, associações de empresas ou outras entidades na não divulgação dos seus segredos de negócio, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo seguinte.
2Após a realização das diligências previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 18.º, a Autoridade da Concorrência concede ao visado pelo processo prazo, não inferior a 10 dias úteis, para identificar, de maneira fundamentada, as informações recolhidas que considere confidenciais por motivo de segredos de negócio, juntando, nesse caso, uma cópia não confidencial dos documentos que contenham tais informações, expurgada das mesmas.
3Sempre que a Autoridade da Concorrência pretenda juntar ao processo documentos que contenham informações suscetíveis de ser classificadas como segredos de negócio, concede à empresa, associação de empresas ou outra entidade a que as mesmas se referem a oportunidade de se pronunciar, nos termos do número anterior.
4Se, em resposta à solicitação prevista nos n.os 2 e 3 ou no artigo 15.º, a empresa, associação de empresas ou outra entidade não identificar as informações que considera confidenciais, não fundamentar tal identificação ou não fornecer cópia não confidencial dos documentos que as contenham, expurgada das mesmas, as informações consideram-se não confidenciais.
5Se a Autoridade da Concorrência não concordar com a classificação da informação como segredos de negócio, informa a empresa, associação de empresas ou outra entidade de que não concorda no todo ou em parte com o pedido de confidencialidade.
  • Artigo 83.º
Regime processual
Salvo disposição em sentido diverso da presente lei, aplicam-se à interposição, à tramitação e ao julgamento dos recursos previstos na presente secção os artigos seguintes e, subsidiariamente, o regime geral do ilícito de mera ordenação social.
  • Artigo 85.º
Recurso de decisões interlocutórias
1–Interposto recurso de uma decisão interlocutória da Autoridade da Concorrência, o requerimento é remetido ao Ministério Público no prazo de 20 dias úteis, com indicação do número de processo na fase organicamente administrativa.
2–O requerimento é acompanhado de quaisquer elementos ou informações que a Autoridade da Concorrência considere relevantes para a decisão do recurso, podendo ser juntas alegações.
3–Formam um único processo judicial os recursos de decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência proferidas no mesmo processo na fase organicamente administrativa.
  • Artigo 89.º n.º 1
Recurso da decisão judicial
1– Das sentenças e despachos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão cabe recurso para o tribunal da relação competente, que decide em última instância. (...)

Portaria 280/2013 de 26 de Agosto
  • Artigo 1.º n.ºs 1 e 3
Objeto e âmbito
1 A presente portaria regulamenta a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais. (..)
3 No que respeita à tramitação eletrónica nos tribunais judiciais de 1.ª instância das impugnações judiciais das decisões e das demais medidas das autoridades administrativas tomadas em processo de contraordenação, o regime previsto na presente portaria é aplicável apenas a partir do momento em que os autos são presentes ao juiz.

Apreciação das questões suscitadas pelo recurso

A.Poderes de cognição do Tribunal da Relação

18.A título liminar importa sublinhar que o presente recurso, que tem por objecto uma decisão interlocutória da AdC, de recusa em classificar como confidencial o conteúdo de 348 documentos apreendidos durante uma busca, se encontra regulamentado no artigo 85.º do Rejime Jurídico da Concorrência ou RJC, aplicando-se, subsidiariamente o disposto no Regime Geral das Contraordenações ou RGCO, aprovado pelo DL 433/82 de 27 de Outubro, modificado pela última vez pela Lei 109/2001 de 24 de Dezembro, em particular, os artigos 74.º e 75.º do RGCO.

19.À luz do regime acima mencionado, importa igualmente referir que, os poderes de cognição deste Tribunal se limitam à matéria de direito consoante prevê o artigo 75.º n.º 1 do RGCO, podendo, não obstante, o Tribunal da Relação conhecer dos vícios decisórios constantes do artigo 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP, aplicável ao presente recurso, por força dos artigos 83.º e 85.º do RJC e 74.º n.º 4 e 75.º do RGCO, desde que tais vícios sejam invocados na motivação de recurso.

20.Dito isto, a recorrente alega e com razão, que a decisão recorrida não se debruçou, em absoluto, sobre os concretos documentos em causa e a respetiva informação, que fundamentaram a impugnação judicial da decisão administrativa, não tendo as questões objeto do recurso de impugnação sido apreciadas pelo Tribunal a quo, que, sem que a recorrente tenha suscitado tais questões, se pronunciou sobre o procedimento de classificação dos documentos e sobre a falta de fundamentação da decisão administrativa. Tais vícios encontram-se previstos nos artigos 379.º n.º 1 – a) e 374.º n.º 2 (falta de fundamentação) e 379.º n.º 1 – c) (omissão/excesso de pronúncia).  Tendo sido invocados, este Tribunal pode deles conhecer ao abrigo do disposto no artigo 410.º n.º 3 do CPP, aplicável por força dos artigos 83.º do RJC e 74.º n.º 4 do RGCO, na medida em que resultem do texto da decisão recorrida, só por si, ou conjugada com as regras da experiência comum. A recorrente invoca ainda a contradição insanável entre a decisão judicial e os seus fundamentos, vício previsto no artigo 410.º n.º 2 – b) do CPP, que o Tribunal, porém, apreciará à luz da natureza do recurso de impugnação judicial da decisão interlocutória em crise, previsto no artigo 85.º do RJC, pelos motivos a seguir indicados.

21.Assim, o Tribunal começa por apreciar a omissão de pronúncia, seguidamente apreciará a natureza do recurso de impugnação judicial em primeira instância e por fim, a falta de fundamentação. A apreciação da última questão acima enunciada no parágrafo 9  –  erro de direito na apreciação do regime dos segredos de negócio – fica prejudicada pela nulidade da sentença recorrida.

B.Omissão de pronuncia

22.Os fundamentos da impugnação judicial da decisão administrativa foram o mérito, a legalidade, dos motivos indicados pela AdC para indeferir o tratamento confidencial de 348 documentos apreendidos à recorrente. Em particuar, a recorrente colocou ao Tribunal de primeira instância, duas questões: a questão de saber se a circunstância de a informação constante dos documentos poder consubstanciar uma infracção, é impeditiva da sua protecção legal como segredos de negócio; e a questão de saber se a informação que a recorrente forneceu para justificar a confidencialidade, é suficiente para demonstrar que a divulgação da informação prejudica a sua capacidade competitiva. É o que se extrai da leitura da impugnação judicial em primeira instância, peça processual junta com a referência citius 312759, em particular dos artigos 23.º a 30º, 95º a 98º, 114º, 122º, 132º, 143º, 146º, 154º, 161º, 166º, 184º e das conclusões n.ºs 17 a 33 da mesma.

23.Porém, a decisão recorrida não apreciou as questões indicadas no parágrafo anterior, que constituem os fundamentos da impugnação judicial; diversamente, apreciou o procedimento de classificação de segredos de negócio e o vício de falta de fundamentação da decisão administrativa, questões essas que não foram suscitadas pela recorrente como fundamento da impugnação judicial.

24.A este propósito, a sentença recorrida refere o seguinte: “Fica assim delimitado o objeto do recurso: i) procedimento de classificação de segredos de negócio; ii) vício de falta de fundamentação.”  E foram estas as questões que apreciou sem se pronunciar sobre as questões que serviram de fundamento à impugnação judicial.

25.Ora, atendendo ao regime previsto nos artigos 119.º e 120.º do CPP, aplicável na fase da impugnação judicial por força do artigo 41.º do RGCO, as nulidades que, não sendo insanáveis, não sejam invocadas na motivação de recurso, consideram-se sanadas (cf. M. Simas Santos e M Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, volume II, 2.ª edição, Rei dos Livros, página 576).

26.Pelo que, a decisão recorrida deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, por não terem sido invocadas nem serem do conhecimento oficioso, o que a torna nula por força do disposto nos artigos 379.º n.º 1 – c) e 410.º n.º 3 do CPP.

27.Pelos motivos a seguir expostos, que se prendem com a falta de fundamentação da sentença recorrida, terá de ser proferida nova decisão no Tribunal recorrido, pelo que este Tribunal não pode suprir a nulidade acima apontada devida a omissão/excesso de pronúncia – artigo 379.ºn.º 3 do CPP.

C.Contradição insanável entre a decisão judicial e os seus fundamentos e natureza do recurso de decisão interlocutória da AdC

28.Como já foi acima referido no parágrafo 20 – e nessa parte tem razão o digno magistrado do Ministério Público – os fundamentos alegados pela recorrente para arguir o vicio decisório emergente da contradição insanável entre a decisão e os seus fundamentos traduzem-se, não numa contradição, mas numa discordância relativamente à natureza do recurso da decisão interlocutória da AdC, previsto no artigo 85.º do RJC.

29.Com efeito, o Tribunal de primeira instância não apreciou o mérito da decisão administrativa (de classificação dos 348 documentos objecto do recurso) porque julgou que a mesma não é judicialmente sindicável. A recorrente entende, com razão, que é.

30.Na verdade, nos casos em que o visado põe em causa a validade da decisão administrativa, em regra deve suscitar a nulidade da mesma perante a AdC e só se esta julgar improcedente essa pretensão é que o visado pode recorrer judicialmente. Porém, não é esse o objecto do presente recurso. Neste, a recorrente  não põe em causa a validade da decisão prevista no artigo 30.º n.º 5 do RJC mas apenas discorda do mérito dessa decisão. Pelo que, nesse caso deve impugnar directa e judicialmente a decisão interlocutória da AdC, tal como sucedeu (cf. Lei da Concorrência, Comentário Conimbricense, 2.ª Edição, Almedina, página 965).

31.Ou seja, embora o processo administrativo esteja em curso na AdC, não cabendo ao Tribunal, nesta fase, substituir-se à autoridade administrativa e impor-lhe o cumprimento das suas decisões, afigura-se que isso não tem por consequência que o Tribunal não possa e não deva mesmo apreciar o mérito da decisão da AdC, quando esta é impugnada, como prevê o artigo 85.º do RJC. Sob este aspecto, tem razão o digno magistrado do Ministério Público ao alegar que a bondade da decisão da AdC não está subtraída ao controlo judicial. Ou seja, apesar do RJC não ser claro quanto às consequências da discordância da decisão tomada pela AdC ao abrigo do artigo 30.º n.º 5 do RJC, afigura-se que o recurso previsto no artigo 85.º do RJC tem por finalidade permitir ao Tribunal de primeira instância apreciar o mérito da decisão administrativa, que o Tribunal pode manter ou anular, e.g. se entender que se verificam os presssupostos legais do tratamento confidencial ou que foi violado o princípio da proporcionalidade ou que foi infringida alguma proibição de prova prevista pelo artigo 31.º n.º 2 do RJC. Se o Tribunal anular a decisão administrativa interlocutória, a AdC, ou adopta nova decisão conforme à lei, ou prescinde de usar a informação em causa. O que o Tribunal de primeira instância não pode é susbtituir a decisão da AdC por outra, fora dos casos previstos no artigo 88.º do RJC mas isso não tem por consequência, eximir-se de controlar o mérito de uma decisão interlocutória da AdC e de a anular, se for o caso.

32.Pelo que, nessa parte, tem razão a recorrente. Também pelos motivos agora enunciados, o Tribunal de primeira instância deve pronunciar-se sobre o mérito da decisão da AdC, nomeadamente sobre as questões mencionadas no parágrafo 22, que constituem os fundamentos da impugnação judicial.

D.Falta de fundamentação

33.Por último, tal como alega a recorrente, a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, na medida em que:
  • Não enumera, entre os factos provados ou não provados, o conteúdo dos 348 documentos em causa no recurso, factos esses alegados nos artigos 23.º a 29.º da impugnação judicial;
  • Contrariamente ao que menciona (cf. parágrafo 33 infra), não dá por reproduzido, nos factos provados, o teor de nenhum documento;
  • Não enumera, entre os factos provados ou não provados, a informação sobre os documentos em crise, factos esses alegados nos artigos 23.º a 29.º da impugnação judicial, a saber, o teor completo da justificação dada pela recorrente para a confidencialidade de cada um dos 348 documentos e o teor da fundamentação da decisão final proferida pela AdC quanto a cada um dos 348 documentos;
  • Não especifica nenhum facto não provado;
  • Não indica os meios de prova que motivaram a decisão sobre a matéria de facto de forma que permita compreender que meios de prova serviram para fundamentar a convicção sobre os concretos factos provados transcritos nos parágrafos 10 a 16, limitando-se a fazer uma referência genérica aos documentos juntos aos autos e a “ficheiros excel”;
  • Não faz o exame critico dos meios de prova.

34.Os vícios mencionados no parágrafo 33 resultam do texto da decisão recorrida, em particular da que foi transcrita nos parágrafos 10 a 16 deste acórdão, conjugada com a indicação dos motivos da decisão de facto, que consta da sentença recorrida como se segue: “O fundamento e motivação da matéria de facto anteriormente enunciada redunda de mera prova documental, de teor não controvertido, conquanto representa em si mesma o fundamento processual do recurso, imediatamente intuído pela consulta dos autos, nomeadamente documentos certificados e juntos com as alegações pela Defesa e pela Autoridade da Concorrência. Mais se exara que, sem prejuízo de ser reconhecido como deficiente técnica expositiva de factos a mera consignação da sua reprodução, certo é que, considerada a especificidade dos autos, parece-nos ser a mais consentânea com uma desejável economia de meios, ademais quando sobrevém matéria patente em formato eletrónico (ficheiros excel). E nada mais se considerou por não oferecer relevo, por ser de teor conclusivo ou por configurar juízos de Direito”.

35.A este propósito, importa sublinhar que o vício de falta de fundamentação, invocado pela recorrente, deve, neste caso, ser qualificado à luz do disposto nos artigos  374.º  n.º 2 e 379.º n.º 1 – a) do CPP, preceitos dos quais resulta que, a enumeração dos factos provados e não provados deve integrar a fundamentação e deve obrigatoriamente constar da sentença, uma vez que se traduz na tomada de posição por parte do Tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e, sobre os quais a decisão tem de incidir, neles se incluindo, em particular, os factos alegados nos artigos 23.º a 29.º da impugnação judicial junta com a referência citius 312759, ou seja, os documentos cuja confidencialidade está em crise e a informação a eles respeitante, aí alegada pela recorrente.

36.A fundamentação exigida pelo artigo 374.º n.º 2 do CPP quanto à matéria de facto, tem por objectivo explicar o processo de formação da convicção do julgador, o que pressupõe a indicação dos meios de prova que motivaram a decisão e o exame crítico da prova que serviu para formar a convicção do Tribunal, de modo a dar a conhecer de modo conciso, mas suficientemente inteligível, o percurso lógico e racional efectuado pelo julgador quando apreciou e valorou a prova e que, conduziu à demonstração, ou não, dos factos objecto da decisão recorrida.

37.O exame crítico das provas é assim uma exigência do artigo 374.º n.º 2 do CPP que deve ser cumprida mediante a indicação das razões pelas quais o Tribunal valorou determinados meios de prova como idóneos e credíveis e entendeu que outros, em sentido diverso, não eram atendíveis, explicitando os critérios lógicos e racionais que utilizou nessa apreciação valorativa, de modo a permitir que os destinatários e o Tribunal superior, em sede de recurso, possam aferir a concreta utilização que o julgador fez do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP (aplicável por força dos artigo 41.º do RGCO e 83.º do RJC) e dos demais critérios legais que devem ser observados, consoante a natureza dos meios de prova produzidos.

38.Ora nada disso foi feito. O Tribunal de primeira instância limitou-se a indicar que fundamentou a sua convicção na “prova documental”, sem especificar ou identificar documentos concretos; menciona que tal prova representa o fundamento do recurso “intuido” pela consulta dos autos; refere-se genércamente aos “documentos certificados juntos com as alegações” sem indicar a que folhas ou com que referência citius se encontram juntos ao processo electrónico ou de que documentos se trata, ou para prova de que factos concretos serviu, respectivamente, cada um desses documentos e porquê; refere-se a “matéria patente em formato electrónico”, mencionando entre parentesis “(ficheiros excel”), sem indicar quantos, nem qual seja essa “matéria patente” e com que referência citius se encontra junta ao processo electrónico. Afirma que “nada mais considerou” embora não enumere nem se refira especificamente a factos não provados.

39.Este Tribunal ignora se, nos trechos acima citados, a decisão recorrida se está a referir ao ficheiro excel junto ao processo judicial electrónico com a referência citius 328997, na medida em que, como já foi explicado, o teor desse documento não é dado por reproduzido no elenco dos factos provados, contrariamente ao que parece resultar da motivação, nem a decisão recorrida indica qualquer referência citius que o permita identificar. A esse propósito, o Tribunal constata que este processo foi recebido na segunda instância com dois discos externos, conforme cota lavrada com a referência citius 18528268, ignorando o Tribunal da Relação, por não constar da sentença recorrida, quais os elementos de prova ai constantes que foram concretamente levados em conta pelo Tribunal a quo quando se refere a “matéria patente em formato electrónico”. Nos termos do artigo 1.º n.º 3 da Portaria 280/2013 os documentos juntos às peças processuais têm, em regra, de ser obrigatóriamente inseridos no processo judicial electrónico e tramitados no citius, o que parece ter sucedido pelo menos com o ficheiro excel mencionado no início deste parágrafo, o qual, porém, não é totalmente legível. Isto porque as células do quadro excel, que contêm a justificação dada pela recorrente para a confidencialidade e os fundamentos de indeferimento pela AdC, não foram ajustadas ao texto nelas  contido, como deveria ter sucedido. Cabe, porém, ao Tribunal de primeira instância indagar os factos de modo a suprir a falta de fundamentação aqui apontada e, nesse contexto, ordenar o que tiver por conveniente para que os meios de prova sejam tramitados nos autos pela forma legalmente prevista na Portaria 280/2013, usando se necessário os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 123.º n.º 2 do CPP, aplicavel por força dos artigos 41.º do RGCO e 83.º do RJC.

40.No caso em análise, não tendo o Tribunal de primeira instância cumprido o dever de se pronunciar sobre todos factos e tendo omitido aspectos considerados essenciais para a fundamentação da sentença, esta é nula.

41.Com efeito, ao não determinar, de acordo com a prova produzida, a verificação ou não verificação de factos que foram alegados pela recorrente e se mostram relevantes para a decisão das questões que servem de base à impugnação judicial, o Tribunal a quo omitiu um dos deveres considerados essenciais para a fundamentação da sentença.

42.Tal como defende a recorrente, a matéria alegada na impugnação judicial, a saber o teor dos 348 documentos aqui em causa e a informação sobre os mesmos –  factos alegados nos artigos 23.º a 29.º da impugnação judicial em primeira instância – reveste relevância para a decisão, pelo que, deveria ter sido apreciada na sentença recorrida e incluida na enumeração dos factos provados ou não provados, em função da ponderação dos meios de prova, que o Tribunal a quo tinha o dever de indicar, de modo sucinto mas suficiente e, de analisar criticamente, o que não fez.

43.As omissões apontadas no parágrafo anterior constituem fundamento de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos nos artigos 374.º n.º 2, 379.º n.º 1, alínea a) e 410.º n.º 3 do CPP, devendo o processo ser devolvido ao Tribunal de primeira instância nos termos previstos no artigo 75.º n.º 2 – b) do RGCO, aplicável por força do artigo 83.º do RJC, para que sane os vícios apontados.


E.Erro de direito na apreciação do regime dos segredos de negócio

44.Tendo em conta a nulidade da decisão recorrida e a devolução do processo ao Tribunal de primeira instância, mencionada no parágrafo anterior, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Decisão

Acordam as juízes que compõem a presente secção em conceder provimento ao recurso e em conformidade:

I.Declarar nula a sentença recorrida
II.Devolver os autos ao Tribunal a quo para que profira nova decisão em que sane os vícios e o erro de julgamento mencionados nos parágrafos 22, 26, 32, 42 e 43.  
III.Sem custas – artigo 92.º n.º 1 e 93.º n.º 3, a contrario, do RGCO, aplicaveis por força do artigo 83.º do RJC.



Lisboa, 1 de Junho de 2022



Paula Pott - (relatora) 
Eleonora Viegas - (1.ª adjunta)  
Ana Pessoa - (Presidente)