Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6158/18.5T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
NOME PRÓPRIO
POSSE
DETENÇÃO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
AQUISIÇÃO
POSSE PRECÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- A inversão do título da posse supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, tornando‑se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía, e exigindo-se que o detentor torne directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito.
2- Resultando demonstrada uma actuação conjunta (ou, pelo menos, indistinta) dos detentores de uma fracção autónoma e daqueles em cujo nome detinham tal fracção autónoma, relativamente ao uso da mesma, e não uma actuação dos primeiros tendente à exclusão dos segundos do exercício dos seus poderes próprios de proprietários, não se pode afirmar qualquer aquisição da posse por parte daqueles detentores, por inversão do título, antes sendo de considerar que os actos praticados pelos primeiros correspondem aos de um possuidor precário, face à posse exercida pelos segundos, que lhes adveio derivadamente da compra do imóvel.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

AV intentou acção declarativa com forma comum contra VV (1ª R.) e EM (2º R.), pedindo o reconhecimento da sua qualidade de proprietária relativamente à fracção …, correspondente ao … andar esquerdo, do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … e inscrito sob a matriz predial nº …, por ter adquirido o mesmo por usucapião, com o cancelamento do registo efectuado a favor dos RR. e com o registo da aquisição a seu favor.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese, que:
- Os RR. foram casados entre si, sendo a 1ª R. sua filha;
- Na constância do casamento entre ambos celebraram escritura de compra e venda com mútuo e hipoteca do imóvel em questão, ficando o mesmo registado em nome de ambos;
- A compra do imóvel foi financiada inteiramente pela A., com a intenção de adquirir o imóvel para si e para o seu falecido cônjuge, tendo sido igualmente a A. quem efectuou o pagamento de todas as despesas associadas à aquisição do imóvel e tendo sido igualmente a A. quem efectuou o pagamento de todos os impostos referentes ao imóvel, bem como as amortizações relativas ao mútuo com hipoteca, tudo com a intenção de ficar a viver no imóvel até ao fim dos seus dias;
- Tal só não sucedeu devido ao falecimento do seu marido, à sua avançada idade e à relação próxima que mantinha com os RR., circunstâncias que fizeram com que ficasse a viver na casa destes até 25/11/2015, quando se mudou com a 1ª R. para o imóvel em questão;
- No período em que viveu em casa dos RR. a A. arrendou o imóvel em questão e auferiu as correspondentes rendas mensais;
- Os RR. nunca se opuseram a nenhum dos actos praticados pela A. e pelo seu falecido marido relativamente ao imóvel em questão, também não contestando o facto de a A. ser a única beneficiária dos rendimentos advindos do mesmo, e sendo a A. reconhecida pela sua família, amigos e vizinhos como a proprietária do mesmo.
Citados os RR., apenas contestou o 2º R., invocando a preterição de litisconsórcio necessário activo, por estarem em causa direitos que devem ser exercidos também pela herança do falecido marido da A. Mais invoca, em síntese, que a posição da A. e da 1ª R. se confundem, sendo o objecto do litígio retirar o imóvel em questão do património comum dos RR. e da partilha subsequente ao divórcio, invocando ainda que o imóvel foi adquirido pelos RR., com propósito de investimento, tendo sido cedido à A. e ao seu falecido marido para aí residirem, para estarem mais perto dos RR., face à avançada idade dos mesmos, desconhecendo os movimentos financeiros feitos pela A. e pelo seu falecido marido e impugnando que tenha sido a A. a provisionar as contas bancárias a partir de onde foi pago o preço do imóvel e suportadas as despesas referentes ao mesmo. Conclui pela procedência das excepções, pela improcedência da acção e pela condenação da A. em multa e em indemnização, como litigante de má fé.
A A. exerceu o contraditório relativamente às excepções suscitadas na contestação, concluindo pela improcedência das mesmas e como na P.I., e mais requerendo a intervenção principal de JV e NZ, enquanto herdeiros do seu falecido marido, caso se entenda que existe preterição de litisconsórcio necessário activo.
Após audição da parte contrária quanto à intervenção principal requerida, foi verificada a preterição de litisconsórcio necessário activo e sanada a mesma com a admissão da intervenção principal de JV e de NZ, como AA. ao lado da A. primitiva.
Citados os intervenientes principais, não apresentaram articulado nem declararam fazer seus os articulados da A.
Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador, aí tendo sido julgada improcedente a excepção da confusão entre a A. e a 1ª R., mais sendo fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência final foi proferida sentença pela qual a acção foi julgada improcedente e os RR. foram absolvidos dos pedidos.
A A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. O objecto deste processo é decidir se a Autora e os seus associados, nessa qualidade, adquiriram por usucapião a fracção identificada na PI, sita à Rua …, n.º …, na freguesia de Santa Maria dos Olivais.
2. Padece de óbvia parcialidade e incorrecção a parte da sentença recorrida em que se escreve que «substantivamente, a proximidade que se verifica é entre a Autora e a Ré, sua filha, que será indirecta e mediatamente beneficiada em caso de procedência da acção, que veria o património de sua mãe aumentado com um bem de que será herdeira», tendo em conta que:
a)  com a improcedência da acção a Ré é contitular (na proporção de metade) do direito de propriedade do imóvel a que se referem os autos;
b)  com a procedência da acção a Ré será mera contitular de 1/6 da fracção autónoma em discussão nos autos.
3. Como consta da escritura pública outorgada na qual intervierem como compradores, a aquisição da fracção a que se referem os autos foi pelo preço de € 74.820,00 €, tendo os Réus contraído junto da Caixa Económica Montepio Geral um empréstimo de € 124.700,00, sendo parte deste montante destinado a pagar o preço da aquisição e os restantes € 49.880,00 a pagar obras de beneficiação do imóvel em apreço.
4. Mas não obstante os Réus figurarem nessa escritura como compradores, quem vem detendo a dita fracção, pela prática de actos consonantes mesmo antes dessa escritura, é a Autora e o seu falecido marido, que desde então suportaram à sua custa diversas despesas, pagando, designadamente o sinal, a vistoria, o seguro, materiais, limpeza, água e electricidade, o registo predial, e a sisa.
5. Na verdade, foi a autora que decidiu quanto às obras a realizar e que depois de se operar a mudança da habitação anterior, desde sempre ocupou e habitou o imóvel, o adaptou à sua vivência e ao seu modo de vida, e o usufruiu dele retirando os respectivos proveitos.
6. Deve assim, por ter interesse para a decisão da causa, ser alterado o teor do ponto 23. dos factos provados, passando a ter a seguinte redacção:
«23. Tais obras, designadamente, consistiram em pinturas de paredes, afagamentos de soalhos e substituição de azulejos, tendo as cores e materiais sido escolhidos por decisão da Autora.»
7. Deve ainda, por uma questão de rigor, de ser alterado o teor dos pontos 19., 20. e 21. dos factos provados, passando a ter a seguinte redacção:
«19. Em data não apurada situada em 2010, a Autora foi viver com os Réus, para uma dependência independente anexa à casa destes, sita na Rua …, n.º …, Santa Maria dos Olivais, Lisboa»;
«20. A autora residiu aí até ao ano 25/11/2015, data em que os Réus se separaram, tendo a Ré e a sua mãe ido residir para a fracção sita na Rua …, objecto dos autos.»
«21. Em datas não apuradas situadas entre 2010 e a separação dos Réus (em 2015), a fracção dos autos foi dada em arrendamento a terceiros.»
8. Quanto ao pagamento do empréstimo, consta dos factos provados que:
a) a autora e o falecido marido pagaram o valor de € 14.967,55 (catorze mil novecentos e sessenta e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de sinal;
b) além do sinal, a autora e o seu marido transferiram, no dia seguinte ao negócio antes referido (6.12.2002), o valor de € 88.400,00 (oitenta e oito mil e quatrocentos euros);
c) e pagaram prestações do mútuo bancário, em períodos e proporção não concretamente apurados, sendo que, entre Julho de 2002 e Setembro de 2003 foi transferido de conta bancária da autora para conta de débito das prestações do mútuo o valor total de € 16.011,78 (dezasseis mil onze euros e setenta e oito cêntimos), com finalidade de pagamento de prestações e amortização do empréstimo celebrado pelos Réus;
9. A partir da conta-caderneta n.º … do balcão da Rua Almirante Reis do Caixa Económica Montepio Geral de que são titulares, a Autora e marido procederam igualmente às seguintes transferências para a conta n.º … do balcão da CEMG em LISBOA-ARCO DO CEGO co‑titulada pelos Réus, num total de € 2.272,78 (dois mil duzentos e setenta e dois euros e setenta e oito cêntimos) que assim se discrimina:
a) em 25.06.2002 – € 1.283,28;
b) em 18.07.2002 – € 118,27;
c) em 1.08.2002 – € 705,06;
d) em 11.07.2003 – € 166,17.
10. Tudo como resulta evidente na conta-caderneta n.º … do balcão da Rua Almirante Reis do Caixa Económica Montepio Geral que se juntou à petição inicial como doc. n.º 8 à petição inicial, e bem assim do mesmo documento (com melhor legibilidade) junto pela Autora em 26.02.2021.
11. Ainda em relação a outros pagamentos feitos pela Autora, referem-se os que foram feitos através dos cheques sacados sobre a conta caderneta n.º … da Caixa Geral de Depósitos, titulada pela Autora (doc. n.º 7 junto à petição inicial), num total de € 1.896,11 (mil oitocentos e noventa e seis euros e onze cêntimos) que assim se discrimina:
a) cheque n.º …, de 5.03.2002, no valor de € 204,26;
b) cheque n.º …, de 3.04.2002, no valor de € 380,86;
c) cheque n.º …, de 1.04.2002, no valor de € 70,53;
d) cheque n.º …, de 1.04.2002, no valor de € 500,23;
e) cheque n.º …, de 31.05.2002, no valor de € 740,23.
12. Tendo parte das obras realizadas sido facturadas e pagas pela sociedade SÉCULIS – Serviços, C… e L …, Lda., da qual ambos os Réus são sócios, a Autora e Marido, «fizeram chegar» aos Réus, o montante pago referida empresa, sendo que os únicos documentos na posse da Autora que comprovam este «procedimento» são os seguintes:
a)  factura n.º 94/2008, emitida por G …, A … V …Lda,, no valor de 133,10 €, com data 30.04.2008, de da qual constam as menções manuscritas «Trabalho efectuado na Rua …, Lote …, … Esqº. Olivais, substituição de misturadora L. Loiça» e «Pago ao EM 19-6-08»
b)  venda a dinheiro n.º …, emitida por L --- M …  C … C …, Ld.a, no valor de 35,39 €, com data de 15.03.2002.
13. A quantia despendida pela Autora e marido para amortização do empréstimo celebrado no valor de 124.700,00 € (cento e vinte e quatro mil e setecentos), ascende assim a um total de 123.716,71 € (cento e vinte e três mil setecentos e dezasseis euros e setenta e um cêntimos).
14. Deste modo, por ter interesse para a decisão da causa, deve o teor do ponto 12. dos factos provados ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:
«12. E pagaram despesas diversas no valor de € 1.896,11 (mil oitocentos e noventa e seis euros e onze cêntimos), tendo também efectuado transferências entre Junho de 2002 e Setembro de 2003 para contas dos Réus para pagamento de prestações e amortização do empréstimo celebrado pelos réus e de obras realizadas na fracção, nos valores de € 2.272,78 (dois mil duzentos e setenta e dois euros e setenta e oito cêntimos) + € 16.011,78 (dezasseis mil onze euros e setenta e oito cêntimos) +168,49 € (cento e sessenta e oito euros e quarenta e nove cêntimos), o que perfaz um total de 20.349,16 € (vinte mil trezentos e quarenta e nove euros, e dezasseis cêntimos).
15. Deve ainda, por ter interesse para a decisão da causa, ser alterado o teor do ponto 16. dos factos provados, passando a ter a seguinte redacção:
«16. Após a aquisição, a fracção beneficiou de obras de recuperação parcialmente suportadas por valores provenientes do mútuo bancário celebrado;
16. Devem por fim, ser aditados aos provados os seguintes factos:
«Já antes da realização da escritura de compra e venda, a Autora e marido consideravam que a fracção iria ser adquirida para si, com exclusão dos Réus, convicção que mantiveram posteriormente à outorga da escritura de compra e venda»
«A compra do referido imóvel foi financiada inteiramente pela autora e marido, que pagaram a totalidade do valor do mútuo bancário, por débito em conta da sua titularidade ou reembolsando integralmente os Réus de débitos efectuados em contas da sua titularidade;
«O custo dos consumos de água, gás, energia eléctrica e demais despesas inerentes, foram suportadas pela Autora e Marido desde a data da escritura pública.»
17. Concomitantemente, devem ser eliminados dos não provados, os seguintes factos:
«24. Que a compra do referido imóvel foi financiada inteiramente pela autora, tendo esta pago todas as prestações do mútuo bancário, por débito em conta da sua titularidade ou reembolsando integralmente os réus de débitos efectuados em contas da sua titularidade;
25. Que todas as despesas relativas ao imóvel, designadamente impostos, taxas, quotas de condomínio, fornecimentos (de água, electricidade e comunicações) tenham sido suportadas pela autora, desde a data da escritura pública;
26. Que a autora e o marido, na altura de realização da escritura de compra e venda e posteriormente, consideravam que o imóvel estava a ser adquirido para si, com exclusão dos réus»
18. Deve também ser eliminado dos provados, o seguinte facto:
«22. Outras despesas, da mesma natureza, também de valores e teor não concretamente apurados, foram suportadas pelos réus desde a data da escritura e ao longo dos anos, até ao presente;»
19. Deve assim ser aditado aos factos provados o seguinte:
«Que os valores obtidos pelo arrendamento da fracção dos autos foram integralmente percebidos pela autora»
20. Concomitantemente, deve ser eliminado dos não provados, o seguinte facto:
«27. Que os valores obtidos pelo arrendamento da fracção dos autos tenham sido integralmente percebidos pela autora»
21. Atento o facto de o valor do empréstimo ser de € 124.700,00 (cento e vinte e quatro mil e setecentos), e considerando a amortização num total de 123.716,71 € (cento e vinte e três mil setecentos e dezasseis euros e setenta e um cêntimos), estaria por pagar o valor residual de € 908,29 (novecentos e oito euros e vinte e nove cêntimos).
22. Mas ainda que o pagamento de facturas no valor não inferior a 168,49 € (cento e sessenta e oito euros e sessenta e nove cêntimos), não seja dado como provado, sempre há que concluir pelo pagamento no total de 123.548,22 € (cento e vinte e três mil quinhentos e quarenta e oito euros, e vinte e dois cêntimos).
23. Ou seja, atento o facto de o valor do empréstimo ser de € 124.700,00 (cento e vinte e quatro mil e setecentos), estaria por pagar o valor residual de € 1.151,78 (mil cento e cinquenta e um euros e setenta e oito cêntimos).
24. Como resulta provado, «Em 30/6/2004, foi alterada a conta bancária de débito para pagamento do mútuo bancário contraído, passando este a realizar-se na conta à ordem com o n.º …/…, titulada pela autora.»
25. A Autora e marido procederam à transferência, a partir da conta-caderneta n.º … do balcão da Rua Almirante Reis do Caixa Económica Montepio Geral de que Autora e marido são titulares, para a conta com o n.º …/…, titulada pela autora, dos seguintes montantes:
a) em 11.08.2003 – € 49.681,00;
b) em 3.09.2003 – € 1.014,50.
26. Assim, é consentido pelas regras da experiência comum de vida, concluir que a Autora e marido, ao provisionarem a referida conta com um valor de pelo menos € 50.695,50 (cinquenta mil seiscentos e noventa e cinco euros e cinquenta cêntimos), asseguram nesta conta fundos bastantes para pagamento do valor residual de € 1.151,78 (mil cento e cinquenta e um euros e setenta e oito cêntimos) ainda em falta para integralização do pagamento do empréstimo
27. São incompreensíveis e portanto infundadas, as presunções insertas na sentença recorrida atinentes com uma pretensa insuficiência de disponibilidades da Autora e marido, e com um pretenso convencimento do réu, pela ré, para participar no negócio de aquisição da fracção, configurando-o como «um investimento»,
28. Fica, assim, absolutamente demonstrado que a Autora e marido não só procederam ao pagamento do valor total do empréstimo, como reuniam condições para suportar o pagamento de um montante superior.
29. Quanto às despesas relativas ao imóvel, importa ter em conta a confissão do próprio Réu no artigo 59.º da sua contestação onde consta que «sendo o imóvel usado pela Autora e respectivo cônjuge, o custo dos consumos de água, gás, energia eléctrica e demais despesas inerentes, fossem por eles suportadas»
30. No caso dos autos, é certo que apesar de os Réus terem adquirido a posse sobre o imóvel por força do contrato de compra e venda, ocorreu uma posterior aquisição da posse por parte da Autora e marido conducente à aquisição da propriedade do imóvel por usucapião.
31. Na verdade e como resulta do constituto possessório, a partir do momento da venda da fracção, a Autora a marido passaram a detê-la como coisa sua ocupando-o como habitação própria evidenciando uma afirmação de um direito próprio, pagando não só a totalidade do valor do empréstimo, como também outras obras realizadas, e arrendando-o e recebendo as rendas, voltando a Autora a ocupar a fracção na companhia da filha, a aqui Ré.
32. Assim sendo, demonstrado que está o suporte factual susceptível de fazer a Autora e seus associados usucapirem a fracção em relação à qual sempre se comportaram como seus únicos e exclusivos proprietários, há-de a acção proceder.
33. A sentença recorrida viola o disposto nos artigos:
i) 349.º e 351.º do CC;
ii) 616.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.
Apenas o 2º R. apresentou alegação de resposta, aí interpondo igualmente recurso da sentença, com menção expressa que o seu âmbito se limita, “exclusivamente, ao julgamento do ponto n.º 18 dos Factos provados”, e pedindo a final que se altere o julgamento da matéria de facto constante do ponto 18 dos factos provados e que se mantenha a sentença recorrida, nos termos em que foi proferida.
Nos termos e para os efeitos da al. b) do nº 1 do art.º 652º do Código de Processo Civil foi proferido despacho que indeferiu o recurso interposto pelo 2º R., por falta de legitimidade recursória, mais corrigindo o erro na qualificação do meio processual utilizado pelo 2º R. para a ampliação do objecto do recurso interposto pela A. ao abrigo do nº 2 do art.º 636º do Código de Processo Civil, no sentido do conhecimento da pretendida alteração da decisão de facto, no que respeita ao ponto 18 dos factos provados.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se tão só com a alteração da matéria de facto e com a consequente verificação da aquisição pela A. do direito de propriedade da fracção autónoma em causa nos autos, por usucapião.
Subsidiariamente, e tendo presente a ampliação do objecto do recurso acima referida, importará igualmente conhecer da alteração da decisão de facto pretendida pelo 2º R.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada e não provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências pessoais e processuais e reproduzem-se as epígrafes, para melhor compreensão):
- A situação pessoal:
1. A A. é mãe da 1ª R.
2. A A. foi casada com NV, casamento dissolvido a 24/8/2003 devido a falecimento do marido.
3. Os RR. foram casados entre si até ao dia 6/7/2016, data em que foi decretado o respectivo divórcio.
4. Os RR. haviam contraído casamento entre si no dia 2/6/1990, sem convenção antenupcial.
5. Os intervenientes principais são filhos de CV, filho da A. e de NV.
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- O negócio e a situação registal do prédio:
6. No dia 5/6/2002 os RR. outorgaram escritura pública de compra e venda na qual declararam comprar, pelo preço de € 74.820,00 a fracção autónoma designada pela letra L correspondente ao 3.º andar esquerdo do imóvel, destinado a habitação, sito na Rua …, Santa Maria dos Olivais, Lisboa, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º … e inscrito sob a matriz predial sob o n.º …. (escritura com cópia junta aos autos e dada por integralmente reproduzida)
7. Nessa mesma escritura outorgou a Caixa Económica Montepio Geral (MG) aí declarando emprestar aos RR. o valor de € 124.700,00.
8. A aquisição da fracção referida em 6 encontra-se registada a favor dos RR., em comum.
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- O(s) pagamento(s) efectuados pela A. conexos com tal aquisição:
9. A A. e o falecido marido pagaram o valor de € 14.967,55 a título de sinal em promessa celebrada anteriormente a tal escritura.
10. No dia 5/12/2002, a A. e o seu falecido marido celebraram escritura de compra e venda declarando vender o imóvel de que eram proprietários em Algueirão, concelho de Sintra, que era a sua residência até essa data.
11. Além do sinal, a A. e o seu marido transferiram, no dia seguinte ao negócio antes referido (6/12/2002), o valor de € 88.400,00 proveniente do pagamento do preço da fracção que venderam, sita no Algueirão, valor que foi utilizado para amortização do empréstimo celebrado pelos RR. concomitante com a aquisição da fracção referida em 6.
12. E pagaram prestações do mútuo bancário, em períodos e proporção não concretamente apurados, sendo que, entre Julho de 2002 e Setembro de 2003 foi transferido de conta bancária da A. para conta de débito das prestações do mútuo o valor total de € 16.011,78, com finalidade de pagamento de prestações e amortização do empréstimo celebrado pelos RR. (alterado, nos termos adiante ordenados)
13. Em 30/6/2004, foi alterada a conta bancária de débito para pagamento do mútuo bancário contraído, passando este a realizar-se na conta à ordem com o n.º 170/10.6225-7, titulada pela A.
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- Intenção e efectivo uso da fracção após o negócio:
14. Aquando da celebração de escritura, a A. e o falecido marido tiveram intenção de fixar residência na fracção referida em 6, considerando-a o seu novo domicílio.
15. A A. e o marido fixaram então residência na fracção referida em 6.
16. Após a aquisição, a fracção referida em 6 beneficiou de obras de recuperação suportadas por valores provenientes do mútuo bancário celebrado.
17. Tais obras, designadamente, consistiram em pinturas de paredes, afagamentos de soalhos e substituição de azulejos, tendo as cores e materiais sido escolhidos por decisão da A. e da 1ª R.
18. Após a aquisição da fracção referida em 6 foram celebrados em nome da A. os contratos de fornecimento de água, electricidade e serviços de comunicações.
19. Após falecimento do marido da A., esta foi viver com os RR., para casa destes, sita na Rua …, n.º …, Santa Maria dos Olivais, Lisboa.
20. A A. residiu aí com os RR. até 25/11/2015, data em que os RR. se separaram, tendo a 1ª R. e a sua mãe ido residir para a fracção referida em 6.
21. Em datas não apuradas situadas no período compreendido entre o falecimento do marido da A. (em 2003) e a separação dos réus (em 2015), a fracção referida em 6 foi dada em arrendamento a terceiros.
22. A A. suportou, após a aquisição e ao longo dos anos, diversas despesas com a fracção referida em 6, não concretamente apuradas, incluindo limpezas, seguros, fornecimentos de água e electricidade, impostos e quotas de condomínio.
23. Outras despesas, da mesma natureza, também de valores e teor não concretamente apurados, foram suportadas pelos RR. desde a data da escritura e ao longo dos anos, até ao presente.
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- Factos não provados
24. Que a compra da fracção referida em 6 foi financiada inteiramente pela A., tendo esta pago todas as prestações do mútuo bancário, por débito em conta da sua titularidade ou reembolsando integralmente os RR. de débitos efectuados em contas da sua titularidade;
25. Que todas as despesas relativas à fracção referida em 6, designadamente impostos, taxas, quotas de condomínio, fornecimentos (de água, electricidade e comunicações) tenham sido suportadas pela A., desde a data da escritura pública;
26. Que a A. e o marido, na altura de realização da escritura de compra e venda e posteriormente, consideravam que a fracção referida em 6 estava a ser adquirida para si, com exclusão dos RR.;
27. Que os valores obtidos pelo arrendamento da fracção referida em 6 tenham sido integralmente percebidos pela A.;
28. Que a decisão de aquisição da fracção referida em 6 foi tomada pelos RR., com finalidade de investimento;
29. Que o 2º R. tenha acompanhado e fiscalizado as obras realizadas na fracção referida em 6, tendo seleccionado materiais e acabamentos.
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Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, pode-se desde logo afirmar que a A. deu cumprimento ao ónus de especificação a que alude o art.º 640º do Código de Processo Civil, na sua vertente primária, já que resulta das conclusões 6., 7. e 14. a 20. a delimitação do objecto da impugnação, por referência aos pontos 12, 16, 17 (este erradamente identificado pela A. como correspondendo ao ponto 23), 19 a 21 e 23 (este erradamente identificado pela A. como correspondendo ao ponto 22), todos do elenco de factos provados, bem como por referência aos pontos 24 a 27, todos do elenco de factos não provados.
Assim, é em relação aos referidos pontos do elenco de factos provados e não provados, e apenas relativamente a estes, que deve ser conhecida a impugnação da decisão de facto.
Começando pela factualidade do ponto 12, que respeita às transferências efectuadas entre Junho de 2002 e Setembro de 2003, de conta bancária da titularidade da A. e do seu falecido marido para conta bancária da titularidade dos RR., correspondendo ao valor global de € 16.001,78 e sendo relativo à amortização do empréstimo a que respeita o ponto 7, sustenta a A. que deve ser aí aditado que também pagou as quantias de € 1.896,11, de € 2.272,78 e de € 168,49, relativas a despesas diversas e a obras realizadas na fracção referida em 6.
Mais concretamente, e quanto ao montante de € 168,49, sustenta a A. que tais despesas estão tituladas pelas duas facturas a que corresponde o documento 5 junto com o requerimento de 26/2/2021, as quais se mostram emitidas em nome da sociedade “Séculis”, como foi solicitado pelo 2º R., no que respeita a despesas com obras e outras despesas relacionadas com a fracção referida em 6. É certo que tal procedimento não sofre controvérsia entre as partes, sendo o 2º R. que o confirma nas declarações que prestou, afirmando que “costumávamos pôr essas facturas em nome da empresa”. Todavia, daí não decorre que o valor das mesmas facturas tenha sido pago pela A. ou que, tendo sido pago pela referida sociedade, tenha sido reembolsado à mesma pela A. Aliás, estando demonstrado que se tratava de uma sociedade cujos sócios eram os RR. e que o procedimento em questão se justificava como forma de “recuperar o valor do IVA” e de “integrar os respectivos valores como despesa em sede de IRC, por forma a diminuir o valor deste imposto a pagar ao Estado” (na alegação da A.), o que faz sentido é que fosse no âmbito da economia familiar do casal formado pelos RR. que se operasse esse procedimento, e não relativamente a valores pagos pela A. e pelo seu falecido marido, que se situavam fora dessa economia familiar (e independentemente de dever o mesmo procedimento ser considerado ilícito, se assim fosse utilizado). Assim, e inexistindo qualquer registo documental da saída do montante titulado por essas duas facturas de qualquer conta bancária da titularidade da A. (e/ou do seu falecido marido), ou qualquer outra forma de comprovação credível desse pagamento pela A. e/ou pelo seu falecido marido, nesta parte não há que alterar o ponto 12.
Do mesmo modo, no que respeita ao valor de € 1.896,11, sustenta a A. que as referidas entregas estão tituladas por cinco cheques, e sendo que da caderneta da sua conta bancária (da CGD) de onde foram emitidos e pagos os cheques resulta, pelas anotações manuscritas aí constantes, complementadas pelas notas manuscritas pela A. na sua agenda pessoal, que serviram para pagamentos de despesas relacionadas com a fracção referida em 6. Sucede que aquilo que poderia determinar o fim de cada um dos cheques seria a identificação do seu portador/beneficiário, através da informação a prestar pela CGD, e não a simples constatação, emergente da caderneta (e ainda que acompanhada das referidas notas manuscritas, com as quais a A. não foi confrontada em sede de declarações de parte, para que as explicasse e confirmasse), que as quantias que os mesmos cheques titulavam foram debitadas na conta bancária da A. Ou seja, também aqui se verifica a insuficiência da prova apresentada pela A. para concluir que esse montante foi despendido por si e pelo seu falecido marido para pagamento de despesas relativas à fracção referida em 6.
Já no que respeita ao valor de € 2.272,78, corresponde o mesmo à soma de quatro transferências efectuadas da conta bancária titulada pela A. e pelo seu falecido marido para a mesma conta bancária onde foi efectuada a transferência identificada em 11. Ou seja, para a conta bancária dos RR. onde foi depositado o valor de € 88.400,00, que foi utilizado para amortização parcial do empréstimo identificado em 7. E como uma das quatro transferências (a de 1/8/2002) apresenta o mesmo exacto valor (€ 705,06) de cada uma das prestações mensais pagas entre 4/7/2002 e 4/9/2002, englobadas no valor total de € 16.011,78 identificado no ponto 12, é de concluir que aquelas quatro transferências no referido valor global de € 2.272,78 tiveram o mesmo destino que o referido valor de € 16.011,78 (pagamento de prestações e amortização do empréstimo identificado em 7).
Ou seja, há que alterar o teor do ponto 12 dos factos provados, mas tão só para aí incluir a referida quantia de € 2.272,78, respeitante a pagamentos entre 25/6/2002 e 11/7/2003.
Assim, o ponto 12 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:
12. A A. e o seu marido pagaram prestações do mútuo bancário, em períodos e proporção não concretamente apurados, sendo que, entre Julho de 2002 e Setembro de 2003 foi transferido de conta bancária da A. para conta de débito das prestações do mútuo o valor total de € 16.011,78, e sendo que entre 25/6/2002 e 11/7/2002 foi transferido de conta bancária da A. para conta bancária dos RR. o valor total de € 2.272,78, tudo com a finalidade de pagamento de prestações e amortização do empréstimo identificado em 7.
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Passando à factualidade constante do ponto 16, pretende a A. que aí fique a constar que as obras de recuperação mencionadas foram “parcialmente suportadas” (e não apenas “suportadas”, o que inculca a ideia de terem sido totalmente suportadas) pelos valores provenientes do empréstimo identificado em 7.
Pese embora a A. não justifique por qualquer forma a pretendida alteração, parece resultar da sua alegação que retira a necessidade da mesma alteração a partir da mesma argumentação utilizada para a pretendida alteração do ponto 12. Ou seja, entendendo a A. estar demonstrado que pagou obras realizadas na fracção, e não só prestações e amortizações do empréstimo, a conclusão óbvia é que nem todas as obras haviam sido suportadas com a parte do empréstimo que não se destinou ao pagamento do preço de aquisição da fracção (a diferença entre € 124.700,00 e € 74.820,00), porque também houve uma parte dessas obras cujo valor foi suportado pela A., nos termos a constar da pretendida alteração ao ponto 12.
Mas não reflectindo a alteração ao ponto 12 tal afirmação conclusiva, posto que apenas ficou afirmado que a A. e o seu marido pagaram prestações e amortizações do empréstimo (e não também despesas diversas e obras), não colhe a pretendida alteração do ponto 16.
***
Passando à factualidade do ponto 17. (que a A. identifica erradamente como sendo o ponto 23), pretende a A. que aí se elimine a referência à “decisão [conjunta] da A. e da 1ª R.”, ficando a constar que foi apenas a A. quem tomou a decisão de escolher as cores e materiais relativos às obras de recuperação realizadas na fracção referida em 6. Todavia, e sustentando a A. que tal factualidade resulta das declarações prestadas pela 1ª R., torna-se manifesto que as mesmas declarações, ainda que consideradas autónoma e suficientemente como meio probatório (e mesmo abstraindo do evidente interesse da 1ª R. no sentido de um desfecho da acção contrário ao interesse do 2º R., emergente da litigiosidade verificada na sequência do termo da vida conjugal), não são aptas à afirmação dessa decisão exclusiva da A. Com efeito, é a própria 1ª R. que justifica a necessidade de a A. (sua mãe) e o marido desta (seu pai) passarem a morar na fracção referida em 6, em razão da doença deste e para lhes “poder dar uma mão, se for necessário”, tendo sido a 1ª R. quem começou por escolher imóveis situados perto do imóvel onde morava (na área da freguesia dos Olivais desta cidade de Lisboa), para um selecção final do imóvel onde passariam a morar os seus pais. Do mesmo modo, explicou que o seu pai alheou-se das questões relativas à compra da fracção referida em 6 tendo-lhe dito que “se achas que nós temos que ir para ao pé de vocês para darem uma ajuda então tu tratas do assunto”. Do mesmo modo, ainda, quanto perguntada directamente sobre com “base no gosto e na escolha de quem” é que foram feitas as obras de remodelação que a fracção referida em 6 precisava, ensaiou uma resposta algo evasiva, afirmando que “a minha mãe, é muito difícil não fazer o que ela quer”, e mais afirmando que “portanto, foi o gosto dela, com certeza”, mas apressando‑se a esclarecer que, relativamente a qualquer decisão, “eu posso até preparar, não é? Faço isso até hoje”, mas não concluindo, como seria lógico, no âmbito de tal raciocínio, que era sempre a A. quem decidia sozinha. Do mesmo modo, não resulta das declarações da A. qualquer afirmação no sentido de ter sido a mesma quem, em exclusivo, escolheu cores e materiais para as obras de recuperação, com total exclusão do seu marido e/ou da 1ª R. sua filha. Ou seja, e tal como ficou a constar da sentença recorrida, aquilo que se apreende é que “perante o avançar da idade da autora e seu marido (particularmente deste, que faleceria pouco tempo depois) foi verificado um interesse comum (destes e, pelo menos, também da ré VV, sua filha) de residirem mais próximo e assim receberem um apoio familiar mais constante”, e que tal interesse comum se reflecte na actuação da A. e da 1ª R., não só no que respeita à questão relativa à forma de concretizar esse interesse comum (através da compra da fracção referida em 6), mas igualmente no que respeita “à definição das obras inicialmente realizadas na fracção, dirigidas pela autora e pela ré (no que concerne sobretudo a escolhas de materiais)”.
Assim, improcede igualmente a pretendida alteração do ponto 17.
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Passando à factualidade dos pontos 19 a 21, pretende a A. que os mesmos sejam alterados para, por um lado, ficar aí reflectido que a A. não viveu com os RR. e em casa destes, mas antes numa “dependência independente anexa” a tal casa, e que isso não sucedeu após o falecimento do marido da A. (em 2003), mas apenas após 2010.
A A. alegou na P.I. (art.º 44º a 46º) que o seu plano de ficar a viver com o seu marido na fracção referida em 6 foi “alterado mediante o falecimento desde” (ocorrido em 24/8/2003, de acordo com o ponto 2 dos factos provados), tendo então sido acordado entre a A. e os RR. que, “atendendo à avançada idade da Autora e à então relação próxima com ambos os RR.”, “ela ficaria a viver na casa de ambos”, e tendo a A. aí residido (na casa dos RR.) até 25/11/2015. Na sua contestação (art.º 96º) o 2º R. aceitou tal factualidade, relativa à mudança de residência da A. para casa dos RR. após o óbito do seu marido, pelo que a mesma passou a estar admitida por acordo, nos termos do art.º 574º, nº 2, do Código de Processo Civil, não mais estando controvertida e carecida de prova, e assim devendo ser considerada no elenco de factos provados, por força do disposto na segunda parte do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, e como reconhece a A. na sua alegação de recurso, a pretendida alteração dos pontos 19 a 21 “por amor à verdade” apresenta-se como inócua para o desfecho da acção, na medida em que é irrelevante saber se a A. viveu sozinha ou acompanhada (pelos RR.) após o óbito do seu marido, e desde quando é que a fracção referida em 6 foi dada em arrendamento a terceiros, por não estar a ser habitada pela A., o que sempre conduziria ao não conhecimento da impugnação nesta parte, por inutilidade da mesma, nos termos acima referidos. E, de todo o modo, é a 1ª R. quem confirma, nas declarações que prestou, que a A. residiu com os RR. na “vivenda” correspondente ao imóvel identificado em 19, tendo à sua disposição nessa “vivenda” uma suite, composta por quarto, casa de banho, sala e kitchenette, mas sem mencionar, em algum ponto das suas declarações, que se tratava de uma “dependência independente anexa” à casa dos RR.
Ou seja, não há lugar à pretendida alteração dos pontos 19 a 21.
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Pretende ainda a A. que se elimine do elenco dos factos provados o ponto 23 (que a A. identifica erradamente como sendo o ponto 22), por entender que a prova documental referida na sentença recorrida não se apresenta como bastante para concluir que os RR. suportaram outras despesas com a fracção referida em 6, ainda que em valores e de teor não concretamente apurados.
Estão concretamente em causa os cheques nos valores de € 62,08 e de € 103,43, emitidos pelo 2º R. respectivamente em 31/3/2016 e 27/4/2015, ambos com a menção de “não à ordem”, tendo o primeiro como beneficiária a A. e o segundo estando ao portador. A partir das cópias das liquidações de IMI que acompanham as cópias de tais cheques (e que fazem parte do documento 9 junto pela A. com a P.I.) apreende-se que os valores titulados por tais cheques se destinaram ao pagamento de prestações de IMI relativas à fracção referida em 6 (a fracção designada pela letra L do prédio urbano com o artigo matricial urbano …, como está identificado nas referidas cópias das liquidações de IMI). Ou seja, é de concluir que tais cheques foram emitidos pelo 2º R. para pagamento do IMI relativo à fracção referida em 6. O que é o mesmo que afirmar, como na sentença recorrida, que “o réu procedeu a uma série de pagamentos, designadamente por cheque”, e respeitando os mesmos a “despesas com a fracção”, assim havendo que concluir, como na sentença recorrida, que “efectivamente, a maior parte da dívida relativa ao negócio foi paga pela autora, mas que terá havido, ao longo do tempo, um ou mais acordos de definição e partilha de obrigações, não concretamente apurados, dividindo entre autora e réus o pagamento das obrigações do mútuo e as despesas com a fracção”. Aliás, a essa mesma conclusão se chegava mesmo que não se lograsse afirmar que os cheques em questão serviram para pagar despesas relativas à fracção referida em 6, tendo presente que todas as despesas relativas à fracção estão documentadas em nome dos RR. e a soma das quantias pagas pela A., tal como emergem dos factos provados, não permite concluir que esta suportou a totalidade das obrigações emergentes do empréstimo identificado em 7, bem como a totalidade das despesas inerentes à fracção, desde obras até ao IMI, e passando pelos fornecimento de serviços inerentes à fracção (desde logo água e electricidade) ou pelas contribuições condominiais. Pelo que tiveram também de ser suportadas por alguém, e esse alguém são os RR. (em nome de quem tais despesas estão documentadas), e ainda que em montantes e circunstâncias não concretamente apuradas.
Ou seja, improcede a pretendida eliminação do ponto 23 do elenco dos factos provados.
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Visa ainda a A. a eliminação dos pontos 24 a 26 do elenco dos factos não provados, com o seu aditamento aos elenco de factos provados, embora com redacção ligeiramente distinta, desde logo por se reportar à pessoa da A. e do seu marido (e não apenas da A.).
A A. conclui pela necessidade de alterar a decisão de facto, nesta parte, sem apresentar um único argumento que sustente tal pretensão, desde logo não indicando um único meio de prova que, valorado por uma qualquer forma (não explicitada), permita afirmar a verificação da factualidade identificada.
Como ficou acima referido, o ónus de especificação a que respeita o art.º 640º do Código de Processo Civil não se esgota na referida vertente primária, tendente à “delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação” da decisão de facto, mas compreende igualmente a referida vertente secundária, que impõe a “especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados” e, desde logo, a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a impugnação ou, alternativamente, a apresentação da transcrição desses trechos da prova gravada.
Ora, como no caso dos pontos em apreço a impugnação apresentada pela A. não cumpre o referido ónus da especificação, nessa vertente secundária, é de concluir que a mesma não passa da mencionada “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, a ditar a rejeição da mesma impugnação, nesta parte.
O que significa que, quanto à eliminação dos pontos 24 a 26 do elenco de factos provados, e correspondente aditamento ao elenco de factos provados de três novos pontos, com a redacção identificada na conclusão 16. do recurso da A., não há lugar às alterações pretendidas.
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Por fim, visa ainda a A. que se elimine do elenco de factos não provados o ponto 27, aditando-se o mesmo ao elenco de factos provados, e sustentando tal pretensão com a circunstância de se tratar de factualidade admitida por acordo das partes, face à posição manifestada pelo 2º R. no art.º 100º da sua contestação, relativamente ao que foi por si alegado no art.º 47º da P.I.
No art.º 47º da P.I. a A. alegou que desde que foi morar para casa dos RR. e até 25/11/2015 arrendou a fracção referida em 6 e auferiu as rendas daí resultantes na sua totalidade, no valor de € 600,00 mensais.
Nos art.º 97º e 98º da sua contestação o 2º R. confirma que a fracção referida em 6 esteve arrendada até 25/11/2015, mas afirma que era ele o senhorio nos contratos de arrendamento respectivos, tendo por isso participado os mesmos à Autoridade Tributária, do mesmo modo declarando anualmente os valores correspondentes às rendas, para efeitos de IRS.
E no art.º 100º da contestação alega ainda que “sabe agora que não recebeu o proveito desse arrendamento, pois como disse supra, esses “negócios” eram acompanhados pela R. e que a A. (e eventualmente a sua filha, aqui R.) se locupletou ilicitamente com tais valores, que evidentemente irá reclamar judicialmente”.
Ou seja, tomando a defesa do 2º R. no seu conjunto (como impõe o nº 2 do art.º 574º do Código de Processo Civil), resulta claro que ficou impugnado que a A. tenha dado de arrendamento a fracção referida em 6 e tenha recebido as correspondentes rendas mensais, já que da alegação do 2º R. resulta que foi ele quem deu de arrendamento tal fracção, assim sendo ele o legítimo titular das rendas respectivas, e só não as tendo recebido porque lhe foram subtraídas pela A. (e, eventualmente, pela 1ª R.).
Pelo que a factualidade que a A. pretende ver aditada ao elenco de factos provados, se entendida como correspondendo tão só ao acto isolado do  recebimento de valores pecuniários que não lhe pertenceriam, por serem da titularidade do 2º R. (única factualidade que se poderia considerar admitida por acordo, se fosse susceptível de ser considerada isoladamente), torna‑se irrelevante para os fins pretendidos pela A.
Já se tal factualidade constante do ponto 27 for entendida no âmbito da alegação mais abrangente da A., representando a afirmação de uma actuação de facto da mesma sobre a fracção referida em 6 correspondente ao exercício dos poderes de proprietária, dando de arrendamento a fracção e recebendo as correspondentes rendas, logo se alcança que a mesma não foi admitida por acordo do 2º R., antes se apresentando como controvertida. E inexistindo qualquer prova (desde logo documental) da sua verificação, a mesma não pode dar-se como provada.
O que significa que, quanto à eliminação do ponto 27 do elenco de factos provados, e correspondente aditamento da factualidade em questão ao elenco de factos provados, não há lugar à alteração em questão.
***
Em síntese, e no que respeita à impugnação da decisão de facto, para além da alteração do ponto 12 do elenco de factos provados é de manter todo o restante teor da decisão de facto constante da sentença recorrida, assim improcedendo as conclusões do recurso da A., nesta parte.
***
Na sentença recorrida ficou assim fundamentado o não reconhecimento da aquisição por usucapião da propriedade da fracção referida em 6:
A tese apresentada pela autora, com que pretende afastar a presunção de propriedade a favor dos réus decorrente do registo (art.º 7.º Código de Registo Predial – CRP), assenta num circunstancialismo muito particular – na invocação que a escritura celebrada, em que os réus foram compradores teria sido uma mera formalidade, sem consistência substantiva, o que todos os intervenientes conheciam.
(…)
Na avaliação deste tribunal os elementos apurados não permitem estabelecer uma coerência da situação possessória, seja objectiva ou subjectiva, que permita infirmar a presunção registal.
Começando pela vertente subjectiva, ainda que se possa concluir que, desde a aquisição da fracção, a autora viu a casa como sua, não se pode concluir que o fizesse numa perspectiva de propriedade exclusiva e com exclusão dos réus, particularmente da sua filha, a aqui ré.
A prova não o sustenta e a avaliação conclusiva do tribunal afasta-o.
Pelo contrário, o que resulta do apurado é uma situação mais complexa, em que a autora terá assumido que estaria a comprar, por intermédio da sua filha, sendo que esta ficaria proprietária plena no futuro e a autora (e o marido), no imediato, habitariam a fracção. A sua vontade será melhor qualificada como algo de semelhante a um usufruto vitalício da fracção, com reversão da propriedade plena para os réus após o falecimento da autora e do seu marido.
Acresce, ainda em sede subjectiva, que também os réus mantiveram animus possessório, admitindo-se que não integralmente coerente entre eles, aproximando-se a conformação subjectiva do réu da de um proprietário pleno com mera tolerância de detenção pela autora e a da ré de um entendimento e vontade próximos das da autora.
Se esta é a realidade subjectiva apurada, em termos objectivos, também a posse da autora não se pode considerar correspondente a um direito de propriedade plena, com exclusão dos réus, de forma pública e pacífica.
É inequívoco que a autora habitou a fracção, como o é que suportou despesas e participou na determinação de obras de beneficiação. Praticou assim, pode concluir‑se, actos jurídicos relevantes relativos à fracção. A questão é que esses actos não são os únicos e, principalmente, são compatíveis com uma posse correspondente à propriedade como são com uma mera posse ou detenção.
Não são exclusivos porque os réus praticaram outros, tão ou mais relevantes, como serão o dar de arrendamento a fracção a terceiros após a morte do marido da autora ou o pagamento de algumas despesas ou de parte do mútuo bancário.
Não excluem uma prática a título de mera detenção, considerando a situação pessoal da autora e seu marido e o propósito de permitir uma habitação dos pais da ré próximo desta, na zona dos Olivais, o que é, obviamente, compatível com diversas situações jurídicas face ao imóvel de residência.
Tudo resumido e em aproximação conclusiva final, o que se conclui é que a autora não consegue provar que possuiu a fracção, de forma exclusiva e de forma correspondente ao exercício de propriedade, desde 2003 e até ao presente.
As motivações e comportamentos dos diversos intervenientes não se apuraram com exactidão, podendo, em todo o caso, extrair-se claramente que foram incoerentes entre si e inconsistentes ao longo do tempo.
Desde a celebração do contrato até ao presente que a vontade real da autora, da ré e do réu não teve correspondência entre si e, muito possivelmente, foi-se alterando ao longo do tempo, de forma concomitante com a situação do dissolvido casal, aqui réus, bem como da evolução da própria situação pessoal da autora, em razão da sua própria idade e do falecimento do seu marido.
Em conclusão final, apurado o essencial e mantendo-se obscuros e/ou meramente indiciados alguns elementos acessórios, a autora não conseguiu provar uma posse continuada (sem interrupções) e sempre correspondente ao exercício de um direito de propriedade exclusivo e que não compreenda os réus em relação à fracção objecto dos autos.
É o suficiente para que a presunção decorrente do registo se mantenha e não tenha sustentação a invocada aquisição originária. Por consequência, não têm fundamento factual os pedidos”.
Na sua alegação de recurso a A. não coloca em crise que os RR. adquiriram a posse sobre a fracção referida em 6 por efeito do contrato de compra e venda outorgado em 5/6/2022. Mas entende estar “abundantemente demonstrado ter havido inversão do título por parte da Autora e marido, os quais prosseguiram a partir do momento da transmissão, a acção e detenção da fracção em nome próprio e não como simples detentores em nome alheio, que já antecedentemente haviam começado, designadamente com o pagamento do sinal”, já que “a partir do momento da venda da fracção, a Autora e o marido passaram a detê-la como coisa sua ocupando-o como habitação própria até data não apurada situada em 2010, evidenciando uma afirmação de um direito próprio, pagando não só a totalidade do valor do empréstimo, como também outras obras realizadas, e arrendando-o e recebendo as rendas durante o período em que foi viver na Rua 6 do Bairro da Encarnação, n.º 43, Santa Maria dos Olivais, voltando a Autora a ocupar a fracção a partir desta data, com a companhia da filha, a aqui Ré”.
Recuperando o entendimento pacificamente aceite, quanto às características que a posse deve revestir para que conduza à aquisição do direito de propriedade por usucapião, releva desde logo a verificação do corpus e do animus. Como se explica no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 5), “o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos estrangeiros (cfr., por ex. o §854 do Código alemão, segundo o qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera obtenção do poder de facto)”. E, por isso, é que aí se conclui que para “que haja posse (…) é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela”.
Ou seja, e como vem afirmando pacificamente a doutrina e a jurisprudência, a posse está definida no art.º 1251º, n.º 1, do Código Civil, segundo a adopção da concepção subjectivista da iuris possessio de tradição romanista, pela conjugação daqueles dois elementos: o corpus e o animus. O corpus expressa‑se pela prática de actos materiais sobre a coisa; pelo exercício de poderes de facto sobre ela; pela apreensão mate­rial, física, sobre a coisa; é uma afirmação traduzida em actos materiais e jurídicos a que a or­dem jurídica atribui efeitos. O animus é retratado pela intenção do agente, exteriori­zada na prática desses actos, de actuar como titular do direito a que o exercício do poder de facto sobre a coisa corresponda.
Caso contrário, sobrevindo apenas o corpus sem o animus, está-se perante a simples detenção, nos termos definidos pelo art.º 1253º do Código Civil.
Dito de outra forma, para que se possa afirmar a aquisição da posse, nos termos e para os efeitos do disposto na al. a) do art.º 1263º do Código Civil (que dispõe que a posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito), é necessário que se verifique que o seu titular exerce os poderes correspondentes aos do titular do direito real respectivo, com a intenção de os exercer enquanto titular desse direito real, e não apenas por mera tolerância do titular do mesmo, sem intenção de agir como beneficiário do direito ou na qualidade de simples possuidor em nome de outrem.
Recorrendo uma vez mais à doutrina expressa no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 25‑27), aí se explica que “para que a posse se adquira sem intervenção do antigo possuidor, é necessário que se estabeleça entre a pessoa e a coisa uma relação de facto que contenha todos os elementos daquela figura. Daí o ter-se exigido a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito. Estes actos, de per si, podem não conduzir à posse se faltar o animus possidendi; mas sem eles é que a posse não existe, nem se constitui. Esta alínea vale assim como um complemento ou uma confirmação do conceito de posse expresso no artigo 1251º. Os elementos nela referidos são os conceitos integrantes do corpus. «O acto de investidura na posse, escreve Manuel Rodrigues (ob. cit., nº 36), porque dele deriva a relação possessória, há-de conter os elementos desta mesma relação. Há-de conter um elemento que estabeleça a relação material da pessoa com a coisa, e há-de conter um elemento espiritual que signifique a intenção de exercer um direito no próprio interesse”. Mais se explica aí que por actos materiais se deve entender aqueles “actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa” e não actos de disposição ou de administração, como é o caso do pagamento de impostos ou outros encargos relativos à coisa “que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”. E explica-se ainda que a inversão do título da posse (a que alude a al. d) do mesmo art.º 1263º do Código Civil) mais não é que “um caso especial de aquisição originária”.
Importa ainda reter que, de acordo com o disposto no art.º 1290º do Código Civil, “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título”.
Do mesmo modo resulta ainda do nº 1 do art.º 1268º do Código Civil que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”. Ou seja, e tendo presente o disposto no art.º 350º do Código Civil, o possuidor está dispensado de efectuar a prova da titularidade do direito real respectivo, o que equivale a dizer (como José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 4ª edição, reimpressão, Coimbra, 1987, pág. 110) que “o sujeito está ao abrigo de surpresas: a presunção que a lei lhe outorga basta normalmente para manter os estranhos em respeito”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, é patente, tal como reconhecido pela A., que por força do contrato de compra e venda celebrado em 5/6/20002 foi transmitida aos RR. a posse correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção referida em 6. Ou seja, trata-se da forma de aquisição derivada a que respeita a al. b) do art.º 1263º do Código Civil, por força da tradição da coisa operada como efeito essencial da compra e venda (art.º 879º do Código Civil).
E se a A. não contesta tal aquisição derivada da posse pelos RR., conclui, todavia, que os actos praticados por si e pelo seu marido (e apenas por si após o óbito do mesmo) relativamente à fracção referida em 6, a partir da escritura de compra e venda e ainda antes da mesma, mais não representam que actos materiais praticados no âmbito dos poderes próprios de proprietários desse imóvel, e com a intenção de exercer tal direito de propriedade no seu próprio interesse, através dos quais adquiriram a posse por inversão do título.
Só que, não obstante as referências jurisprudenciais e doutrinárias que constam da alegação de recurso, a factualidade apurada no caso concreto dos autos não permite a afirmação da aquisição da posse por inversão do título, segundo a definição do art.º 1265º do Código Civil.
Com efeito, e como bem refere a A., recorrendo à doutrina expressa no Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 30), “a inversão do título da posse (…) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio”, tornando‑se necessário “um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía”, e exigindo-se que o detentor torne “directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (…) a sua intenção de actuar como titular do direito”.
Do mesmo modo, e como resulta do acórdão de 20/3/2014 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), que acompanha a doutrina mencionada pela A. na sua alegação de recurso, “não chega para se verificar a inversão do título da posse que tenha havido por parte do detentor precário a intenção de o inverter; exige-se que a oposição se concretize em actos materiais ou jurídicos inequivocamente reveladores de que o opositor quer actuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa e que essa actuação se dirija contra a pessoa em nome de quem detinha e dela se torne conhecida”.
Do mesmo modo, ainda, sinaliza-se no acórdão de 17/12/2014 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt), que a “doutrina exige, também, uma oposição formal, por meios notificativos directos e levada ao conhecimento do possuidor, isto é, dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detém a coisa para que se torne dela conhecida, e defende que o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.
Ora, a prática de actos sobre a fracção referida em 6 inequivocamente reveladores da vontade da A. e do seu falecido marido actuarem como titulares do direito de propriedade sobre esse imóvel, dirigidos contra os RR. e tornando-se conhecidos dos mesmos, apenas poderia ser afirmada na medida em que a factualidade provada não fosse a que ficou acima elencada, mas antes a que A. pretendia que fosse dada como provada, em sede de impugnação da decisão de facto.
Com efeito, e ao contrário do invocado pela A., ficou por demonstrar que esta e o seu marido pagaram a totalidade do valor do empréstimo contraído pelos RR., do mesmo modo ficando por demonstrar que a A. e o seu marido pagaram as obras realizadas na fracção referida em 6, a par das demais despesas inerentes a tal imóvel, e ficando ainda por demonstrar que foi exclusivamente a A. quem arrendou o imóvel e recebeu as respectivas rendas, enquanto senhoria. Do mesmo modo, e aqui mais relevantemente, ficou por demonstrar que ao tempo da compra da fracção pelos RR. a A. e o seu marido consideravam que tal compra estava a ser feita para si, com exclusão dos RR.
Dito de outra forma, apenas se poderia afirmar a inversão do título da posse na medida em que se apurasse que a actuação da A. e do seu marido estava em oposição com a actuação dos RR. ao celebrarem o contrato de compra e venda da fracção referida em 6, sendo representativa de uma vontade de actuarem como proprietários exclusivos desse imóvel, por oposição à qualidade de proprietários adquirida pelos RR. por força da celebração desse contrato de compra e venda.
Todavia, e começando desde logo pelas entregas pecuniárias efectuadas pela A. e pelo seu marido, aquilo que resulta demonstrado é a existência de transferências bancárias de vários montantes entre contas da A. e contas dos RR., com a finalidade de amortizar o empréstimo bancário contraído pelos RR., seguido da domiciliação das prestações do empréstimo numa conta bancária da titularidade da A., mas sem que se consiga concluir que foi a A. (e o seu marido, enquanto foi vivo) quem liquidou na sua totalidade todos os valores devidos à entidade mutuante.
Do mesmo modo, e no que respeita à intenção subjacente aos pagamentos efectuados pela A. e pelo seu marido, resulta tão só demonstrada a intenção dos mesmos de “fixar residência na fracção referida em 6”, mas resultando igualmente demonstrado que tal intenção se alterou após o óbito do marido da A., passando a A. a residir em casa dos RR. e passando a fracção referida em 6 a ser dada de arrendamento, mas sem que esteja demonstrado que foi a A. quem tomou tal iniciativa e a concretizou, auferindo as correspondentes rendas.
Por último, e no que respeita às despesas inerentes à fracção referida em 6., aquilo que resulta demonstrado é que a A. suportou tais despesas, mas não em exclusividade, porque os RR. também o fizeram.
Ou seja, aquilo que resulta da factualidade apurada é uma actuação conjunta (ou, pelo menos, indistinta) da A. (e do seu marido, enquanto foi vivo) e dos RR., relativamente ao uso e fruição do imóvel, e não uma actuação da A. (e do seu marido, enquanto foi vivo) tendente à exclusão dos RR. do exercício dos seus poderes próprios de proprietários. Assim, não se pode afirmar qualquer aquisição da posse por parte da A. e do seu marido, por inversão do título, antes sendo de considerar que os actos praticados pela A. e pelo seu marido (e da A., após óbito deste) correspondem aos de um possuidor precário, face à posse exercida pelos RR. e que lhes adveio derivadamente da celebração do contrato de compra e venda.
Nessa medida, não tendo sido adquirida (e mantida) pela A. e pelo seu marido a posse correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção referida em 6, não se pode igualmente afirmar a aquisição originária desse direito real por usucapião, nos termos do art.º 1287º do Código Civil.
Pelo que, assentando a pretensão manifestada na P.I. na verificação de tal aquisição originária por usucapião, e ficando a mesma por demonstrar, nenhuma censura pode ser feita à sentença recorrida quando conclui pela improcedência da acção, face à improcedência das conclusões do recurso da A., igualmente nesta parte.
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Por último, e tendo presente a já afirmada natureza subsidiária da ampliação do objecto do recurso que o 2º R. apresentou com a sua alegação de resposta, tal como a mesma decorre do nº 2 do art.º 636º do Código de Processo Civil, o conhecimento da questão de facto suscitada pela mesma ampliação mostra-se prejudicado, face à improcedência das questões suscitadas pela A. no âmbito do seu recurso.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

9 de Maio de 2024
António Moreira
Susana Mesquita Gonçalves
Paulo Fernandes da Silva