Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3643/11.3TBSLX.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Do confronto do artigo 562.º, com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, resulta o primado da reparação in natura, competindo à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor do veículo, não o venal, mas o patrimonial.
2. A aplicação do critério de “perda total”, implicando o cumprimento da obrigação de indemnização em dinheiro e não através da reparação do veículo, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade.
3. Caso não haja acordo no âmbito do referido procedimento, valem as regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.
4. A lei não se contenta com a simples onerosidade da reparação do veículo: exige que esta seja excessivamente onerosa para o devedor, isto é, que a restauração natural não imponha ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos legalmente a uma legítima indemnização.
5. A limitação do montante da indemnização em dinheiro ao abrigo do disposto no artigo 566º n. 1, do Código Civil (excessiva onerosidade), quando o preço da reparação da coisa danificada seja superior ao seu valor venal, supõe que exista a possibilidade de, no mercado, adquirir uma coisa idêntica à danificada (isto é, com idênticas qualidades e valor).
6. A privação do uso normal do veículo constitui dano e o lesado tem direito a indemnização, calculada, nos termos do art. 556º, nº 3, do C.Civil (ou então dos arts. 496º, nº 1 e 494º) por apelo à equidade.
7. É ao lesante que incumbe, designadamente através da reparação do veículo sinistrado, restituir o lesado à situação em que se encontrava antes de ocorrido o acidente, pelo que o dano da privação do uso do veículo subsiste até que o lesado veja reconstituída a situação que existiria se não fosse o facto do lesante conducente à paralisação do automóvel.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – RELATÓRIO

V intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo prevista no DL n.º 108/2006 de 8 de Junho contra “Z, S.A.”, pedindo a condenação da Ré no pagamento de 5.864,03€ do custo da reparação do veículo, de 1.000,00€ de privação do uso do veículo e ainda juros de mora a contar da citação.

Para tanto alega, em síntese, que o veículo sofreu um sinistro e tem um valor venal de pelo menos 25.000,00€, por se tratar de réplica de modelo antigo, de colecção, recuperado e adaptado, fruto do labor do Autor, que tem grande estima pelo mesmo.

Contestou a Ré, impugnando o valor atribuído pelo Autor, mantendo o valor já oferecido de 2.500,00€ a que acrescem 100,00€ pelos salvados.

Foi proferido despacho saneador.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que absolveu a Ré do pedido.

O A. veio recorrer da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:

1. A resposta como “não provado” ao artigo 31.º da PI não considerou todos os elementos de prova carreados aos autos.

2. Dúvidas não restam que o veículo em causa é um veículo modificado, réplica de um Escort RS2000 (facto provado sob o n.º 18) correspondendo a um veículo que é usado em provas de competição e exposições de veículos clássicos.

3. Deverá este Tribunal decidir alterar a resposta à matéria de facto dando como provado que: “o valor de veículo idêntico e em igual estado de conservação ao do CG é de €: 25.000,00, sendo alguns vendidos por 35 e €: 40.000,00€.”

4. Ao alterar a decisão da matéria de facto, deverão os pedidos formulados pelo Recorrente ser ambos julgados procedentes porque provados e em consequência condenar a Recorrida nos termos do pedido da Petição Inicial, ou seja, condenando-se a Recorrida a pagar a reparação do veículo no valor de 5.864,03€, indemnização pela privação do uso e danos não patrimoniais no valor de 1.000,00€, e juros contados da citação até integral pagamento.

Corridos os vistos legais,

Cumpre apreciar e decidir.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

Por outro lado, o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Em apreço está, no essencial, a apreciação das seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto

- do direito à indemnização: reposição natural ou verificação de uma situação de perda total do veículo, com as demais consequências daí decorrentes.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1) A responsabilidade emergente da circulação do veículo reboque de matrícula ET encontrava-se, à data do acidente, transferida para a R., por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….

2) No dia 20 de Junho de 2008 ocorreu um acidente de viação, onde foram intervenientes os veículos automóveis de matricula CG, marca FORD, modelo Escort 1300 Sport e de matrícula DO, marca FIAT, modelo Punto.

3) No momento do embate o veiculo CG encontrava-se estacionado e fora de funcionamento.

4) Igualmente, o veículo DO, no momento do embate, encontrava-se fora de funcionamento.

5) No dia indicado, o veículo DO foi transportado, com recurso ao reboque de veículo com a matrícula ET, o qual era, à data do acidente, propriedade da firma D, Lda, Pessoa Colectiva n.º…, sendo conduzido por um funcionário da citada sociedade.

6) O transporte do DO no ET ocorreu do Prior Velho – Lisboa com destino a Foros de Amora – Seixal.

7) O veículo DO iria ser objecto de intervenção na oficina de reparação de automóveis AUTO, Lda, cujo sócio-gerente é o aqui A.

8) Chegados aos Foros de Amora, à indicada oficina, deveria o veículo DO ser colocado em frente do veiculo CG até ao momento da sua reparação.

9) Iniciou o condutor do veiculo ET as manobras necessárias à descarga do veiculo DO.

10) No exacto momento em que o condutor do ET desprendeu a ultima das amarras que mantinham o DO seguro ao reboque, o DO deslizou pela plataforma do reboque de forma descontrolada, seguindo em direcção ao CG, tendo o DO embatido com a sua parte traseira na parte dianteira do CG.

11) Com a força do embate, o CG foi empurrado contra a parede que se encontrava atrás do mesmo aí embatendo com alguma violência,

12) Acabando assim o CG por embater com a sua parte traseira na referida parede.

13) Ficou o CG danificado, tanto na sua parte dianteira como na sua parte traseira.

14) Após ter tido conhecimento do acidente, foi ordenada, pela R., a realização de peritagem ao CG, e cujo relatório se encontra na posse da R., onde concluiu, pela perda total do veiculo CG.

15) Atribuindo-lhe o montante de €2.600,00 (dois mil e seiscentos euros) a titulo de valor venal.

16) A Ré propôs ao A. que procedesse à comercialização do salvado, colocando-se na disposição de proceder ao pagamento da quantia de €2.500,00.

17) O veículo CG data de 1/3/1972 e encontra-se registado a favor do Autor desde 11/11/91, o qual procedeu ao seu restauro e manutenção (provado do art.º 23º da p.i.).

18) O veículo CG foi adaptado e constitui uma réplica de um veículo de marca Ford, modelo Escort RS2000 (provado do art.º 24º da p.i.).

19) O Autor não dá uso diário ao veículo CG (provado do art.º 25º da p.i.).

20) O Autor conserva o livrete do veículo, em modelo que já não está em vigor (provado do art. 27º da p.i.).

21) Antes do acidente, o Autor recebeu uma proposta de aquisição do CG de 30.000,00€ (provado do art. 28º da p.i.).

22) Após o acidente, o Autor recebeu uma proposta de aquisição do veículo no valor de 20.000,00€.

23) Com a aquisição de peças importadas de Inglaterra o Autor gastou 2.478,25 libras esterlinas/2.837,26€ (art.º 34º da p.i.).

24) A reparação do veículo, na parte de pintura, trabalhos de bate-chapa e massas, colas, borrachas, parafusos, terá um valor não inferior a 1.930,24€, a que acrescerá IVA (provado dos artigos 35º a 37º da p.i.).

25) O Autor desenvolveu uma grande ligação afectiva ao veículo CG e sofreu grande desgosto e tristeza ao vê-lo danificado (provado dos artigos 39º e 40º da p.i.).

26) O Autor investiu vários anos, e grande parte do seu tempo disponível na recuperação do veículo (art.º 41º da p.i.).

27) E viu-se privado de o utilizar ao fim-de-semana, o que lhe dava grande gosto e prazer, em virtude de estar danificado (art.º 42º da p.i.).

28) O valor de veículo idêntico e no mesmo estado de conservação em que o CG se encontrava antes do acidente, é de €: 25.000,00[1].

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da Impugnação da matéria de facto
1.1. A decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nas situações previstas o art. 712º/1 do CPC, nomeadamente se do processo constarem todos os elementos probatórios em que se baseou a decisão recorrida quanto à matéria de facto em causa.
Tendo presente o art. 685º-B, nº1, alíneas a) e b), do CPC) deve o recorrente, obrigatoriamente, especificar: a) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Depois, exigível é que se constate verificar-se qualquer um dos pressupostos previstos no art. 712º, nº1, alíneas a), b) e c), do CPC.

Importa, ainda, ter presente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas, constante do art. 655º do CPC. De acordo com este princípio, a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos. As provas são livremente valoradas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, respondendo o julgador de acordo com a sua convicção, excepto se a lei exigir para a prova do facto, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Só neste caso está o julgador obrigado a observar a hierarquização legal[2].

Na modificação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve actuar-se com prudência, só devendo suceder quando se demonstre através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório. Ainda assim, na reapreciação da prova, as Relações têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição. E quando isso suceder e, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão[3], sem descurar, obviamente, as limitações referenciadas face ao mais favorável posicionamento do julgador da 1ª instância perante a prova produzida oralmente em julgamento.

Mostram-se cumpridos os requisitos formais previstos na lei supra referidos.

Ouvidos, então, os depoimentos das testemunhas que se encontram gravados, cumpre analisar a factualidade que está em causa e que foi impugnada pela Apelante.

1.2. Do artigo 31º da petição inicial

Pretende o A./Recorrente que se tenha por provada a matéria por si alegada no artigo 31º da petição inicial e, assim sendo, que “o valor de veículo idêntico e em igual estado de conservação ao do CG é de €: 25.000,00, sendo alguns vendidos por 35 e €: 40.000,00€.”

Na verdade, afigura-se que, em parte, esta matéria, pode ter-se como provada. Com efeito, as testemunhas arroladas pelo A., alguns deles comerciantes de veículos e conhecedores das características do automóvel sinistrado, pronunciaram-se nesse sentido.

Assim a testemunha J referiu que veículos como o do A. são apenas usados para competição e não para andar no dia a dia não. S, adiantou que fez uma proposta para aquisição do veículo, depois de acidentado, e que ofereceu à volta de 20.000,00 €. Esclareceu que carros como o do A. são muito caros e que, depois de reparado conseguiria obter no mercado, um valor superior a € 35.000,00.

Aliás, consta já provado que, antes do acidente, o Autor recebeu uma proposta de aquisição do CG de 30.000,00€ (provado do art. 28º da p.i.) e que após o acidente, o Autor recebeu uma proposta de aquisição do veículo no valor de 20.000,00€. Mais se provou que a reparação do veículo tem um custo de cerca de 5.000€.

Importa referir que o veículo CG data de 1/3/1972 e foi adaptado e constitui uma réplica de um veículo de marca Ford, modelo Escort RS2000. É um veículo que já integra a classe dos automóveis antigos, que o A. restaurou e vem mantendo desde a data da sua aquisição, em 1991 e que utilizava nos fins-de-semana e períodos de lazer.

Assim, sem necessidade de maiores considerações, não custa aceitar que, se o veículo em causa com as características referidas, antes do acidente obteve uma proposta de aquisição de 30.000€ e se, após o acidente, o A. obteve uma proposta de aquisição de 20.000 e que a sua reparação custa 5.000€, o valor deste automóvel será, pelo menos, de 25.000€.

Consequentemente, adita-se à matéria provada o seguinte: 

«O valor de veículo idêntico e no mesmo estado de conservação em que o CG se encontrava antes do acidente é de €: 25.000,00».

2. A reconstituição natural e o art. 41º DL do DL 291/2007 de 21/08

Provada que está a invocada ocorrência do acidente e inquestionada a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na Ré, em causa fica, apenas, decidir se deve a Ré ser ou não condenada a pagar ao A., o custo da reparação do veículo.

Na verdade, pretende o Autor ser indemnizado do custo da reparação do seu veículo, estando provado que a mesma ascende a 4.767,50€ (factos 23 e 24) mais IVA.

A sentença recorrida considerou que o direito do lesado a ser indemnizado por meio da reparação do veículo depende, por força do art.º 41º, n.º 1 do DL n.º 291/2007 de 21 de Agosto, de não se ter verificado a perda total do veículo. Conclui, então, a sentença recorrida que não tendo o Autor conseguido provar que o valor venal do veículo era, à data do acidente, de pelo menos 25.000,00€, o custo da reparação ultrapassa os 120% do valor venal do veículo, pelo que o Autor tem apenas o direito a ser indemnizado em dinheiro, como previsto no art.º 41º, n.º 1 e n.º 3 do DL 291/2007 de 21 de Agosto, e não pelo valor da reparação do veículo.

Porém, com a alteração da matéria de facto supra decidida e conforme ponto 1.3., cai por terra o argumento constante da sentença, já que, atribuindo ao veículo um valor de 25.000,00€, a sua reparação não ultrapassa os 120% do valor venal a que alude o citado artigo 41º do DL 291/2007 de 21 de Agosto.

Mas ainda que não se tivesse provado o valor do veículo, a sentença recorrida ão seria de manter a sentença recorrida.

Vejamos porquê.


2.1. Sob a epígrafe “Perda total”, dispõe o artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007 de 21/08, o seguinte:
«1 — Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
2 — O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
3 — O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
4 — Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado:
a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade;
b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente;
c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.

5 — Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.»

Decorre da norma em apreço que o veículo sinistrado fica em situação de perda total, sendo a obrigação de indemnização cumprida em dinheiro e não através de reparação, quando «o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos».

No entanto, este regime, que veio, nomeadamente, substituir e aperfeiçoar o regime de indemnização por perda total constante do DL 83/2006 de 3 de Maio, não é aplicável na fase judicial, podendo, quando muito, considerar-se como elemento de referência e não no sentido da sua obrigatoriedade[4].

O DL 291/2007 de 21/08, propondo-se realizar a «actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação», manteve, no essencial, o «procedimento de proposta razoável», alargando o seu âmbito de aplicação.

Na vigência do DL 291/2007 de 21/08, tal como já acontecia quando vigorava o DL 83/2006, o critério de definição de “perda total” revela-se apenas aplicável no âmbito da regularização extra-judicial do conflito através do procedimento de apresentação da “proposta razoável” prevista nos artigos 38.º e 39.º do mesmo diploma.

2.2. Tal como o regime precedente, o regime previsto no DL 291/2007 visa promover a regularização rápida e informada dos sinistros apenas por danos materiais e apenas nos próprios veículos e visa evitar o recurso a tribunal, devendo as seguradoras culminar o processo extrajudicial com uma proposta razoável de indemnização aos lesados. Tudo em reforço da protecção dos lesados, isto é, dos consumidores.

Fixam-se regras a observar pelas empresas de seguros. E o processo de regularização deve culminar por uma proposta razoável ao lesado. Proposta que, portanto, o lesado aceita ou não aceita. Trata-se de um processo extrajudicial de regularização que visa evitar o recurso a juízo, em processos desproporcionalmente morosos atendendo aos danos meramente materiais.

Mas o critério em causa, definido e concretizado de forma objectiva com vista à agilização dum procedimento extrajudicial específico integrando-se no capítulo referente a esse procedimento, não pode, em sede de discussão judicial, generalizar-se de forma a sobrepor-se aos princípios decorrentes do confronto do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil.

Foi este o entendimento acolhido no acórdão do Tribunal da Relação de 11.03.2008[5], de cujo sumário se retira, com interesse, o segmento seguinte:

«3. O regime instaurado pelo DL 83/06 ao aditar ao DL 522/85 os artigos 20º-A a 20º-O (entretanto substituídos pelo regime do DL 291/07- S.O.R.C.A.) visa directamente apenas a regularização extrajudicial de sinistros, no termo de cujo processo de regularização a seguradora deve apresentar ao lesado uma proposta razoável de indemnização, podendo esta aferir-se pelo valor venal do veículo no caso de perda total.

4. Não tendo o lesado aceitado essa proposta, nada justifica a aplicação directa desse regime ao caso que ele apresente a juízo, onde pode fazer valer o direito à reparação nos termos do Código Civil»

Foi, portanto, neste contexto, que o novo regime surgiu, para dar resposta rápida e extrajudicial às pretensões dos lesados.

Contudo, se o lesado não aceita a proposta de regularização extrajudicial, nada justifica a aplicação directa do novo regime ao caso que venha ser presente a juízo.

3. Obrigação de indemnização

A regra vigente na responsabilidade civil é a da reparação integral dos danos resultantes do facto ilícito, conforme os artigos 562º e 566º nº 1 do Código Civil.

Com a indemnização pretende-se reconstituir a situação anterior à lesão, ou seja, repor as coisas no estado em que estariam, se não fora o facto determinante da responsabilidade. Porém, a reconstituição natural, princípio geral da obrigação de indemnizar, plasmado no artigo 562º do Código Civil, nem sempre é material ou juridicamente possível.

Excepcionalmente, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 566º do mesmo Código, quando a reconstituição natural for impossível, ou não repare integralmente os danos, ou for excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos[6].

Daqui resulta a existência de duas formas de indemnização: a restauração natural e a restauração por equivalente.

A primeira consiste numa indemnização em forma específica dos interesses lesados, pela qual se remove o dano concreto, isto é, aquele que foi efectivamente sofrido pelo lesado, correspondendo à forma mais perfeita de reparação[7].

A segunda consiste numa indemnização por equivalente, traduzindo-se na entrega de determinada quantia em dinheiro, correspondente ao montante dos danos, com o que não se remove o dano real, indemnizando-se apenas o dano de cálculo ou dano abstracto que consiste no valor pecuniário dos prejuízos causados ao lesado.

Seja como for, em primeiro lugar manda a lei seja tentada a restauração natural, apresentando-se a indemnização pecuniária como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado gravosa para o devedor.

3.1. No caso que em apreço foi formulado, além do mais, pedido relativo aos danos sofridos pelo veículo acidentado, de acordo com o princípio da restauração natural, cuja reparação custa, como ficou provado, € 4.767.50, a que acresce IVA à taxa de 23%, no total de 5864.02€.

Sabe-se que o valor do veículo no referido sector específico do mercado é de cerca de 25.000€.

Mas ainda que não tivesse ficado provado o seu valor, ainda que se desconhecesse o valor venal do mesmo, não poderia a Ré seguradora escudar-se nesse desconhecimento.

Com efeito, pretendendo fazer prevalecer a fixação da indemnização pelo valor venal do veículo em detrimento do valor do conserto do veículo, à seguradora, que não quer a reparação in natura, compete alegar e provar que o lesado podia adquirir no mercado, por um determinado preço (mais baixo do que a reparação), um outro veículo que lhe satisfizesse de modo idêntico as suas necessidades.

De acordo com os ensinamentos de Pires de Lima e A. Varela, a reconstituição natural será excessivamente onerosa para o devedor "quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável". E dá um exemplo: "Imaginemos um caso: inutilizou-se um automóvel velho que vale 100 e são precisos 200 para o substituir por um novo. Seria injusto a substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao prejuízo e beneficiando o credor com a substituição dum automóvel velho para um novo"[8].

Por outro lado, Menezes Cordeiro[9] esclarece que "recorrendo aos princípios gerais, diremos que uma indemnização específica é excessivamente onerosa quando a sua exigência atente gravemente contra os princípios da boa fé".

Nesta linha de pensamento, Vaz Serra entende que "parece haver entendimento de que a excessiva onerosidade deve ser entendida no sentido de que não pode ser feita oficiosamente, e que se dá quando, nas condições concretas, importaria despesa demasiada para qualquer outro devedor" [10].

Do exposto poderá extrair-se que a desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável, se aquilata através de elementos objectivos que permitam concluir que existe uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado e o custo da reparação, cabendo, obviamente, ao devedor obrigado à restauração natural, a alegação e prova de elementos que objectivem tal desproporção.

A lei pretende que o lesado seja restituído à situação que teria se não fosse a lesão. E se a reparação dos danos sofridos por um veículo preencher o objectivo da indemnização, de tal forma que o próprio lesado a queira, como no caso dos autos, é um pouco indiferente que o custo seja superior ao valor comercial do veículo, ou seja, ao valor que o veículo tem no mercado, posto que a intenção do lesado não é proceder à sua venda, mas continuar a usufruir das utilidades que o veículo lhe proporciona.

A lei não se contenta com a simples onerosidade da reparação: exige que esta seja excessivamente onerosa para o devedor, isto é, que a restauração natural não imponha ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos legalmente a uma legítima indemnização.

Assim, importa ter em consideração factores subjectivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro.

Como se afirma no acórdão do STJ de 07.07.99[11] um veículo já com muito uso fica desvalorizado, tem valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades; o mesmo é dizer, pode não reconstituir a situação que o lesado teria se não tivesse ocorrido o dano.
E o valor de mercado dos veículos automóveis depende não só do seu estado de conservação e de funcionamento, mas também da própria dinâmica dos construtores de automóveis no âmbito da evolução dos respectivos modelos.

Também não pode olvidar-se que, actualmente, e devido ao encarecimento da mão-de-obra, existe um desequilíbrio entre o preço das coisas e o da sua reparação, «desequilíbrio que não pode volver-se em factor penalizante do lesado, que nenhuma culpa teve na eclosão do dano nem na dimensão deste»[12].

A este respeito, Menezes Leitão refere que a «reconstituição natural será excessivamente onerosa para o devedor, apenas quando a reconstituição natural se apresente como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante e se deva considerar abusiva por contrária à boa-fé a sua exigência ao lesado, é que fará sentido excluir o seu direito à reconstituição natural» [13].

E acrescenta:

«Imaginemos, por exemplo, que alguém danifica um automóvel usado de reduzido valor comercial, mas que o lesado quer continuar a utilizar para as suas deslocações. Não faria sentido autorizar-se o lesante a indemnizar apenas o valor em dinheiro do automóvel, sob pretexto de a reparação ser mais cara que esse valor, já que tal implicaria privar o lesado do meio de locomoção de que dispunha e que não pretendia trocar por dinheiro»[14].

3.2. Tudo para concluir que, em qualquer caso, independentemente da prova, por parte do A. do valor do veículo, não tendo a Seguradora logrado fazer prova da excessiva onerosidade, revela-se viável a reconstituição do dano real, por via da reparação do veículo, na qual o A. gastou a quantia de 4.767,50, acrescida de IVA.

No juízo a fazer acerca da manifesta desproporção importa, portanto, não perder de vista que está em causa o património do lesado, que não pode ser prejudicado duplamente, ou seja, num primeiro momento pelo facto de ter sido atingido directamente pelo evento danoso, em si mesmo considerado; depois, pela não aplicação da regra da restauração natural “obrigando-o” a, no caso, a adquirir uma nova viatura, caso não seja reparada a que foi danificada.

A conclusão vai, por isso, no sentido de que a reparação pretendida pelo Recorrente é viável.
A opção pela restauração natural não configura nem concretiza, pois, flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo daquela para o responsável, razão por que por se entende optar por essa reparação, sendo certo que a obrigação do pagamento do montante necessário à reparação do veículo decorre ainda do princípio da reconstituição, justificando-se a indemnização em dinheiro apenas porque, face à recusa por parte da Ré, a reparação veio a ser feita por ordem do lesado.

4. Da privação do uso
Cabe ao lesante (ou à sua seguradora, como é o caso) reparar o mais depressa possível os danos, por forma a que estes não se agravem.
No caso de veículo sinistrado incumbe-lhe, designadamente, mandar proceder às reparações necessárias e facultar ao lesado um veículo de substituição ou indemnizá-lo pelas despesas que teve que suportar em consequência da privação do veículo.

Como se sabe, a Seguradora recusou a reparação de cerca de 5.000,00€, propondo-se pagar a quantia de €2.500,00.

O A. esteve privado do uso do veículo enquanto este esteve imobilizado desde a data do acidente em Junho de 2008, até, pelo menos Dezembro de 2009, atendendo à data de aquisição do material necessário para a reparação que foi feita, aliás, a expensas do próprio A.

Pede o A o pagamento de indemnização de 1.000,00 a título de privação de uso e desgosto por se ver provado do veículo.

De acordo com as regras da experiência, quando se estabelece a comparação entre a situação do proprietário, que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente, não existe entre ambas uma equivalência substancial. Uma vez que a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente[15].

Sem embargo de alguma divergência quanto à qualificação do dano que segundo alguns constitui para o lesado um dano não patrimonial[16],enquanto que, para outros, constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação consubstancia um dano patrimonial[17]-tem vindo a acentuar-se, na jurisprudência, a tendência no sentido de aceitar que a privação do uso normal do veículo constitui dano e que o lesado tem direito a indemnização, calculada, nos termos do art. 556º, nº 3, do C.Civil (ou então dos arts. 496º, nº 1 e 494º) por apelo à equidade[18].

No caso dos autos o A. admite que o veículo em não se destinava a uso diário, antes era usado em fins de semana, períodos de lazer, competições.

Seja como for e como se referiu, salvo melhor entendimento, basta a prova de que o A. deixou de poder usar e fruir de um bem que lhe pertence e que essa privação terá ocorrido por mais de um ano.

Nessa medida afigura-se mais que razoável o pedido de indemnização no valor de 1.000,00€, pela privação de uso do referido veículo.

Em conclusão:

1. Do confronto do artigo 562.º, com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, resulta o primado da reparação in natura, competindo à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor do veículo, não o venal, mas o patrimonial.

2. A aplicação do critério de “perda total”, implicando o cumprimento da obrigação de indemnização em dinheiro e não através da reparação do veículo, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade.

3. Caso não haja acordo no âmbito do referido procedimento, valem as regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.

4. A lei não se contenta com a simples onerosidade da reparação do veículo: exige que esta seja excessivamente onerosa para o devedor, isto é, que a restauração natural não imponha ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos legalmente a uma legítima indemnização.

5. A limitação do montante da indemnização em dinheiro ao abrigo do disposto no artigo 566º n. 1, do Código Civil (excessiva onerosidade), quando o preço da reparação da coisa danificada seja superior ao seu valor venal, supõe que exista a possibilidade de, no mercado, adquirir uma coisa idêntica à danificada (isto é, com idênticas qualidades e valor).

6. A privação do uso normal do veículo constitui dano e o lesado tem direito a indemnização, calculada, nos termos do art. 556º, nº 3, do C.Civil (ou então dos arts. 496º, nº 1 e 494º) por apelo à equidade.

7. É ao lesante que incumbe, designadamente através da reparação do veículo sinistrado, restituir o lesado à situação em que se encontrava antes de ocorrido o acidente, pelo que o dano da privação do uso do veículo subsiste até que o lesado veja reconstituída a situação que existiria se não fosse o facto do lesante conducente à paralisação do automóvel.

IV – DECISÃO

Termos em que, na procedência da Apelação, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se procedente por provada a acção e, consequentemente, condena-se a Ré Seguradora no pedido, isto é, no pagamento ao A. da quantia de 6.864,02 €, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento, à taxa legal fixada para dívidas civis.

Custas pela Apelada.

Lisboa, 4 de Julho de 2013.

(Fátima Galante)

(Manuel Aguiar Pereira)

(Gilberto Santos Jorge)


[1] Matéria aditada em consequência da impugnação da matéria de facto e conforme ponto 1.3. deste acórdão.
[2] Vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pags. 544 e segs.
[3] Neste sentido, vide Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 2008, pg. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684 e de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1, todos in www.dgsi.pt/jstj
[4] Vide Calvão da Silva, in RLJ 137, p. 63 e 64.
[5] Ac. RC de 11.3.2008, processo n.º 3318/06.5TBVIS.C1, (Virgílio Mateus, relator), www.dgsi.pt/jtrc
[6] Neste sentido Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I, 3ª edição, pags. 417 e segs.
[7] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 8ª edição, pag. 704.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, pag. 582.
[9] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, pag. 401.
[10] Vaz Serra, Obrigação de indemnização, BMJ 84º - 143, nota 283.
[11] Col. Jur., C.J.S.T.J., Ano VII, Tomo III, página 17.
[12] Ac do STJ. 5.6.2008 (Relator Santos Bernardino), wwwdgsi.pt/jstj.
[13]Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”,“vol. I, 3ªedição, pág.402
[14] Menezes Leitão, ob. e pag. citadas.
[15]  Luis Meneses Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2000, pags. 297/298. Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de impugnação do dano extracontratual, Almedina, 1998, pags. 676/677. Ac. RE de 26.3.80 in CJ II-96. Júlio Gomes, O dano da privação do uso, RDE, 12º, 1986, pags. 169 e ss.
[16] Acs. STJ de 17/11/98 (citado); de 23/01/2001, no Proc. 3670/00 da 2ª secção (relator Simões Freire); e de 04/12/2003, (relator Oliveira Barros), wwwdgsi.pt/jstj.
[17] Ac. STJ de 09/05/2002, (relator Faria Antunes), wwwdgsi.pt/jstj.
[18] Cfr. Ac. STJ de 27/02/2003, in CJSTJ Ano XI, 1º - 112 (relator Ferreira Girão); de 23/09/2004, (relator Ferreira Girão), www.dgsi.pt,  Ac. STJ de 29 de Novembro de 2005 Araújo Barros, www.dgsi.pt/jstj.