Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RUI COELHO | ||
Descritores: | REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/18/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I - Será mínima a quantidade de consumidores que, olhando para os nomes científicos, conseguirá distinguir cherne de pampo. O consumidor reconhece os peixes pelas suas denominações comuns ou comerciais. Não há, por isso, forma de, com recurso às regras da experiência comum, concluir que as etiquetas em causa permitiriam ao consumidor perceber que o que se vendia naquelas embalagens era pampo e não cherne. As regras da experiência comum permitem concluir exactamente o contrário daquilo que o Tribunal a quo alcançou, revelando-se, pois, um erro notório na apreciação da prova. II - Como a explicação acima enunciada encontra respaldo na documentação junta ao processo e que constitui prova pré-constituída encontra-se o Tribunal da Relação de Lisboa habilitado a, reconhecendo o erro notório na apreciação da prova, repará-lo alterando a decisão de facto em conformidade. III - Nos termos do art.º 358.º do Código de Processo Penal, a alteração não substancial de factos deverá ocorrer se se afigurar ter a mesma relevo para a decisão da causa. O relevo atribuído aos dois factos cuja adição é pretendida, prende-se com a capacidade dos mesmos sustentarem a conclusão quanto à motivação dos Arguidos. Como tal, o relevo pretendido não é para a decisão da causa, mas apenas para a fundamentação da decisão de facto e essa basta-se no elencar das razões do Tribunal para o seu julgamento sem necessidade de acrescentar mais factos ao rol de factos provados. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo do Tribunal Judicial da Comarca de Açores foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Nos termos expostos, julga-se a acusação improcedente, por não provada, e, em consequência, decide-se: 1. absolver o arguido AA, da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro; 2. absolver a arguida BB, da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro; 3. absolver a arguida AA & FILHOS, ARMAZÉM DE FRIO, LDA., da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 1, e 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.» - do recurso - Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: «1. Nos presentes autos foi proferida uma acusação contra os arguidos AA e mulher, BB, pela prática de um crime de fraude sobre mercadorias p.p. pelo disposto no art.º 23º, nº 1 do DL nº 28/84 de 20.01, ex vi do art.º 35º, nº 1, do regulamento (EU) 1379/2013 de 11.12 e anexo I da Portaria nº 587/2006 de 22.06 e, ainda, à arguida sociedade “AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda.”, a pratica do mesmo crime, nos termos do disposto no art.º 3º, nº 1 do DL 28/84 de 20.01. 2. Nos termos da acusação e em síntese, consta que os três arguidos bem sabiam que colocavam à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica” (peixe Pampo), como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne” e que ao expor e vender tal mercadoria (Peixe Pampo) como se de “cherne” se tratasse, atuavam de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quiseram e conseguiram. 3. Realizado o seu julgamento, a Mmª Juíza a quo absolveu os três arguidos entendendo não estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de fraude sobre mercadoria (nem ao nível do dolo, nem ao nível da negligencia). 4. Para o tribunal a quo, a “insignificância do erro” (sic) na rotulagem das embalagens de falso “cherne” postas à venda pelos arguidos configurava um mero lapso na sua atuação, nunca consubstanciador sequer da violação de um dever de cuidado. 5. Na sequência do recurso interposto pelo Ministério Público (adiante MP), o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa (adiante TRL) por Acórdão datado de 09.04.24, anulou parcialmente a sentença datada de 25.09.23 por vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão 6. e determinou a reabertura da audiência de julgamento, para que o tribunal a quo procedesse à devida e escrupulosa averiguação e esclarecimento das circunstâncias factuais concretas referentes ao elemento subjetivo do crime em apreço. 7. No âmbito da reabertura da audiência, a arguida BB remeteu-se ao silencio, não tendo querido prestado declarações e o arguido AA prestou inicialmente declarações (conforme melhor analisaremos mais adiante) tendo no decurso das mesmas optado por se remeter igualmente ao silencio. 8. Desde já quanto à arguida BB, da prova produzida em sede de julgamento e de reabertura da audiência entendemos que resultou demonstrado, não obstante o seu silencio, que esta não exercia de facto as competências inerentes a um sócio gerente, tudo era decidido pelo arguido AA, que é o seu marido e gerente da sociedade arguida, razão pela qual cremos que a decisão de absolvição quanto à arguida BB é correta, embora por fundamentos bem diferentes dos utilizados pelo tribunal a quo. 9. Analisada a segunda sentença proferida a 23.09.24, ora recorrida, constata-se que a mesma não faz mais do que replicar quase ipsis verbis, o teor da primeira sentença proferida em 25.09.23, apenas excluindo (e bem) a parte em que afirmava a “impossibilidade” de se convolar o crime doloso imputado aos arguidos na sua vertente negligente. 10. É patente do próprio texto da decisão recorrida que o caminho seguido pelo Tribunal a quo até à decisão sobre a matéria de facto, não é compreensível ao homem com uma cultura média e desafia as regras do normal acontecer e da experiencia comum, em especial, no que diz respeito à análise que foi feita elemento subjetivo do crime imputado aos arguidos feita pelo tribunal a quo. 11. Ao dar como não provados os factos constantes das alíneas a), b), c) e d) da sentença recorrida, dúvidas não podem restar que houve um erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a al. c) do nº2 artigo 410º do CPP, pois que, o tribunal a quo violou as regras da experiencia e efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, baseada em juízos ilógicos e contraditórios 12. O texto da sentença recorrida contém afirmações que nos parecem desfasadas da atuação dos agentes económicos em geral e da realidade da vida económica, justificando o injustificável numa visão de todo naïve e enviando um sinal de impunidade aos agentes económicos que têm estas praticas, sabendo-se como se sabe que as fiscalizações do Estado são escassas e feitas no seguimento de uma denuncia. 13. Não basta os arguidos invocarem que “se enganaram” nos rótulos para se dar como provado que agiram sem dolo e sem negligencia. 14. Os arguidos quiseram enganar os clientes levando-os a pensar que estavam a comprar “cherne”, agindo, livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei criminal. 15. Qualquer consumidor médio confrontado com a designação/inscrição “cherne” nas embalagens dos arguidos (que continha na verdade outro peixe) confiaria que se tratava realmente de um peixe dessa espécie do cherne, para mais, encontrando-se tais embalagens à venda numa peixaria que tem o selo da marca “Açores” e clientela estabelecida ao longo de 20 anos de existência. 16. Existem, assim, um rol de factos de apreensão externa que inequivocamente levam à única conclusão lógica possível de que a intenção de enganar existiu e que não se tratou de um erro na rotulagem. O dolo direto é inegável e inequívoco. 17. Desde logo, resultou amplamente provado que os arguidos são donos da peixaria há mais de 20 anos, pelo que têm uma vasta experiencia e conhecimento das espécies piscícolas e dos procedimentos comerciais desde a sua aquisição até à sua venda ao consumidor; que os arguidos haviam comprado 105,08 quilos de peixe denominado comercialmente de Pampo da antártica no dia anterior à fiscalização, conforme fatura junta aos autos (documento a fls 5); que os arguidos são responsáveis e dominam o manuseamento, embalamento e venda ao consumidor do referido peixe (Pampo); que os arguidos mantiveram na montra em exposição/mostruário para venda 6 embalagens de falso “cherne” à posta, à espetada e aos cubos, a que se alude no ponto 3 das conclusões (eram na verdade peixe Pampo) e, que na arca frigorífica que dá apoio ao mostruário, situada nas traseiras da loja, encontravam-se, ainda, dezenas de embalagens da espécie de peixe denominada Pampo mas com a designação no rotulo respetivo de outro peixe, o “cherne”, ou seja, os rótulos eram idênticos aos que estavam no mostruário, conforme depoimento das testemunhas DD e EE, inspetores do IRAE; apesar da quantidade elevada de Pampo comprada, mais de cem quilos, não existia qualquer embalagem com a designação comercial verdadeira de Pampo; que os arguidos tinham conhecimento de que o cidadão comum desconhece a designação científica do peixe Pampo, especificamente o consumidor açoriano porquanto tal espécie piscícola ( Pampo) não é proveniente do mar dos Açores, não é vista nas lotas nem é vista nas peixarias, conforme depoimento da testemunha FF, formado em biologia e inspetor nos Açores há mais de 20 anos; também era do conhecimento dos arguidos que o consumidor medio está bastante familiarizado com a espécie piscícola denominada no mercado por “cherne”, a qual, por ser bem conhecida no mercado é extremamente vendável ao inverso da outra, o Pampo, que, por ser desconhecida, não tem esta característica; os arguidos tinham conhecimento que o que releva para o consumidor é o tipo de peixe que quer consumir e, se for mais barato, facilita e favorece a tomada de decisão, não cabendo ao consumidor a ponderação ou o escrutínio sobre o motivo pelo qual o vendedor escolheu um preço que lhe é mais favorável (podíamos especular sobre dezenas de motivos, como por exemplo, porque tem muito peixe para escoar ou, porque já foi adquirido há algum tempo ou porque quer fazer um estudo de mercado relativamente a esse peixe e por isso vende-o mais barato, etc, etc). 18. Do teor da conclusão que antecede e das regras da experiência comum, resulta inequívoco que a veracidade e a autenticidade do produto que se destinava à venda ao consumidor foi violada, ou seja, é evidente à saciedade o artifício e o engano engendrado pelos arguidos para levarem os consumidores a comprarem o peixe, violando-se duplamente o consumidor quer quanto ao tipo de peixe quer quanto na confiança depositada no vendedor há tantos anos. 19. Face à prova produzida em sede de julgamento e à aplicação das as regras da experiência comum, da normalidade e da boa fé nas práticas comerciais e na venda de bens ao consumidor tem que se concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo direto. 20. Ao assim não concluir, incorre o tribunal a quo em um erro notório, porquanto da apreciação da prova produzida em julgamento a conclusão a retirar, quanto ao elemento subjetivo do tipo, é precisamente a inversa daquela que foi retirada pelo tribunal a quo, ou seja, a prova produzida em sede de julgamento e os factos provados permitem concluir pelo evidente dolo direto dos arguidos. 21. Acresce que, quando o tribunal a quo apenas refere nos factos provados em 3) da sentença recorrida, que foram apreendidas 6 embalagens de “cherne”, tal não corresponde à forma exata e precisa da globalidade da prova que foi produzida em sede de discussão e julgamento. 22. Resulta à saciedade da prova testemunhal, documental e da confissão do próprio arguido (quer na primeira audiência quer em sede de reabertura de audiência, embora sempre alegando que foi tudo um erro na rotulagem), que nas traseiras das referidas instalações da peixaria se encontravam guardadas várias outras embalagens idênticas àquelas expostas ao público. 23. Com efeito, durante a operação de fiscalização que deu origem aos presentes autos, foi apreendida aos arguidos a fatura nº FT V001V1/2023176, onde se comprova que o arguido comprou 105,08 quilos de peixe pampo da Antártica, pelo valor de 869,90 euros (documento a fls 5 dos autos, não infirmado que foi discutido e analisado em audiência de julgamento), o mesmo peixe que pôs intencionalmente à venda ao público sob o nome comercial de “cherne”. 24. Face a estes novos factos acessórios ou instrumentais que vieram a lume na primeira audiência de julgamento e também na reabertura da audiência (e que o arguido confessou) com interesse para a boa decisão da causa, o tribunal a quo deveria ter procedido a uma alteração não substancial da acusação, nos termos do disposto no art.º 358º do Código Processo penal (CPP), pois não implicam uma alteração substancial da acusação, na medida em que não têm por efeito a imputação aos arguidos de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 25. Devia o tribunal a quo, depois de aos arguidos ter sido dada a possibilidade de defesa, nos termos do art.º 358º do CPP, ter aditado ao elenco dos factos provados este facto, com o seguinte teor: “Nas circunstancias de tempo e lugar referidos no ponto 3 dos factos provados, o arguido AA em seu nome e em representação da sociedade arguida conservava nas traseiras do seu estabelecimento, pelo menos, várias outras dezenas de embalagens, resultantes do embalamento e rotulagem de cerca de 105, 08 quilos de peixe da espécie “Pampo”, de idêntico teor às 6 embalagens descritas no referido ponto 3 dos factos provados.”. 26. Ao assim não considerar, a sentença é nula, nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1, al. c) do Cod. Processo penal tendo tribunal a quo incorrido em erro de julgamento. 27. Outro facto que deveria ter sido dado como provado e que resultou da discussão da causa, para concluir que o arguido AA em seu nome e em representação da sociedade arguida, sabia do carater enganador da mercadoria que vendia, prende-se com a peculiaridade do peixe Pampo da antártica não ser um peixe conhecido dos consumidores açorianos, mormente os da ... onde nos encontramos. 28. O Tribunal a quo deveria ter dado como provado este facto não substancial, nos termos do art.º 358º do Cód.PP, aditando-o à matéria de facto, nos seguintes termos: 8) O pampo da antártica não é um peixe dos mares dos açores, não é conhecido da generalidade dos açorianos e não se vê à venda em lota ou nas superfícies comerciais açorianas. 29. Tal facto é mais um elemento externo na avaliação do elemento subjetivo dos arguidos: a intenção de enganar provém, pois, da venda de um peixe mais barato (pampo) usando o nome de um peixe sobejamente conhecido e apreciado pela esmagadora maioria dos consumidores açorianos: o cherne. 30. A utilização do nome comercial de “cherne” serve de “isco” para atrair e potenciar as vendas de um peixe menor que, à vista desarmada, congelado e cortado em pedaços dentro de uma embalagem plástica, se confunde com o verdadeiro cherne. 31. Os novos factos apontados nos pontos 26 e 29, supra, tiveram por base os depoimentos, em julgamento, de testemunhas, bem como, de documentos não infirmados pela defesa e da confissão do próprio arguido AA. 32. Como não foram inseridos na matéria de facto dada como provada, verifica-se que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ou incorreta apreciação da prova produzida em sede de julgamento, desvirtuando a realidade dos factos, violando, ainda, notoriamente as regras de experiência comum. 33. Impondo-se, pois, quanto à matéria de facto, decisão diversa da recorrida. 34. Por outro lado, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, os factos provados nos pontos 3 a 6 da sentença recorrida preenchem o elemento objetivo do crime de fraude sobre mercadoria, p.p. pelo disposto no art.º 23º, nº1, al. b) do DL 28/84 de 20.01. 35. Ao assim não considerar (pela segunda vez), o tribunal recorrido não aplicou corretamente a norma do art.º 23 nº 1, al. b) do DL nº 28/84 de 20.01, incorrendo em erro da aplicação da matéria de direito, nos termos do art.º 412º, nº 2, al. a) do CPP. 36. O tribunal a quo incorreu igualmente no vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão nos termos previstos no art.º 410º, nº2, al.b)do CPP, por concluir pela absolvição dos arguidos pelo não preenchimento do tipo objetivo, quando considerou provados os factos a que se alude no ponto 3, o que bastaria para o seu preenchimento, sendo a fundamentação manifestamente contraditória com tais factos, e consequentemente com a decisão. 37. Resultou provado que a rotulagem das embalagens apreendidas aos arguidos nos autos observava o disposto nas normas comunitárias, nacionais e na Portaria 587/2006 de 22.06, contendo uma série de itens obrigatórios, a saber: denominação comercial; nome científico; arte de pesca; zona de captura; subzona de captura; data do congelamento; lote; data limite do consumo; peso líquido escorrido; preço por quilo; preço total e o respetivo código de barras, bem como, se era “postas”, “espetadas” ou “cubos” ( cfr. fotografias a fls 6 a 7 dos autos). 38. No entanto, no caso dos autos, verifica-se que todos estes elementos foram corretamente preenchidos, sem qualquer falha, com exceção da denominação comercial “cherne”. 39. O arguido desejou prestar declarações alegando que era um “erro”, mas, quando confrontado com perguntas mais concretas do MP, remeteu-se ao silencio. Ou seja, recusou-se a prestar os devidos esclarecimentos que se impunham com vista ao apuramento dos factos ordenados pelo Venerando Tribunal da Relação. A postura de um arguido inocente é a de alguém que tem interesse em responder e esclarecer todas as questões colocadas, para demonstrar que não tinha intuito fraudulento em relação aos factos objetivos em causa, o que não foi o caso. 40. Se é certo que o silencio não pode prejudicar a defesa do arguido, também é certo que dessa ausência de prestar esclarecimentos com vista ao apuramento concreto da factualidade e em conjugação com os demais factos já apurados e prova produzida, levam à inevitável conclusão de que o arguido agiu de forma deliberada com vista a ludibriar os seus clientes com a venda dos referidos artigos. 41. Ora, o tribunal a quo não colocou qualquer questão ao arguido para se esclarecer do que aconteceu realmente, da origem concreta do tal “erro”. 42. Não obstante concluir que ocorreu um lapso na rotulagem, o tribunal a quo refere desconhecer a sua origem por não ter sido apurado em sede de audiência. 43. Apesar de afirmar que não conseguiu esclarecer tal questão do erro, o tribunal a quo aventa e especula sobre “tratando-se muito provavelmente de um lapso informático na inserção dos dados e não da ação humana”, desconhecendo o MP a que titulo é que o tribunal a quo invoca tal facto, pois ele não decorre da prova produzida em sede de reabertura da audiência. 44. O tribunal a quo elabora um raciocínio ininteligível sobre a possibilidade da existência de erro ou lapso sem fazer a natural correspondência a uma violação de um dever de cuidado, defendendo que “a insignificância” do erro, consubstanciada na indicação errónea da designação do tipo de peixe em apreço e consequente venda fraudulenta aos consumidores é por si considerado um mero lapso não punível. 45. Confessa-se a dificuldade de entendimento dos conceitos jurídicos ali invocados, já que a violação do dever de cuidado por parte de funcionários e do arguido, substanciada na inserção de dados informáticos em desconformidade com os documentos de suporte tratar-se-ia sempre, na posição defendida pelo tribunal a quo, de uma conduta negligente. 46. Assim, em face de todo o exposto facilmente se conclui, contrariamente às conclusões da douta sentença recorrida que os arguidos não cometeram um mero “lapso não intencional” nem foi por mero engano que agiram da forma supra descrita. Pelo que incorreu o tribunal nos referidos vícios já indicados nos pontos anteriores, conjugados com as regras da experiência comum, tendo igualmente sido violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127º do Cód. P.P. 47. Ao dar como provado um “erro”, sem se ter feito prova da forma como este “erro” ocorreu e com base num juízo conclusivo e puramente especulativo, incorreu o tribunal a quo no vício da insuficiência da prova para a decisão de facto proferida. Pelo exposto, Venerandos Desembargadores, dando provimento ao recurso sub judice, deverão Vªs Excelências substituir a sentença recorrida por outra, que condene os arguidos AA, por si e em representação da sociedade arguida, pelo crime de que vinham acusados.» - da resposta - Notificado para tanto, respondeu o Arguido AA concluindo que «deve a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, por ser acertada, estar de acordo com a lei e com os factos provados, não tendo violado qualquer norma ou princípio jurídico.» Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido do provimento do recurso pois «O Tribunal a quo, na sentença, continua sem fazer entender a um cidadão médio porque é que a exposição para venda de 6 produtos [e 105,08 kg apreendidos] com a denominação nos respetivos rótulos de “espetada de cherne”, “cherne em cubos” e “cherne em posta”, cuja espécie que constava das rotulagens era “hyperoglyphe antarctica” [facto provado 3], ou seja, a espécie conhecida por pampo, não merece qualquer censura penal, a título de dolo ou de negligência, quando manifestamente a denominação utilizada era apta a induzir o consumidor a comprar aquele produto como sendo cherne, portanto, ao engano.» Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995] Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: - do erro notório na apreciação da prova, (art.º 410.º/2, al. c) do Código de Processo Penal); - da alteração não substancial da acusação, (art.º 358º do Código Processo Penal); - da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º/2, al. b) do Código de Processo Penal); - do erro da aplicação da matéria de direito, (art.º 412.º/2, al. a) do Código de Processo Penal). Desde já se aponta que o recurso não abrange a absolvição da BB, pois o Ministério Público expressamente declara que reconhece que «não obstante a mesma ser sócia gerente da sociedade arguida, apenas desempenhava tarefas secundárias como a limpeza do estabelecimento, não tomando qualquer decisão que vinculasse a sociedade arguida nem dava quaisquer instruções aos funcionários (…) razão pela qual cremos que a decisão de absolvição quanto à arguida BB é correta, embora por fundamentos bem diferentes dos utilizados pelo tribunal a quo.». DA SENTENÇA RECORRIDA Da sentença recorrida consta a seguinte resposta à matéria de facto (provada e não provada): «1. FACTOS PROVADOS: 1.1. FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO 1. A arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., desenvolve, além do mais, a atividade de comércio a retalho de peixe, crustáceos e moluscos, em estabelecimentos especializados comércio por grosso de peixe, crustáceos e moluscos, atividade de pesca, aquacultura, exploração de viveiros, produção e venda de gelo, indústria transformadora da pesca e da aquacultura, preparação e congelação de produtos da pesca e aquacultura, secagem e salga de produtos da pesca e aquacultura, armazenagem frigorífica, importação e exportação de peixe, crustáceos e moluscos. 2. Em ... de 2022, o arguido AA e a arguida BB eram os únicos sócios gerentes da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda. e, nessa medida, responsáveis por toda atividade desenvolvida pela mesma. 3. No desenvolvimento de tal atividade, no dia .../.../2022, pelas 11h, no horário de abertura ao público, nas instalações da ... da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sitas na ..., o arguido AA e a arguida BB, agindo em nome e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., tinham em exposição, num mostruário para venda ao público, 6 (seis) produtos com a denominação nos respectivos rótulos: “espetada de cherne”, “cherne em cubos” e “cherne em posta”, cuja espécie que constava das rotulagens era “hyperoglyphe antarctica”. 4. A denominação “cherne” corresponde às espécies: “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”. 5. Assim, a espécie “hyperoglyphe antarctica” não pode ser denominada como “cherne”, atenta a natureza diferente entre a espécie hyperoglyphe antarctica” e as espécies “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”. 6. Os produtos identificados em 3, não continham “cherne” na sua composição, mas sim “hyperoglyphe antarctica”, não obstante exibissem a denominação “cherne” nos respetivos rótulos. 1.2. FACTOS RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES ECONÓMICAS, PESSOAIS, SOCIAIS E PROFISSIONAIS DOS ARGUIDOS 7. O arguido AA é casado com a arguida BB. 8. Tem a empresa co-arguida e a empresa Peixaria .... 9. Vive com a co-arguida, em casa própria pagando empréstimo bancário de 540,00 €. 10. Recebe da ..., a título de salário, 1.540,00 €. 11. Tem o 4.º ano de escolaridade. 12. A arguida BB recebe da empresa co-arguida o salário mínimo regional. 13. Tem o 4.º ano de escolaridade. 14. A arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., tem volume de negócios brutos mensais entre € 70.000,00 e 80.000,00. 15. Apresenta como despesas de água entre 400,00 € e 500,00 €, de luz entre 4.000,00 € e 5.000,00. 16. Tem 2 sócios como funcionários, os quais auferem 400,00 €, mensais, e 6 empregados, 2 deles recebendo, mensalmente, o salário mínimo regional, e os demais recebendo € 800,00, mensais. 1.3. ANTECEDENTES CRIMINAIS 17. Os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais. * 2. FACTOS NÃO PROVADOS: a) O arguido AA e a arguida BB atuaram, em representação e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., bem sabendo que colocavam à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quiseram e conseguiram. b) O arguido AA e a arguida BB sabiam que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quiseram e conseguiram. c) O arguido AA e a arguida BB, como representantes da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sabiam de que não podiam expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quiseram e conseguiram. d) O arguido AA e a arguida BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.» FUNDAMENTAÇÃO - do erro notório na apreciação da prova, (art.º 410.º/2, al. c) do Código de Processo Penal) Recorre o Ministério Público invocando um erro notório na apreciação da prova, porquanto não poderia o Tribunal a quo concluir que os Arguidos, nomeadamente o AA que era quem, de facto, geria a Arguida sociedade, não sabia que estava a classificar erradamente a espécie de peixe que embalou para venda, e que, ao fazê-lo, enganava os potenciais consumidores. Antes de avançarmos, vejamos qual a fundamentação da sentença no que toca à explicação da decisão sobre a matéria de facto. Escreveu o Tribunal recorrido: «A convicção do Tribunal adveio da ponderação crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento. Assim: Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 1 a 6, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações do arguido AA, não infirmadas, e corroboradas pelo teor da certidão da conservatória do registo comercial de fls. 55-65, bem como pelo teor dos autos de aprensão de fls. 8-9, fotogramas de fls. 43 e pelo teor do depoimento de DD, EE, inspectores da IRAE, e FF, inspectores das pescas, que procederam à inspecção em causa e a descreveram nos mesmos moldes que o arguido. Quanto à condição pessoal, social, económica e profissional dos arguidos constante dos n.ºs 7 a 16, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações conjugadas dos arguidos, as quais não se mostraram contrariado por qualquer elemento existente nos autos, nem por qualquer regra da normalidade ou experiência comum. Quanto à ausência de antecedentes criminais dos Arguidos (cfr. o facto 17, dado como provado), a convicção do Tribunal filiou-se nos certificados do registo criminal, juntos a fls. 190-192. Quanto aos factos dados como não provados constantes das alíneas a) a d), a falta de convicção do tribunal fundou-se, apesar das declarações produzidas pelo AA, confessando a materialidade dos factos, na ausência de prova relativamente ao dolo, em qualquer das suas modalidades, da infracção em causa. Assim é que, da troca de etiquetagem em causa, devidamente confessada, não resulta, sem mais, que a mesma seria para enganar a clientela e potenciar vendas. Tal circunstâncialismo foi negado pelo arguido e não brota de qualquer outro elemento dos autos ou de qualquer regra da normalidade ou experiência comum. É certo que a troca em causa poderia ser para enganar o consumidor final. Mas não é menos certo que poderá, como verbalizou o arguido, tratar-se de um mero lapso de etiquetagem, normal em quem tem diariamente vários produtos para etiquetar e mais a mais quando estava em causa produto de aspecto semelhante. Mais, no caso dos autos, as regras da experiência até apontam para o mero erro ou lapso de etiquetagem não intencional, porquanto foi mantido o nome ciêntifico do peixe que estava a ser vendido e o preço deste, o que permitiria ao normal consumidor, dada a desproporção de valores entre o valor de venda de ambos os peixes, logo detectar ser impossível a venda de Cherne àquele valor, tanto mais que não estava a ser anunciada uma qualquer promoção e que, como reportaram os inspectores ouvidos, está em causa uma empresa que opera no mercado há muitos anos, com inúmeras inspecções, e nunca tal havia ocorrido. Não colhe, aqui, pois, a ideia de que a intenção era potenciar as vendas vendendo um peixe mais conhecido. Conhecimento e vontade de enganar induzir-se-ia se o preço oferecido fosse o do Cherne ou semelhante, não um valor muito mais baixo que permitia facilmente detectar o erro ocorrido. Por outro lado, da prova produzida, não resulta como, em concreto, ocorreu o lapso na etiquetagem em causa, desconhecendo-se, consequentemente, se o mesmo é resultante de qualquer violação de um dever de cuidado (tratando-se, ao contrário, muito provavelmente, de um lapso meramente informático na inserção dos dados, que pode inclusive ter sido originado por problema do sistema e não de acção humana), que indicasse uma actuação negligente nos termos do art.º 15.º, al. b), do CP (manifesto que é, nos termos sobreditos, a não representação da realização do facto pelos arguidos). Mais, ainda que se conhecesse a origem do erro existente, a insignificância do mesmo, no contexto da rotulagem e a facilidade da existência de uma mera troca involuntária, configuraria, nos termos sobreditos um mero lapso na actuação dos arguidos [e não detectável pelo normal cidadão, nem sendo exigível que este o detectasse, ainda que se trate de cidadão com a experiência da área de actuação dos arguidos (tamanha é o volume de rotulagem que lhes é exigido)] e não uma violação de um dever de cuidado, característica fundamental dos crimes negligentes. ». Vejamos, então. Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias. Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso. Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. Neste caso, o recurso não corresponde a um segundo julgamento para produzir uma nova resposta sobre a matéria de facto, com audição das gravações do julgamento da primeira instância e reavaliação da prova pré-constituída, mas sim um mero remédio correctivo para ultrapassar eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida. Tais erros emergirão como resultado de uma deficiente apreciação da prova e terão sempre de corresponder aos concretos pontos de facto identificados no recurso. No caso que nos ocupa, estamos perante a chamada impugnação restrita da matéria de facto, invocados que foram os vícios apontados pelo Ministério Público, ou seja, o erro notório na apreciação da prova. Segundo o Ministério Público o caminho seguido pelo Tribunal na sentença para sustentar a decisão de facto, não é compreensível ao homem com uma cultura média e desafia as regras do normal acontecer e da experiência comum, em especial, no que diz respeito à análise que foi feita elemento subjetivo do crime imputado aos arguidos. Assim, ao dar como não provados os factos a), b), c) e d) da sentença incorreu o Tribunal recorrido num erro notório na apreciação da prova, violando as regras da experiência operando uma apreciação incorrecta, baseada em juízos ilógicos e contraditórios. Está em causa a apreciação dos factos correspondentes ao elemento subjectivo. Fora os casos de confissão, a motivação do agente, o alcance do seu conhecimento dos factos e a intenção que animou a sua conduta exteriorizada e provada, apenas poderá ser alcançada mediante a avaliação da prova indirecta. Com efeito, «Sabido é que o tribunal a quo pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou, pois, esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico. A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade. A eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos, a saber: a prova dos indícios; concorrência de uma pluralidade de indícios; raciocínio dedutivo entre os indícios provados e os factos que deles se inferem, devendo existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional. Se o tribunal recorre à prova indiciária, tem de dar a conhecer o seu raciocínio dedutivo e, sendo este omitido, impede a instância de recurso de sindicar se efectuou (ou não) uma apreciação objectiva da prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 24/09/2019, Desembargador Artur Vargues, ECLI:PT:TRL:2019:294.17.2JGLSB.L1.5.7B] – (negrito nosso). Como este mesmo Desembargador acrescenta, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/09/2023, [ECLI:PT:TRE:2023:147.21.0PCSTB.E1.1E], «De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo. E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal –assim também o Acórdão deste mesmo Tribunal nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser lido no respectivo sítio. A prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, da lógica, do raciocínio indutivo e inferência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova.» No mesmo sentido encontramos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2006, Conselheiro Santos Carvalho, [ECLI:PT:STJ:2006:06P4096.3A] «As normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo. Essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.º, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão.» Ou seja, não há que temer a prova indirecta. Existem regras para a sua utilização e não produz decisões arbitrárias ou incoerentes. Tem um substracto objectivo e é fruto de um processo indicável. «A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.» - ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 16/11/2010, Desembargadora Alda Tomé Casimiro ECLI:PT:TRL:2010:3607.05.6TASNT.L1.5.D3. No caso concreto, o Tribunal não teve dúvidas nem dificuldades na prova dos factos objectivos. Resulta claro que a sociedade Arguida, gerida pelos dois co-Arguidos, tinha em exposição, num mostruário para venda ao público, seis produtos embalados com a denominação nos respectivos rótulos: “espetada de cherne”, “cherne em cubos” e “cherne em posta”. Contudo, os rótulos dessas embalagens identificavam o peixe como sendo “hyperoglyphe antarctica”, espécie esta que não é cherne. Cherne corresponde às espécies “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”. Tais embalagens não tinham, como tal, cherne na sua composição havendo uma clara desconformidade entre os termos da rotulagem e o produto apresentado para venda. Olhando para a fundamentação da decisão de facto, indica o Tribunal a quo o teor dos autos de apreensão de fls. 8-9 para prova dos factos. Dessa peça processual resulta apenas a materialidade da apreensão, a descrição das embalagens e sua rotulagem. Foi já com base nas declarações do Arguido e das testemunhas que deu o Tribunal como provada a natureza do peixe embalado. Voltamos, então, à questão da prova do elemento subjectivo. Escreve-se na sentença que da divergência entre a etiqueta e o conteúdo não resulta a intenção de enganar os clientes, podendo ser, apenas, um erro material, involuntário. E, recorrendo às regras da experiência comum, conclui que as mesmas apontam para o mero erro ou lapso de etiquetagem não intencional. Sustentando tal interpretação, apontou-se que foi mantido o nome científico do peixe que estava a ser vendido e o preço deste, o que permitiria ao normal consumidor perceber a real natureza do peixe, dada a desproporção de valores entre o valor de venda de ambos os peixes. É aqui que a avaliação da prova merece reparo. Como se registou nos factos, em causa estão as espécies “hyperoglyphe antarctica”, “polyprion americanus” e “polyprion oxigeneios”. Seguramente que será mínima a quantidade de consumidores que, olhando para estes nomes, conseguirá distinguir cherne de pampo. O consumidor reconhece os peixes pelas suas denominações comuns ou comerciais. Sardinha, carapau, pescada, salmão, cherne, pampo, robalo, dourada, solha, pregado, linguado, corvina, tamboril…. Praticamente ninguém saberá o nome científico de um destes peixes. Estes são os nomes que espera ver na banca da peixaria, na embalagem do congelado, na ementa do restaurante. Não há, por isso, forma de, com recurso às regras da experiência comum, concluir que as etiqueta em causa permitiriam ao consumidor perceber que o que se vendia naquelas embalagens era pampo e não cherne. Mas mais. Também o recurso às regras da experiência comum permitem concluir que o consumidor reconhece no cherne um peixe mais nobre que o pampo. E o preço difere reflectindo isso mesmo, pelo que vender pampo por cherne corresponde ao adágio popular do vender “gato por lebre”. Não se compreende, pois, a conclusão do Tribunal a quo de que as regras da experiência comum aplicadas aos factos objectivos vão no sentido de que «Não colhe, aqui, pois, a ideia de que a intenção era potenciar as vendas vendendo um peixe mais conhecido.». Quando um consumidor pegasse na embalagem de “cherne” e o visse àquele preço, habituado a tabela distinta e muito mais cara, ficaria agradavelmente surpreendido e compraria mais, por menos, convicto de que levava consigo o peixe reconhecido. Ou seja, as regras da experiência comum permitem concluir exactamente o contrário daquilo que o Tribunal a quo alcançou, revelando-se, pois, um erro notório na apreciação da prova. Ademais, não logrou a fundamentação do Tribunal a quo encontrar outra explicação para os factos, o que leva a entender que, afastando aquela que se mostra a mais consentânea com as regras da experiência comum, a decisão recorrida restou-se num vazio com o qual afastou quer o dolo quer uma explicação negligente. Ora, com base na explicação acima enunciada, que encontra respaldo na documentação junta ao processo e constitui prova pré-constituída (i.e. a factura de ........2022, relativa ao pampo comprado pela sociedade Arguida na véspera da intervenção inspectiva que detectou os factos e deu azo ao auto de notícia) encontra-se o Tribunal da Relação de Lisboa habilitado a, reconhecendo o erro notório na apreciação da prova, repará-lo alterando a decisão de facto em conformidade. Apenas uma última ressalva. Como acima apontámos, o Ministério Público não questiona a absolvição da BB, mas tão-só os seus fundamentos, porquanto entende estar demonstrado que apesar do papel de direito que assume na sociedade Arguida, de facto nada fez que correspondesse à tomada de decisões sobre a actividade comercial prosseguida. Ora, sem necessidade de conferir a prova para confirmar tal entendimento, impõe-se excluir a BB dos factos que agora entendemos serem de passar para o elenco dos “factos provados”, porquanto tal corresponderia a ultrapassar o objecto do processo e mesmo a uma verdadeira reformatio in pejus da Arguida. Assim, e perante tudo o exposto, conclui-se que passarão a ser provados os seguintes factos: «6.a) - O arguido AA actuou, em representação e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., bem sabendo que colocava à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quis e conseguiu. 6.b) O arguido AA sabia que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quis e conseguiu. 6.c) O arguido AA, como representante da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sabia de que não podia expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quis e conseguiu. 6.d) O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.» Mantendo-se como não provados os factos: «a) A arguida BB actuou, em representação e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., bem sabendo que colocava à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quis e conseguiu. b) A arguida BB sabia que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quis e conseguiu. c) A arguida BB, como representante da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sabia de que não podia expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quis e conseguiu. d) A arguida BB agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.» - da alteração não substancial da acusação, (art.º 358º do Código Processo Penal) Segundo o Recorrente, deveria o Tribunal a quo, depois de aos arguidos ter sido dada a possibilidade de defesa, nos termos do art.º 358.º do Código de Processo Penal, ter aditado ao elenco dos factos provados o seguinte: “Nas circunstancias de tempo e lugar referidos no ponto 3 dos factos provados, o arguido AA em seu nome e em representação da sociedade arguida conservava nas traseiras do seu estabelecimento, pelo menos, várias outras dezenas de embalagens, resultantes do embalamento e rotulagem de cerca de 105, 08 quilos de peixe da espécie “Pampo”, de idêntico teor às 6 embalagens descritas no referido ponto 3 dos factos provados.”; e ainda “O pampo da antártica não é um peixe dos mares dos açores, não é conhecido da generalidade dos açorianos e não se vê à venda em lota ou nas superfícies comerciais açorianas”. Nos termos do art.º 358.º do Código de Processo Penal, a alteração de factos pela sua adição, deverá ocorrer sempre que se afigurar ter a mesma relevo para a decisão da causa. Desde que não estejamos perante uma alteração substancial de factos (tal como definida no art.º 1.º/1 al. f) do Código de Processo Penal) a qual merece outro tratamento, deverá o Tribunal ponderar da utilidade desses factos, do seu relevo, para a decisão da causa. Lidas as motivações do Ministério Público, conclui-se que o relevo atribuído aos dois factos cuja adição é pretendida, prende-se com a capacidade dos mesmos sustentarem a conclusão quanto à motivação dos Arguidos. Ora, como vimos no primeiro momento desta decisão, tal não é determinante, e pode ser encontrada a fundamentação, por prova indirecta, sem necessidade desse aditamento. Assim, o relevo pretendido não é para a decisão da causa, mas apenas para a fundamentação da decisão de facto e essa basta-se no elencar das razões do Tribunal para o seu julgamento sem necessidade de acrescentar mais factos ao rol de factos provados. Diferente seria se fossem necessários para a apreciação da qualificação jurídica da acção, ou para a determinação da medida da pena. Não é o caso. Pelo exposto, não merece provimento esta parte do recurso. - da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º/2, al. b) do Código de Processo Penal); - do erro da aplicação da matéria de direito, (art.º 412.º/2, al.a) do Código de Processo Penal) Questiona o Recorrente a absolvição dos arguidos pelo não preenchimento do tipo objetivo, quando considerou provados factos que bastariam para o seu preenchimento. Como tal, reconhece que a fundamentação é manifestamente contraditória com os factos provados e consequentemente com a decisão. Esta questão não pode ser vista em separado da outra invocada pelo recorrente e que se reporta ao erro na aplicação do art.º correspondente ao crime imputado. Vejamos, pois, ambas em conjunto. Os arguidos AA e BB vêm acusados da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro ex vi artigo 35.º n.º 1 do Regulamento (UE) 1379/2013, de 11 de Dezembro, e anexo I da Portaria n.º 587/2006, de 22 de Junho. A arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., vem acusada a prática do mesmo crime, nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 1 do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro. Diz-nos tal art.º 23.º: «1 - Quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, fabricar, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias: a) Contrafeitas ou mercadorias piratas, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas; b) De natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem, será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine para mais grave. 2 - Havendo negligência, a pena será de prisão até 6 meses ou multa até 50 dias. (…)». O art.º 35.º n.º 1 do Regulamento (UE) 1379/2013, de 11 de Dezembro estabelece o conteúdo da informação obrigatória que tem que constar das embalagens de produtos de pesca, constando logo à cabeça a denominação comercial da espécie e o seu nome científico. Por sua vez, a Portaria n.º 587/2006, de 22 de Junho fixa a lista das denominações comerciais autorizadas em Portugal relativamente à comercialização dos produtos da pesca e da aquicultura. Tendo em consideração os factos provados, resulta claro que a Arguida sociedade tinha expostas para venda embalagens com pampo cuja etiquetagem anunciava a denominação comercial desse peixe como sendo cherne. O preço correspondia ao valor comercial do primeiro, consabidamente inferior ao valor comercial corrente do segundo. A colocação de tais produtos ocorreu sob a gestão do AA, agindo este por si e em representação da Arguida sociedade. Mais se provou o conhecimento e a intenção de tal prática a qual propicia o engano do consumidor, em benefício do vendedor que assim logra escoar produto mais barato, e menos nobre, atraindo o comprador com o anúncio de produto mais apelativo, a baixo preço (só possível por ser outra a mercadoria). Sem dúvida que esta acção se traduz na conduta da previsão do tipo legal imputado. Consequentemente, quer o AA, quer a AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda. (esta por força do disposto no art.º 3.º/1 do mesmo diploma), praticaram o crime pelo qual vêm acusadas. E assim se conclui, como pretendia o Recorrente, que o Tribunal recorrido não aplicou corretamente a norma do art.º 23.º/1, al. b) do DL n.º 28/84 de 20.01. - da pena Aqui chegados, e concluindo diversamente ao resultado da sentença recorrida, impõe-se a determinação da medida concreta da pena aplicável a ambos os Arguidos. Dada a natureza distinta das pessoas em causa, há regras diferentes para seguir. Como vimos supra, quem pratica o crime de fraude sobre mercadorias será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias Na determinação da medida da pena há que atender ao critério estabelecido no art.º 71.º do Código Penal, segundo o qual «1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.» No caso do crime em apreço, teremos ainda que ter em conta as circunstâncias descritas no art.º 6.º do DL n.º 28/84 de 20.01.1 Como nenhuma das alíneas se verifica, não há obstáculo à substituição da pena de prisão por multa, nos termos do art.º 5.º do mesmo diploma. Sendo o diploma incriminador anterior à reforma penal de 1995, contém na sua estatuição a chamada punição com uma pena compósita de prisão e multa. Como tal, no caso concreto, não há espaço à aplicação do art.º 70.º do Código Penal, dando preferência à punição com pena não privativa da liberdade. Agora, para proceder à determinação do quantum concreto dessa punição, em primeiro lugar, há que atender à culpa. Sendo o juízo de culpa uma ponderação valorativa do processo de formação da vontade do arguido, tendo como critério aquilo que uma pessoa (enquanto homem médio com características pessoais similares à condição do agente) colocada na posição daquele faria perante a mesma situação, não poderemos deixar de a considerar elevada no caso que nos ocupa. No fundo, o juízo de culpa releva, necessariamente, da intuição do julgador, sendo este assessorado pelas regras da experiência que lhe permitem proceder à valoração nos termos descritos. E no caso vertente, o arguido deliberadamente violou normas que punem actos de conhecida gravidade, socialmente perniciosos. Encontrado o vector que limita o máximo concreto da pena aplicável, será ainda de ponderar: o grau de ilicitude dos factos e suas repercussões que no caso é muito baixo. A forma de execução não é elaborada, ardilosa, não se provou um propósito especulativo nem proveitos económicos substanciais, e falamos de apenas seis embalagens colocada à venda. Será ainda de ponderar a intensidade do dolo, directo; as condições pessoais de cada arguido, nomeadamente a sua inserção social e familiar e situação económica no caso do AA; a conduta anterior e posterior ao facto, sem registo de condenações – cfr. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2006, Relator Juiz Conselheiro Santos Carvalho [ECLI:PT:STJ:2006:06P2681.A0] - «I - Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto… alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada…” (Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra Editora, p. 570). II - “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” (mesma obra, pág. seguinte). III - A prevenção especial, por seu lado, é encarada como a necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes. IV - “Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassáve1 de todas e quaisquer considerações preventivas…” (ainda a mesma obra, p. 575). “Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado” (p. 558).». Entramos aqui nas chamadas razões de prevenção especial, aquelas dirigidas ao infractor, e as razões de prevenção geral, dirigidas à comunidade. As primeiras traduzem-se em duas vertentes, caracterizadas como positiva e negativa. A positiva respeitando às expectativas de ressocialização do condenado, e a negativa resultando da necessidade de prevenção da reincidência. As segundas traduzem a necessidade de apaziguamento da comunidade em geral, eliminando sentimentos de impunidade, e reforçando a mensagem de que existem consequências para a prática de condutas que são criminosas e, desta forma, assegurando ao cidadão comum que o Estado e as suas leis estão activamente a promover a segurança e a paz social. No caso concreto, a prevenção geral mostra-se alcançada com a demonstração da detecção da fraude ainda que em pequena escala. A prevenção especial será atingida com a fixação de uma pena próxima dos limites mínimos. Considerando a pequena dimensão da infracção detectada e ausência de antecedentes, também não se vislumbra necessidade de fixar qualquer das penas acessórias previstas no DL n.º 28/84 de 20.01. da pena do AA, Assim, tudo ponderado, quanto ao Arguido AA julga-se adequada e suficiente a pena de um mês de prisão e trinta dias de multa, sendo esta firmada pelo quantitativo mínimo diário de €5,00. Note-se que tal valor decorre da conversão operada quando se deu a extinção da moeda nacional escudo sendo substituída pelo actual euro. Nos termos do art.º 45.º/1 do Código Penal, a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É esse o caso que nos ocupa, uma vez que não se vislumbra que as necessidades de prevenção geral imponham a pena de prisão. Como tal, impõe-se a substituição do mês de prisão por trinta dias de multa, sendo o valor diário fixado na mesma taxa de €5,00. Estando o Arguido condenado a duas penas de multa, exige-se a fixação de uma pena única, neste caso um cúmulo material uma vez que, estando em causa uma única infracção, não são aplicáveis as regras do concurso de crimes e do cúmulo jurídico de penas. Como tal, vai o Arguido condenado na pena única de 60 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz a multa global de €300,00. da pena da Arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., Na fixação da pena à Arguida sociedade há que ter em conta o dispoto no art.º 7.º do DL n.º 28/84 de 20.01. Assim, as penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas são: «1 - Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas as seguintes penas principais: a) Admoestação; b) Multa; c) Dissolução. 2 - Aplicar-se-á a pena de admoestação sempre que, nos termos gerais, tal pena possa ser aplicada à pessoa singular que, em representação e no interesse da pessoa colectiva ou equiparada, tiver praticado o facto. 3 - Quando aplicar a pena de admoestação o tribunal poderá, cumulativamente, aplicar a pena acessória de caução de boa conduta. 4 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1.000$00 e 100.000$00, que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa colectiva ou equiparada e dos seus encargos. 5 - Se a multa for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responderá por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados. 6 - A pena de dissolução só será decretada quando os fundadores da pessoa colectiva ou sociedade tenham tido a intenção, exclusiva ou predominante, de, por meio dela, praticar crimes previstos no presente diploma ou quando a prática reiterada de tais crimes mostre que a pessoa colectiva ou sociedade está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos seus membros, quer por quem exerça a respectiva administração.» Inexistem razões para distinguir entre os dois Arguidos. A sociedade, que apenas poderá ser punida com pena de multa, pois no seu caso não concorre a fixação de uma pena de prisão, deverá ser sujeita aos mesmos trinta dias, pelo valor o mínimo que, in casu, será igualmente de €5,00. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar procedente o recurso e, consequentemente, decidir: 1 – Declarar parcialmente nula a sentença por erro notório na apreciação da prova; 2 – Substituir a sentença por outra na qual passarão a ser provados os seguintes factos: «6.a) - O arguido AA actuou, em representação e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., bem sabendo que colocava à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quis e conseguiu. 6.b) O arguido AA sabia que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quis e conseguiu. 6.c) O arguido AA, como representante da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sabia de que não podia expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quis e conseguiu. 6.d) O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.» Mantendo-se como não provados os factos: «a) A arguida BB actuou, em representação e no interesse da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., bem sabendo que colocava à venda 6 (seis) produtos da espécie “hyperoglyphe antarctica”, como se tratassem de “cherne”, sabendo ainda que estes produtos tinham natureza e composição diferente da espécie “cherne”, sendo que para o efeito, aproveitando-se da natureza do próprio produto em causa, em estado congelado e embalado e ainda de no rótulo elaborado constar a denominação “cherne”, acreditando qualquer homem médio que o ingrediente principal era “cherne”, o que quis e conseguiu. b) A arguida BB sabia que de tais condutas não só resultaria o engano dos consumidores finais, como também, poderia resultar o engano de eventuais intermediários nas transações, agindo, assim com a intenção de enganar terceiros nas relações negociais, o que quis e conseguiu. c) A arguida BB, como representante da arguida AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., sabia de que não podia expor para venda os produtos, melhor identificados no ponto 3, sem que os mesmos estivessem rotulados e identificados com as respetivas reais designações comerciais e que ao expor e vender tal mercadoria como se de “cherne” se tratasse, atuava de modo a provocar engano nas relações comerciais, o que quis e conseguiu. d) A arguida BB agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente.» 3 – Condenar os arguidos AA e AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda., pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punido pelo artigo 23.º n.º 1 b) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro ex vi artigo 35.º n.º 1 do Regulamento (UE) 1379/2013, de 11 de Dezembro, e anexo I da Portaria n.º 587/2006, de 22 de Junho, com referência ao art.º 3.º/1 do mesmo Decreto-Lei para a Arguida sociedade, nas penas: - O AA: a. Em 1 (um) mês de prisão e 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros); b. Substituir a pena de prisão por 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros); c. Pelo que vai o Arguido condenado na pena única de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa global de €300,00 (trezentos euros). - A AA & Filhos, Armazém de Frio, Lda.: d. a) Em 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa global de €150,00 (cento e cinquenta euros). 4 - Mantendo-se inalterado o demais decidido. Sem custas. Lisboa, 18.Fevereiro.2025 Rui Coelho Sandra Oliveira Pinto Carlos Espírito Santo _______________________________________________________ 1. Artigo 6.º (Determinação da medida da pena) Na determinação da medida da pena atender-se-á especialmente às seguintes circunstâncias: a) Ter sido praticada a infracção quando se verifique uma situação de falta ou insuficiência de bens ou serviços para o abastecimento do mercado, incluindo o regime de racionamento, desde que o seu objecto tenha sido algum desses bens ou serviços; b) Ter sido cometida a infracção no exercício das suas funções ou aproveitando-se desse exercício, por funcionário do Estado ou de qualquer pessoa colectiva pública, ou por gestor, titular dos órgãos de fiscalização ou trabalhador de empresa do sector público ou de empresas em que o Estado tenha uma posição dominante, incluindo empresas públicas, nacionalizadas, de economia mista, com capital maioritário do Estado, concessionários ou dotadas de exclusivo, ou com administração nomeada pelo Estado; c) Ter a infracção provocado alteração anormal dos preços no mercado; d) Ter existido conluio, coligação ou aproveitamento desse tipo de associação voluntária para a prática da infracção; e) Ter o agente poder económico relevante no mercado, determinado, nomeadamente, através de algum dos seguintes índices: tributação pelo grupo A da contribuição industrial, existência ao seu serviço de mais de 400 trabalhadores, ou 600 se o trabalho for por turnos, e posição dominante no mercado do bem ou serviço objecto da infracção; f) Ter o agente aproveitado o estado de premente carência do adquirente, consumidor ou vendedor, com conhecimento desse estado; g) Ter a infracção permitido alcançar lucros excessivos ou ter sido praticada com a intenção de os obter; h) Representar o bem ou serviço, objecto da infracção, parte dominante do volume da facturação bruta total da empresa no ano anterior; i) Ter o infractor favorecido interesses estrangeiros em detrimento da economia nacional. |