Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18945/24.0T8SNT-F.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
TERCEIROS GARANTES
AVAL
RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário[1]
A previsão do art. 217º, n.º 4, do CIRE aplica-se à modificação dos prazos de cumprimento, à concessão de moratórias de pagamento e à introdução de dilações temporais quanto à exigibilidade de pagamento aos avalistas sendo esta a interpretação que melhor se harmoniza com o espírito da norma.

[1] Da responsabilidade da relatora – art. 663º nº7 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da secção de comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Trust In News, Unipessoal, Lda foi declarada insolvente por sentença de 04/12/2024, transitada em julgado.
Em 29/01/2025 foi realizada assembleia de apreciação do relatório, na qual foi deliberado o prosseguimento da atividade do estabelecimento da devedora e a suspensão da liquidação da massa insolvente mediante a aprovação de um plano de insolvência a apresentar pela devedora em 30 dias.
Em 28/02/2025 a devedora apresentou Plano de Insolvência, requerendo a realização de assembleia de credores para discussão e votação do mesmo.
Por despacho de 06/03/2025 foi admitido o plano apresentado pela devedora.
Cumprido o disposto no art. 208º do CIRE, pronunciaram-se a Comissão de Credores e o administrador da insolvência.
Foi designado dia para a realização de assembleia de credores para discutir e votar a proposta de plano de insolvência apresentada pela devedora.
A devedora apresentou versão final do plano em 02/05/2025.
Realizou-se, em 06/05/2025, assembleia de credores para discussão e votação de plano de insolvência, no decurso da qual foram introduzidas alterações ao plano proposto, nos termos do art. 210º do CIRE.
Foi concedido prazo para votação por escrito a credores que o requereram e, decorrido o mesmo, por despacho de 26/05/2025, foi declarado aprovada a proposta de plano e determinada a respetiva publicação.
Em 18/07/2025 foi proferida a seguinte sentença:
“Nestes termos, decido não homologar o plano de insolvência apresentado pela TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL, LDA. e, por conseguinte:
• Ponho termo à administração da massa insolvente pela devedora, assumida desde 09/06/2025 como resulta do requerimento junto aos autos em 04/06/2025, nos termos previstos no art.º 228.º, n.º 1, al. e), do CIRE;
• Declaro cessada a suspensão da liquidação determinada pela assembleia de credores realizada em 29/01/2025, nos termos previstos no art.º 156.º, n.º 4, al. b), do CIRE;
• Determino seja comunicado oficiosamente às finanças o encerramento da atividade da devedora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 65.º, n.º 3, do CIRE; e
• Determino o prosseguimento dos autos com a imediata apreensão dos bens da devedora e respetiva liquidação, nos termos do disposto nos art.ºs 228.º, n.º 2, 149.º e 158.º, do CIRE.
Notifique.”
Inconformada apelou a insolvente, pedindo seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a homologação do Plano de Insolvência, apresentando as seguintes conclusões:
a. A Recorrente foi notificada do despacho de não homologação oficiosa do Plano de Insolvência apresentado e aprovado pela maioria dos credores, com vista à sua recuperação e reestruturação.
b. No referido despacho de não homologação, embora se tenha concluído que não foram violados quaisquer procedimentos tendentes à negociação entre os credores, nem quaisquer regras procedimentais, foi posta em causa uma das condições de pagamento vertidas no Plano de Insolvência que dita o seguinte:
Enquanto o presente Plano se encontrar em cumprimento, não poderão ser movidas quaisquer ações de cobrança de dívida ou execuções aos avalistas das operações onde a ora insolvente seja titular.
c. O Tribunal a quo entendeu que esta condição de pagamento viola o regime previsto na LULL, designadamente, o artigo 32.º, por questionar ou afrontar a validade do aval prestado pelos condevedores a favor de determinados credores.
d. Por outro lado, considerou que esta condição de pagamento violou o regime estabelecido no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE, que estabelece As providências previstas no Plano de Insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam nem a existência, nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores, ou terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.”
e. A Recorrente delimitou o objeto do presente Recurso, no sentido de aferir se, efetivamente, a condição de pagamento acima descrita viola, por um lado, o disposto no n.º 4 do artigo 217.º e o regime estabelecido na LULL, ao ponto de ser considerada uma violação não negligenciável das regras aplicáveis no Plano, como determina o artigo 215.º do CIRE.
f. O Plano de Insolvência insere-se num verdadeiro regime excecional que permite ao devedor e aos restantes credores negociar e aprovar medidas que podem, não só alterar os prazos de cumprimento das obrigações, estabelecer taxas de juro diferentes das legalmente aplicáveis, como derrogar as próprias disposições previstas no CIRE.
g. As condições de pagamento estabelecidas no Plano de Insolvência acabam por traduzir um regime verdadeiramente excecional, podendo afastar-se, inclusivamente, do regime geral, desde que cumpridas as disposições e limites estabelecidos no CIRE, como o princípio da igualdade de credores, conteúdo do plano de insolvência, e demais condições que poderão ser aí estabelecidas – ex vi artigos 192.º e seguintes do CIRE.
h. O regime estabelecido no artigo 217.º n.º 4 não difere do regime excecional no qual se encontra inserido, determinando-se que os direitos dos credores contra os condevedores não podem ser afetados pelo Plano de Insolvência na sua existência e no seu montante, nada se determinando ou delimitando quanto à possibilidade de estabelecimento de uma moratória no pagamento, ou de prorrogação do prazo para o exercício desses direitos.
i. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, acabou por fazer uma interpretação extensiva da referida norma, concluindo que a não definição de um timing, ou o protelamento para o acionamento dos direitos destes credores viola o regime acima descrito.
j. A referida interpretação, para além de ir muito além do que a norma prescreve, não se compagina com o regime excecional no qual se insere a configuração de qualquer Plano de Insolvência, na medida em que, se por um lado é o próprio regime do Plano que admite aos credores e devedor acordar na alteração do prazo do cumprimento das obrigações, ou nas condições de pagamento dos créditos, ou no eventual perdão de juros, não se vê em que medida uma alteração no prazo de pagamento dos créditos garantidos por aval possa afetar a validade substancial desta condição de pagamento.
k. Por outro lado, o Tribunal a quo deveria ter analisado e considerado o Plano de Insolvência como um conjunto de condições de pagamento relacionadas ou interligadas, sendo que, esta condição de pagamento foi estabelecida por duas ordens de razão que não podem ser omitidas: por um lado considerou que a partir do momento em que o Plano de Insolvência esteja a ser cumprido, a obrigação principal subjacente à emissão do aval estará a ser cumprida, não prejudicando estes credores.
l. Por outro lado, o Plano de Insolvência contempla uma medida financeira adicional que consiste no facto de o sócio e gerente da insolvente ter assumido a obrigação de capitalizar a insolvente e de injetar, de forma gradual e à medida das necessidades da empresa, até 1,5 milhões de euros.
m. Esta obrigação, assumida perante todos os credores, acabaria por ficar verdadeiramente prejudicada, caso os credores pudessem acionar, sem mais, os seus avales e penhorar o património do sócio e gerente, impedindo a possibilidade de capitalizar a Insolvente e acabando por prejudicar todos os restantes credores.
n. Dentro da mesma categoria de credores comuns, os credores munidos dos avales prestados acabariam por ser beneficiados face aos restantes credores comuns, por verem a possibilidade de atingir de forma imediata o património dos sócios e gerentes (que são os únicos avalistas de todas as operações), mesmo na pendência do Plano de Insolvência, e colocarem em risco a possibilidade de se capitalizar a Insolvente, impedindo os outros credores de recuperar os seus créditos.
o. Seguindo o entendimento maioritariamente defendido na nossa jurisprudência, sempre se dirá que o estabelecimento de uma moratória ou de prorrogação do prazo para pagamento dos créditos através do aval prestado pelos condevedores não coloca em causa a existência do aval – que se mantém validamente prestado e incólume nos seus efeitos jurídicos – nem determina a alteração do seu montante – que poderá ser executado pelos valores indicados no título cambiário em causa.
p. A condição de pagamento ora posta em crise nada determina, ou estabelece quanto à possibilidade de se cancelar ou anular o aval, nem impõe qualquer modificação quanto ao montante pelo qual o aval é prestado.
q. Apenas estatui, de uma forma transparente, que enquanto o Plano de Insolvência estiver a ser cumprido nas condições acordadas e aprovadas pela maioria dos credores, ou seja, enquanto a obrigação principal estiver a ser cumprida, os credores ficam impedidos de acionar os condevedores, no caso os sócios e gerentes da Insolvente, para que lhes seja conferida a possibilidade de injetar recursos financeiros na Insolvente e, também desta forma, cumprir a condição igualmente estabelecida no Plano de Insolvente.
r. O aval prestado, nos termos configurados na LULL, mantém-se na exata medida em que foi prestado, assim como, a sua existência e o valor pelo qual pode ser acionado e executado, não se contrariando o regime do n.º 4 do artigo 217.º do CIRE.
s. O estabelecimento de uma moratória no pagamento dos créditos por acionamento dos avales não constitui uma medida excessiva, nem violadora de qualquer regime imperativo, não se traduzindo, por isso, numa violação não negligenciável do regime aplicado no Plano de Insolvência, nos termos do artigo 215.º do CIRE.
t. Deve, por tudo quanto ora se expõe, ser a decisão proferida pelo Tribunal a quo revogada, e, consequentemente, substituída pelo despacho que determine a homologação do Plano de Insolvência, com todas as legais e inerentes consequências.
Qdf – Sic Imobiliária Fechada, S.A. respondeu ao recurso, pedindo seja o recurso julgado improcedente.
Não foram apresentadas outras contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 01/09/2025 (ref.ª 159204631).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a decidir é de se o plano de insolvência aprovado pode ser homologado, o que passa pela análise da existência de violação não negligenciável de norma imperativa aplicável ao seu conteúdo.
*
3. Fundamentação de facto:
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório, bem como o teor do Plano aprovado e não homologado, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
4. Fundamentação de direito
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE, veio prever uma tramitação unitária para o processo de insolvência, “com uma tramitação supletiva baseada na liquidação do património do devedor e a atribuição aos credores da possibilidade de aprovarem um plano que se afaste deste regime, quer provendo à realização da liquidação em moldes distintos, quer reestruturando a empresa, mantendo-a ou não na titularidade do devedor insolvente.”[1]
Foram três os objetivos anunciados desta profunda alteração: a eliminação da duplicação de formas de processo especiais, a eliminação da fase preambular que acarretava demoras excessivas e o uso do processo de recuperação como expediente para atrasar a declaração de falência[2].
Para este efeito, previu-se a possibilidade de apresentação de proposta de plano de insolvência pelo devedor, mas não só, também ao administrador da insolvência, aos responsáveis legais pelas dívidas da insolvência e aos credores em determinadas condições – cfr. art. 193º nº1 do CIRE.
O plano pode ter por conteúdo a recuperação ou a liquidação, podendo regular, nos termos do nº1 do art. 192º do CIRE, “O pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência” em derrogação das normas do CIRE.
No caso concreto, foi apresentado pela devedora um Plano de Insolvência tendo por conteúdo a recuperação, prevendo a continuidade da exploração da empresa, o qual foi admitido, discutido e aprovado pelos credores reunidos para o efeito em assembleia de credores.
O Plano não foi homologado, tendo o tribunal entendido verificar-se violação não negligenciável de preceito imperativo aplicável ao conteúdo do plano, para os efeitos previstos no art. 215º do CIRE.
Sinteticamente foi fundamentado que a cláusula que prevê a impossibilidade de propositura de ações ou execuções aos avalistas das operações em que a insolvente seja titular, no seio de um plano que prevê o pagamento dos créditos sobre a insolvência no espaço de 10 a 15 anos, viola o regime jurídico das garantias pessoais (avais) composto por normas de natureza imperativa consagradas na Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças, nomeadamente nos artigos 30.º, 32.º, 47.º e 77.º, bem como o disposto no art. 217º nº4 do CIRE.
A devedora recorre argumentando, também em síntese:
- o plano de insolvência rege-se por um regime verdadeiramente excecional que permite configurar condições de pagamento ou condições financeiras que se afastam do que foi inicialmente contratado, ou mesmo de determinadas disposições legais previstas no CIRE, desde que cumpridos os limites nele estabelecidos, como o princípio da igualdade entre credores, ou como os princípios formais e de conteúdo que o Plano de Insolvência deve respeitar;
- o regime do art. 217º nº4 do CIRE foi interpretado extensivamente pelo tribunal, ali apenas se proibindo sejam definidas condições ou cláusulas no Plano de Insolvência que reneguem a existência do aval, ou que simplesmente determinem a alteração do montante da obrigação cartular, assumida no título cambiário que titula a divida existente, nada se estatuindo quanto ao tempo de pagamento ou constituição de moratórias;
- num plano de insolvência o foco está na recuperação da empresa e permitir, em paralelo que o credores acionem as garantias prestadas por aval iria sufocar os codevedores, pondo em risco a recuperação da empresa;
- no caso concreto, desde que o plano esteja a ser cumprido estão a ser cumpridas as condições aprovadas para o pagamento do crédito, obrigação principal; por outro lado o sócio e gerente da insolvente assumiu a obrigação de a capitalizar gradualmente, à medida das necessidades da empresa, até 1,5 milhões de euros;
- seria irrealista o plano exigir a capitalização da insolvente e os credores poderem, em paralelo acionar o sócio gerente para pagamento dos seus créditos, impossibilitando-o de cumprir esta obrigação;
- a permissão de acionamento dos avales beneficiaria os credores com avais face aos demais, criando desigualdade de tratamento entre credores da mesma categoria;
- a cláusula apenas estabelece uma prorrogação do prazo para eventual execução, que foi configurada para permitir ao sócio gerente injetar o valor previsto no plano e alcançar a reestruturação.
Apreciando:
A questão jurídica a recurso é a do âmbito de aplicação do disposto no nº4 do art. 217º do CIRE, em complemento com as regras que estabelecem a autonomia, literalidade e abstração do aval, face à seguinte cláusula inserta no Plano de Insolvência aprovado:
“Enquanto o presente Plano se encontrar em cumprimento, não poderão ser movidas quaisquer ações para cobrança de divida ou execuções aos avalistas das operações onde a ora insolvente seja titular.”
Tendo em conta que se prevê no Plano o pagamento integral do passivo em prestações (150 prestações mensais para a AT e para a Segurança Social, ou seja, doze anos e meio, 120 prestações mensais para os credores privilegiados trabalhadores, ou seja, 10 anos, 180 meses para os credores comuns, ou seja, 15 anos e 150 meses para os credores garantidos, ou seja, 12,5 anos, com alternativa, para os dois últimos, de pagamento de 50% da dívida em publicidade), a cláusula em causa implica que, enquanto o plano esteja a ser cumprido, ou seja, durante um mínimo de 10 anos[3] e um máximo de 15 anos, os avais não poderão ser executados.
A cláusula, tal como sublinhado nas alegações de recurso, não afeta nem a existência nem o montante de tais garantias, mas, objetivamente, impede que, durante um dado período que pode ir até 15 anos no caso dos créditos garantidos, 10 anos no caso dos trabalhadores e 12,5 anos no caso dos credores comuns, as garantias sejam executadas e os credores obtenham satisfação do seu crédito por essa via.
Se o plano for integralmente cumprido, os credores obterão, por essa via a satisfação dos seus créditos, mas apenas no termo daqueles prazos.
Estabelecia o CPEREF, em matéria de direitos dos credores em relação aos garantes, no seu artigo 63ª que « As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior4 não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respetivos créditos.», em disposição criticada[4] por dificultar a aprovação das providências de recuperação sem verdadeiramente proteger os terceiros coobrigados.
O CIRE consagrou uma solução radicalmente diversa, inspirada na Insolvezordnung, com uma redação nitidamente fundada em elementos do citado art. 63º, consagrando-se, na versão original que « 4 - As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»
A norma foi revisitada pelo legislador de 2022, tendo sido aditado (negrito nosso) « 4 - As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»
Literalmente a norma refere apenas a existência e montantes dos direitos dos credores, pelo que foi já defendida entre nós a interpretação literal da norma invocada pela recorrente, sendo essa a questão jurídica a dilucidar.
Na essência, há que determinar se uma cláusula que introduz dilações temporais quanto à exigibilidade de pagamento aos avalistas, condicionando o direito de ação dos portadores dos títulos cambiários ao cumprimento do plano está ou não abrangida pelo nº4 do art. 217º do CIRE.
Na doutrina pronunciou-se pela interpretação restritiva Catarina Serra[5], considerando que a norma se aplica aos casos de extinção total ou parcial do crédito mas não a outras medidas que não afetem o montante do crédito, como moratórias ou uma cláusula de inexigibilidade como a que está em causa no caso concreto[6].
Em sentido contrário, defendendo que a norma protege os credores e que a sua interpretação por forma a abranger a irrelevância de outras modificações dos créditos, é a que melhor se harmoniza com o espírito da norma, se pronunciaram, entre outros Carvalho Fernandes e João Labareda[7], Rui Pinto[8] e Nuno Ferreira Lousa[9].
Como ilustra Anabela Luna de Carvalho[10], citando Carolina Cunha, no atual regime jurídico todos os riscos são alocados à esfera jurídica do garante. Fica obrigado a satisfazer integralmente e apenas pode exercer direito de regresso contra o devedor insolvente[11] nos termos em que o credor o poderia fazer, ou seja, suporta o perdão que o plano tenha imposto ao credor.
No entanto, não podemos esquecer que o pensamento legislativo quis aumentar as hipóteses de aprovação de planos, incentivando os credores a votar favoravelmente, sendo esse o motivo pelo qual alocou o risco em outrem que não o credor. E reafirmou essa intenção com a alteração de 2022, deixando claro, numa alteração quase interpretativa, aquilo que já era maioritariamente defendido face ao texto da lei: mesmo votando a favor, os garantes não podem opor ao credor que acione as garantias, o que consta no plano.
Na verdade, e como apontado por Nuno Lousa, nem sequer é possível defender, em abstrato, que uma moratória seja menos gravosa para o credor do que um perdão parcial, tudo dependendo do caso concreto, e quando se permite o mais, permite-se o menos.
Os credores que dispõem de garantias concederam crédito ao devedor nessas condições e, estando reunidas as condições para acionar as garantias, atento o disposto no art. 91º nº1 do CIRE[12], é quando o devedor não está a satisfazer nos termos acordados que mais precisam das garantias. O preço do crédito foi calculado em função também das garantias, pelo que o credor tenderá a obstaculizar a aprovação de planos que lhas afetem.
Há ainda um argumento baseado na letra da lei: ao usar os termos “existência” e “montante”, iguais aos que constavam na regra do art. 63º do CPEREF, o legislador quis, com clareza, dizer mais do que o montante, traduzindo-se existência por todas as caraterísticas do crédito, incluindo o tempo e a exigibilidade.
Assim, embora concordando-se em absoluto que a regra é excecional[13], atento o disposto no art. 11º do CC, subscreve-se esta orientação por ser a que melhor se enquadra no espírito da norma legal.
É também este o entendimento da maioria da jurisprudência, considerado aliás incontornável no caso do aval, atento o disposto no art. 32º da LuLiv – cfr. entre outros o Ac. TRL de 28/04/2020 (Adelaide Domingos – 1066/19)[14], tirado em PER mas no qual se afirma, com toda a propriedade, quanto a esta questão: “É verdade que o avalista do subscritor da livrança responde perante o portador do título nos termos em que este responde, podendo ser acionado pelo portador, individualmente ou juntamente com os demais subscritores. Mas, como já referido, o avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), mas ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela.
Ora, estas caraterísticas do regime jurídico do aval evidenciam que a obrigação do avalista é imune a alterações introduzidas por via contratual na estrutura da obrigação subjacente, ainda que até tenham sido aceites ou impostas pela regra das maiorias em sede de aprovação de um plano de recuperação em sede de PER.
Torna-se, pois, mais percetível que o legislador ao redigir o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, se tenha alheado até da questão da votação favorável do plano, uma vez que o direito de ação contra os codevedores e garantes apenas poderá sofrer limitação em função das normas substantivas que regem a contitularidade e as garantias prestadas. Daí que, salvo o devido respeito, não tenha qualquer apoio na lei defender que o devedor principal e o credor tenham a faculdade, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, de limitar, ainda que temporariamente, o direito do credor contra o avalista das livranças subscritas pela devedora e avalizadas por terceiro quando a obrigação cartular garantida se encontra em incumprimento.”
Assim, no sentido de que o estabelecimento de moratórias ou de cláusulas de inexigibilidade, como a presente, está abrangida pela letra do art. 217º nº4, nomeadamente no caso do aval, encontramos, entre outros, os Acs. STJ de 26/12/13 (Azevedo Ramos – 597/11), de 30/10/2014 (Silva Gonçalves – 16/13), TRL de 17/06/25 (Susana Santos Silva – 29616/24), TRL de 14/01/25 (Manuela Espadaneira Lopes – 2027/24), TRL de 28/04/20 (Adelaide Domingos – 1066/19), TRL de 24/09/20 (António Santos – 5332/19), TRL de 16/03/17 (Pedro Martins – 794/15), TRL de 17/05/16 (Cristina Coelho – 20931/15), TRP de 07/11/24 (Francisca Mota Vieira – 3235/22), TRP de 08/09/20 (Márcia Portela – 1862/19), TRC de 06/07/16 (Moreira do Carmo – 9499/15), TRC de 08/03/16 (Fernando Monteiro – 4064/14), TRC de 01/12/15 (Manuel Capelo – 808/14), TRC de 16/07/14 (Maria Domingas Simões), TRG de 18/06/25 (Sandra Melo – 2202720), TRG de 13/07/22 (Joaquim Boavida – 2681-21), TRG de 15/09/16 (Espinheira Baltar – 307/15), TRG de 24/09/15 (Jorge Teixeira – 378/14) e TRE de 07/06/18 (Mata Ribeiro – 1216/15)[15].
O recurso em apreciação liga a interpretação (restritiva) que defende com a obrigação, igualmente constante do plano, de injeção de capital pelo sócio gerente, concluindo que defender o contrário seria contrário à viabilização e recuperação, dado que, sufocado pelo acionamento dos avais, o sócio gerente não poderia cumprir esta sua obrigação.
Não se negando que o cenário descrito é frequente, dado o panorama geral de subcapitalização das empresas portuguesas, tal não altera os dados da questão: a opção do legislador para facilitar a aprovação de planos de recuperação foi no sentido de salvaguardar a posição dos credores, incentivando-os a votar favoravelmente, sem receio de perca das garantias.
Quando os garantes são os sócios e/ou administradores da empresa, ou seja, aqueles que irão injetar capital para a execução do plano, geram-se entropias que são suscetíveis de comprometer a efetiva recuperação, mesmo que o plano tenha sido aprovado.
Mas ciente dessa realidade, a opção do legislador foi a que ficou plasmada no nº4 do art. 217º do CIRE. Podia ter sido outra, pode a lei ser alterada por forma a suavizar ou aligeirar este peso que recai por inteiro sobre os garantes, mas, por ora, e, compreendendo-se as razões para tal, é esta a solução legal, sendo certo que é também a que melhor se adequa ao regime legal do aval.
Não pode, aliás, deixar de se referir que nem sempre os garantes são os sócios gerentes e que, sendo terceiros, tal não se repercute na recuperabilidade da empresa nos termos avançados pela recorrente.
Argumenta ainda a recorrente que a interpretação seguida na decisão recorrida – que suportamos e com a qual concordamos – cria desigualdades entre credores das mesmas classes conforme tenham ou não avais.
Nos termos do disposto no art. 194º nº1 do CIRE, O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.
O princípio da igualdade arranca do tratamento, por princípio, de todos os credores por igual, permitindo, porém, diferenciações justificadas por razões objetivas.
Esta dimensão material do princípio – devem ser tratadas por igual situações iguais e de forma distinta, situações distintas -, corporiza uma das mais importantes e convocadas regras aplicáveis ao conteúdo do plano ou do acordo, e tem sido tratado pela jurisprudência como uma regra imperativa, que arranca diretamente do tecido constitucional, cuja violação é, por regra, não negligenciável[16].
Em geral, a diferenciação baseada na diferente classificação de créditos é permitida (Acs. TRE de 17/03/16[17] e de 10/09/15[18]; Ac. TRP de 07/04/16[19]; Ac. TRL de 28/01/16[20]), mas não é a única possível ou permitida. Objetivamente ter um crédito dotado de garantia pessoal é diverso de um crédito sem essa garantia e permite enquadrar a situação como não violadora do princípio da igualdade, mesmo tomando a visão da recorrente e sem distinguir créditos com garantias sobre terceiros relacionados ou não relacionados com a devedora.
A presente apelação é, nestes termos, integralmente improcedente, sendo de manter na íntegra a decisão recorrida.
*
A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso[21], que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[22].
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e em consequência, mantêm a decisão recorrida.
Custas de parte na presente instância recursiva pela apelante.
Notifique.
*
Lisboa, 30 de setembro de 2025
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Ribeiro (com voto de vencido)
Manuela Espadaneira Lopes

Profere-se voto vencido nos termos do art.º 663º, nº 1 do CPC porque, divergindo em parte da posição que fez vencimento, julgaria o recurso procedente.
Concordando-se com a fundamentação no tocante à interpretação a dar ao nº4 do art. 217º do CIRE, considera-se que os próprios termos do preceito apontam para consequência diversa, não a recusa de homologação, mas a simples ineficácia da cláusula inserida no Plano que a contrarie.
Surge como mais lógica tal consequência, desde logo porque os direitos sobre os garantes não correspondem aos direitos dos credores que estão a ser reestruturados pelo Plano - que abrange única e exclusivamente os créditos sobre a devedora/recuperanda - mas sim a créditos sobre terceiros. Ainda que o plano a preveja, a cláusula em causa é ineficaz porque esses créditos não são créditos sobre a insolvência e, por isso, não podem ser afetados pelo Plano que nele seja aprovado (art. 192º nºs 1 e 2 do CIRE)[23].
A solução da recusa da homologação, por outro lado, vota ao insucesso um Plano apenas por causa de uma cláusula que, pelo menos em abstrato, não contende com o conteúdo das medidas previstas para os créditos sobre a devedora.
A questão do cumprimento das medidas previstas no plano pela eventual ausência de liquidez do sócio gerente que se comprometeu a injetar capital se necessário é uma questão duplamente eventual – o compromisso de injeção de capital está previsto para as necessidades da empresa, e, só verificadas essas necessidades terá que cumprir, sendo ainda necessário o cumprimento desse compromisso, relativamente ao qual o Plano sequer constitui título executivo.
Tal reforça a ideia de que a violação do art. 217º, nº 4 do CIRE tem como efeito apenas a ineficácia da cláusula.
Usando os termos literais da norma - "As providências... não afetam..." -  a não afetação dos direitos sobre os garantes é um resultado expressa e imperativamente previsto pela lei e independentemente do que no Plano seja referido em contrário.
Nestes termos, revogaria a decisão recorrida e teria homologado o Plano de Insolvência, considerando ineficaz a cláusula relativa aos garantes.
Amélia Sofia Rebelo
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[1] Preambulo do Decreto Lei nº 53/2004 de 18/03.
[2] Cfr. ponto 7 do referido preambulo.
[3] Sem prejuízo da opção conferida aos credores comuns e garantidos).
[4] Veja-se a anotação de Carvalho Fernandes e João Labareda ao referido preceito em CPEREF Anotado, Quid Juris, 1994, pgs. 175 a 177.
[5] Em, Nótula sobre o art.º 217.º, nº 4, do CIRE (O direito de o credor agir contra o avalista no contexto de plano de insolvência), pgs. 380 a 382.
[6] Com concordância de Ana Prata et al em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, expressando porém os autores “as maiores reservas na defesa dessa posição quando estejam em causa direitos contra os avalistas de títulos de crédito, considerando a autonomia da obrigação cambiária.”
[7] Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 793 e 794.
[8] Em A execução do aval – algumas notas com ilustração jurisprudencial, Julgar Online, junho de 2019, pg. 28, disponível em https://julgar.pt/a-execucao-do-aval-algumas-notas-com-ilustracao-jurisprudencial/.
[9] Em Os Créditos garantidos e a posição dos garantes nos processos recuperatórios de empresas, Revista de Direito da Insolvência, nº0, Almedina, 2016, pgs. 160 a 165.
[10] Em Aval e Plano de Insolvência. O financiamento pelos garantes da recuperação do insolvente: O artigo 217.º, n.º 4, do CIRE. As diferenças de regime no PER., Data Venia, nº 13, ano 2022, pgs. 5 e ss., disponível em https://datavenia.pt/ficheiros/edicao13/datavenia13_p005_044.pdf.
[11] Quando o puder fazer, note-se.
[12] E não estamos a afastar a aplicabilidade do nº4 do art. 217º ao PER e ao PEAP, com esta afirmação, apenas a alhear-nos dessa questão, também ela discutida, porque, no caso concreto, se trata de um plano de insolvência aprovado em processo clássico de insolvência.
[13] Cfr. Ac. TRP de 07/11/2024 (Francisca Mota Vieira – 3235/22) e Joana Rodrigues Machado Lopes em A Proteção dos Garantes na Aprovação de um Plano de Insolvência, Universidade Católica Editora, 2021, Dissertação para a obtenção de grau de Mestre em Forense, pela Universidade Católica Portuguesa – Escola de Lisboa, sob a orientação da Professora Doutora Ana Maria Pinheiro Cruz Taveira da Fonseca, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/37618/1/203010353.pdf, pg. 28.
[14] No qual a aqui relatora interveio como adjunta.
[15] No sentido da interpretação restritiva se pronunciaram os Acs. STJ de 29/01/19 (Maria Olinda Garcia – 1563/16), TRP de 10/07/25 (Anabela Miranda – 3265/24) e TRG de 08/01/15 (Ana Cristina Duarte).
[16] Neste sentido, entre muitos outros, os Acs. TRC de 17/03/15 (Henrique Antunes – 338/13); TRC de 27/06/2017 (Isaías Pádua – 8389/16); TRP de 08/07/15 (Manuel Domingos Fernandes – 261/14); TRP de 30/01/2024 (Maria da Luz Seabra – 462/22); TRL de 09/06/16 (Ondina Carmo Alves - 17154/15); TRL de 28/04/2020 (Paula Cardoso - 7771/19), TRL de 11/07/2024 (Manuela Espadaneira Lopes – 8294/23).
[17] Relatado Por Manuel Bargado, processo nº 1228/15.
[18] Relatado Por Alexandra Moura Santos, processo nº 63/14.
[19] Relatado por Carlos Querido, processo nº 1709/15.
[20] Relatado por Ilídio Sacarrão Martins, processo nº 1702/15.
[21] Não devendo ser decidida nesta sede a condenação da massa insolvente, dado que o presente recurso se inscreve na esfera de atos que o devedor insolvente pode praticar no âmbito do processo, nos termos do disposto no art. 81º nº5 do CIRE.
[22] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.
[23] Neste sentido ver o Acórdão da Relação de Guimarães de 13/07/2022 (Joaquim Boavida, Proc. nº         
2681/21.2T8VNF-A.G1).