Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5856/2007-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
LEGITIMIDADE
ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O cônjuge divorciado tem legitimidade para exigir prestação de contas ao cônjuge que administre bens comuns do casal desde o momento em que se devam considerar cessadas as relações patrimoniais entre ambos até ao trânsito em julgado da sentença homologatória das partilha de bens comuns (artigos 1678º, 1681º,n.º1,2 e 3 e 1788.º todos do Código Civil) incidindo tal administração sobre sociedade comercial que constituía bem comum do casal.

(SC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


     I – Relatório

1. FRANCISCO […] veio interpor recurso da decisão que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade, determinando a absolvição da instância da requerida ANA […], nos autos de prestação de contas que lhe moveu.

2. Nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:
- O presente recurso incide sobre a decisão de fls. 89 e seguintes dos autos, que decidiu julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, absolvendo a requerida da instância.
- Nos presente autos o recorrente requereu a prestação de contas pela recorrida, por esta ter administrado, sozinha e sem consentimento do recorrido, uma sociedade comercial que constituía bem comum do casal.
- A referida prestação de contas foi requerida com referência ao período entre Março de 2001 e Junho de 2005, sendo Março de 2001 a data em que o recorrente e a recorrida se separaram de facto, e Junho de 2005 a data em que transitou a sentença que homologou a partilha de bens comuns.
- Na decisão recorrida entendeu-se que o recorrente não tem legitimidade para requerer a prestação de contas, por este não ser actualmente sócio da referida sociedade.
- Porém, o recorrente não requereu a prestação de contas por ter sido sócio daquela sociedade, mas sim por aquela sociedade constituir um bem comum do casal, que foi administrado, exclusivamente, pela recorrida, nos termos do art.º 1681, do CC.
- Assim, afigura-se que o recorrente tem legitimidade para requerer a prestação de contas, nos moldes peticionados nos autos.
- Por conseguinte, não deveria ter sido julgada procedente a excepção de ilegitimidade activa.
- Desta forma a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1014 e seguintes do CPC e violou o disposto nos artigos 1678 e 1681, do CC.
     3. Houve contra-alegações.
4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

*
     II –  Enquadramento facto - jurídico

1. da factualidade
Na decisão sob recurso foi considerada assente, a seguinte factualidade:
1. O requerente e o requerido casaram um com o outro no dia 5 de Novembro de 1981, no regime da comunhão de adquiridos.
2. O requerente e requerida deixaram de viver um com o outro em Março de 2001.
3. Por sentença de 16 de Janeiro de 2003[1], transitada em julgado, foi o casamento, entre o requerente e a requerida, dissolvido por divórcio por mútuo consentimento.
4. Pela Ap. […], foi registado na Conservatória do Registo Comercial […] o contrato de sociedade da firma “T.[…] Lda,”, sendo seus sócios Francisco […] e Ana […], detendo cada um deles uma quota no valor de Esc. 200.000$00 no capital social de 400.000$00.
5. A gerência da dita sociedade era exercida pela sócia Ana […].
6. Em Março de 2001 a requerida mudou a fechadura da porta de acesso às instalações da sociedade.
7. Desta forma impedindo o acesso do requerente a esse local.
8. Desde essa data que a requerida deixou de informar o requerente sobre a vida da sociedade, não lhe fornecendo informações comerciais, financeiras e contabilísticas.
9. Na sequência do referido em 3, requerente e requerida procederam à partilha dos bens comuns, entre os quais se encontravam as duas quotas societárias, relacionadas como verbas números 4 e 5, as quais na conferência de interessados realizada no dia 25 de Novembro de 2004, por acordo entre a requerente e a requerida, foram a estas adjudicadas.
10. Por sentença transitada em julgado no dia 7 de Abril de 2005, foi homologada a partilha.
11. Pela Ap […] foi regista na Conservatória do Registo Comercial a transmissão de uma quota de 2.500,00€ a favor de Sandro […]por cessão de Ana […].

2. do direito

Tendo presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões nas mesmas colocadas[2], sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a saber está se conforme se entendeu no despacho sob recurso, o Requerente, ora Agravante não tem legitimidade para exigir a prestação de contas.

Com efeito, referindo-se que tal processo não pode ser utilizado para averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas e para a determinação dos rendimentos eventualmente deixados de auferir em consequência dessa má administração, considerou-se que tendo as duas quotas societárias já sido partilhadas, e a quota do Recorrente sido adjudicada, com o acordo deste, pelo valor atribuído à mesma na relação de bens, não tem cabimento a pretensão do Agravante nesta altura, sendo que se contas houvesse a prestar, deviam-no ser pela sociedade ou por outro sócio a quem a Agravada cedeu a sua quota.

Insurge-se o Recorrente contra este entendimento, alegando que o seu pedido funda-se no facto de a Requerida ter administrado, sozinha e sem o consentimento do Agravante uma sociedade que constitui bem comum do casal, reportando-se ao espaço de tempo que mediou entre a separação de facto e a data em que transitou a sentença homologatória da partilha.

Apreciando.

Diz-nos o art.º 26 do CPC, que o autor é parte legítima, quando tem interesse directo em demandar, exprimindo-se este pela utilidade derivada da procedência da acção, sendo que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares de interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Assim, em termos de critério normal, no concerne à legitimidade singular e directa, a solução encontrada assenta na titularidade da relação material controvertida, conforme surge delineada pelo autor[3], sabendo-se que a legitimidade constitui um mero pressuposto processual, necessário para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, distinguindo-se dos requisitos que respeitam à procedência do pedido, com os mesmos não se confundindo.

Reportando-nos aos autos, em causa está o processo especial de prestação de contas previsto nos artigos 1014 e seguintes, do CPC, que constitui o instrumento legal posto à disposição de aquele que tenha o direito de exigir a prestação de contas ou o dever de as prestar, para obter o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios, bem como a eventual condenação no pagamento do saldo, que em conformidade for apurado.

Tendo presente que a obrigação de prestar contas, como obrigação de informação, pressupõe a existência de norma legal ou contrato que a determine, importa reter, no concerne à administração de bens alheios, que estes abrangem os bens que também estejam na titularidade do obrigado a prestá-las, caso dos bens comuns do casal, n.º 2, do art.º 1681, do CC.
    
Na realidade, enunciando o art.º 1678, do CC, as regras gerais da administração dos bens do casal, relativamente aos bens comum, consagra-se o princípio da administração conjunta, sem prejuízo de cada um dos cônjuges ter legitimidade para a prática de actos de administração ordinária.

O cônjuge administrador que administre bens comuns não está obrigado a prestar contas, pese embora possa responder pelos actos intencionalmente praticados em detrimento do casal, n.º1, do art.º 1681, do CC, mas se a administração se fundar em mandato, salvo convenção em contrário, só tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, caso exista, relativamente aos últimos cinco anos, de igual modo acontece quanto ao cônjuge que tenha entrado na administração de bens comuns que não lhe caiba, sem mandato escrito, mas com conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, n.º2 e 3, da mesma disposição legal.

A especialidade deste regime vigente na pendência do casamento decorre sobretudo da ideia de confiança recíproca na qual deverá assentar a relação matrimonial, bem como na conveniência de obstar a possíveis conflitos que possam advir no âmbito da gestão dos interesses patrimoniais do casal, considerando as suas especificidades próprias, desenvolvendo-se no seio da instituição familiar, que se pretende pautada por afectos e funcionalmente harmoniosa.

Tais razões deixam de fazer sentido se o casamento for dissolvido com a decorrente cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, nomeadamente por ter ocorrido o divórcio, art.º 1788, do CC, cujos efeitos se produzem a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto a tais relações patrimoniais, sem prejuízo de estando provada nos autos a falta de coabitação, qualquer um dos cônjuges requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam a essa data, n.º1 e 2, do art.º 1789, também do CC.
Decorre do exposto que ao cônjuge divorciado, desde que assim deva ser considerado[4], assiste legitimidade para exigir a prestação de contas ao cônjuge que administre bens comuns desde o mesmo momento, e que se mantenha nessa mesma administração, para o caso que nos interessa, até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha de tais bens comuns[5].

Reportando-nos aos presentes autos verifica-se que o Recorrente, invocando a dissolução da sociedade conjugal por divórcio, veio pedir que a Recorrida prestasse contas relativamente à administração de um bem comum, que a mesma efectuou, desde a data em que cessou a coabitação do casal, até à respectiva partilha.

Ora, não surgindo questionada a natureza comum do bem, nem a efectiva administração levada a cabo pela Agravante, não pode deixar de concluir-se, que o Recorrente detém legitimidade para pedir a prestação de contas nos termos em que o fez, tendo presente contudo a limitação temporal que para o caso concreto exista, no atendimento, como acima se viu, da data de propositura da acção de divórcio e do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

Deste modo, não pode manter-se a decisão recorrida, que assim deve ser revogada e substituída por outra que, na consideração das limitações temporais apontadas, ordene o prosseguimento dos autos.   

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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho sob recurso, prosseguindo os autos nos termos acima descritos.

Custas pela Agravada.
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Lisboa, 12 de Julho de 2007

                                                             Ana Resende

                                                             Dina Monteiro

                                                            Luís Espírito Santo

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[1] Como resulta de fls. 11.
[2] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que a parte possa indicar para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas pela mesma invocadas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
[3] Próxima da posição do Prof. Barbosa de Magalhães na famosa controvérsia que o pôs ao Prof. Alberto dos Reis, visando sanar-se uma querela jurídica que se vinha desenrolando há várias décadas.
[4] A razão de o cônjuge ser considerado divorciado, no concerne às relações patrimoniais, desde a data da propositura da acção radica na preocupação de evitar que qualquer um deles prejudique o outro, por actos de prodigalidade ou vingança, sobre o património comum.
[5] Cfr. Ac. STJ de 3 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt.