Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
49/2006-5
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: FALSIFICAÇÃO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1- O despacho que admite a intervenção como assistente não faz caso julgado formal sobre a respectiva legitimidade.
2-A publicação em 27.02.2003 do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2003, de 16/1 veio pôr termo à controvérsia acerca da legitimidade do queixoso pelo crime de falsificação de documento no sentido de que tinha efectivamente legitimidade para tal a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente.
3-Face a esta doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência e face à ausência de caso julgado formal pode o juiz perante novo pedido de constituição como assistente proferir outra decisão que, aplicando o entendimento jurisprudencial consagrado pelo STJ, admita tal constituição.
4-Pelo que não deve ser rejeitada a abertura de instrução na parte que se refere ao alegado crime de falsificação de documento, considerando que naquele requerimento se formula um novo pedido de constituição como assistente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I
1-Em autos de inquérito que correram seus termos no DIAP de Lisboa, procedeu-se à investigação de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática de um crime de falsificação, p. e p. pelo art. 256º, nº1 al. a), nº3 e 4 e ainda de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, todos do Código Penal (CP), em que é ofendido T… . É parte no processo a U… .

Os autos foram arquivados ao abrigo do disposto no art. 277º,nº1 do Código do Processo Penal (CPP).

2- O ofendido notificado deste despacho de arquivamento veio requerer a sua constituição como assistente.

3-Aos 20.02.2002, foi proferido despacho judicial, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, cujo teor se transcreve:

T… veio requerer a sua constituição como assistente relativamente à prática de crimes de falsificação de documentos e de denegação de justiça e prevaricação, p. e p.., respectivamente, pelos 256° e 369°, ambos do Cód. Penal.
Pagou a respectiva taxa de justiça e juntou procuração.

O Ministério Público declarou nada ter a opor a tal constituição como assistente quanto ao crime de denegação de justiça e prevaricação.
Cumpre decidir.

Ora, dispõe o Art. 68°, n°.1, al. a) do Cód. Proc. Penal que podem constituir-se assistentes em processo penal "os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (...)".
Para se apurar quem é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger haverá que atender à norma incriminadora.
Ora, no caso em apreço, o crime de falsificação de documento encontra-se inserido no Título IV dos crimes contra a vida em sociedade, e visa-se, com essa incriminação, acautelar essencialmente o interesse do Estado.
E, a ser assim, um particular, individualmente considerado, carece de legitimidade para se constituir assistente.
Neste sentido, aliás, aponta o Acórdão de 20 de Janeiro de 1998 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VI, Tomo 1, 1998, pág. 163 e 164, sendo certo que, em relação a vários dos crimes aí mencionados, o actual Art. 68°, n°. 1, al. e) do Cód. Proc. Penal, veio fazer uma ressalva, permitindo que as pessoas que também fossem afectadas pela prática desses ilícitos se pudessem constituir como assistentes, no entanto, nessa ressalva, não incluiu o crime de falsificação de documento.
Assim sendo, e em face do exposto, por falta de legitimidade, indefere-se a requerida constituição como assistente de T… quanto ao crime de falsificação de documento.

Quanto ao crime de denegação de justiça e prevaricação, e por ter legitimidade, estar em tempo, ter pago a taxa de justiça devida e encontrar-se devidamente representado por advogado, admito a constituição como assistente de T… (Art. 68°, n°. 1, al. e) do Cód. Proc. Penal) (…)

4-O assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, apresentado em 16.03.2005, veio dizer que, apesar de, por despacho judicial de fls. 1151 e 1152, proferido em 20/02/2002, ter sido indeferida a sua constituição como assistente quanto ao crime de falsificação de documento, em face do Acórdão do STJ, proferido em 16/01/2003, para fixação de jurisprudência ter sido defendida posição contrária, o assistente deixou de ficar limitado na sua actuação, podendo, assim, requerer a abertura de instrução também pelos crimes de falsificação de documento.

5-Foi proferido despacho judicial, em 28.09.95, cujo teor se transcreve:

Veio o assistente T…, como questão prévia, no seu requerimento de abertura de instrução, referir que, apesar de, por despacho judicial de fls. 1151 e 1152, proferido em 20/02/2002, ter sido indeferida a sua constituição como assistente quanto ao crime de falsificação de documento, em face do Acórdão do STJ, proferido em 16/01/2003, para fixação de jurisprudência ter sido defendida posição contrária, o assistente deixou de ficar limitado na sua actuação, podendo, assim, requerer a abertura de instrução também pelos crimes de falsificação de documento.
Ora, é o próprio assistente quem, na sua argumentação, refere que a posição fixada por Acórdão do STJ não obriga à obediência dos tribunais judiciais, impondo-se apenas o recurso obrigatório por parte do M°.P°.
Mas, como é óbvio, tal situação só pode ocorrer relativamente a situações que surjam no futuro, ou seja, após a prolação do referido Acórdão do STJ, não possuindo o Acórdão do STJ efeitos retroactivos, e, muito menos, perante despachos judiciais já transitados. Nesta conformidade, por falta de legitimidade, uma vez que o requerente T… não foi constituído assistente quanto aos crimes de falsificação de documento, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução de fls. 1445 a 1454 quanto aos referidos crimes de falsificação de documento.
Notifique.
Por o Tribunal ser o competente, estarmos perante crime cujo julgamento segue a forma de processo comum, haver legitimidade, estar em tempo, encontrar-se paga a taxa de justiça respectiva e estar devidamente representado por advogado, recebo o requerimento para abertura de instrução junto a fls. 1445 a 1454, mas apenas quanto aos crimes de prevaricação e denegação de justiça.

6-Inconformado veio o assistente/ofendido interpor recurso desta decisão apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:

- Sendo o estatuto do assistente dinâmico e reversível, o despacho que não admite ao ofendido a sua intervenção, como assistente, apenas faz caso julgado rebus sic stantibus.
- O julgamento sobre a legitimidade do ora recorrente para intervir como assistente, só garante o exercício formal dos poderes e direitos que lhe são cometidos nessa qualidade, mas não dispensa o(s) julgamento(s) que a lei processual prescreva, designadamente no momento em que deduz a acusação ou requer a instrução, ou interpõe recurso da decisão final.
- Se durante uma fase do inquérito a constituição de assistente não era legal, como foi o caso dos autos, mas se durante essa mesma fase processual sobrevier um acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência que atribua ao queixoso requisitos formais para tanto, o que também é o caso dos autos, deverá ser admitida a sua constituição como assistente, no requerimento de abertura da instrução.
- O despacho recorrido fez errada interpretação da lei ao decidir diferentemente do que se assinala nas precedentes conclusões.
Termos em que, com os mais de direito, se deve revogar o despacho recorrido e ordenar-se o prosseguimento dos autos, designadamente o disposto no n° 4 do art. 68° do Cod. Proc. Penal.

7- O recurso foi devidamente admitido e fixado o efeito legal.

8-O MP junto da 1º Instância veio apresentar a sua resposta que aqui se transcreve:

Nos presentes autos foi proferido despacho que rejeitou a abertura de instrução requerida pelo ora assistente, na parte que respeita ao alegado crime de falsificação, com fundamento na falta de legitimidade do requerente.
No referido despacho considerou-se, em síntese, que por despacho judicial proferido em 20.02.02 foi indeferida a requerida constituição de assistente relativamente ao crime de falsificação de documento e, consequentemente, não pode, agora, ser requerida a abertura de instrução relativamente a tal ílicito, atendendo a que o despacho em apreço já transitou.
Mais, se entendeu, no douto despacho requerido, que a prolação do Acórdão do STJ de 18.01.03, para fixação de jurisprudência (que se pronunciou pela admissibilidade da constituição de assistente nos casos em que a falsificação de documento causou prejuízos aos interesses particulares de determinada pessoa), não pode ter efeitos retroactivos e muito menos, perante despachos judiciais já transitados.

A dilucidação da questão suscitada no presente recurso prende-se com e delimitação do estatuto processual do assistente.
Como refere o recorrente constitui jurisprudência dominante que a decisão que admita ou Indefira a constituição de assistente tem o valor de caso julgado formal subordinado à condição “rebus sic stantibus” e, consequentemente, limitado à fase processual respectiva.
De tal entendimento decorre que alterados os pressupostos processuais em que tal decisão foi proferida, através da prolação de um acórdão do STJ pare uniformização de jurisprudência, deverá a mesma ser reapreciada em conformidade com a nova situação.
Tal entendimento revela-se, salvo o devido respeito, o mais adequado sob pena de se verificarem situações de manifesta desigualdade processual.
Na verdade, tais efeitos seriam passíveis de ocorrer, em processos com o mesmo objecto e relativamente a factos mais antigos que os discutidos nos presentes autos, quando existisse um ofendido a requerer a constituição de assistente apenas após a prolação do aludido acórdão, situação que levaria ao deferimento de tal pretensão.
Face ao supra exposto, e aderindo aos fundamentos aduzidos pelo ora recorrente, entendemos que não deve ser rejeitada a abertura de instrução na parte que se refere ao alegado crime de falsificação de documento.

9- A Universidade Técnica de Lisboa veio apresentar a seguinte resposta (transcrição):

I — A decisão judicial de recusa de admissão da constituição de assistente, uma vez não objecto de recurso jurisdicional, constitui caso julgado, não podendo, por isso, ser alterada;
II — Mas mesmo a admitir-se que esta decisão tenha valor de caso julgado formal subordinado à condição "rebus sic stantibus", só mediante alteração das circunstâncias do processo é que seria admissível a sua alteração;
III — Na verdade, uma decisão judicial não pode ser alterada por mera mudança de opinião do julgador sob pena de subversão das regras do processo penal, não sendo assegurado ao arguido o direito a um processo justo e leal, próprio de um estado de direito democrático;
IV — Não tendo o ora Recorrente interposto recurso do despacho de 1 de Março de 2002, que recusou a sua constituição como assistente, não merece qualquer censura o despacho que agora recaiu sobre o seu pedido de abertura de instrução recusando esta fase processual em relação aos crimes de falsificação, pois não se verificou qualquer alteração superveniente das circunstâncias do processo.

10- Foi proferido despacho de sustentação que aqui se transcreve:

Pelas razões de facto e de direito mencionadas no despacho recorrido, mantemos o mesmo.
Esclarece-se ainda que o ofendido/assistente T… refere nas suas alegações de recurso que recorre do despacho de fls. 1545/1546 que não o admitiu a intervir como assistente, quando é certo que o despacho recorrido não se pronuncia quanto a tal questão, uma vez que a mesma não lhe foi sequer colocada.
Na realidade, no requerimento de abertura de instrução, o ofendido/assistente não veio, em face da nova posição jurisprudencial, solicitar que lhe fosse novamente apreciada a sua posição como assistente quanto ao crime de falsificação de documento, solicitação essa que implicaria um novo despacho judicial sobre tal matéria.
Desta forma, o despacho recorrido apenas se reporta ao indeferimento do requerimento de abertura de instrução quanto ao crime de falsificação de documento por falta de legitimidade do requerente; e não se reporta ao indeferimento de um qualquer requerimento, que não existe, para constituição como assistente do ofendido relativamente ao crime de falsificação de documento.

11-Subiram os autos a este Tribunal, onde na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Exma. Procuradora - Geral Adjunta acompanhou a posição do MP em 1ª Instância, sendo o seu Parecer no sentido que o recurso merece provimento.

12-Cumprido o art. 417º do CPP, nada foi dito.

13- Efectuado exame preliminar, foram os autos remetidos para conferência.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II

1- O objecto do presente recurso, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, prende-se com a apreciação das seguintes questões:

1.1- Se o caso julgado impede a reapreciação da admissão como assistente do recorrente, quanto ao crime de falsificação de documento;
1.2- Se estão reunidas, no caso presente, as condições para a admissão como assistente pelo recorrente quanto aquele crime.

2- No relatório do presente Acórdão estão explicitadas as razões que levaram à interposição do presente recurso, restando dizer que o debate instrutório estava designado para o passado dia 17.01.2006, não tendo sido obtida resposta se o mesmo se chegou a realizar.

3- “É maioritário o entendimento jurisprudencial no sentido de que o despacho que admite a intervenção como assistente não faz caso julgado formal sobre a respectiva legitimidade (por mais recente refere-se a título exemplificativo o Ac. R.L.- de 6.7.2005, CJ XXX, 4º, 130 e ss).
Também neste sentido o Ac. R.L. de 4.12.2001 que conclui que o despacho a admitir a constituição como assistente não faz caso julgado formal, mas apenas caso “ rebus sic standibus” e Acórdão do STJ, de 3.10.2002, SASTJ nº 64, 95.
A publicação em 27.02.2003 do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2003, de 16/1 veio pôr termo à controvérsia acerca da legitimidade do queixoso pelo crime de falsificação de documento no sentido de que tinha efectivamente legitimidade para tal a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente.
Porém, perante as decisões já proferidas não haveria que revogar-se o seu conteúdo já que a aplicação da doutrina do Acórdão produzirá efeitos nas decisões já proferidas, com excepção das que deram origem ao referido Acórdão.

Mas, face a esta doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência e face à ausência de caso julgado formal poderia o juiz perante novo pedido de constituição como assistente proferir outra decisão que, aplicando o entendimento jurisprudencial consagrado pelo STJ, admitisse tal constituição.
Não existia pois qualquer motivo, perante a publicação do Acórdão, para que se pretendesse sob a forma de pedido de reapreciação operar como que uma revogação da decisão anteriormente formulada” – Acórdão desta 5º secção. no recurso n.º 2405/04 de 4.4.2006, em que foi Relatora a Exma. Desembargadora Filomena Clemente Lima.

Resta saber se estariam reunidos os pressupostos para a admissão do recorrente nessa qualidade, considerando o pedido formulado pelo requerente para abertura de instrução, como um novo pedido de constituição como assistente.

A decisão recorrida entendeu que não, e recorde-se: Na realidade, no requerimento de abertura de instrução, o ofendido/assistente não veio, em face da nova posição jurisprudencial, solicitar que lhe fosse novamente apreciada a sua posição como assistente quanto ao crime de falsificação de documento, solicitação essa que implicaria um novo despacho judicial sobre tal matéria.

Desta forma, o despacho recorrido apenas se reporta ao indeferimento do requerimento de abertura de instrução quanto ao crime de falsificação de documento por falta de legitimidade do requerente; e não se reporta ao indeferimento de um qualquer requerimento, que não existe, para constituição como assistente do ofendido relativamente ao crime de falsificação de documento.

Ora, lendo o longo despacho de abertura de instrução decorre que o ora recorrente está a pedir implicitamente que seja considerado como assistente nos autos face ao crime de falsificação de documento. Tanto mais que sugere a realização de diligências instrutórias. E o Mm. Juiz a quo indeferiu essas diligências por entender que o requerente carecia de legitimidade para tal. Recorde-se que o requerimento para abertura de instrução é datado de 16.03.2005, logo após a publicação do referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência

Pelo que, entendemos que não deve ser rejeitada a abertura de instrução na parte que se refere ao alegado crime de falsificação de documento, considerando que naquele requerimento se formula um novo pedido de constituição como assistente.
III


Por tudo o exposto, acordam as Juízas deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que considerando que no requerimento de abertura de instrução está um novo pedido de constituição como assistente deduzido pelo ora recorrente o aprecie, quanto aos demais pressupostos de que a lei faz depender a sua admissão, à luz da doutrina supra mencionada e resultante do Ac. Fixação de Jurisprudência do STJ nº1/2003.

Sem custas.


O presente Acórdão foi elaborado em processador de texto e revisto pela Relatora que rubricou.

Lisboa, 6 de Junho de 2006



Relatora: Margarida Blasco
1ª Adjunta: Desembargadora Filomena Lima
2ª Adjunta: Desembargadora Ana Sebastião