Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
39/25.3TNLSB.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ARRESTO
ARRESTO DE NAVIO DE MAR
CRÉDITO MARÍTIMO
PROPRIEDADE DE NAVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/15/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1
I – O arresto constitui uma medida cautelar que visa proteger a expectativa do credor relativamente à garantia geral da satisfação do seu crédito, constituída pelo património do devedor, que se torna efectiva por meio de execução.
II – A Convenção Internacional de Bruxelas de 10 de Maio de 1952 para a Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios de Mar não criou novos direitos atípicos de garantia real ou conferiu novas posições jurídicas, possuindo um carácter estritamente processual.
III - Da conjugação das normas dos artigos 3º e 9º da Convenção decorre que esta não veio criar novos maritime liens, pelo que o artigo 3º (4) não permite ao credor comum obter a venda judicial do navio se tal direito não existir na lex fori ou na Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas a Privilégios Marítimos e Hipotecas de 1926, pelo que, nessa situação, o arresto não é possível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
BRUFJEL SHIPPING CO. LTD.2 apresentou, em 3 de Junho de 2025, contra SANTANA MARITIME LTD. e INTRESCO LTD3 requerimento inicial de procedimento cautelar especificado de arresto preventivo do navio cargueiro (Carga Geral) GOTTLIEB (ex SANTANA), de pavilhão liberiano, com o n.º IMO 9449388, de propriedade da primeira sociedade requerida e operado pela segunda, então fundeado na Zona de Aproximação ao Porto de Lisboa, aguardando atribuição de cais, ao abrigo da Convenção Internacional de Bruxelas de 10 de Maio de 1952 para a Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios de Mar4, alegando, para tanto, em síntese o seguinte5:
• A requerente tem como objecto social a prestação de serviços marítimos, nomeadamente de transporte internacional de mercadorias e de fretamento de navios, como as demais sociedades do grupo turco Rana Denizcilik Nakliyat Sanyi Ve Ticaret Limited Sirketi, a que pertence a totalidade do seu capital social;
• Para a prossecução do seu objecto social é proprietária do navio de carga geral Wagon B, com o n.º IMO 9115925, que arvora o pavilhão de Antígua e Barbuda, de que é operadora a referida Rana;
• As requeridas, em relação de grupo entre si, desenvolvem igualmente a actividade de prestação de transporte e serviços marítimos, sendo a Santana Maritime Ltd. proprietária registada do navio de carga geral Gottlieb, de bandeira liberiana, com o n.º IMO 9449388, e a Intresco Ltd a respectiva operadora;
• No dia 21-03-2024, o cargueiro Wagon B estava acostado, a abastecer, no cais poente do porto de Ceuta, em Espanha;
• Ao seu lado, o navio Santana - actualmente, Gottlieb - havia terminado a operação de bunker e iniciava manobras para desatracar e zarpar desse porto;
• Quando efectuava tais manobras, o Santana abalroou o Wagon B, por estibordo, causando-lhe danos, cuja reparação orçou em USD $ 316.123,44 (trezentos e dezasseis mil cento e vinte e três dólares norte-americanos e quarenta e quatro cêntimos), equivalente a € 276.839,86 (duzentos e setenta e seis mil oitocentos e trinta e nove euros e oitenta e seis cêntimos);
• Devido ao ocorrido, a requerente não pôde seguir viagem, como programado, tendo tido que permanecer em porto por 21,5 dias, assumindo os encargos decorrentes dessa paragem, tendo sofrido prejuízos, que (já deduzidos da quantia coberta pelo seguro), orçam em USD $ 285.080,00 (duzentos e oitenta e cinco mil e oitenta dólares norte-americanos), correspondentes a € 249.654,09 (duzentos e quarenta e nove mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e nove cêntimos);
• Por carta de 30 de Janeiro de 2025, a requerente interpelou as requeridas para o pagamento desta quantia, sem sucesso;
• À data de entrada do requerimento de arresto, o capital em dívida à requerente ascendia a USD $ 285.080,00 (duzentos e oitenta e cinco mil e oitenta dólares norte-americanos), correspondentes a € 249.654,09 (duzentos e quarenta e nove mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e nove cêntimos), a que acrescem os juros vencidos no valor de € 10.227,25, à taxa legal supletiva para as operações comerciais no período em questão (10,5%) e juros vincendos.
Em 4 de Junho de 2025 foi proferido despacho a convidar a requerente a juntar documento comprovativo do alegado no artigo 3º do requerimento inicial (propriedade do navio).6
Por requerimento dessa mesma data, a requerente informou não ter encontrado evidência da actual proprietária do navio, aceitando como boa a informação constante da base de dados Equasis, requerendo a rectificação do requerimento inicial para que o procedimento prossiga contra a sociedade Faust Shipping And Trading Ltd7, reiterando estar em causa um crédito marítimo, daí que o arresto possa ser deferido, ainda que seja devedora entidade diversa daquela que tem a propriedade do navio, por força do disposto no artigo 3º, n.º 4 in fine da CB1952; mais referiu que da consulta aos dados do navio junto da Administração do Porto de Lisboa resulta que a armadora é a Intresco GmbH, sendo a Intresco LTD a marca que reúne as várias sociedades do grupo, entre as quais a que está instalada em Viena, Áustria, denominada Intresco GmbH, renovando o pedido de notificação da Capitania do Porto de Lisboa para a imediata guarda e retenção do Gottlieb e prosseguimento dos autos.8
Foi solicitada informação à administração do Porto de Lisboa sobre as sociedades que figuram como proprietária, armadora e gestora do navio Gottlieb, que foi prestada em 6 de Junho de 2025, dando conta que o armador é Faust Shipping And Trading Ltd e entidade proprietária a Hat Denizcilik Nakliyat Ve Dis Tic Ltd, encontrando-se o navio fundeado na Baía de Cascais a aguardar entrada no Porto de Lisboa.9
Em 6 de Junho de 2025 foi proferido despacho liminar que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de arresto.10
Inconformada com esta decisão, a requerente veio interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo11:
a) O Meritíssimo Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento de providência cautelar de arresto do navio GOTTLIEB.
b) A Apelante discorda em absoluto da interpretação dada a disposições da Convenção de 1952, que vai contra aquela que tem sido a orientação seguida pela Jurisprudência nacional.
c) A Mma. Juiz a quo constatou que “[a]nalisando a pretensão da requerente à luz do quadro legal acima descrito, (...) tudo aponta para que o arresto deva ser decretado caso se logrem demonstrar todos os factos alegados no requerimento inicial)”.
d) Mas concluiu que os credores dos créditos marítimos enunciados no artigo 1º, § 1º da Convenção de 1952 não beneficiam, por si só, do direito de sequela (droit de suite) e, portanto, indeferiu “liminarmente o presente procedimento cautelar de arresto”.
e) A Mma. Juiz de Primeira Instância fez assentar o seu indeferimento liminar no facto de o navio a que o crédito se reporta ter sido alienado entre o momento em que o crédito se constituiu e a data do requerimento inicial de arresto.
f) Das consultas que a Requerente efectuara, o navio ainda estaria na propriedade da SANTANA MARITIME LTD. e conforme informação veiculada abertamente no site da Administração do Porto de Lisboa, a armadora continuava a ser uma sociedade do Grupo INTRESCO.
g) A APL informou diferentemente o Tribunal recorrido, por ofício de que a Requerente só foi notificada com a Sentença recorrida.
h) Os dados de que Administração do Porto de Lisboa dispõe sobre o navio não coincidem com aqueles que constam do “EQUASIS”, porquanto, para aquela primeira, a proprietária do GOTTLIEB é a HAT DENIZCILIK NAKLIYATVE DIS TIC LTD, sendo a FAUST SHIPPING AND TRADING LTD a sua armadora, ao passo que do site EQUASIS resulta que esta última, afinal, é a proprietária do navio, sendo aquela primeira apenas a sua ISM Manager.
i) Não obstante todos os meios de informação disponíveis, são possíveis e correntes os erros de informação quanto aos proprietários e aos armadores de navio, o que, juntamente com a facilidade com que os navios mudam de proprietário e de armador, só agrava as dificuldades dos credores em cobrarem os respectivos créditos marítimos.
j) Foi precisamente para acautelar os interesses dos credores e lograr um maior equilíbrio entre a salvaguarda dos direitos e interesses dos proprietários e a tutela dos direitos que se alcançou a unificação de regras ínsita na Convenção de 1952.
k) O texto da Convenção de 1952 não foi feliz, revelou discrepâncias entre as línguas das suas versões originais, pela dificuldade de conciliar institutos de sistemas jurídicos diferentes.
l) As suas disposições devem ser interpretadas à luz do princípio da proporcionalidade, equilibrando as medidas a adoptar e os interesses que se visa acautelar.
m) Os procedimentos cautelares são actos preparatórios e não meios adequados para definir direitos, mas antes para os acautelar e proteger; não resolvem as questões de fundo, nem a decisão que neles se proferir se reflecte na acção principal.
n) A Convenção de 1952, numa formulação pouco feliz, não deixou de dizer, no seu artigo 3º, § 1º, que qualquer autor pode fazer arrestar, tanto o navio a que o crédito se reporta, como qualquer outro pertencente àquele que na data de constituição era proprietário do navio a que este crédito se refere.
o) Como o foco é posto no navio a que o crédito, em concreto, se refere, para a generalidade dos créditos da lista taxativa do artigo 1º, § 1º, pode ser arrestado o próprio offending ship ou qualquer outro navio pertencente ao mesmo proprietário do offending ship aquando da constituição do crédito.
p) É esta interpretação que confere lógica à ressalva do trecho final do artigo 3º, § 1º: nos créditos enunciados nas alíneas o), p) e q) da referida lista taxativa, só o offending ship pode ser arrestado, na medida em que consubstanciam direitos reais ou direitos reais de garantia sobre um determinado navio, enquanto todos os demais créditos têm uma natureza meramente obrigacional.
q) Esta interpretação obedece ao comando do artigo 9º, n.º 2, do CC.; não assim, com o devido respeito, a interpretação do artigo 9º da Convenção de 1952 pela Mma. Juiz, que nega o direito de sequela a quem não empunhe um crédito marítimo privilegiado.
r) Os travaux préparatoires, enquanto elemento histórico de interpretação, “são um ponto de partida importante na reconstituição do pensamento legislativo (...), mas não podem ser mais que meros indícios de uma determinada vontade legislativa. (...)” pelo que a ratio legis é a justificativa do entendimento de que o navio pode ser arrestado, anda que ele já não pertença à mesma pessoa que dele era proprietária, aquando da constituição do crédito marítimo”.
s) Também pelo elemento histórico, deve soçobrar a tese defendida pela Sentença recorrida, no sentido de restringir apenas ao detentores de créditos privilegiados a plenitude das faculdades oferecidas pela Convenção de 1952 aos credores marítimos.
t) Pelo seu acerto, os citados Acórdãos, de 1995, 1997 e 2020 ilustram e consolidam uma longa tradição de interpretação da Convenção de 1952 pelos tribunais superiores, como, entre outros, os arestos da mesma Veneranda Relação de 25.01.1993 (Santos Bernardino), de 06.02.1997 (Campos Oliveira), de 18.02.1997 (Amaral Barata), de 30.09.1997 (Roque Nogueira) e o de 07.03.2013 (Gilberto Jorge).
u) O ponto de discordância da Requerente quanto à douta Sentença recorrida radica na resposta a dar à questão de saber se, respeitando o crédito invocado ao navio GOTTLIEB, este poderia ser arrestado, ainda que, entretanto, tenha sido transferida a respectiva propriedade.
v) A douta Sentença não duvidou da probabilidade de existência do crédito, não contestou que se tratasse de um crédito marítimo, nem negou a sua subsunção à Convenção de 1952.
w) Mas, salvo o devido respeito, errou ao rejeitar que os créditos elencados no artigo 1º da Convenção de 1952, por si só, confiram ao seu titular um direito de sequela.
x) A Jurisprudência nacional tem-se pronunciado acerca da interpretação a dar às referidas disposições legais, num sentido diametralmente oposto ao perfilhado pela decisão em crise.
y) O Acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2020 (Conceição Saavedra) ensina que:“[s]egundo é entendimento da jurisprudência (...) esta Convenção de Bruxelas de 1952 estabelece um verdadeiro direito de sequela no que respeita à manutenção da garantia patrimonial , o que constitui uma exceção ao princípio de que só o património do devedor responde pelas dívidas respetivas e de que terceiros não podem ser prejudicados por negócios alheios. Assim, (...) o titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que lhe deu origem, mesmo que esse navio, na data em que é requerida a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data de constituição do crédito. Na mesma linha, Januário da Costa Gomes e Francisco Rodrigues Rocha (...) citam, a propósito, uma sentença do Tribunal de Nápoles de 28.3.2008, na qual também se afirma que a mencionada Convenção admite ‘il diritto di sequestrare la nave di proprietà di terzi per un credito marittimo che alla nave si riferisca’”.
z) Explica o Acórdão da mesma Relação, de 21.11.1995 (Bettencourt Faria) que “a Convenção sentiu a necessidade de, expressamente, fixar o carácter excepcional da medida, ao dizer no seu artigo 9º que não confere aos autores outros direitos de sequela, para além do outorgado por ela própria”, pois “a seguir-se outra interpretação, o art. 9º ficava sem sentido, dado que, a não ser o direito de sequela em questão, outro não prevê a mesma convenção”.
aa) Estes Acórdãos vêm na senda de outros arestos da mesma Veneranda Relação.
bb) Também o Supremo Tribunal de Justiça, em variadíssimos acórdãos e sempre por unanimidade, estabeleceu que o arresto pode ser efectuado sobre o navio que deu origem ao crédito, independentemente de o proprietário ser ou não o respectivo devedor, nomeadamente, por ter havido uma alienação do navio a terceiro.
cc) A linha decisória da Jurisprudência encontra confortável apoio da Doutrina, estrangeira e nacional, em que diversos autores concluem que, quanto aos créditos marítimos enunciados no artigo 1º da Convenção de 1952, o credor pode arrestar o offending ship, independentemente de ser o seu proprietário o devedor do crédito invocado.
dd) A esta excepcionalidade obriga o equilíbrio entre credores marítimos e proprietários dos navios, sendo mais uma manifestação da manifestação da consolidada teoria dualista do vínculo obrigacional, mais conhecida como Theorie der Schuld und Haftung, que explica que, em variadas situações, o responsável pela dívida possa ser pessoa diferente da do devedor.
ee) A interpretação dada pelos Tribunais superiores, de que os acórdãos mencionados são apenas um exemplo, é a que mais se coaduna com a personalidade judiciária do navio, legalmente prevista.
ff) O crédito invocado foi originado por abalroamento do GOTTLIEB ao navio de propriedade da Requerente.
gg) A Convenção para Unificação de Certas Regras em Matéria de Abalroação estabelece que pelos danos causados por abalroação responde o navio culpado, não fazendo qualquer ressalva ou exigência quanto à propriedade do offending ship.
hh) O crédito sub judice tem a natureza de crédito marítimo, por força do disposto no artigo 1º, al. a) da Convenção de 1952, e o offending ship responde pelos danos sofridos pelo navio abalroado, o que confere à Requerente o direito de sequela em relação ao GOTTLIEB.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e consequente admissão do requerimento inicial e prosseguimento do procedimento cautelar.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil12, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, a questão que importa apreciar é apenas a de saber se o Tribunal recorrido fez uma interpretação correcta das disposições da CB1952 sobre a admissibilidade do arresto que originou o crédito – offending ship –, entretanto alienado a terceiro.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Para a apreciação do mérito do recurso relevam as ocorrências processuais acima enunciadas.
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Dos pressupostos que autorizam o arresto de navio não pertencente ao devedor à luz da Convenção de Bruxelas de 1952
Conforme decorre do relatório supra, a requerente visa obter através do presente procedimento cautelar o arresto preventivo do navio Gottlieb, registado na Libéria, para garantia de um crédito que alega deter em virtude de prejuízos que foram causados ao navio Wagon B, de que é proprietária, decorrentes de abalroação por aquele causada, estando, assim, em causa um crédito marítimo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1º, (1), (a) da CB1952, o que lhe conferiria o direito a obter o seu arresto com base nesta mesma Convenção.
A decisão recorrida, após analisar os pressupostos do arresto em conformidade com a lei nacional (art.ºs 619º e seguintes do Código Civil e art.ºs 391º e seguintes do CPC) e depois de mencionar que, na sequência da averiguação efectuada, foi apurado que as requeridas não são proprietárias do navio, não o sendo também a Faust Shipping and Tradinz Ltd relativamente a quem a requerente solicitou o prosseguimento do arresto, passou a apreciar a viabilidade do arresto do navio que motivou o crédito (offending ship), que, entretanto, após a constituição deste, foi alienado a terceiro, para o que convocou as regras da CB1952, ao abrigo das quais reconheceu que a Convenção é aplicável ao presente caso (porque o navio da requerente arvora a bandeira de um Estado Contratante - Antígua e Barbuda -, o seu direito tem natureza de crédito marítimo, o navio encontra-se em Portugal, que ratificou a CB1952, está registado na Libéria, que não ratificou a Convenção, mas que se aplica por força do disposto no respectivo art.º 8º, (2)), apreciando aquela concreta questão nos seguintes termos:
“Determinação dos navios arrestáveis à luz da Convenção de Bruxelas para a unificação de certas regras sobre o arresto de navios de mar (CB1952).
O art. 3.º da Convenção contempla a existência de vários tipos de arresto de navios de mar. A saber:
− o arresto do navio a que o crédito se reporta (offending ship), sendo devedor o seu proprietário (art. 3.º, § 1.º, 1.ª parte, da CB1952);
− o arresto de outro navio (sister ship) pertencente àquele que, na data da constituição do crédito marítimo, era proprietário do navio a que o referido direito se reporta (art. 3.º, § 1.º, 2.ª parte, da CB1952);
− arresto de navio diverso (sister ship) pertencente àquele que, na data da constituição do crédito marítimo, era afretador do navio a que o mencionado direito se reporta (art. 3.º, § 4.º, da CB1952);
− arresto do navio (offending ship) quando outra qualquer pessoa responda por um crédito marítimo relativo a esse navio (art. 3.º, § 4.º, da CB1952).
Com interesse para a decisão do caso dos autos apenas importa analisar o primeiro tipo de arresto elencado.
Veja-se.
O arresto no caso de haver coincidência entre o devedor e o proprietário do offending ship.
O art. 3.º, § 1.º, 1.ª parte, da CB1952 estabelece que "(...) qualquer autor pode fazer arrestar (...) o navio a que o crédito se reporta (...), mas nenhum navio poderá ser arrestado por algum dos créditos previstos nas alíneas o), p) ou 1) do artigo 1.º, salvo o próprio navio a que respeita a reclamação".
Muito embora não o refira expressamente, o normativo em apreço fixa a regra dúplice de que o objecto do arresto consiste no navio a que se refere o alegado crédito marítimo (i.) e que o responsável pelo seu pagamento é o proprietário demandado daquele (ii.).
Este requisito da necessidade de coincidência entre o devedor e o proprietário do navio que gerou o crédito a garantir decorre da interpretação sistemática dos diversos parágrafos que integram o art. 3.º da CB1952.
Assim, e em primeiro lugar, há que ter em conta que o proémio do § 1.º do art. 3.º da Convenção dispõe que "Sem prejuízo das disposições do parágrafo 4) (...)".
Ora, considerando que o § 4.º do art. 3.º regula o objecto do arresto nos "(...) casos em que pessoa diversa do proprietário é devedora de um crédito marítimo", deve considerar-se que o § 1.º do mesmo artigo refere-se aos requisitos da imobilização do offending ship sempre que coincidam na mesma pessoa as qualidades de proprietário do navio e demandado.
Depois, o § 4.º do art. 3.º da CB1952 prescreve que, quando o responsável do crédito não for o proprietário do offending ship, o requerente poderá fazer arrestar este navio ou outro pertencente ao demandado, mas nenhuma outra embarcação pertencente ao proprietário poderá ser imobilizada por tal crédito marítimo. O que é o mesmo que dizer que um navio distinto do offending ship apenas pode ser arrestado quando o proprietário for chamado a responder pelo alegado crédito marítimo.
Consequentemente, a 1.ª parte do § 1.º do art. 3.º da CB1952 apenas pode referir-se aos casos em que o proprietário do navio objecto do arresto - seja o offending ship, seja um outro navio que lhe pertença - é demandado por ser o responsável do crédito marítimo. Aliás, é essa a regra que decorre do princípio geral de responsabilidade patrimonial vigente no nosso ordenamento jurídico, enunciado no art. 601.º do CC.
Porém, pode suceder - como aliás aconteceu no caso vertente - que o proprietário do navio a que diz respeito o crédito marítimo e que é responsável pelo seu pagamento aliene posteriormente aquele seu bem. Nesta situação, coloca-se a questão de saber se é possível arrestar o navio que foi alienado depois de ter nascido o crédito marítimo.
A este respeito, a doutrina tem considerado que, se o crédito marítimo tiver carácter privilegiado, seja por força de um texto internacional, seja com base numa norma de direito interno, é de admitir o arresto do offending ship, pois um dos traços marcantes dos privilégios marítimos é precisamente o de possibilitarem o droit de suite, isto é, o de concederem ao credor um direito sobre a coisa, que lhes permite executar o seu crédito à custa do navio mesmo que este tenha sido objecto de um contrato de disposição, Cfr. Belén Mora Capitán, obra citada, p. 270.
E crê-se com razão.
Efectivamente, e por um lado, o art. 9.º da CB1952 nega a possibilidade de criação de privilégios marítimos com fundamento exclusivo na própria Convenção. Note-se, inclusivamente, que a expressão vertida no § 2.º do art. 9.º da CB1952 “(…) além do outorgado por esta última lei (…)” refere-se à “(…) lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio está afecto”, mencionada no § 1.º do mesmo artigo, cfr. Belén Mora Capitán, obra citada, p. 275, nota 739.
Por outro lado, o art. 2.º da CB1952 faculta ao juiz decidir decretar ou indeferir o arresto preventivo, actividade que deve levar-se a cabo tendo em conta as alegações do autor, entre as quais deverá encontrar-se a coincidência entre o proprietário e o devedor.
Daí que, em suma, se possa afirmar que, no âmbito da Convenção, o arresto do navio cujo proprietário não está obrigado pessoalmente ao cumprimento da dívida marítima deve observar dois requisitos: deve ser autorizado pela própria Convenção (i.) e a lei nacional aplicável deve admitir a conversão do arresto em penhora, de modo a que possa ter lugar a venda executiva do navio (ii.).
Aliás, este entendimento é o que resulta da análise dos trabalhos que precederam a aprovação do texto final da Convenção, (cfr. Francesco Berlingieri, em Arresto f ships, A commentary on the 1952 and 1999 arrest conventions, 3ª ed., LLP Professional Publishing, 2000, p. 98 a 101 e João de Oliveira Geraldes, em O arresto do navio não devedor do crédito marítimo: estudo sobre a Convenção de Bruxelas para a Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios de Mar de 1952, pp 641).
Depreende-se então das opiniões vertidas em todo o processo de elaboração da Convenção, assim como dos erros cometidos, que foi claro o propósito dos Estados Contratantes de não se criarem privilégios que não estivessem já previstos num outro texto legal internacional ou nas normas de direito interno aplicáveis, vontade essa que acabou por ficar reflectida no art. 9.º da CB1952, cfr. João de Oliveira Geraldes, obra citada, p. 653 e 655.
Não obstante, há que ter em conta que a determinação do direito interno aplicável redunda numa questão que pode ser controvertida e está seguramente relacionada com o fundo da causa, pelo que a sua aferição encontra-se necessariamente ligada à solução de mérito e apenas pode ser efectuada pelo juiz que vier proferir a sentença que decidir os autos principais.
Significa isto que o juiz competente para decretar o arresto não pode determinar tal direito, sobretudo num momento em que não há qualquer contraditório, nem sequer pronunciar-se sobre se o privilégio existe ou não no momento em que é confrontado com o requerimento inicial.
Daí que se o requerente não alegar no primeiro articulado que o seu crédito é privilegiado e que o navio não pertence ao devedor, a sua pretensão deverá ser rejeitada liminarmente à luz do disposto no art. 9.º da CB1952. Mas se o requerente fizer tal alegação, o juiz deverá receber o procedimento e decretar o arresto caso se logre demonstrar a existência do crédito marítimo, mesmo que o navio tenha sido alienado posteriormente pelo devedor.
Analisemos o caso vertente:
Analisando a pretensão da requerente à luz do quadro legal acima descrito, constata-se que tudo aponta para que o arresto deva ser decretado caso se logrem demonstrar todos os factos alegados no requerimento inicial, dado que:
− A Requerente arvora a bandeira de Antígua e Barbuda, um dos Estados que ratificou a CB1952 (art. 8.º, § 1.º, da CB1952);
− o direito do requerente tem a natureza de crédito marítimo [art. 1.º, § 1.º, al. a), da CB1952], atento o alegado e o teor dos documentos juntos com o requerimento inicial;
- o navio a arrestar encontra-se em Portugal, sendo que Portugal ratificou a CB1952;
− o navio a arrestar encontra-se registado na Libéria que não ratificou a CB1952, mas, ainda assim, poderia ser arrestado (art. 8.º, § 2.º, da CB1952).
Sucede que a embarcação foi alienada depois do nascimento do crédito da Requerente.
Ora, Portugal não aderiu à CB de 1926 e a Requerente não alegou no requerimento inicial que o seu direito estava assistido de um qualquer privilégio marítimo válido, nem mesmo depois de ter sido notificada para comprovar a propriedade do navio GOTTLIEB.
Como já supra referido a Convenção não criou quaisquer privilégios marítimos, beneficiando, eventualmente, a Requerente do direito de sequela outorgado pela lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio estará afecto ou pela Convenção Internacional Sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, cfr. art. 9º da CB1952.
Ou seja, os créditos marítimos descritos no art. 1.º, § 1.º, da CB1952 não são, só por si, privilegiados, mas apenas e na medida em que o direito (internacional e/ou interno) aplicável e diverso da Convenção assim os considere.
Sendo assim, não tendo sido tal alegado, não pode o requerimento inicial ser recebido, dado que é evidente que o bem a arrestar, por um lado, não pertence ao devedor da requerente e, por outro, não responde, no caso, pela dívida reclamada.”
No presente recurso não está em causa a aplicabilidade da CB1952 ao caso concreto, tal como foi reconhecida na decisão recorrida e decorrente do âmbito da sua aplicação, conforme se extrai do disposto no respectivo art.º 8º e ali se expendeu com basta fundamentação, nem tão-pouco a natureza de crédito marítimo do direito invocado pela requerente, em face da previsão do art.º 1º da CB1952, mas apenas saber se, com base nela, é admissível o arresto do navio originador do crédito, cuja titularidade, ao momento da interposição do procedimento cautelar, já não se encontra na esfera jurídica do devedor do crédito marítimo, mas de terceiro, para quem, entretanto (após a constituição do crédito), foi alienado, como sucede na presente situação.
A decisão recorrida entendeu que o arresto não era possível, porquanto a regra que decorre do art.º 3º, (1) da CB1952 é a de que o arresto deve incidir sobre o navio a que o crédito se reporta, sendo devedor o seu proprietário, apenas podendo ser arrestado o navio da titularidade de terceiro se o crédito tiver carácter privilegiado, seja por força de um texto internacional, seja com base em norma de direito interno, conclusão a que chegou por força do estatuído no art.º 9º da CB1952, que nega a possibilidade de criação de privilégios marítimos com fundamento na própria Convenção.
A recorrente discorda deste entendimento pela seguinte ordem de razões:
i. A jurisprudência nacional, tal como ocorre noutros países, tem afirmado que a CB1952 estabelece um verdadeiro direito de sequela, que constitui excepção ao princípio de que apenas o património do devedor responde pelas dívidas respectivas;
ii. O art.º 9º da CB1952 fixou o carácter excepcional da medida ao estabelecer que a Convenção não confere outros direitos de sequela para além do outorgado por ela própria, pois, a não se entender deste modo, tal norma não teria sentido;
iii. A CB1952, como decorre do art.º 3º, (1), põe o foco no navio a que o crédito se refere;
iv. Os tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça, sempre estabeleceram que o arresto pode ser efectuado sobre o navio que deu origem ao crédito, independentemente de o proprietário ser ou não o respectivo devedor, por, nomeadamente, ter havido uma alienação a terceiro, o que é suportado pela doutrina nacional e estrangeira;
v. É uma excepção que se justifica em face do necessário equilíbrio entre credores marítimos e proprietários dos navios e que determinou a necessidade de uniformização internacional do seu regime e é a interpretação que se coaduna com a personalidade judiciária do navio prevista no art.º 12º, f) do CPC e no art.º 7º do DL 201/98, de 10 de Julho.
É sabido que, a nível interno, o procedimento cautelar constitui um instrumento jurídico, de natureza incidental, destinado a acautelar o efeito útil da acção de que depende – cf. art.ºs 2º, n.º 2, parte final e art.º 391.º, n.º 1 do CPC.
Os procedimentos cautelares não definem direitos, visando antes acautelá-los. Não resolvem a questão de fundo, nem a decisão neles proferida se reflecte na acção principal – cf. art.º 364º, n.º 4 do CPC. Trata-se de proceder a uma averiguação sumária do direito e acautelar os efeitos práticos da decisão definitiva que será proferida na acção principal a que respeita (sem prejuízo, é certo, dos casos em que ocorra inversão do contencioso – cf. art.º 369º do CPC).
Assim, em regra, o procedimento cautelar não produz efeitos irreversíveis na esfera jurídica do requerido, nem proporciona ao requerente uma tutela imediata do seu direito; permitindo, no entanto, que, proferida a decisão na acção principal possa revelar-se útil a actividade jurisdicional subsequente.
Além disto, é também sabido que o património do devedor constitui a garantia geral dos credores respondendo pelo cumprimento das obrigações com todos os bens susceptíveis de penhora, garantia essa que se torna efectiva por meio de execução – cf. art.ºs 601.º e 817.º do Código Civil.
O arresto visa precisamente garantir que os bens do devedor, uma vez apreendidos, permaneçam na sua esfera jurídica até ao momento da realização da respectiva penhora, por cuja excussão o credor espera obter a satisfação do seu crédito – cf. art.ºs 601.º e 619.º do Código Civil.
O arresto poderá incidir sobre o adquirente desses bens se tiver sido judicialmente impugnada a sua transmissão através de impugnação pauliana – cf. art.ºs 610.º e 619.º, n.º 2 do Código Civil.
Tratando-se de arresto de navio, como é o caso, o art.º 394º, n.º 2 do CPC permite que a apreensão não se realize se o devedor oferecer logo caução que o credor aceite ou o juiz julgue idónea, ficando sustada a saída do navio até à prestação da caução.
A nível da lei nacional o arresto apenas poderá incidir sobre navio de terceiro não devedor do crédito se sobre ele incidir um direito real de garantia, se o terceiro for fiador da obrigação ou se a transmissão que haja ocorrido tiver sido objecto de impugnação pauliana – cf. art.º 619º, n.º 2 do Código Civil e art.º 735º, n.º 2 do CPC.
Atenta a cisão entre a propriedade do navio e a sua exploração – reconhecida desde logo no art.º 1º do DL 202/98, de 10 de Julho13 -, no âmbito da CB1952 são identificáveis duas situações que colocam a possibilidade de arresto de navio na titularidade de terceiro que não é o devedor: em caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, em que o afretador responde por um crédito marítimo relativo a esse navio e o caso, a que se aplica a mesma situação do afretador, de o devedor ser pessoa diversa do proprietário do navio.
É a propósito destas situações que importa determinar se, ao abrigo da CB1952, é possível ordenar o arresto do navio, por um dos créditos enunciados no seu art.º 1º, quando esteja em causa um crédito comum, ou seja, não existindo privilégio creditório ou outra garantia real que sobre ele incida.
Para a resolução da questão a decidir revela-se pertinente a interpretação a efectuar do estatuído nos art.ºs 3º (1) e (4) e 9º da CB1952, que dispõem o seguinte:
Artigo 3º
“(1) Sem prejuízo das disposições do parágrafo 4) e do art. 10º, qualquer autor pode fazer arrestar, tanto o navio a que o crédito se reporta, como qualquer outro pertencente àquele que na data da constituição do crédito marítimo era proprietário do navio a que este crédito se refere, ainda mesmo quando o navio arrestado se encontre despachado para viagem, mas nenhum navio poderá ser arrestado por algum dos créditos previstos nas alíneas o), p) ou f) do art. 1º, salvo o próprio navio a que respeita a reclamação. […]
(4) No caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, quando só o afretador responder por um crédito marítimo relativo a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o mesmo navio ou outro pertencente, ao afretador, com observância das disposições da presente Convenção, mas nenhum outro navio pertencente ao proprietário poderá ser arrestado por tal crédito marítimo.
A precedente alínea aplica-se igualmente a todos os casos em que pessoa diversa do proprietário é devedora de um crédito marítimo.”
Artigo 9º
“Nenhuma das disposições da presente Convenção se deve entender como atribuindo direito a uma acção que, fora das suas estipulações, não existiria segundo a lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio está afecto.
A presente Convenção não confere aos autores nenhum direito de sequela, além do outorgado por esta última lei, ou pela Convenção Internacional Sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, quando aplicável.”
Não estando em discussão nos presentes autos e sendo tal pacífico a nível da doutrina e jurisprudência pode, desde já, afirmar-se o seguinte:
i. na redacção do art.º 3º, (1) da CB1952 existe um erro decorrente da modificação da numeração dos artigos da Convenção, sendo que o art.º 10º14 ali ressalvado diz respeito às reservas que os Estados contratantes podem apor à Convenção no momento da ratificação, nada tendo que ver com a matéria ali tratada, pelo que tal ressalva diz respeito ao art.º 9º da CB1952;
ii. o art.º 3º, (1), primeira parte da CB1952 permite o arresto do navio a que o crédito se reporta (offending ship), sendo devedor o seu proprietário e, bem assim, o arresto de outro navio (sister ship) pertencente àquele que, na data da constituição do crédito marítimo, era proprietário do navio a que o referido direito se reporta (art.º 3º, (1), segunda parte).
Como refere a apelante, a jurisprudência nacional dos Tribunais superiores já se tem pronunciado sobre a interpretação a dar às disposições legais supra transcritas e tem concluído, de modo uniforme, que o art.º 3º da CB1952 permite o arresto do navio por créditos marítimos a que deu origem, ainda que o devedor não seja o seu actual proprietário, utilizando como argumento o de que a própria Convenção estabeleceu o direito de sequela relativamente ao navio originador do crédito marítimo, independentemente de quem seja o proprietário ao momento do pedido de arresto.
Essa fundamentação, radica, ao que se depreende, seja numa interpretação literal dos mencionados normativos, seja na consideração de que a própria Convenção estabelece no art.º 3º o direito de arresto sobre navio propriedade de terceiro não devedor, para proteger os credores marítimos da volatilidade inerente à especificidade do bem e à facilidade com que o navio muda de bandeira e de titularidade, conforme se pode verificar nos seguintes arestos:
Acórdão da Relação de Lisboa de 6-02-1997, CJ Ano XXII, Tomo I, pp. 115-119 – “De anotar, ainda, o breve preâmbulo da Convenção, do
"As Altas Partes Contratantes, tendo reconhecido a conveniência de fixar de comum acordo certas regras uniformes sobre o arresto de navios de mar, decidiram celebrar uma Convenção para este fim e acordaram no seguinte:..." E de pouco serviria esse esforço de concertação, no sentido de realizar a Convenção […], se a final a questão tivesse de ser resolvida com o mero recurso a outras Convenções ou a simples regras do direito interno, como o instituto dos privilégios creditórios ou o da impugnação da transmissão […] Refira-se, ainda, que, nos termos do art.º 8º da Constituição da República Portuguesa, "as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português" (n° 1), estabelecendo o nº 2 que "as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português". […] Sendo assim, toda a questão se centra no estabelecido nos artºs 3º, nº 1, e 9º da Convenção, cuja interpretação terá de ter em conta a aludida "conveniência de fixar de comum acordo" as aludidas regras uniformes sobre o arresto de navios de mar (preâmbulo da Convenção). […] A mobilidade do navio, que por sua natureza, se encontra ao longo do tempo, no mar alto ou nos mais variados e distantes portos do mundo, terá sido o motivo mais forte para que "as Altas Partes Contratante" se tenham visto na necessidade de "fixar de comum acordo certas regras uniformes sobre o arresto de navios de mar". Com efeito, não faria sentido que o "navio", como entidade com autonomia e vida próprias, pudesse contrair dívidas neste e naquele porto, dele saísse sem efectuar o respectivo pagamento e, entretanto, no decorrer da viagem, os seus proprietários procedessem a respectiva venda - por essa forma, ficando o "navio" liberto das obrigações contraídas anteriormente. E, porventura, ficando a entidade, anterior proprietária do navio, sem outros bens que respondessem por tais obrigações. Haja em vista a aludida facilidade com que "os navios mudam de dono e de bandeira" […] Entende-se que este tipo de considerações esteve na base do regime criado pela Convenção: - a ideia de proteger os credores do navio, por dívidas contraídas em benefício exclusivo deste, pelas quais este, e só este, responde, independentemente de quem seja o seu proprietário, no momento em que o autor vem invocar o seu crédito marítimo e requerer o respectivo arresto […] Deste modo, a regra, que se retira do artº 3º da Convenção, no sentido de que o autor pode fazer arrestar o navio a que o crédito marítimo se reporta, independentemente de aquele continuar ou não a ser propriedade de quem a detinha no momento em que foram contraídas a obrigações, os créditos marítimos que justificam o arresto. As limitações ao arresto, contidas nas disposições transcritas, respeitam, não ao navio que deu origem ao crédito marítimo, mas aos outros que pertençam ao novo proprietário daquele. […] a Apelante faz apelo ao artº 9º da Convenção de 1952, por forma a contrariar o que ficou dito […] Sublinhou-se a expressão "fora das suas estipulações”, já que é exteriormente a elas, isto é, fora do âmbito de tais estipulações, que as disposições da Convenção não atribuem direito de acção que não existiria segundo a lei a aplicar pelo Tribunal “a quo”. Certo é, porém, que, no domínio das estipulações concretamente definidas na Convenção, têm as mesmas de ser aplicada. Tem-se em conta o já mencionado artº 8º da Constituição da República Portuguesa […] é ao preceituado na Convenção de 1952 […] é o disposto no art.º 3º, n.º 1, da Convenção, e não qualquer disposição ou instituto do direito interno português, que permite o arresto do navio […], por créditos marítimos a que ele deu origem, ainda quando ele já não seja propriedade da "pessoa" (cf. o artº 1º, nº 4, da Convenção de 1952) que dele era proprietária, aquando do fornecimento dos bens e serviços que deram origem a esses créditos marítimos.”
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-04-1999, 99A156 – “[…] de harmonia com o estatuído no n. 4 do artigo 3 da referida Convenção, "no caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, quando só o afretador responder por um crédito marítimo relativo a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o mesmo navio (...)". Perante os termos inequívocos deste preceito, é indubitável que a Requerente - titular de um crédito marítimo - podia fazer arrestar o navio em apreço, apesar de este não ser pertença da devedora. É que, o arresto pode ser efectuado sobre o navio que deu origem ao crédito marítimo, independentemente de o proprietário ser ou não responsável por esse crédito. 7. E nem se diga - como fez a Relação - que, no caso, existe um conflito entre o n. 4 do artigo 3 da Convenção e o artigo 406 n. 1 do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n. 329-A/95, de 12 de Dezembro. Efectivamente, ao invés do propugnado no Acórdão recorrido, com a actual redacção desse n. 1, nem foram alterados os pressupostos ou requisitos da decretação do arresto em geral - pois o legislador limitou-se a afirmar o que já constava do n. 1 do artigo 619 do Código Civil -, nem houve o propósito de afastar as regras da Convenção. Daí que, no tocante ao arresto de navios de mar, permaneça intocado o regime específico consagrado na Convenção de Bruxelas de 1952 (cf. Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos Sobre o Novo Processo Civil", 2. edição, página 237). Um outro apontamento. O artigo 6 da Convenção dispõe, é certo, que as regras de processo reguladoras do arresto de um navio serão as constantes da lei do Estado contratante onde o arresto for efectuado ou pedido. Simplesmente, tal remissão pretende apenas significar que a forma como se concretiza o arresto é regulada pela lei do Estado contratante, ou seja, na situação vertente, pelo nosso Código de Processo Civil. E nada mais.”
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-1997, 0014921 – “Não contesta a recorrente que se esteja perante um crédito marítimo. O que defende é que o citado art. 3º, nº1, não confere, por si, à credora, quaisquer direitos de sequela, conforme, no seu entender, decorre do art. 9º, daquela Convenção. Tais direitos, acrescenta, são os constantes das leis nacionais ou da Convenção Internacional Sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, quando esta seja aplicável. Logo, finaliza, a credora só poderia fazer arrestar o navio, que, entretanto, passou a pertencer à recorrente, se provasse que goza de privilégio creditório ou se houvesse impugnado a transmissão. […] no Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/11/95 […] entendeu-se que a Convenção em análise estabelece um verdadeiro direito de sequela, no que respeita à manutenção da garantia patrimonial, o que é uma excepção ao princípio de que só responde o património do devedor e de que terceiros não podem ser prejudicados por negócios alheios. Por isso, acrescenta-se aí, a Convenção sentiu a necessidade de, expressamente, fixar o carácter excepcional da medida, ao dizer no seu art. 9º que não confere aos autores outros direitos de sequela, para além do outorgado por ela própria. E argumenta-se que, a seguir-se outra interpretação, o art. 9º ficava sem sentido, dado que, a não ser o direito de sequela em questão, outro não prevê a mesma Convenção. E conclui-se, então, que o titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que o originou, mesmo que este, na data em que se requer a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data da constituição do crédito. Idêntica conclusão é retirada no Acórdão da Relação de Lisboa de 06/02/97, C.J., Ano XXII, tomo I, pág. 115, onde se diz, a dada altura, que « ... não fazia sentido que o navio, como entidade com autonomia e vida próprias, pudesse contrair dívidas neste e naquele porto, dele saísse sem efectuar o respectivo pagamento e, entretanto, no decorrer da viagem, os seus proprietários procedessem à respectiva venda - por essa forma, ficando o navio liberto das obrigações contraídas anteriormente. E, porventura, ficando a entidade, anterior proprietária do navio, sem outros bens que respondessem por tais obrigações. Haja em vista a aludida facilidade com que os navios mudam de dono e de bandeira. Entende-se que este tipo de considerações esteve na base do regime criado pela Convenção: - a ideia de proteger os credores do navio, por dívidas contraídas em benefício exclusivo deste, pelas quais este, e só este, responde, independentemente de quem seja o seu proprietário, no momento em que o autor vem invocar o seu crédito marítimo e requerer o respectivo arresto». No citado Acórdão citam-se, no sentido que se deixou expresso, René Rodiere e Emmanuel du Portavice, in Droit Maritime, 1ª édition, Précis Dalloz, pág. 136. […] encontra-se publicado um outro Acórdão da Relação de Lisboa, de 18/02/97 […] considerou-se aqui que se estava perante um privilégio creditório, que tem aderência ao navio, citando-se, entre outras disposições, os arts. 2º, nº5 e 8º, da Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimos, assinada em Bruxelas em 10/04/1926, a que Portugal aderiu por Decreto nº19857, de 18/05/1931 e carta de 12/06/1931, in D.G., de 02/06/1932. No sentido defendido citaram-se, ainda, o Parecer de 09/05/1995, da Comissão Permanente de Direito Marítimo Internacional, in Direito Marítimo Internacional - Pareceres, 1964, vol. I - 89, do Ministério da Marinha e o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16/04/85, C.J., Ano X, tomo II, pág. 125, cujo sumário se transcreve: «Tendo o crédito, que fundamenta o arresto, natureza de crédito marítimo, uma vez que se refere a serviços e pagamentos feitos para e da conta do navio, pode ser decretado o arresto deste navio, sendo irrelevante a pessoa que é titular do direito de propriedade do mesmo». Neste último Acórdão considerou-se que as dívidas contraídas davam aos credores privilégio sobre o navio, nos termos dos arts. 2º, nº3 e 5, da Convenção de Bruxelas de 1926, pelo que, por força do art. 8º da mesma Convenção, os respectivos créditos acompanhavam o navio, fosse qual fosse o seu possuidor.”15
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2013, 547/11.3TNLSB–C.L1-6 – “Sobre esta matéria pode ler-se também na citada obra de Mário Raposo, págs. 100/101 que “(…) É o n.º 1 do art. 3.º da CB de 1952 de fácil entendimento. Como regra, pode ser arrestado não apenas o navio a que o crédito se reporta (offending ship) como qualquer outro do mesmo proprietário. (…). Permite o n.º 4 do mesmo art. 3.º o arresto de um navio com base num crédito a que deu causa pessoa diferente do seu proprietário. Assim, no caso de uma dívida contraída por um afretador para a qual tenha sido transferida a gestão náutica. (…). Diz Francesco Berlingieri que o arresto poderá recair sobre um navio em relação ao qual tenha sido contratado um fretamento em casco nu (bareboat charter), ou mesmo em regime de time charter “and, even if in a more limited number of cases, against a voyage charter”. (…). A 2.ª parte do n.º 4 do art. 3.º permite o direito de arresto incondicionado, sem qualquer dependência do carácter privilegiado do crédito. E neste sentido são de apontar numerosas decisões judiciais francesas e italianas recentes (sobretudo da 2.ª metade dos anos 90) (…)”. Como bem sintetizou o Mm.º Juiz a quo, na sentença em crise: “(…) A Convenção contempla o arresto do navio a que o crédito se reporta (offending ship), sendo devedor o seu proprietário, o arresto de outro navio (sister ship) pertencente àquele que, na data da constituição do crédito marítimo, era proprietário do navio a que o referido direito se reporta, e o arresto do navio (offending ship) quando outra qualquer pessoa responda por um crédito marítimo relativo a esse navio. Não havendo coincidência entre o devedor e o proprietário do offending ship, aquele pode ser o locatário ou o afretador de casco nu ou a tempo ou por viagem do navio e o arresto pode ser decretado com base num dos créditos “comuns” do art. 1.º, § 1.º da CB 1952. (…)”.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-05-2020, 197/15.5TNLSB-A.L1-7 – “Dispõe o art. 3, nº 1, da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras sobre o Arresto de Navios do Mar, assinada em Bruxelas a 10 de Maio de 1952 (introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 41007, de 16.2.1957), que: “Sem prejuízo das disposições do parágrafo 4) e do artigo 10.º, qualquer autor pode fazer arrestar, tanto o navio a que o crédito se reporta, como qualquer outro pertencente àquele que na data da constituição do crédito marítimo era proprietário do navio a que este crédito se refere, ainda mesmo quando o navio arrestado se encontre despachado para viagem, mas nenhum navio poderá ser arrestado por algum dos créditos previstos nas alíneas o), p) ou q) do artigo 1.º, salvo o próprio navio a que respeita a reclamação.” Por sua vez, o nº 4 desse mesmo art. 3 estabelece que: “No caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, quando só o afretador responder por um crédito marítimo relativo a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o mesmo navio ou outro pertencente ao afretador, com observância das disposições da presente Convenção, mas nenhum outro navio pertencente ao proprietário poderá ser arrestado por tal crédito marítimo.” Como consta do final do preceito, este nº 4 “aplica-se igualmente a todos os casos em que pessoa diversa do proprietário é devedora de um crédito marítimo.” De acordo ainda com o nº 2 do art. 8 da mesma Convenção de Bruxelas de 1952, “Um navio que arvore a bandeira de um Estado não contratante pode ser arrestado num dos Estados Contratantes, em virtude de um dos créditos enumerados no artigo 1.º ou de qualquer outro crédito que autorize o arresto segundo a lei deste Estado”, sendo que o art. 1º da Convenção define como se constitui o crédito marítimo. Já o art. 9 da referida Convenção dispõe que: “Nenhuma das disposições da presente Convenção se deve entender como atribuindo direito a uma acção que, fora das suas estipulações, não existiria, segundo a lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio está afecto. A presente Convenção não confere aos autores nenhum direito de sequela, além do outorgado por esta última lei, ou pela Convenção Internacional Sobre Privilégios e Hipotecas Marítimas, quando aplicável.” […] Segundo é entendimento da jurisprudência, e de acordo com os preceitos citados, esta Convenção de Bruxelas de 1952 estabelece um verdadeiro direito de sequela no que respeita à manutenção da garantia patrimonial, o que constitui uma exceção ao princípio de que só o património do devedor responde pelas dívidas respetivas e de que terceiros não podem ser prejudicados por negócios alheios. Assim, tem-se entendido que o titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que lhe deu origem, mesmo que esse navio, na data em que é requerida a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data da constituição do crédito. Na mesma linha, Januário da Costa Gomes e Francisco Rodrigues Rocha citam, a propósito, uma sentença do Tribunal de Nápoles de 28.3.2008, na qual também se afirma que a mencionada Convenção admite “il diritto di sequestrare la nave di proprietà di terzi per un credito marittimo che alla nave se riferisca”;
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-11-1995, 0004361, a que se teve acesso apenas ao respectivo sumário – “O titular de um crédito marítimo pode requerer o arresto do navio que o originou, mesmo que na data em que se requer a providência, já não pertença àquele que era seu proprietário na data de constituição do crédito”.
Como se pode constatar, a jurisprudência tem vindo a afirmar recorrentemente a existência de um direito de sequela que terá sido constituído pela própria CB1952 e que autoriza o arresto de navio por crédito marítimo, independentemente de o respectivo proprietário ser ou não o devedor e de existir ou não privilégio creditório ou outra garantia real sobre o bem, embora, como se pode aferir dos arestos mencionados, não seja cabalmente explicada a conjugação a efectuar entre a norma do art.º 3º, n.º 1 e a do art.º 9º da CB1952, com excepção dos acórdãos da Relação de Lisboa de 30-09-1997 e de 6-02-1997, citando, o primeiro, um outro aresto de 21-11-1995, que considerou que é o próprio art.º 9º que confere natureza excepcional ao direito de sequela introduzido pela própria Convenção e, o segundo, referindo que tal norma apenas se reporta a estipulações que não estejam contidas na própria CB1952, porque estando esta tem de ser aplicada.
Todavia, apesar da posição jurisprudencial que tem vindo a prevalecer, importa aferir sobre a validade dos fundamentos que têm vindo a ser aduzidos para sustentar que a CB1952 criou um direito de sequela atípico (que a existir, naturalmente, teria de ser aplicado pelos tribunais portugueses, porquanto Portugal aderiu a tal Convenção – cf. art.º 8º, n.ºs 1 e 2 da Constituição).
Atento o cariz de internacionalidade do Direito Marítimo16 há que ter sempre presente o regime internacional (o que implica, por exemplo, averiguar a convenção que seja aplicável a um determinado instituto) e o regime interno (no caso, o regime interno sobre o arresto).
Em matéria de arresto de navios, a típica dissociação entre a exploração e a propriedade dos navios de mar impõe a multiplicidade de interessados conexionados com a navegação marítima, o que justifica a tentativa de harmonização das regras aplicáveis nessa sede.
A natural divergência de interesses entre armadores por um lado e carregadores e seguradores por outro, levou os primeiros a tentarem estabelecer entraves à figura do arresto, enquanto os segundos preconizavam a sua liberalização. A esta dificuldade associam-se as relacionadas com as diferenças existentes entre os principais sistemas jurídicos. Com efeito, enquanto o sistema inglês só autorizava o arresto fundamentado em créditos marítimos, apenas podendo ser arrestado o navio sobre o qual recaía um crédito marítimo e nenhum outro, ainda que do mesmo armador, os outros sistemas europeus admitiam a possibilidade de arrestar qualquer navio, de qualquer armador, por qualquer tipo de crédito.
A propósito da interpretação das normas acima transcritas e respectiva conjugação têm-se perfilhado duas orientações: uma, que defende uma interpretação restritiva, de modo que o arresto de navio da titularidade de não devedor do crédito apenas será admissível se se estiver perante um crédito privilegiado ou uma hipoteca; outra, que efectua uma interpretação literal do art.º 3º CB1952, permitindo uma nova garantia real sobre o navio relativamente ao qual se constituiu o crédito.
Na verdade, como disso dá conta João de Oliveira Geraldes17, a CB1952 reporta-se a um arresto de natureza atípica, resultante de uma tentativa de unificar diferentes institutos de panoramas jurídicos diversos, como sejam os ordenamentos jurídicos de common law e civil law, sendo que nos primeiros, o arrest constitui uma apreensão do navio por reconhecimento judicial de que um determinado crédito tem natureza marítima (actio in rem – o navio está afecto ao crédito marítimo) e no segundo, o arresto constitui uma actio in personam, ou seja, apenas tem a função de assegurar ao credor que, na esfera do devedor, existirá património suficiente para, na devida altura, ser possível proceder à sua penhora.
Assim, importará, antes de mais, determinar qual a natureza ou tipo de arresto a que se reporta a CB1952.
Para tanto, o mencionado autor efectua uma análise dos trabalhos preparatórios e das propostas que foram sendo apresentadas pelas diversas delegações. Nesse contexto, realça a posição britânica, assente no instituto do arrest, que, mais do que uma medida de conservação patrimonial, está ligado a maritime liens (privilégios marítimos), que surgem como facto causador do crédito marítimo e oponível a futuros proprietários (as causas que não dão origem a maritime liens podem originar statutory rights of action in rem, que surgem apenas depois de o credor pedir o arresto, pelo que o arresto de navio transferido para terceiro só é possível se existir um privilégio); diversamente, para a delegação francesa, estava em causa um arresto de civil law (medida cautelar de garantia do património do devedor).
Aprovada a CB1952, alguns autores sustentaram, efectivamente, que esta admitia o arresto de navio da titularidade de terceiro não devedor, considerando que o art.º 3º (4) institui um direito específico de acção a favor do titular do crédito marítimo, criando um novo direito, diferente dos maritime liens, daí que, por essa razão, não constituindo um privilégio creditório, não se aplicaria a restrição constante do art.º 9º, dirigido apenas aos privilégios marítimos.
A favor desta interpretação literal podem convocar-se os seguintes argumentos, sendo que os primeiros dois podem ser utilizados também para sustentar a posição inversa:
• Os trabalhos preparatórios da CB1952 revelam que se pretendeu criar ou constituir um novo direito de garantia ou de sequela para proteger os credores marítimos;
• A Convenção Internacional sobre o Arresto de Navios, Genebra, 12 de Março de 1999, que visa unificar as regras relativas ao arresto de navios em diferentes países e substituir as convenções anteriores sobre o tema, como as de 1952, 1926 e 1967 - a que Portugal não aderiu – introduziu uma norma, no seu art.º 3º18, que estabelece a exigência de o crédito beneficiar de privilégio marítimo para que o arresto possa ser decretado, sustentando os defensores da interpretação literal que nesta Convenção se quis alterar o regime anterior;
• Aquando da aprovação da CB1952 estava em curso a transformação do arresto de instrumento de conservação do bem em instrumento para constranger o devedor ou o terceiro afectado a prestar garantia, daí que a finalidade do arresto não seria acautelar o crédito, mas teria uma função de coacção (note-se que o juiz pode determinar a prestação de caução para obter o seu levantamento -cf. art.º 5º da CB1952);
• A interpretação do art.º 9º deve ser no sentido de que apenas não permite ao requerente uma acção que não existe na lei do foro; o autor do arresto apenas não pode transformá-lo em penhora na fase subsequente se não tiver uma garantia real sobre aquele bem (privilégio creditório ou hipoteca), mas isso não impede o arresto; apenas impede a conversão em penhora e a venda judicial do bem.
No entanto, cabe indagar, quanto a esta posição, qual a lógica ou justificação para a criação de um direito de acção ou para se autorizar um arresto sobre um navio propriedade de terceiro não devedor se, posteriormente, não é possível prosseguir qualquer acção contra este? Com efeito, qual será o sentido da admissibilidade de um direito de pressão a favor do credor, quando, perante a lex fori, se verifica a impossibilidade de prosseguir com uma acção declarativa ou executiva, que apenas seria viável perante a existência de um privilégio creditório ou hipoteca ou outra vinculação do bem ao crédito?
Assim, entre os autores maritimistas não faltou quem sustentasse, diversamente, que, sendo caso de aplicação da CB1952, o arresto não é admissível quando não seja possível, posteriormente, activar um qualquer tipo de procedimento declarativo ou executivo ao abrigo da lex fori ou da Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas a Privilégios Marítimos e Hipotecas, Bruxelas, em 10 de Abril de 192619 atenta a função preclusiva do art.º 9º CB1952.
Na verdade, esta norma retira a possibilidade de a Convenção criar novos maritime liens, o que significa que o art.º 3º, (4) não permite ao credor comum obter a venda judicial do navio se na sua esfera jurídica esse direito não existir, ou seja, a CB1952 não atribui ao autor do arresto um direito que não existe na lex fori ou na CB1926, sendo que o arresto, nessa situação, nenhum resultado prático teria.
Ademais, o art.º 7º, (2) da CB195220 estipula que a caução a prestar para obter o levantamento do arresto está conexionada à garantia do cumprimento das obrigações que ulteriormente o tribunal competente venha a proferir, o que atesta a natureza instrumental do arresto em relação a uma futura condenação.
Assim, diferentemente do que vem sendo sustentado, o art.º 9º da CB1952 parece dever ser interpretado no sentido de possuir a exacta função de retirar natureza constitutiva às disposições da Convenção. Ou seja, a CB1952 não constitui novos direitos, reconhecendo apenas a possibilidade do arresto quando tais direitos existam de acordo com a lex fori, ou seja, neste caso, sejam reconhecidos na lei portuguesa ou na CB1926.
A CB1952 não criou novos direitos atípicos de garantia real ou conferiu novas posições jurídicas, possuindo um carácter estritamente processual.
Como refere João de Oliveira Geraldes21, a função da lista do art.º 1º da CB1952 é a de limitar as potenciais causas que legitimam o arresto de um navio de mar (causas que devem pré-existir na lex fori ou na CB1926) e não a de constituir essas causas, sendo que o arresto ali contemplado tem uma natureza próxima à da civil law, logo, de instrumentalidade processual, não podendo ser entendido como uma forma de pressão para obter a satisfação de um crédito (cf. art.º 7º (2)).
Deste modo, o arresto do offending ship, nos casos em que após a constituição do crédito e antes da apresentação do pedido de arresto aquele foi alienado a terceiro que não é o devedor só será possível se se puder dirigir uma acção contra o terceiro afectado pelo arresto, que deve ser fundada no direito substantivo da lex fori ou na CB1926.
A favor desta interpretação restritiva e preclusiva do art.º 9º da CB1952 sustenta-se o seguinte:
• Apenas é possível arrestar um bem de terceiro se e quando o requerente consiga provar que o seu crédito beneficia de um privilégio creditório ou de outra garantia real;
• Os trabalhos preparatórios da CB1952 apontariam no sentido de que não se pretendeu criar qualquer novo direito ou privilégio marítimo;
• A Convenção Internacional sobre o Arresto de Navios, Genebra, 12 de Março de 1999 e a sua nova redacção não visou alterar o regime anterior, mas esclarecer a dúvida que existia à luz da CB1952 e proceder à sua interpretação, no sentido de ser necessária a existência de privilégio marítimo para autorizar o arresto de bem do não devedor;
• A necessidade de articulação entre os art.ºs 3º, (4) e 9º, 2º parágrafo da CB1952 implica que se reconheça que neste último se estatui que a Convenção não confere nenhum direito de sequela para além do outorgado pela lei a aplicar pelo tribunal a que o litígio está afecto, pelo que não pode criar um direito de sequela que não exista já no direito interno aplicável ou na CB1926; admitir o arresto sobre navio de terceiro sem a existência de um privilégio marítimo ou hipoteca corresponde a criar uma sequela não prevista na lei interna ou na CB1926;
• A referência do art.º 9º da CB1952 a “um direito de acção” deve ser entendida no sentido de expectativa processual, não pretendendo a Convenção facultar às partes expectativas processuais maiores do que aquelas que a lei interna lhes confere;
• Resulta da CB1952 (além do direito interno, neste caso), o carácter instrumental do arresto, dado que este visa apenas uma composição provisória do litígio e não a sua resolução definitiva; o arresto não pode ser entendido como uma medida decisória em si mesma; quem defende a possibilidade de arresto do offending ship entretanto alienado a terceiro não devedor parte do pressuposto que o requerido se aprestará a prestar caução, mas isso pode não suceder, seja porque o requerido dispõe de outros navios a operar, seja porque não tem capacidade para prestar a caução e, nesse caso, na ausência de privilégio ou garantia real que permita a conversão do arresto em penhora, não se percebe o que sucederá à providência;
• O arresto do navio do não devedor do crédito marítimo apenas pode ter lugar quando o navio esteja vinculado ao crédito ou tiver sido impugnada a transmissão.
Não se pode deixar de reconhecer a impressividade dos argumentos que afastam a criação ex novo de um direito de sequela pela CB1952, sobremaneira por permanecer injustificada a criação de uma figura consistente num mero instrumento de pressão por parte dos credores para obter a prestação de uma caução que conduza ao levantamento do arresto. Tendo o arresto natureza instrumental, a sua função, em tais situações, esgotar-se-ia em si mesma, o que é desconforme com a lei nacional.
Na situação em apreço, de acordo com a lex fori – no caso, a lei interna portuguesa – a apreensão do Gottlieb, não estando comprovada a existência de privilégio creditório ou de outra garantia real, nunca conduziria à sua conversão em penhora.
Não se vê, pois, como deixar de corroborar a conclusão a que chegou a 1ª instância, no sentido de que os créditos elencados no art.º 1º, (1) CB1952 não são, por si só e pela mera circunstância de ali terem sido enumerados, créditos privilegiados, porquanto não esteve subjacente à CB1952 a criação de novos privilégios marítimos, mas sim indicar ou limitar aqueles créditos marítimos que permitiriam a obtenção do arresto do navio.
Por outro lado, a requerente não alegou que o seu direito beneficie de um qualquer privilégio marítimo válido, daí que o requerimento inicial não devesse ser admitido, como não foi.
Por fim, cumpre apenas referir que não se vislumbra de que modo a concessão de personalidade judiciária ao navio modifica ou interfere com a interpretação das normas dos art.ºs 3º e 9º da CB1952 que atrás se expendeu, tendo em conta que a concessão da personalidade judiciária apenas confere ao navio a possibilidade de ser judicialmente demandado quando não seja identificado o proprietário ou armador, o que apenas tem lugar em duas situações, isto é, quando estejam em causa as responsabilidades do art.º 28º, n.º 1 do DL 352/86, de 21 de Outubro e do art.º 11º, n.º 1 do Dl 202/98, de 10 de Julho, sendo que a personalidade do navio surge apenas quando o problema é judicializado.22
Improcede, assim, a presente apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais23, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A apelante decai integralmente quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 15 de Julho de 202524
Micaela Sousa
Luís Filipe Pires de Sousa (Com declaração de voto)
Cristina Silva Maximiano
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DECLARAÇÃO DE VOTO
"Revejo a minha posição anteriormente expressa, como adjunto, no Acórdão desta Relação de 5.5.2020, 197/15. Os argumentos em prol de uma interpretação restritiva da Convenção de Bruxelas de 1952, no que tange ao arresto de navio após alienação, afiguram-se mais consentâneos com uma interpretação sistemática da Convenção e com a própria natureza e função da providência cautelar de arresto.
Luís Filipe Sousa"
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1. Elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade – cf. art. 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
2. Matriculada no registo comercial das Ilhas Marshall, sob o n.º 107119.
3. Ambas com sede em Malta.
4. Aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 41 007, de 16 de Fevereiro de 1957, DG, 1ª Série, n.º 38, adiante designada por CB1952.
5. Ref. Elect. 175939.
6. Ref. Elect. 608611.
7. Com sede nas ilhas Marshall.
8. Ref. Elect. 175953.
9. Ref. Elect. 175987.
10. Ref. Elect. 608728.
11. Ref. Elect. 176246.
12. Adiante designado pela sigla CPC.
13. Que estabelece o regime da responsabilidade do proprietário do navio e disciplina a actuação das entidades que o representam.
14. “As Altas Partes Contratantes podem reservar-se, no momento da assinatura do depósito das ratificações ou quando da sua adesão à Convenção:
(a) O direito de não aplicar as disposições da presente Convenção ao arresto de um navio efectuado em razão de um dos créditos marítimos previstos nas alíneas o) e p) do artigo 1.° e de aplicar a esse arresto a sua lei nacional;
(b) O direito de não aplicar as disposições do parágrafo 1) do artigo 3.° ao arresto efectuado em seu território, em razão dos créditos previstos na alínea q) do artigo 1.”
15. Note-se que neste acórdão se mencionam dois outros, para sustentar a posição defendida, que aludem à existência de privilégio creditório o que, a suceder, permitiria, nessa data, efectivamente o arresto sobre o navio, atento o disposto no art.º 13º da Convenção de 1926, de que, porém, entretanto, Portugal fez o recesso.
16. Entendido como o ramo do Direito Comercial que assume por objecto as relações jurídicas exercidas no âmbito da navegação marítima e tuteladas pelo seu regime regulador – cf. Luís da Costa Diogo e Rui Januário, Direito Comercial Marítimo, Quid Juris 2008, pág. 179.
17. O Arresto do navio do não devedor do crédito marítimo: estudo sobre a Convenção de Bruxelas para a unificação de certas regras sobre o arresto de navios de mar de 1952, in Revista O Direito n.º 142 (2010), IV, 761-784.
18. “É admissível o arresto de um navio em relação ao qual se alegue a existência de um crédito marítimo quando:
a) a pessoa que era proprietária do navio no momento em que foi constituído o crédito marítimo está obrigada em virtude desse crédito e é proprietária do navio quando o arresto é efetuado;
b) se o fretador do navio, no momento em que nasceu o crédito marítimo, está obrigado em virtude desse crédito e é fretador ou proprietário do navio quando o arresto é efetuado;
c) se o crédito se baseia em hipoteca ou em outra garantia real da mesma natureza sobre o navio;
d) se o crédito é referente à propriedade ou à posse do navio;
e) se o crédito é contra o proprietário, o fretador, o gestor ou o operador do navio e está garantido por um privilégio marítimo que é concedido ou que resulta da legislação do Estado em que o arresto é requerido.”
19. Adiante designada por CB1926. Portugal ratificou e fez parte desta Convenção. Pela Resolução da Assembleia da República n.º 40/2011, de 14-1-2011, DR, 1ª série, N.º 53/XI/2, de 16-3-2011 foi aprovado o recesso, por parte da República Portuguesa, da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos, pelo que o direito interno ficou sem quaisquer privilégios marítimos internacionais, restando apenas aqueles que o direito português considera, i.e., os previstos no Código Comercial.
20. “(2) Se o tribunal em cuja jurisdição o navio foi arrestado não tiver competência para se pronunciar sobre a causa principal, a caução ou garantia a prestar, na conformidade do artigo 5.°, para obter o levantamento do arresto, deverá garantir o cumprimento das condenações que venham a ser ulteriormente proferidas pelo tribunal com a dita competência, e o tribunal ou a autoridade judiciária do lugar do arresto fixará o prazo dentro do qual o autor deverá propor a acção perante o tribunal competente.”
21. Op. cit.
22. Cf. António Menezes Cordeiro, Da natureza jurídica do navio, II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo (11 e 12 de Novembro de 2010) – O Navio.
23. Adiante designado pela sigla RCP.
24. Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.