Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | AMÉLIA ALVES RIBEIRO | ||
Descritores: | ADVOGADOS CORRESPONDÊNCIA PUBLICAÇÃO SIGILO PROFISSIONAL LIBERDADE DE INFORMAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/08/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I. Como é sabido, há um conjunto de normas jurídicas que estabelecem a proteção da correspondência em geral e, em particular, a correspondência coberta pelo sigilo profissional entre os Advogados. II. Tem-se entendido genericamente como segredo profissional a reserva que as pessoas devem guardar relativamente aos factos de que tomam conhecimento no desempenho ou como consequência do exercício das suas funções. Naturalmente que isso deriva da especial confiança que nelas é depositada no ambiente profissional. III. Quem quer que aceda a correspondência eletrónica, entre Advogados, coberta pelo sigilo profissional, sem autorização dos seus autores, incorre em conduta passível de ser qualificada como crime e, por isso, trata-se de conduta manifestamente ilícita. IV. Se a conduta originária (obtenção de informação protegida por sigilo) é uma conduta ilícita, decorre que o aproveitamento dessa informação - que pela sua própria natureza revela estar protegida por sigilo – não é passível de ser considerada uma conduta lícita. V. Não faria, de resto, qualquer sentido que uma entidade pudesse tirar partido económico de uma conduta passível de ser considerada criminosa por parte de uma terceira entidade. VI. Na ponderação de que: (i) não se deteta que, com tal informação, se tenha pretendido acudir a qualquer interesse público do foro crime que pudesse dar origem a um acesso legítimo a tal informação, bem pelo contrário, sobressaindo o interesse económico da empresa que neste caso fez a divulgação da correspondência em causa, por um lado, e (ii) atendendo às regras aplicáveis, por outro, é legítimo concluir que o peso da proteção legal pende mais fortemente para o direito de proteção da correspondência protegida pelo sigilo profissional. VII. Considerando aquelas mesmas regras ( maxime o art. 10º nº 2 da CEDH) e o sistema, tomado no seu conjunto, estamos perante balizas da convivência democrática que não se confundem com uma censura, que supõe sempre uma arbitrariedade por parte do censor. VIII. Tais regras estabelecem limites delineados em função dos interesses de todos, quer por leis da Assembleia da República, incluindo com funções constituintes, quer por instrumentos internacionais e europeus, subscritos por Estados que firmaram um consenso sobre essa matéria e em que Portugal é parte. IX. Daí que seja de concluir que não padece do vício de desproporcionalidade a decisão de primeira instância que proíbe a publicação de um artigo jornalístico tendo como fonte a publicação na internet de emails trocados entre Advogados - obtidos através de hacking. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Relação de Lisboa I. Relatório 1. Pretensão sob recurso: revogação da sentença recorrida, devendo, em sua substituição, ser proferido Acórdão que absolva integralmente os recorrentes de todo o peticionado pela recorrida. I.1.1. Pedidos: a) serem os requeridos citados para, sob pena de incorrem no crime de desobediência qualificada previsto no artigo 375.º do Código de Processo Civil, se absterem de usar como fonte de qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, quaisquer e-mails (trocados entre Advogados da Requerente e entre estes e seus constituintes ou terceiros) e/ou documentos produzidos por Advogados da Requerente, que constituem informação que foi objecto de devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking); b) serem os requeridos citados para, sob pena de incorrem no crime de desobediência qualificada previsto no artigo 375.º do Código de Processo Civil, se absterem de utilizar / citar em qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, quaisquer e-mails (trocados entre Advogados da Requerente e entre estes e seus constituintes ou terceiros) e/ou documentos produzidos por Advogados da Requerente, que constituem informação que foi objecto devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking). A requerente alega, em síntese, que: - No passado dia 22 de Dezembro a Requerente for surpreendida pela publicação na internet de emails trocados entre Advogados da Requerente (entre os quais o Dr. JM., Sócio da Requerente) e Advogados de outras sociedades de Advogados, designadamente com os Srs. Drs. PSM. e Sr. Dr. RP. e ainda com dirigentes do SB. - O citado Dr. JM deu imediato conhecimento ao Conselho de Administração da PA. e ao seu Diretor de Informática, os quais, tomaram todas as diligências necessárias para o término desta situação de devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking) e para identificar qual a informação que foi retirada dos servidores e computadores dos Advogados visados por esta prática. - Tais documentos foram exibidos no site “MBP”, inicialmente alojado em http://mercadodebenficapolvo.worldpress.com e atualmente no site .... - A Requerente conseguiu que fosse encerrado o site …., alojado nos Estados Unidos, por via da instauração de um procedimento legal nesse país. - Levou, no entanto, 24 horas até que fosse reaberto o site, desta feita alojado no Irão (!), com o citado endereço …., sendo que, apesar de já terem sido tomadas todas as providências, a Requerente ainda não logrou encerrá-lo. - No entretanto, a Requerente constatou que o objecto da informação alvo hacking ultrapassa, em muito, o exposto no artigo 9.º acima citado, abrangendo comunicações e documentos relacionados com alguns clientes da Requerente. - Citando como exemplo os relatos efetuados nos meios de comunicação que se juntam, a título exemplificativo, como Documentos n.ºs 4 a 9, também disponíveis nos seguintes links: - ….-52 - ….-1 - ….6.html - ….j - ….tica/ - ….os/ - O semanário …., na sua edição online de ontem, 08.01.2019, noticiou o tema (cfr. Documento n.º 5 supra junto …J-1). - Parte da informação recolhida ilegalmente está, como referido, à presente data disponível no blog …/. – Documento n.º 10. - Tudo isto não obstante a Requerente ser dotada das melhores tecnologias em matéria de segurança informática. - A Requerente está ainda a avaliar o impacto desse acesso ilegítimo, muito embora tenha já conhecimento que as caixas de email e os computadores dos seus Advogados Dr. JM (Sócio da Requerente) e Drs. RCP e IAC (Advogados Associados da Requerente) foram acedidas ilegalmente, via hacking, tem também conhecimento de que informação que foi acedida e roubada dos computadores e caixas de emails dos três Advogados acima identificados é informação do arquivo do cliente da Requerente, AM., e de processo de natureza criminal que envolve este Cliente da Requerente. - No dia 8 de janeiro de 2018, às 11.46, o Dr. JM. os foi contactado pelo 5.º Requerido, via email com o assunto “Questões ... sobre o processo 184/12”, e que das perguntas formuladas no e-mail ora transcrito, é possível verificar que o 5.º Requerido –jornalista MP– acedeu a informação obtida ilegalmente, uma vez que seria impossível ter conhecimento destes factos por qualquer outra via legítima. - Do teor do email supra junto resulta evidente que o tema do artigo jornalístico em preparação pelo Requerido tem como base a informação objecto de hacking aos computadores e caixas de email dos três Advogados da Requerente acima referidos, - O que é evidente considerando que o Processo n.º 184/12 referenciado no assunto do email em causa é, precisamente, o processo crime que envolve o cliente da Requerente AM., - E considerando também que parte da informação objecto da (já alegada) devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking) aos servidores informáticos da Requerente está precisamente relacionada com esse processo – o conteúdo dos documentos supra juntos n.ºs 4 a 9 faz alusões várias ao processo que envolve o cliente da Requerente AM; - Do documento supra junto como Documento n.º 11 resulta evidente que está iminente a publicação de um artigo jornalístico tendo como fonte a informação objecto de hacking, a qual perpetuará e inclusivamente agravará a lesão do bom nome e da credibilidade da Requerente face a clientes existentes e potenciais (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil). - Sendo a Requerente uma sociedade de advogados relativamente à qual os Clientes e os Colegas que com os seus respetivos Advogados se correspondem, sobre as mais diversas matérias, esperam legitimamente o absoluto respeito pela confidencialidade daquilo que comunicam, clientes existentes poderão ponderar deixar de utilizar a Requerente como a sua sociedade prestadora de serviços jurídicos, - E clientes futuros colocarão com forte probabilidade em questão a natural reserva e discrição que a prestação de serviço profissional de advocacia necessariamente tem de ter, tendo já sido contactada, em antecipação, por clientes pedindo esclarecimentos sobre este tema (esclarecimentos estes prontamente dados – o que, em qualquer caso, não minimiza o risco de lesão da credibilidade e bom nome da Requerente). - O bom nome e da credibilidade da Requerente serão também afetados nas relações desta e dos seus Advogados com outros Advogados, que - se sentirão então em dúvida quanto à inviolabilidade das comunicações endereçadas por e para a Requerente e também quanto à capacidade de a Requerente assegurar a devida reserva de confidencialidade relativamente ao teor de tais comunicações, - Levando tais clientes e colegas a admitir que a Requerente permitiu ou criou, por descuido ou negligência, as condições para que alguém tivesse tido acesso à correspondência eletrónica interna dos seus Advogados e a correspondência trocada entre estes e os seus clientes. - A utilização, expressa ou tácita, da informação objecto de hacking pelos Requeridos, como fonte de um qualquer artigo jornalístico, é, portanto, ilegal e ilícita, o que resulta necessário do artigo 194.º do Código Penal. - Também viola o Estatuto do Jornalista, e - a utilização, expressa ou tácita, da informação objecto de hacking pelos Requeridos, como fonte de um qualquer artigo jornalístico viola, ainda, o segredo profissional dos Advogados e o direito à inviolabilidade da correspondência privada, em proporção que vai para além do razoavelmente necessário para assegurar o direito de informar e a liberdade de imprensa. Os requeridos deduziram oposição, alegando, em síntese, que: - Não é certo que o 5.º Requerido tenha obtido a informação em causa por meios ditos “ilegais”; - Como também não é certo que o artigo em preparação pelo 5.º Requerido tivesse exclusivamente por suporte a informação que a Requerente refere como tendo sido objeto de hacking; Não fora, desde logo, a referência no assunto da mensagem eletrónica em causa à expressão “processo 184/12”; - Assim, como não é certo que o 5.º Requerido não tenha investigado os factos que vieram ao seu conhecimento, até porque, previamente à publicação da notícia, confrontou os advogados do mencionado processo-crime, como foi o caso do causídico sócio da sociedade Requerente, Dr. JM. , - O que corresponde ao cumprimento correto e integral das normas deontológicas que regem a sua profissão. - Não são as notícias publicadas pelo ... on-line que eventualmente poderão lesar o “bom nome” e a “credibilidade” da Requerente, face a atuais e futuros clientes, mas sim a publicação consumada na internet de informações, e respetivos documentos de suporte, que terão sido a ela “furtados”, através de crimes de hacking, atividade para a qual, de resto, não contribuíram, de todo, os ora Requeridos, - O “bom nome” e a “credibilidade” da Requerente poderão eventualmente ser postas em causa exclusivamente na decorrência e por causa da publicitação na internet de informação contida em documentos armazenados nos seus computadores, o que, de facto, ocorreu e consumou-se em momento prévio à instauração do presente procedimento cautelar, sem qualquer tipo de intervenção ou ato praticado ou omitido pelos Requeridos. - Actualmente, qualquer pessoa pode obter hoje a informação que quiser, desde que caída no domínio público da internet, sendo necessário, no entanto, face ao presente caso, aferir da diferença entre uma qualquer “pessoa comum” e um profissional de jornalismo. - É que, em bom rigor, por meio do presente procedimento, pretende a Requerente aparentemente validar judicialmente uma restrição inadmissível e inconstitucional do direito de liberdade de expressão e de informação que assiste aos aqui Requeridos, - Foram ouvidas as partes interessadas, - Não podendo ignorar informação potencialmente relevante e de interesse público, o 5.º Requerido consultou parte dos documentos disponibilizados a partir da página de internet .../, no que concerne à EP, a MP.e à investigação do Ministério Público no processo-crime n.º 184/12, do DCIAP, o qual, aliás, não se encontra em segredo de justiça, - Tratando-se de documentação caída no domínio público, o 5.º Requerido entendeu que não haveria impedimento ao seu tratamento jornalístico e consequente publicação no ..., desde que citada a fonte da informação – como consta, aliás - e feito o contraditório junto das partes interessadas, o que se veio a verificar no dia seguinte. - O 5.º Requerido cumpriu todas as regras da legis artis exigidas pela deontologia profissional, solicitando inclusivamente à Requerente que lhe fosse remetida resposta com urgência, por forma a confrontar versões, sem que, no entanto, tivesse obtido qualquer resposta. - Os Requeridos atuaram, portanto, no âmbito das liberdades de expressão, informação e de imprensa, as quais podem em determinada medida (a nosso ver não ultrapassada) comprimir direitos de personalidade, como a boa reputação da pessoa coletiva, visada pela investigação jornalística, pelo que, não pode ser imputado ao 5.º Requerido, e muito menos aos demais Requeridos, qualquer atuação ilícita (e culposa), ou seja, as peças jornalísticas publicadas no ... não podem qualificar-se como penal, disciplinar ou civilmente ilícitas, e relativamente aos Requeridos diretores e empresa jornalística, tão pouco a Requerente alegou ou provou, mesmo que indiciariamente, qualquer intervenção ou anuência concretas na redação ou publicação das peças, sendo ainda razoável considerar não estar preenchido o requisito da probabilidade séria da existência do direito invocado pela Requerente, como exigido pelo artigo 368º do CPC, atento o que acima se alegou, o que não contende, ainda, com o entendimento de que não se mostra suficientemente alegada nos autos, pela Requerente, a causa de pedir necessária à eventual procedência do procedimento, e, em especial, no que concerne ao fundado receio de lesão dos seus direitos. Foi proferida decisão, do seguinte teor: “ Pelo supra exposto, decide-se julgar integralmente procedente, porque provado, o presente procedimento cautelar e, em consequência, condenam-se os requeridos a: a) Absterem-se de usar como fonte de qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, quaisquer emails (trocados entre Advogados da Requerente e entre estes e seus constituintes ou terceiros) e/ou documentos produzidos por Advogados da Requerente, que constituem informação que foi objecto de devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking), e sob pena de incorrem no crime de desobediência qualificada previsto no artigo 375.º do Código de Processo Civil; bem como, b) A absterem-se de utilizar / citar em qualquer artigo ou publicação de cariz jornalístico, ou outro, quaisquer emails (trocados entre Advogados da Requerente e entre estes e seus constituintes ou terceiros) e/ou documentos produzidos por Advogados da Requerente, que constituem informação que foi objecto devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking), sob pena de incorrem no crime de desobediência qualificada previsto no artigo 375.º do Código de Processo Civil. (…). Posteriormente foi ainda proferida a seguinte decisão acerca do pedido de inversão do contencioso: “Assim, atento o exposto, decide-se dispensar a requerente do ónus de propositura da ação principal, deferindo à requerida inversão do contencioso – artº. 369, nº 1 do CPC (…)”. 1.2. Inconformados com aquela decisão os requeridos apelaram, tendo formulado as seguintes conclusões: A) Em Portugal, a tutela jurídico-constitucional, nomeadamente, da liberdade de expressão, de informação e de imprensa, no seu feixe de direitos dos jornalistas a acederem às fontes de informação e à proteção do sigilo profissional, abrange também a publicação ou divulgação por jornalistas de notícias ou informações recolhidas e fornecidas de forma ilícita por terceiros, que não os próprios jornalistas, ou em circunstâncias não apuradas, pelo que, uma vez na posse de informações recolhidas ou transmitidas ilicitamente por outrem, em regra, poderá e deverá o jornalista publicá-las livremente; B) A obtenção, em circunstâncias não apuradas, por terceiros (relativamente a um jornal e seus jornalistas), via "hacking", de correspondência eletrónica de advogados e documentos sua pertença e de clientes, publicados e disponibilizados em vários blogues de internet, não é ilícita nem impeditiva de produção posterior de trabalho jornalístico, com base parcial nessa mesma informação, ilegal e anteriormente acedida e publicada erga omnes, sem qualquer tipo de comportamento censurável do jornal e seus jornalistas, no que concerne ao acesso e retirada indevida de tal informação, não inquinando, tal facto, a divulgação jornalística posterior dos factos de que assim se tenha tomado conhecimento; C) Para efeitos do parâmetro constitucional de garantia de liberdade de imprensa (artigo 38.º, n.º s 1 e 2 alínea b), da CRP), inexistindo censurabilidade da conduta do jornalista, ou mesma a sua participação causal na lesão do bem afectado, na gravidade desta e no relevo dos interesses atingidos, o facto de certas formas de obtenção de informação não gozarem de tutela jurídico- constitucional, não acarreta automaticamente igual tratamento da sua difusão, uma vez obtido o elemento a transmitir, sob pena se verificar uma restrição indevida do direito de recolher informações pelos jornalistas, correspondente a uma forma de censura em sentido amplo e constitucionalmente proibida, também porque a existência de restrições à liberdade de imprensa numa fase prévia à publicação representam um grave perigo para a civilização e democracia atuais; D) Inexistem verificados naos autos os requisitos legais habilitadores da emissão das duas injunções "atenuantes" que foram dirigidas na sentença recorrida contra os Requeridos, porquanto a lesão causada à Requerida foi-o por terceiros, em data anterior a qualquer um dos factos imputados aos Recorrentes, tal lesão assenta unicamente na anterior revelação e disponibilização pública e erga omnes das comunicações e documentos relativos à Requerente e seus clientes, pelo que a "confidencialidade" invocada nos autos quanto aos suportes da Requerente já havia sido totalmente posta em causa, e sem qualquer tipo de intervenção dos Requeridos, não se vendo, bem assim, que a elaboração de uma notícia e sua publicação, em parte assente nessa informação anteriormente publicada e a todos acessível, possa agravar e trazer maior lesão para a esfera dos direitos de "confidencialidade" convocados nos autos pela Recorrida; E) Inexiste nexo de causalidade entre o comportamento dos Recorrentes, "censurado" para futuro nos autos, com a possibilidade de, por meio das injunções que lhes foram dirigidas com base na sentença recorrida, se atenuar os efeitos dessa anterior e já concretizada "devassa" de "confidencialidade", devendo entender-se que nada existe de passível de ser atenuado por meio das proibições impostas nos autos; F) Verifica-se nos autos grave desproporcionalidade, discriminação injustificada e prejuízo na prolação das injunções sentenciadas contra os Recorrentes, que afetam intoleravelmente o reduto intangível do direito de liberdade de expressão e de informação de que gozam os Recorrentes, sendo assim também impossível a atenuação de uma ofensa já anteriormente totalmente executada, e por terceiros aos Recorrentes; G) A decisão recorrida, ao proclamar que a queda no domínio público da informação suportada pela correspondência e documentos da Recorrida e seus clientes, "não retira a natureza primária da ação ilícita na obtenção da informação confidencial", assim estendendo a "raiz do mal" à esfera da atividade profissional exercida pelos Requeridos, postergando ilegalmente o seu direito constitucional de acesso às fontes de informação e de sigilo profissional, procede a interpretação e aplicação ilegais no caso dos autos, designadamente, das normas jurídicas vertidas nos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2 da CEDH, 38.º, n.º 2, alínea b) da CRP, 22.º, alíneas b) e c) da Lei de Imprensa, 6.º, alíneas b) e c), 8.º, n.º 3 (por ser inaplicável ao caso dos autos, por não estarem em causa fontes oficiais de informação), 11.º, n.º 1 do Estatuto do Jornalista, e pontos 4.º e 7.º do novo Código Deontológico do Jornalista. A requerente contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões: A. Os argumentos avançados pelos ora Recorrentes carecem de todo e qualquer fundamento, como bem nota – e fundamenta – a Sentença recorrida. B. Desde logo porque, estando em causa um problema de colisão de direitos fundamentais – por um lado, o direito à liberdade de expressão e de imprensa (nomeadamente, de acesso às fontes de informação) dos Recorrentes e, por outro, o direito à inviolabilidade e ao sigilo da correspondência da Recorrida, ambos com assento constitucional (cfr. arts. 34.º, 37.º e 38.º da CRP) –, a prevalência de um sobre o outro jamais poderá ser feita em termos abstratos, como pretendem os Recorrentes, mas sempre em função das circunstâncias concretas do caso e dos princípios da adequação e da proporcionalidade (cfr. arts. 18.º da CRP e art. 335.º do CC), em ordem à salvaguarda de cada um dos direitos. C. E também porque, ao contrário do que os Recorrentes tentam dar a entender, é a própria Lei – constitucional, ordinária e europeia – que permite concluir pela prevalência do direito que a Recorrida tem de os Recorrentes não utilizarem como fonte de atividade jornalística informação sua confidencial (e protegida por sigilo profissional) obtida ilegal e ilicitamente, ainda para mais quando os Recorrentes tinham pleno conhecimento da ilicitude dessa fonte. D. Assim, como bem decorre da Sentença recorrida: “No caso sob análise, somos de entendimento de que atentando na consideração de que a informação, fonte, da publicação de autoria do quinto requerido na edição online do ... do dia 8.1.2019, foi obtida do blogue que continha informação confidencial da requerente, acedida de forma ilegal, sem conhecimento e autorização, por meio de hacking, esta concreta circunstância, num Estado de Direito Democrático, no qual a legalidade é um dos seus pilares essenciais, faz prevalecer o direito fundamental da requerente sobre o dos requeridos, assente na liberdade de imprensa, sem qualquer dúvida, e não obstante se reconheça o interesse público da notícia publicada e da caracterização das pessoas visadas como personalidades públicas. E, com o devido respeito, não se compadece a defesa do contrário com o argumento de que a informação caiu no domínio público, pois que tal facto não retira a natureza primária da ação ilícita na obtenção da informação confidencial. Seria, no mínimo, subverter o sistema de legalidade poder afirmar-se com propriedade que na informação obtida de forma ilícita, se caída no domínio da internet, podendo ser acedida por qualquer pessoa, deixa de ser atendível, ou de interessar, o modo ilícito da sua obtenção, destacando-se apenas, a sua acessibilidade por qualquer um” (cfr. pág. 43 da Sentença recorrida); E. Podendo ainda ler-se o seguinte: “[N]ão podem os requeridos escudar-se no argumento de que não tendo sido os mesmos a aceder ilicitamente à informação, encontrando-se a mesma já disponível na internet, só relevaria o interesse público da notícia, sendo irrelevante, não atendível a obtenção, e disponibilização, ilícita da informação. O Direito da requerente, no caso concreto, comprime, sem dúvida, o direito dos requeridos” (cfr. pág. 43 da Sentença recorrida); F. Conclusões estas que Recorrida subscreve na íntegra. G. Não é, pois, verdade, como sustentam os Recorrentes, que “o jornalista não é obrigado nem a controlar a legalidade nem a relevar a ilegalidade da obtenção ou divulgação da informação por quem lha fornece” (cfr. pág. 12 das Alegações de Recurso); H. E muito menos que “uma vez na posse de informações recolhidas ou transmitidas ilicitamente por outrem, em regra, poderá publicá-las livremente” (cfr. pág. 12 das Alegações de Recurso). I. Um entendimento em sentido contrário, para além de contender diretamente com diversas normas – constitucionais, legais e deontológicas – e de configurar um ilícito penal punível com pena de prisão, traduzir-se-ia em colocar os órgãos de comunicação social ao serviço do crime, incentivando-os a explorar e a vender o seu produto; J. Cenário este totalmente incompatível com o Estado de Direito Democrático que é Portugal, no qual a legalidade é um dos seus pilares essenciais (cfr. arts 1.º, 2.º e 3.º da CRP e pág. 43 da Sentença recorrida). K. Ademais, atentos o objeto e os fundamentos fáticos e jurídicos do Despacho proferido em 18.06.2019, com referência Citius 1199210, que decretou a inversão do contencioso (objecto e fundamentos que compreendem o sentido e o fundamento da decisão objecto do presente recurso), e atentos também os termos conjugados dos artigos 369.º, n.º 1, e 370.º, n.º 1, ambos do CPC, conclui-se que a presente instância recursória deverá ser julgada supervenientemente inútil, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, se e na medida em que não seja interposto recurso da referida decisão de inversão de contencioso, posto que o trânsito em julgado desta decisão implica, necessariamente, a superveniente conformação dos Requeridos quanto aos fundamentos e ao sentido da decisão objeto de recurso. 1.3. Como é sabido, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, excetuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos arts. º 608.º, 635.º e 639.º, do CPC. Assim, considerando as conclusões dos apelantes, a questão essencial a decidir no âmbito do presente recurso, consiste em saber se a proibição da publicação de um artigo jornalístico tendo como fonte a publicação na internet de emails - trocados entre Advogados da requerente e Advogados de outras sociedades de Advogados e ainda com dirigentes de um clube de futebol e de uma sociedade desportiva - obtidos através de hacking, afeta a liberdade de expressão e de informação jornalística II. Fundamentação II.1. Dos factos Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos: 1.A Requerente é uma sociedade de advogados portuguesa, registada na Ordem dos Advogados sob º n.º ... (documento nº 1, junto com a petição inicial, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido). 2. A 1.ª Requerida é proprietária / editora do jornal semanário ... (documentos nºs 2 e 3, juntos com a petição inicial, cujo teor integral se dá por reproduzido). 3. Sendo o Semanário ... uma publicação de referência na comunicação social portuguesa, sendo lido por dezenas de milhares de pessoas, quer na sua edição em papel, quer na sua edição diária online. 4. O 2.º Requerido é Diretor-Geral de Informação da 1.ª Requerida desde 06.03.2016. 5. O 3.º Requerido é Diretor do Semanário .... 6. O 4.º Requerido é o Diretor Executivo do Semanário .... 7. O 5.º Requerido é jornalista do Semanário ... e autor do artigo publicado a 8.1.219, na edição online, junto como documento nº 12, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido. 8. No passado dia 22 de Dezembro a Requerente foi surpreendida pela publicação na internet de emails trocados entre Advogados da Requerente (entre os quais o Dr. JM., Sócio da Requerente) e Advogados de outras sociedades de Advogados, designadamente com os Drs. PSM. e Dr. RP. e ainda com dirigentes do SB. 9. O Dr. JM. deu imediato conhecimento ao Conselho de Administração da PA. e ao seu Diretor de Informática, os quais, tomaram todas as diligências necessárias para o término desta situação de devassa ilegal e não autorizada (vulgo hacking) e para identificar qual a informação que foi retirada dos servidores e computadores dos Advogados visados por esta prática. 10. Tais documentos foram exibidos no site “MB”, inicialmente alojado em …. e atualmente no site .... 11. A Requerente conseguiu que fosse encerrado o site …, alojado nos Estados Unidos, por via da instauração de um procedimento legal nesse país, mas veio o mesmo a ser rapidamente reaberto, ora alojado no Irão, com o citado endereço ..., atualmente inativo– este, facto instrumental. 12. O objeto da informação alvo de hacking é mais amplo do que o constante nos emails referenciados em 8., porque abrangendo comunicações e documentos relacionados com alguns clientes da Requerente. 13. Tendo sido vertidos nos relatos efetuados nos meios de comunicação que se juntam, a título exemplificativo, como Documentos n.ºs 4 a 9, também disponíveis nos seguintes links: - …552 - …-1 - ….html -…j - …os/ 14. O semanário ..., na sua edição online de 08.01.2019, noticiou o tema (cfr. Documento n.º 5 supra junto…-1). 15. Parte da informação recolhida sem conhecimento e autorização da requerente, estava, até, pelo menos à apresentação do presente procedimento cautelar (facto instrumental), disponível no blog .../. – Documento n.º 10. 16. E não obstante a Requerente ser dotada das melhores tecnologias em matéria de segurança informática, utilizando as práticas do mercado e os softwares mais atualizados. 17. A Requerente sabe que as caixas de email e os computadores dos seus Advogados Dr. JM. (Sócio da Requerente) e Drs. RCP. e IAC. (Advogados Associados da Requerente) foram acedidas, via hacking, sem o seu conhecimento e autorização. 18. E que a informação que foi acedida e retirada dos computadores e caixas de emails dos três Advogados acima identificados é informação do arquivo do cliente da Requerente AM e de processo de natureza criminal que envolve este Cliente da Requerente. 19. No dia 8 de janeiro de 2018, às 11.46m, o Dr. JM. foi contactado pelo 5.º Requerido, via email com o assunto “Questões ... sobre o processo 184/12”, tendo sido o mesmo informado e questionado nos seguintes termos: “1. Confirma que em julho de 2018 discutiu com o Dr. RF. a tomada de posições coincidentes por parte das defesas de AM/EP e de MP. perante o DCIAP? As duas partes concordaram nessa concertação de argumentos? 2. Chegou a reunir-se presencialmente com o Dr. MP? Em A… ou noutra cidade? Precisava de respostas suas até às 15h30, por favor. Cumprimentos, MP” 20. O tema do artigo jornalístico que se encontrava em preparação pelo Requerido tem como base a informação objeto de hacking aos computadores e caixas de email dos três Advogados da Requerente acima referidos, sendo que o Processo n.º 184/12 referenciado no assunto do email em causa é, precisamente, o processo crime que envolve o cliente da Requerente AM. 21. E parte da informação objeto do acesso não autorizado (vulgo hacking) aos servidores informáticos da Requerente está precisamente relacionada com esse processo – o conteúdo dos documentos untos n.ºs 4 a 9 faz alusões várias ao processo que envolve o cliente da Requerente AM. 22. Tendo sido escrito no Jornal Económico): “São cerca de quatro gigabytes de dados com informação sobre processos de vários clientes da PA, nomeadamente AM…”; e no D…: “A firma confirmou estar a avaliar a extensão de um ataque que visou processos ligados a (…) AM…” bem como no S…: “Documentos de processos como (…) caso EP”; e no Ec…: “Já depois da notícia do EC…, o ... divulgou que documentação sobre alguns processos, que envolvem advogados do escritório, incluindo os ligados a MP.e AM…”. 23. Vindo a ser publicado o artigo na edição online do ... de 8.1.2019, elaborado pelo quinto requerido, e com conhecimento, e aprovação dos demais requeridos – facto complementar e instrumental – junto como doc. nº 12, com a oposição, com o título ”Advogados de Mexia e Pinho combinaram estratégia perante o Ministério Público”, artigo que vem no seguimento do tero do email referido em 19. Supra. 24. A informação constante do facto 23., foi o resultado da atividade de hacking, ou seja, foi obtida pelos Requeridos, junto dos blogues supra identificados, os quais foram criados em resultado de uma devassa ilegal e não autorizada aos servidores informáticos da Requerente, por terceiro(s) não identificado(s). 25. A informação objeto de hacking está protegida por segredo profissional dos Advogados, sendo como tal confidencial. 26. A publicação de um artigo jornalístico tendo como fonte a informação objeto de hacking perpetua e afeta o bom nome e a credibilidade da Requerente face a clientes existentes e a potenciais clientes. 27. Tendo a Requerente já sido contactada, em antecipação, por clientes pedindo esclarecimentos sobre este tema, como foi o caso da EP, bem como exigindo garantias quanto à confidencialidade e pedindo informação sobre as medidas adotadas para evitar novos acessos não autorizados ao sistema informático da requerente. 28. Porquanto as relações da requerente com os seus clientes e com os colegas, assenta na confidencialidade das suas comunicações. 29. Também com colegas, a requerente sentiu, embora com menos apreensão, comentários relacionados com adoção de cuidados e cautelas devido à devassa verificada. 30. O 5º requerido, previamente à publicação da notícia, confrontou os advogados do mencionado processo-crime, como foi o caso do causídico sócio da sociedade Requerente, Dr. JM. , os quais não se pronunciaram. 31. A publicitação na internet de informação contida em documentos armazenados nos computadores da requerente, ocorreu e consumou-se em momento prévio à instauração do presente procedimento cautelar, sem qualquer tipo de intervenção ou ato praticado ou omitido pelos Requeridos. 32. A 7 de janeiro de 2019, o 5.º Requerido tomou conhecimento, por via da sua conta profissional de Twitter, da existência de uma fuga de informação da sociedade de advogados PA.. 33. E, por se tratar de uma das maiores sociedades de advogados do país, tendo a seu cargo diversos processos mediáticos e estando incumbida da defesa de uma empresa que o 5.º Requerido acompanha enquanto jornalista (a EP), no âmbito de um processo-crime em curso pelo DCIAP (processo n.º …/12), o 5.º Requerido, procurou obter mais informação sobre essa fuga de informação, considerando existir interesse público e jornalístico do tema, tendo encontrado o endereço de Internet onde estavam a ser publicados, com acesso totalmente livre, os documentos da referida fuga de informação, postados em .../. 34. Assim, tendo tomado conhecimento das entradas e dos assuntos que essa página referia, nessa mesma segunda-feira, dia 7 de janeiro de 2019, o ... publicou no “... Diário” um artigo sobre a fuga de informação, ouvindo a principal parte interessada (a PA), bem como a Polícia Judiciária: …1. – cfr. documento n.º 8 junto com o requerimento inicial. 35. Pouco antes de o ... publicar o seu artigo (às 18h29), o site “Ec…to …), às 17h59 - cfr. documento n.º 1 que ora se junta e dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 36. O 5.º Requerido consultou parte dos documentos disponibilizados a partir da página de internet .../, no que concerne à EP, a MP.e à investigação do Ministério Público no processo-crime n.º 184/12, do DCIAP. 37. Dessa consulta, o 5.º Requerido constatou, ainda na tarde de segunda-feira, dia 7 de janeiro de 2019, a existência de um email do Dr. JM. para o Dr. RF, que considerou jornalisticamente relevante, à luz da investigação do Ministério Público sobre suspeitas de corrupção envolvendo a EP e o ex-ministro MP. 38. Nessa correspondência, o Dr. JM. , advogado do Dr. AM (C… da EP), e o Dr. RF, advogado do Dr. MP. (ex-ministro da Economia), concertavam posições, dias antes da inquirição de uma testemunha no DCIAP (DB, ex-chefe de gabinete de AM) e antes do interrogatório, que acabou por não se realizar, do Dr. MP, no mesmo processo 184/12. 39. Ora, o interesse jornalístico que o 5.º Requerido viu então no documento – pelo possível condicionamento da informação que seria prestada ao Ministério Público e eventuais restrições ao apuramento da verdade sobre as matérias em investigação - foi imediatamente confirmado, verbalmente, pelo seu superior hierárquico direto, o editor de Economia do ..., JS. 40. Por entender tratar-se de documentação caída no domínio público, o 5.º Requerido entendeu que não haveria impedimento ao seu tratamento jornalístico e consequente publicação no ..., desde que citada a fonte da informação e feito o contraditório junto das partes interessadas, conforme o email de 8.1.2019, 11h46m, enviado a JM., tendo ainda sido contactado o Dr. SF, o qual igualmente não se pronunciou. 41. Posteriormente, o 5.º Requerido fez ainda publicar no site do ... outras notícias com referência à sociedade de advogados PA, de que são exemplo as que podem ser vistas nos seguintes endereços: a)…-foi-encerrado; b)… c)…. 42. Teor integral do artigo publicado em 8.1.2019, na edição online do ..., que constitui o doc. nº 12, junto com a petição inicial, cujo teor integral se dá por reproduzido. 43. A abertura de blogues domiciliados no estrangeiro, como desenvolvimento da actividade de hacking, é mais fácil, para os hackers, do que o seu encerramento, por parte dos titulares dos direitos atingidos pelos hackers – facto instrumental. Importa ainda considerar que do despacho de admissão do recurso consta que: “Porque legal e tempestivo, admite-se o recurso interposto a 21.06.2018, (…), sobre a decisão cautelar proferida em 28.05 e 18.06 (…) (inversão do contencioso) ” – fls. 172. II.2. Apreciação jurídica Questão prévia A recorrida entende que a decisão recorrida só é recorrível “se e na media em que não seja interposto recurso da referida decisão de inversão de contencioso”. Diz nas conclusões das contra-alegações, a este respeito que: K. Ademais, atentos o objeto e os fundamentos fáticos e jurídicos do Despacho proferido em 18.06.2019, com referência Citius 1199210, que decretou a inversão do contencioso (objeto e fundamentos que compreendem o sentido e o fundamento da decisão objeto do presente recurso), e atentos também os termos conjugados dos artigos 369.º, n.º 1, e 370.º, n.º 1, ambos do CPC, conclui-se que a presente instância recursória deverá ser julgada supervenientemente inútil, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, se e na medida em que não seja interposto recurso da referida decisão de inversão de contencioso, posto que o trânsito em julgado desta decisão implica, necessariamente, a superveniente conformação dos Requeridos quanto aos fundamentos e ao sentido da decisão objeto de recurso. Ora, ao contrário do sustentado pela mesma, dos autos retira-se que o recurso abrangeu também a decisão de inversão do contencioso (proferida em 18.06.2019). Com efeito, do próprio requerimento de interposição do recurso pode ler-se (fls. 148) que: “tendo sido notificados de todo o teor da sentença proferida nos autos, que lhes determina, em termos potencialmente definitivos, atenta a inversão do contencioso decretada[1] (…)”. Por outro lado, como resulta do circunstancialismo acrescentado, o próprio despacho que admitiu o recurso refere-se expressamente a esse tema (fls. 172). Aliás, as disposições legais convocadas não poderiam suportar a irrecorribilidade da decisão, visto que por um lado, o artigo 389º nº1 do CPC, reporta-se a uma faculdade do tribunal relativa à dispensa do ónus de propositura da ação principal, caso o juiz disponha de elementos que lhe permitam “formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio”. Como se vê, esta disposição visa o interesse do requerente e não o interesse do recorrido. A idêntica conclusão se chegará na ponderação do desposto no art. 370º nº1 do CPC, no qual se dispõe: “A decisão que decrete a inversão do contencioso só é recorrível em conjunto com o recurso da decisão sobre a providência requerida; a decisão que indefira a inversão é irrecorrível”. Nesta conformidade não se vê, aqui, fundamento para alterar o juízo implícito sobre a recorribilidade da decisão (fls.172). Quanto à questão suscitada no recurso. Como se viu, o objeto do recurso cinge-se ao conteúdo da própria decisão do tribunal de primeira instância e que se traduz na questão de saber se a proibição da publicação de um artigo jornalístico tendo como fonte a publicação na internet de emails trocados entre Advogados da requerente e Advogados de outras sociedades de Advogados e ainda dirigentes de um clube de futebol e de uma sociedade desportiva - obtidos através de hacking, afeta, de forma desproporcionada, a liberdade de expressão e de informação jornalística. Cumpre, assim, verificar se se verifica a arguida desproporcionalidade na decisão ao decidir como decidiu, adiantando-se desde já que o recurso não pode proceder, não merecendo qualquer censura a decisão recorrida. Com efeito, Os recorrentes entendem que a utilização da correspondência eletrónica entre Advogados e de documentos sua pertença e de clientes, publicados e disponibilizados em vários blogues da internet, não é ilícita nem impeditiva de produção de trabalho jornalístico. Todavia, como detalhadamente se demonstra na decisão recorrida, a obtenção da informação e documentos que haviam sido obtidos por terceiros através de hacking não pode ser considerada uma via lícita de obtenção de informação. Na verdade, o que está em causa é a divulgação de correspondência protegida por sigilo profissional e que entrou na posse de terceiros através de hacking. Como decorre da linguagem comum o hacking é uma atividade que consiste nomeadamente na obtenção e decifração de mensagens e da sua utilização, ainda que não autorizada. No caso vertente estamos perante informação e documentos cujo acesso está protegido pela Constituição da República (art. 34º). No art. 34/1 e 4 da CRP protege-se o sigilo das comunicações através do reconhecimento da sua inviolabilidade, e bem assim através da proibição da ingerência por parte das autoridades públicas, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Encontramos também afloramento da proteção da correspondência em várias outras disposições legais de que a decisão recorrida nos dá conta. Exemplo disso são os art. 76º e 78º do CC onde se faz a exigência do consentimento do autor (ou dos seus familiares caso este tenha pré-falecido) para a publicação das cartas missivas confidenciais ou o suprimento judicial desse mesmo consentimento. Por seu turno, o art. 194º do Código Penal delimita o tipo de um crime punível por prisão até um ano ou pena de multa, em alternativa, quando alguém sem consentimento, aceder a carta que não lhe seja dirigida. O art. 8º nº3 do Estatuto do Jornalista também compreende no âmbito da proteção, “os documentos classificados ou protegidos ao abrigo de legislação específica, os dados pessoais que não sejam públicos (…) os documentos que revelem segredo comercial, industrial ou relativo à propriedade literária, artística ou científica, bem como os documentos que sirvam de suporte a atos preparatórios de decisões legislativas ou de instrumentos da natureza contratual”. Também o art. 92/1 do EAO prevê que: “o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo o conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (…)”. No mesmo sentido pode colher-se o art. 5º, nº 2 da Lei nº 46/2012, 29 de agosto (relativa ao tratamento de dados pessoais e a proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, a qual transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.07, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas). No art 5º sobre a epígrafe “armazenamento e acesso à informação prevê-se o consentimento prévio” como condição dessa mesmas atividade. Também o art 8º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos protege o respeito da correspondência de qualquer pessoa. Este mesmo diploma, quando alude, no art. 10º à “liberdade de expressão”, estabelece limites ao estatuir que o direito à liberdade de expressão “implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para (…) a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais (…). Como se vê, há um conjunto de normas, entre muitas outras, que estabelecem a proteção da correspondência em geral, o que no caso vertente assume particular relevo dado tratar-se, como se viu, de matéria coberta pelo âmbito do sigilo profissional entre os Advogados. Cumpre esclarecer que associado à inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação, como a reserva de intimidade de vida privada, a jurisprudência tem abarcado a matéria do segredo profissional. Entende-se este, genericamente, como a reserva que as pessoas devem guardar relativamente aos factos de que tomam conhecimento no desempenho ou como consequência do exercício das suas funções. Naturalmente que isso deriva da especial confiança que nelas é depositada no ambiente profissional. Neste âmbito, cumpre salientar que está abrangido não apenas o sigilo da correspondência, mas também o das telecomunicações [vide também os art. 192 nº 1 alínea a), 194, 195 do CP]. Quem quer que aceda a tal correspondência por email, sem autorização dos seus autores – como foi o caso – naturalmente que incorre em conduta passível de ser qualificada como crime e, por isso, não podem restar dúvidas de que se trata de conduta manifestamente ilícita. Se a conduta originária (obtenção de informação protegida por sigilo) é uma conduta ilícita, afigura-se-nos linear que os subsequentes aproveitamentos dessa informação - que pela sua própria natureza revela estar protegida por sigilo – não é passível de ser considerada uma conduta lícita. Não faria, pois, qualquer sentido que uma entidade pudesse tirar partido económico de uma conduta passível de ser considerada criminosa por parte de uma terceira entidade. O problema que agora se coloca consiste em saber se se deve considerar prevalecente o direito de proteção da correspondência protegida pelo sigilo ou o interesse público na divulgação da mesma correspondência. Importa notar que não se deteta que, com tal informação, se tenha pretendido acudir a qualquer interesse público do foro crime que pudesse dar origem a um acesso legítimo a tal informação. Pelo contrário, o acesso à informação situa-se numa zona em que predomina o interesse económico da empresa que neste caso fez a divulgação da correspondência em causa. Portanto o que está fundamentalmente em causa são três tipos de interesses, a saber: o interesse da empresa em comercializar a informação daí obtendo naturalmente proventos económicos; o interesse público em obter informação em causa (mas aqui à margem de uma informação obtida, desde a sua origem, por vias lícitas) e o interesse na proteção da correspondência protegida por confidencialidade. Ora nesta conformidade parece-nos que perante a colisão dos direitos em discussão: por um lado, o direito de proteção de correspondência sigilosa e, por outro, o direito à informação e expressão, o peso da proteção legal pende mais fortemente para o direito de proteção da correspondência protegida pelo sigilo profissional. É verdade que à imprensa incumbe a comunicação de dados do interesse público com o concomitante interesse público em receber essa informação. Todavia, como deriva das normas citadas (maxime o art. 10º nº 2 da CEDH) há limites que resultam da própria lei e do sistema, considerado no seu conjunto, que não podem ser encarados como uma censura, que supõe sempre uma arbitrariedade por parte do censor, mas que estabelecem as balizas da convivência democrática. Neste caso trata-se de limites delineados em função dos interesses de todos, quer por leis da Assembleia da República, incluindo com funções constituintes, quer por instrumentos internacionais e europeus, subscritos por Estados que estabeleceram um consenso sobre essa matéria e em que Portugal é parte. Não se deteta, assim, que a decisão proibitiva da primeira instância padeça de qualquer vicio de desproporcionalidade. III. Decisão Pelo posto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, na improcedência da apelação, mantém-se na íntegra a decisão recorrida. Custas pelos recorrentes LISBOA, 8 de Outubro de 2019 Maria Amélia Ribeiro Dina Monteiro Luís Espírito Santo [1] Sublinhado acrescentado. |