Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ MACHADO | ||
Descritores: | RECLAMAÇÃO HIERÁRQUICA REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | - O n.º 2 do artigo 278.º do Código de Processo Penal parte da presunção de que, ao reclamar hierarquicamente antes de decorrido o prazo para requerer a instrução, o assistente renuncia à realização desta. - Ora, uma tal presunção não pode existir quando o assistente, simultaneamente, reclama hierarquicamente e requer a instrução. - E. muito menos quando, como acontece no caso dos autos, o pedido de reclamação hierárquica e o de abertura da instrução têm objectos diferentes porque incidem sobre dois despachos distintos e com fundamentos diversos, embora a procedência de um deles afecte a apreciação do outro. - O que não era admissível era a reclamação hierárquica naquele momento e não o requerimento de abertura de instrução que, tendo sido apresentado tempestivamente e com o objecto de ser deduzida acusação pelos factos que excedem aqueles que o Ministério Público integra num crime de ameaça e relativamente aos quais não foi deduzida acusação (artigo 287.º, n.º, alínea b) do C.P.P.) deverá ser admitido, se nenhum outro fundamento legal existir para a sua não admissão. - Porque assim é e porque, ainda que o processo não prossiga para a fase da instrução, sempre terá de prosseguir para julgamento da queixa apresentada pela assistente, na parte em que o Ministério Público acusou, não há lugar à condenação do assistente em taxa de justiça nos termos do artigo 515.º, n.º 1, al. d) do CPP, a qual só deve ter lugar quando ocorre o encerramento do processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório 1. No âmbito do processo de inquérito supra identificado, foram proferidos, a 27/04/2021, os seguintes despachos pela Sra. juíza de instrução: (transcrição) «Nos presentes autos, a ofendida AA apresentou denúncia contra o arguido BB imputando ao mesmo factos diversos. Findo o inquérito foi proferido despacho final de acusação por factos considerados integrantes de crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts.153°, n°1 e 155°, n°1, al. a) do C. Penal, tendo sido a ofendida notificada para deduzir acusação particular pelos factos participados suscetíveis de integrarem a prática de crime de injúrias, p. e p. pelo art.181°, n°1 do C. Penal. Todavia, apesar de já se ter constituído assistente, condição processual à futura dedução da necessária acusação particular por tal ilícito, a ofendida não deduziu qualquer acusação. Nos termos do art.515°, n°1, al. d) do CPP é devida taxa de justiça pelo assistente "Se fizer terminar o processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar". A situação dos autos enquadra-se claramente em tal normativo, justificando-se que o interveniente processual que assume este comportamento dual, de sentido contraditório, seja responsabilizado pelas custas e encargos a que deu azo. Assim, nos termos do citado artigo e do art.8°, n°9 do RCP, condeno a assistente AA no pagamento de taxa de justiça, pelo mínimo legal, e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Notifique.» Através do seu requerimento de 11/03/2021, ref…., AA, assistente nos presentes autos, veio apresentar reclamação hierárquica e, a título subsidiário, para a eventualidade de tal reclamação não lograr provimento, requerer ainda a abertura de instrução, conforme peça processual de fls.118 a 123 v°, que aqui se tem por reproduzida. Submetido a apreciação esse seu primeiro pedido ou pedido principal, de reclamação hierárquica, o mesmo não obteve provimento, conforme decisão constante de fls.12 a 13 v° do apenso A, ref…., sendo confirmada, nos seus exatos termos, a acusação já deduzida nos autos. Nessa sequência, é agora suscitada a apreciação do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, pugnando o M° P° pela sua inadmissibilidade, à luz do disposto no art.278°, n°2 do CPP. A este propósito, cabe ter presente o disposto no art.287°, n°3 do CPP, que dispõe que o requerimento de abertura da instrução "só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução". Antecipamos que é por referência a este último segmento do normativo citado que deve ser apreciada a questão suscitada. Com efeito, tal como sublinhado pelo Digno Procurador da República, nos termos do invocado art.278°, n°2 do CPP, a reclamação hierárquica surge como medida processual alternativa à instrução, a que o assistente pode lançar mão em caso de discordância com o despacho final proferido pelo magistrado do M° P° titular do inquérito. Ou seja, a nossa lei processual penal confere ao denunciante, constituído ou com faculdade de se constituir assistente nos autos, a possibilidade de reagir ao despacho de encerramento do inquérito do qual discorde por uma de duas vias, em opção de alternatividade, e não de sucessividade ou subsidiariedade. Ao exercer uma dessas formas de reação, fica precludido o recurso à outra. Deste modo, por se entender não ser legalmente admissível a abertura da instrução suscitada após/em alternativa a reclamação hierárquica já requerida e apreciada, ao abrigo do disposto no art.287°, n°3 do CPP, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA. Notifique. Após trânsito, remeta os autos à distribuição para julgamento, em conformidade com a acusação pública deduzida.» 2. A assistente interpôs recurso desses despachos, extraindo da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: 1. O presente recurso vem interposto do douto despacho da Exma. Senhora Juiz de Instrução Criminal da Comarca …, Juízo de Instrução Criminal de …, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, ora recorrente, por entender não ser legalmente admissível a abertura da instrução suscitada após/em alternativa a reclamação hierárquica já requerida e apreciada, nos termos do disposto no artigo 287e, n? 3 do CPP. 2. Ora, é certo que através do requerimento datado de 11/03/2021, a assistente, ora recorrente, veio apresentar uma reclamação hierárquica, tendo requerido ainda que fosse aberta a instrução no caso de aquela reclamação não ser admitida ou ser declarada improcedente. 3. Contudo, também não se pode descurar que quer a reclamação hierárquica, quer o requerimento de abertura de instrução têm objetos totalmente diferentes, porque versam sobre dois despachos distintos, e têm fundamentos absolutamente diferentes. 4. Com efeito, a reclamação hierárquica vem interposta do despacho do Sr. Procurador do Ministério Público com a referência n.º……, datado de 02/02/2021, enquanto que o requerimento de abertura de instrução diz respeito ao despacho de acusação proferido no âmbito dos presentes autos. 5. Em suma, na reclamação hierárquica estava em causa a aplicação - ou não - da forma de processo sumaríssimo aos presentes autos, discordando-se do teor do despacho com a referência n.º…………, ao passo que no requerimento de abertura de instrução estava em causa a subsunção - ou não - dos factos descritos na acusação ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152- do Código Penal, discordando-se da qualificação jurídica dos factos efetuada pelo Ministério Público no despacho de acusação. 6. E, portanto, há, de facto, sucessividade entre a reclamação hierárquica e o requerimento de abertura de instrução apresentados pela assistente, na medida em que ambos os pedidos foram deduzidos no mesmo articulado, dependendo a apreciação do segundo da improcedência do primeiro, uma vez que não faria sentido requerer a abertura de instrução, no entender da assistente, caso fosse aplicada ao processo a forma sumaríssima, contudo, não se verifica qualquer alternatividade ou supletividade material - quer quanto ao objeto, uma vez que estão em causa dois despachos totalmente distintos, quer quanto ao conteúdo, uma vez que as questões jurídicas submetidas a apreciação são absolutamente inconfundíveis o que, salvo melhor opinião, obstaculiza à rejeição da instrução pela sua inadmissibilidade, pelo menos nos termos fundamentados no despacho da Exma. Senhora Juiz de Instrução. 7. Por outro lado, no despacho ora em crise, a Mma. Juiz de Instrução Criminal refere o seguinte: "a reclamação hierárquica surge como medida processual alternativa à instrução, a que o assistente pode lançar mão em caso de discordância com o despacho final proferido pelo magistrado do MP" e "a nossa lei processual penal confere ao denunciante (...) a possibilidade de reagir ao despacho de encerramento do inquérito do qual discorde por uma de duas vias". 8. Esqueceu-se, contudo, a Mma. Juiz que apenas o requerimento de abertura de instrução versava sobre o despacho de encerramento do inquérito, isto é, o despacho final de acusação proferido pelo Ministério Público no âmbito dos presentes autos. 9. Contudo, uma vez que pretendia, do mesmo modo, reclamar do despacho que indeferiu a aplicação aos autos da forma de processo sumaríssimo, e por forma a salvaguardar o prazo previsto no artigo 287º do Código de Processo Penal, bem como de demonstrar claramente que não renunciava ou prescindia do direito de requerer a abertura de instrução, a assistente optou por deduzir ambos os pedidos no mesmo requerimento, uma vez que, em seu entender, a procedência do primeiro pedido inviabilizaria a procedência do segundo. 10. De resto, a Mma. Juiz de Instrução Criminal sustenta o seu entendimento no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/12/2013, que, contudo, em nosso entender, e salvo melhor opinião, não tem qualquer semelhança com o caso concreto. Em primeiro lugar, porque, no caso do acórdão, está em causa a reclamação hierárquica/requerimento de abertura de instrução sobre um despacho de arquivamento, e não de acusação, ou qualquer outro, como no presente caso. Em segundo lugar, porque na situação referida no acórdão, está em causa a inadmissibilidade da abertura de instrução requerida na sequência de despacho do superior hierárquico do Ministério Público que confirmou o despacho de arquivamento que encerrou o inquérito, que, por sua vez, foi proferido na sequência de uma reclamação hierárquica sobre este mesmo despacho de arquivamento, o que, não é, claramente, o caso dos presentes autos. 11. Assim sendo, e tudo sopesado, entendemos que a presente abertura de instrução suscitada pela assistente, ora recorrente, é legalmente admissível, devendo, em consequência, ser proferido acórdão neste sentido, revogando-se o despacho recorrido. 12. Finalmente, e sem prescindir, no despacho com a referência nº…………, datado de 02/02/2021, a assistente, ora recorrente, foi notificada para deduzir acusação particular, no prazo de 10 dias. 13. Contudo, uma vez que deduziu reclamação hierárquica sobre o mencionado despacho, bem como requereu a abertura de instrução para reapreciação da qualificação jurídica dos factos efetuada pelo Ministério Público no despacho de acusação, não deduziu acusação particular, pois não faria sentido a assistente, ora recorrente, defender, no requerimento de abertura de instrução, que nos autos está em causa a prática de um crime de violência doméstica e simultaneamente, em paralelo, deduzir acusação particular pelo crime de injúria, contradizendo, assim, a posição assumida naquele requerimento. 14. Certo é que ainda antes de ser notificada, em 29 de abril de 2021, do despacho da Mma. Juiz de Instrução Criminal que indeferiu a abertura da instrução, a assistente, ora recorrente, foi notificada, em 26 de abril de 2021, de que tinha sido proferido despacho de arquivamento no inquérito relativamente ao crime de injúria, o que, de facto, não se compreende. 15. Ademais, por despacho da Mma. Juiz de Instrução Criminal, de que ora se recorre, foi ainda a assistente condenada no pagamento de taxa de justiça, pelo mínimo legal, e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia, por ter sido notificada para deduzir acusação particular e nada ter feito' face ao disposto no artigo 5159, n9 1, alínea d) do CPP, que prescreve que é devida taxa de justiça pelo assistente "se fizer terminar o processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar". 16. Contudo, salvo o devido respeito por opinião contrária, no presente caso, a abstenção de acusar demonstrada pela assistente, ora recorrente, está perfeitamente justificada na circunstância de ter apresentado requerimento de abertura de instrução para requalificação jurídica dos factos, cuja procedência e posterior pronúncia do arguido pelo crime de violência doméstica tinha a expetativa de vir a ocorrer, o que inviabilizaria, e até contrariaria, por completo, a dedução de acusação particular pelo crime de injúria. 17. Assim sendo, entende a recorrente que o citado artigo 515º, nº 1, alínea d) do CPP não tem aplicabilidade no caso concreto, motivo pelo qual deve ser revogado o despacho ora recorrido também na parte em que condena a assistente no pagamento de taxa de justiça nos termos anteriormente expostos. 18. Mais se requer, e sem prescindir, que caso este Tribunal da Relação entenda que a presente instrução não é legalmente admissível, mantendo o despacho recorrido, nos termos enunciados supra, o que por mera hipótese se coloca, mas sem conceder, deverá, em todo o caso, proferir decisão no sentido de ser concedido novo prazo à assistente para deduzir acusação particular pelo crime de injúria, só assim se fazendo justiça. 3. O Ministério Público respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência, tendo para o efeito finalizado a sua resposta com as seguintes conclusões: (transcrição) 1. Terminado o inquérito foi a assistente AA notificada pelo Ministério Público para declarar, em 10 dias, se concordava com uma acusação em processo sumaríssimo contra o arguido BB pela prática de um crime de ameaças e injúrias numa pena de prisão suspensa na sua execução com as condições de frequentar um programa psico-educacional direcionado para os condenados por violência doméstica e sujeito a não se aproximar da assistente. Caso a assistente não concordasse, deveria deduzir acusação particular pelo crime de injúrias. 2. Em resposta a esta notificação veio a assistente dizer que concordava com a acusação em processo sumaríssimo mas pretendendo que o arguido fosse acusado pelo crime de violência doméstica e lhe fosse aplicado o regime de teleassistência, requerimento este que, apesar de ter dado entrada dentro do prazo acima referido, por lapso dos Serviços do Ministério Público apenas foi junto ao processo depois de, esgotado o referido prazo de 10 dias, o Ministério Público ter deduzido acusação pública contra o arguido para julgamento perante tribunal singular pelo crime de ameaças e ter sido ordenada, novamente, a notificação da assistente para deduzir acusação particular pelo crime de injúrias. 3. “Veio então a assistente requerer que fosse corrigido o lapso uma vez que veio em tempo declarar que concordava com a acusação em processo sumaríssimo, requerimento sobre o qual foi proferido despacho a confirmar a dedução da acusação em processo comum perante tribunal singular porquanto no requerimento apresentado a assistente não concordou com a acusação em processo sumaríssimo nos termos propostos pelo Ministério Público, pretendendo alteração da qualificação jurídica e a aplicação da teleassistência, tendo-se ordenado, mais uma vez, a notificação da assistente para deduzir acusação particular pelo crime de injúrias. 4. - Deste despacho reclamou a assistente hierarquicamente pretendendo, no entanto, não só a revogação do despacho que confirmou a dedução de acusação para julgamento em processo comum perante tribunal singular, mas também a revogação deste despacho de acusação, requerendo que fosse deduzida acusação em processo sumaríssimo nos termos por si propostos. 5. Em alternativa, e para o caso de a reclamação hierárquica não ser admitida ou ser indeferida, no mesmo requerimento a assistente requereu também a abertura da fase de instrução pretendendo a pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica. 6. Relativamente a esta reclamação hierárquica, embora o art. 278.°, do C.P.P., se aplique às situações de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, caso em que o assistente ou o denunciante com a faculdade para se constituir como assistente requer a intervenção do superior hierárquico para aquilatar da bondade do arquivamento e para, eventualmente, ser deduzida acusação pública ou seja o inquérito reaberto para realização de diligências, uma vez que a reclamante colocou em causa, na reclamação hierárquica apresentada, o despacho final do inquérito que foi de acusação, pretendendo alterar o mesmo, por força do art. 4.° do C.P.P., entendeu-se ser aplicável o art. 278.°, do C.P.P., norma esta que prevê a intervenção hierárquica com vista ao mesmo fim: a alteração de um despacho final do inquérito. 7. Decidida a reclamação hierárquica, a mesma foi indeferida porque a assistente não só pretendia que o arguido fosse condenado por crime diverso (violência doméstica) mas que ao mesmo fosse aplicada uma pena acessória (proibição de contactos com a vítima com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância - art. 152. °, n.º 5, do C.P.P.), o que não estava previsto na proposta de acusação do Ministério Público para julgamento em processo sumaríssimo. 8. Foram então os autos remetidos à meritíssima juíza de instrução criminal para decidir sobre a condenação da assistente em custas nos termos do art. 515.°, n.º 1, al. d), do C.P.P., por não ter deduzido acusação particular pelo crime de injúrias nas três vezes em que foi notificada para o efeito, pelo que não deve ser concedido à assistente um quarto prazo para o efeito, e para decisão sobre o requerimento para abertura da fase de instrução com o parecer de que o mesmo deveria ser indeferido por o art. 278.°, n.º 2, do C.P.P., não permitir que a assistente requeira, em alternativa, a intervenção hierárquica e a abertura da fase de instrução, o que foi decidido. 9. Conforme resulta do requerimento para abertura da fase de instrução (fls. 123 e 123 v.°), os factos pelos quais a assistente AA pretende que o arguido BB seja pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica (envio de duas cartas à assistente a ameaçá-la e a injuriá-la) consubstanciam a prática pelo mesmo de um crime de ameaças agravadas e de injúrias. 10. Por tudo o exposto, o Ministério Público entende que o despacho da meritíssima juíza de instrução criminal que rejeitou o requerimento para abertura da fase de instrução da assistente AA e condenou a mesma nas custas processuais por injustificada abstenção de acusar se encontra suficientemente fundamentado e não incorre em qualquer violação da lei processual penal pelo que deve manter-se, na totalidade e, em consequência, devem os autos ser remetidos à distribuição para julgamento pelos quais o arguido BB foi acusado pelo Ministério Público 4. Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer a defender a posição do Ministério Publico junto da 1ª instância e a consequente improcedência do recurso. 5. Cumprido que foi o art.º 417º, nº2 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.) importa decidir, o que se faz em conferência, nos termos do disposto no artigo 419.º, n.º 3, al. b) do mesmo Código. II – Fundamentação 1. Objecto do recurso Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do CPP, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido. Estão em causa dois despachos proferidos pela sra. Juíza de instrução, um dos quais tem a ver com a condenação da assistente em pagamento de taxa de justiça nos termos do artigo 515.º, n.º 1, alínea d) do C.P.P. e o outro com a não admissibilidade legal da instrução, por ter sido suscitada a intervenção hierárquica do Ministério Público, questões que importa apreciar. 2. Elementos relevantes da tramitação dos autos para efeito da apreciação do recurso: a) Na sequência de queixa apresentada pela assistente/recorrente, o Ministério Público procedeu a inquérito findo o qual proferiu um despacho, a 08/11/2020, mediante o qual ordenou a notificação da assistente para, em 10 dias, declarar se concordava com a acusação do arguido em processo sumaríssimo pelos factos indiciados, que entendeu subsumir aos crimes de injúrias e ameaças, com a proposta de aplicação ao arguido de uma pena de 11 meses de prisão suspensa na sua execução por um ano, com a condição de frequentar um programa psico-educacional direcionado para os condenados por violência doméstica e o cumprimento de não contactar por qualquer meio a assistente durante 1 ano. b) Decorrido aquele prazo, porque não foi junto aos autos qualquer resposta da assistente, em 23/12/2020 o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção de tribunal singular, imputando ao arguido a prática de um crime de ameaças p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do C. Penal e ordenou a notificação da assistente para, querendo deduzir acusação pelo crime de injúrias, de natureza particular. c) Veio então a assistente, em 13 de janeiro de 2021, dizer que tinha manifestado, em tempo, a sua concordância com a aplicação aos autos da forma de processo sumaríssimo, nos termos enunciados no despacho do Ministério Público, mas requerendo que, no cumprimento do dever proposto para o arguido, se recorresse “à medida de proteção de teleassistência", juntando para o efeito cópia do requerimento que dera entrada em 19/11/2020. d) Face a esse requerimento o Ministério Público proferiu, em 2/02/2021, o seguinte despacho: «(…) lido o requerimento da assistente facilmente se conclui que esta não concordou com a proposta do Ministério Público, designadamente no que toca à qualificação jurídica dos factos e à sanção proposta, pelo que, em todo o caso, sempre teria que proferir acusação, decidindo, por isso, nada haver a alterar ao despacho proferido a fls. 90 e 91, devendo a assistente ser notificada para deduzir acusação particular». e) Notificada desse despacho a assistente apresentou reclamação hierárquica para o sr. Procurador da República pedindo a este a substituição do despacho por outro que desse sem efeito o despacho de acusação deduzido em 10/11/2020 e, em consequência, fosse aplicada aos autos a forma de processo sumaríssimo, mediante a condenação do arguido numa pena única de 11 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, com a frequência de um programa psico-educacional direcionado para condenados por violência doméstica após cumprimento de pena, ministrado pela DGRSP, com o cumprimento adicional do dever de não contactar por qualquer meio a assistente durante 1 ano, recorrendo-se, para o efeito, à medida de proteção de teleassistência”. f) Para o caso de tal reclamação não proceder a assistente requereu, no mesmo requerimento datado de 11/03/2021, por forma a salvaguardar o decurso do prazo de 20 dias previsto no artigo 287º do CPP, a abertura de instrução com vista à obtenção de um despacho de pronúncia do arguido pelo crime de violência doméstica, tudo nos termos do requerimento de fls. 120 a 123. g) Tal reclamação hierárquica foi apreciada pelo Exmo. Procurador da República a 18/03/2021 que decidiu, “no indeferimento da reclamação apresentada pela assistente AA, mantenho o despacho proferido a fls. 107 dos autos que decidiu não alterar o despacho de acusação proferido a fls. 90 e 91 dos autos.” g) Na sequência dessa decisão, o Ministério Público, titular do inquérito, solicitou à Sra. Juíza de instrução criminal a apreciação do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, pugnando pela sua inadmissibilidade à luz do disposto no art.278°, n°2 do C.P.P., tendo sido, então, proferido o despacho recorrido. 3. Apreciação 3.1. Quanto à não admissão do requerimento de abertura de instrução O despacho recorrido assenta essencialmente no facto de a recorrente ter apresentado reclamação hierárquica e, simultaneamente, requerimento para a abertura de instrução e dessa forma ter precludido o direito de requerer a instrução uma vez que lei processual penal confere ao denunciante, constituído ou com faculdade de se constituir assistente nos autos, a possibilidade de reagir ao despacho de encerramento do inquérito do qual discorde por uma das duas vias - ou pela reclamação hierárquica ou pela abertura de instrução - em opção de alternatividade, e não de sucessividade ou subsidiariedade. Com efeito, resulta do artigo 278.º do C.P.P. que o pedido de intervenção hierárquica e o pedido de abertura da instrução são alternativos e não cumulativos e por isso o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente não podem requerer cumulativamente a instrução e a reclamação hierárquica. Isso mesmo resulta do acórdão do STJ n.º 3/2015 (DR, I Série de 20-03-2015), que fixou Jurisprudência quanto à data do início da contagem do prazo para o assistente requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, em cuja fundamentação se pode ler: «Estando em causa factos susceptíveis de preencherem crimes públicos ou semi-públicos que admitam a constituição de assistente, a lei prevê duas vias de controlo da decisão de não acusação por parte do Ministério Público: a judicial, requerendo o assistente a abertura de instrução, e a hierárquica, que pode ter lugar mediante requerimento do assistente e do denunciante com a faculdade de se constituir assistente ou por iniciativa do imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público titular do inquérito. (….) Se, como estabelece o artigo 278º, só pode haver intervenção hierárquica a partir da data em que a abertura de instrução já não pode ser requerida e se a suscitação da intervenção hierárquica pelo assistente no decurso do prazo previsto para requerer a abertura de instrução traduz a opção de não requerer a instrução, só pode concluir-se que, por um lado, o requerimento de abertura de instrução, ao abrigo do artigo 287º, nº 1, alínea b), e o pedido de intervenção hierárquica são meios de que o assistente pode lançar mão, em alternativa, para reagir contra o despacho de não acusação do Ministério Público no final do inquérito e, por outro, só se inicia o tempo da intervenção hierárquica quando o tempo de requerer a abertura de instrução já passou. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a preclusão do direito a requerer a instrução, quando o assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente opte por suscitar a intervenção hierárquica, tendo decidido no acórdão nº 713/2014 (DR n.º 238/2014, Série II de 2014-12-10): «Não julga inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito». Porém, tal como refere a recorrente, não é essa a questão que aqui se coloca uma vez que a reclamação hierárquica apresentada pela assistente não foi respeitante à sua discordância quanto aos factos pelos quais o Ministério Público não acusou, mas sim quanto ao despacho do Ministério Público que não considerou como de concordância o requerimento, atempadamente apresentado pela assistente, quanto ao julgamento do arguido em processo sumaríssimo. É tão só esse o objecto da reclamação hierárquica, apesar de a sua eventual procedência ter como consequência que se desse sem efeito a dedução da acusação nos termos em que a mesma foi formulada pelo Ministério Público. Isso é, aliás, claro da decisão proferida sobre tal reclamação pelo Exmo. Procurador da República na parte em que nela se escreve: «Por despacho de fls. 107 dos autos, o Digno Magistrado do Ministério Público titular do inquérito entendeu que não deveria ser alterado o despacho de acusação proferido uma vez que a assistente não concordou com a qualificação jurídica constante do requerimento do Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo para além de ter, complementarmente, requerido a aplicação de teleassistência. É deste despacho que a assistente reclama para o signatário, entendendo que não pretendeu qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos e que aderiu completamente ao requerimento do Ministério Público para aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade em processo sumaríssimo, não constituindo o requerimento para aplicação do regime de teleassistência uma alteração do requerimento do Ministério Público.» Tal reclamação hierárquica não era admissível naquele momento e como tal não deveria, a nosso ver, ter sido conhecida. Porém, não é pelo facto de a mesma ter sido apreciada e por via dessa apreciação ter sido a mesma indeferida e ter-se mantido o despacho proferido a fls. 107 dos autos que decidiu não alterar o despacho de acusação, que se pode concluir que, dessa forma ficou precludido o direito de a assistente/recorrente requerer a abertura da instrução relativamente aos factos que, no seu entender integram a violência doméstica e pelos quais o Ministério Público não acusou. O n.º 2 do artigo 278.º do Código de Processo Penal parte da presunção de que, ao reclamar hierarquicamente antes de decorrido o prazo para requerer a instrução, o assistente renuncia à realização desta. Ora, uma tal presunção não pode existir quando o assistente, simultaneamente, reclama hierarquicamente e requer a instrução. E muito menos quando, como acontece no caso dos autos, o pedido de reclamação hierárquica e o de abertura da instrução têm objectos diferentes porque incidem sobre dois despachos distintos e com fundamentos diversos, embora a procedência de um deles afecte a apreciação do outro. O que não era admissível era a reclamação hierárquica naquele momento e não o requerimento de abertura de instrução que, tendo sido apresentado tempestivamente e com o objecto de ser deduzida acusação pelos factos que excedem aqueles que o Ministério Público integra num crime de ameaça e relativamente aos quais não foi deduzida acusação (artigo 287.º, n.º, alínea b) do C.P.P.) deverá ser admitido, se nenhum outro fundamento legal existir para a sua não admissão. Porque assim é e porque, ainda que o processo não prossiga para a fase da instrução, sempre terá de prosseguir para julgamento da queixa apresentada pela assistente, na parte em que o Ministério Público acusou, não há lugar à condenação do assistente em taxa de justiça nos termos do artigo 515.º, n.º 1, al. d) do CPP, a qual só deve ter lugar quando ocorre o encerramento do processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar. Não podendo por isso deixar de se revogar também o despacho que condenou a assistente nesses termos. Termos em que o recurso merece total provimento. III – Dispositivo Pelo exposto, acordam os Juízes na 5ª Secção deste Tribunal da Relação em, na procedência do recurso interposto pela assistente, revogar os despachos recorridos proferidos pela Sra. Juíza de instrução a 27/04/2021. Sem custas. Lisboa, 9 de Novembro de 2021 (Texto integralmente processado e revisto pela relatora- art.º 94.º, n. º2 do C.P.P.) Lisboa 09-11-2021 Maria José Costa Machado Paulo Duarte Barreto Ferreira |