Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1470/24.7YRLSB-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
JUIZ
AMIZADE
RELAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DEFERIDA
Sumário: A existência de relação de amizade do Sr. Juiz com a pessoa do réu do processo, com quem trabalhou durante 8 anos, amizade que ultrapassou o contacto profissional, tendo havido, por vezes “desabafos e conselhos pessoais”, circunstância que, aliada à dimensão da Comarca, viabiliza o conhecimento geral da relação de trabalho e de amizade, são factos que justificam o deferimento da escusa requerida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. O Sr. Juiz de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Central Cível do (…) - Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.ºs. 1 a 3, do CPC, escusa relativamente ao processo n.º (…)/17.4T8(…).
Para tanto, invocou, em suma, que:
- No referido processo proferiu 5 despachos de simples tramitação com vista à realização do julgamento;
- O pedido é formulado neste momento processual porquanto, apenas agora, face à comparência do Réu “B” no julgamento, veio confirmar a suspeita, face à audição da última pessoa ouvida, de que o mesmo é o funcionário judicial, escrivão adjunto, com o qual trabalhou, diretamente, na seção de processos do juízo Local cível do (…), Juiz (…) e anteriormente no extinto (…).° juízo cível do (…), desde 2014 até setembro de 2022;
- O Sr. “B”, por cerca de 8 anos, privou consigo, tendo sido desenvolvida uma relação de amizade a qual ultrapassou a simples esfera profissional, havendo, por vezes “desabafos e conselhos pessoais”.
Considera que tais circunstâncias, “sendo a Comarca (…) uma comarca pequena e sendo a relação de trabalho e amizade do conhecimento geral”, poderá levantar suspeitas sobre a sua imparcialidade levando a que a imagem da justiça possa ser tida em descrédito.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz iria ou não manter a sua imparcialidade, mas a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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III. No caso em apreço, o Sr. Juiz vem invocar a existência de relação de amizade com a pessoa do réu do referido processo, com quem trabalhou durante 8 anos, amizade que ultrapassou o contacto profissional, tendo havido, por vezes “desabafos e conselhos pessoais). Esta circunstância, aliada à dimensão da Comarca do (…), que viabiliza o conhecimento geral da relação de trabalho e de amizade, são factos que, no entender do Sr. Juiz, justificam a escusa.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e de distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o seu não distanciamento relativamente à situação dos autos, uma vez que está em causa uma relação de proximidade pessoal e profissional que ocorre desde há bastante tempo, tendo o Sr. Juiz trabalhado com o réu cerca de 8 anos.
Não se coloca somente a questão do contacto pessoal ou social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
Aqui releva, em particular, a relação de proximidade estabelecida entre o Sr. Juiz e o réu, em momento anterior à pendência dos autos e durante largo tempo.
Não seria só a imparcialidade da Sr. Juiz que ficaria em causa, caso o mesmo continuasse a tramitar os autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais (sendo que a autora se pronunciou, aliás, nos referidos autos, em audiência – conforme resulta do documento junto com o requerimento apresentado pelo Sr. Juiz - dando conta de nada ter a opôr à escusa que o Sr. Juiz manifestou que iria requerer), ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que o Sr. Juiz seja dispensado de intervir no processo.
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção do Sr. Juiz “A”, relativamente ao processo n.º (…)/17.4T8(…).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 16-05-2024,
Carlos Castelo Branco
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).