Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6132/17.9T8LRS-A.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CREDOR RECLAMANTE
CRÉDITO EXEQUENDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) Para que seja qualificado como “manifesto” – nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 614.º do CPC – o lapso ou erro material deve ser apreensível externamente através do contexto da decisão, de tal forma que possa ser percebido por outrem (que não apenas pelo juiz que a proferiu) que o julgador escreveu coisa diversa da que pretendia, não se tratando de um erro de julgamento.
II) O objeto do lapso ou erro material – erro de escrita, erro de cálculo ou inexatidão devida a omissão ou lapso manifesto (cfr. artigo 249.º do CC) - ostensivo ou manifesto não é, pois, o conteúdo do acto decisório, mas sim, a sua expressão material.
III) Para além da reforma da sentença quanto a custas e multa (n.º 1 do artigo 616.º do CPC), a lei apenas admite a reforma da sentença quando por “manifesto lapso do juiz” tenha “ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” ou “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida” (n.º 2 do artigo 616.º do CPC).
IV) Os fundamentos de reforma da sentença, previstos no artigo 616.º do CPC não admitem analogia ou interpretação extensiva.
V) Consoante decorre do n.º 2 do artigo 796.º do CPC, “o credor reclamante só pode ser pago na execução pelos bens sobre que tiver garantia e conforme a graduação do seu crédito”, pelo que, o reclamante só pelo produto desses bens há-de ser graduado o seu crédito. Já o crédito exequendo terá de ser graduado relativamente a todos os bens penhorados.
VI) Uma vez que o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar o pagamento dos respetivos créditos, pelo produto dos bens penhorados, a sua garantia apenas incidirá sobre os bens a que respeite, limitação que o credor exequendo não tem, uma vez que o seu crédito respeita ou incide sobre todos os bens penhorados na ação executiva por si intentada.
VII) Nessa medida, a graduação de créditos há-de concretizar-se, autonomamente ou em separado, para cada bem sobre o qual tenha recaído uma reclamação, de acordo com as regras do direito substantivo e, relativamente a cada um desses bens, se sobre eles concorrerem créditos com diversas garantias, tendo-se em conta, em cada uma dessas operações, que o crédito exequendo terá de ser graduado face a todos os bens penhorados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:

1. Por apenso – com a letra A - aos autos de execução comum (para pagamento de quantia certa) que CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. move contra EDUCARGAS – TRANSITÁRIO, LDA., EF e CF, vieram:
a) O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., reclamar os seguintes créditos da responsabilidade da executada/reclamada EDUCARGAS – TRANSITÁRIO, LDA.:
- a importância de € 34.408,65, pelo não pagamento de contribuições devidas ao reclamante, referente às contribuições devidas referentes às remunerações pagas aos trabalhadores, conforme certidão que junta e que se dá por integralmente reproduzida;
- acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, sendo que os vencidos, contados até 05/2019 ascendem a € 1.807,69;
- acrescida dos juros de mora no valor de € 1.157,46, em virtude de contribuições pagas fora de prazo;
b) O BANCO BPI, S.A. – SOCIEDADE ABERTA, reclamar em relação aos executados/reclamados EF e CF, o crédito de € 169.143,13, reportado à data de 4/06/2019, acrescido de juros entretanto vencidos e vincendos, baseando-se em hipoteca(s), devidamente registada(s) (Ap. 13 de 16/10/2007, conversão em definitivo pela ap. 72 de 28/12/2007 - cfr. certidão da CRP, constante dos autos de execução/dos presentes), que incide sobre a fracção penhorada na execução a que os presentes autos estão apensos, fracção M, do prédio descrito na 2ª Conservatória do registo Predial de Loures, sob o nº … (cfr. auto de penhora constante dos autos de execução; penhora registada nos presentes autos pela ap. 3895 de 18/01/2019);
c) A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., reclamar em relação aos executados/reclamados EF e CF, o crédito de € 165.057, 19, reportado à data de 11/03/2020, acrescido de juros vincendos, baseando-se em acção executiva deduzida contra o(s) Executado(s)/Reclamados, Pº nº …/…, do Tribunal da Grande Lisboa Norte, Loures, Juízos de Execução, J2, no âmbito do qual foi registada penhora a favor do reclamante, entretanto sustada (Ap. 3761 de 27/01/2020 - cfr. certidão da CRP, constante dos autos de execução/dos presentes autos), que incide sobre a fracção penhorada na execução a que a presente reclamação está apensa (cfr. auto de penhora constante dos autos de execução, penhora a favor do exequente registada pela ap. 3895 de 18/01/2019181 de 18/11/2011).
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2. Nos referidos autos de execução, em 02-02-2019, foi elaborado auto de penhora, onde constam como bens penhorados os seguintes:
Verba: 1 – Espécie: Imóvel – Descrição: AP. 3895 de 2019/01/18 - penhora da fração autónoma designada pela letra "M" (3º Andar Direito - Piso 3 - para habitação - com uma arrecadação no desvão do telhado nº 7 e dois lugares estacionamento no piso-2 nºs 5 e 6) do prédio urbano situado na Rua …, nºs …, …, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e …, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 142.589,01 EUR- Valor: 142589,01;
Verba: 2 – Espécie: Imóvel – Descrição: AP. ….. de 2019/01/18 - penhora da fração autónoma designada pela letra "D" (Garagem Nº 2 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, …, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 5.397,21 EUR; Valor: 5397,21;
Verba: 3 – Espécie: Imóvel; Descrição: AP. ….. de 2019/01/18 - penhora da fração autónoma designada pela letra "E" (Garagem Nº 3 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs …, …, …, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e …, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 12.804,71 EUR; Valor: 12804,71;
Verba: 4 – Espécie: Imóvel; Descrição: AP. ….. de 2019/01/18 - penhora do prédio rústico (80 m2 - Cultura arvense, figueiras, oliveiras) situado em BAIRRADA, freguesia Fontes, concelho Abrantes, distrito Santarém, na C.R.P. de Abrantes sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … #...; secção AP da mesma freguesia de Fontes, com o VP de 2,60 EUR; Valor: 2,60;
Mais ali consta identificado que, a verba 1 respeita aos executados CF e EF, e que, as verbas 2, 3 e 4 respeitam à executada Educargas – Transitário, Lda.
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3. Cumprido, nos presentes autos, o disposto no n.º 2, do artigo 789.º do CPC, não foi deduzida impugnação.
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4. Em 22-03-2021 foi proferido despacho de onde consta, nomeadamente, o seguinte:
“Notifique o ISS IP para, em dez dias, esclarecer em relação a que verba do auto de penhora está a reclamar o seu crédito.(…)”.
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5. Na sequência, por requerimento apresentado em juízo em 23-03-2021, o Instituto da Segurança Social, IP, “vem dizer que reclama os seus créditos sobre todos os bens penhorados que sejam propriedade da Executada/Reclamada Educargas - Transitário, Lda.”.
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6. Em 23-03-2022 foi proferida sentença que procedeu à graduação dos créditos reclamados, tendo-os graduado da seguinte forma, “no que respeita ao produto da venda do imóvel penhorado:
1. O crédito reclamado pelo Banco BPI, SA., garantido por hipoteca;
2. O crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P;
3. O crédito exequendo;
4. O Crédito reclamado pela Caixa Geral de Depósitos, SA.”.
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7. Não se conformando com a referida decisão, dela apela a exequente, requerendo seja retificada e reformada a sentença, no sentido de proceder a graduação pelos diversos imóveis e garantias e, se assim não se entender, se a sentença revogada e alterada por outra decisão que gradue os créditos reclamados da seguinte forma: sobre as frações D e E da CRP … e sobre o prédio CRP …, em primeiro lugar o crédito reclamado pelo ISS, IP seguido do crédito exequendo garantido por penhora; sobre a fração M da CRP … em primeiro lugar o crédito do BPI garantido por hipoteca, seguido do crédito exequendo garantido por penhora e por último o crédito reclamado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. garantido por penhora posterior, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1ª – O credor ISS, IP reclamou créditos nos presentes autos decorrente do não pagamento de contribuições devidas pela executada sociedade Educargas, Lda.
2ª- O privilégio imobiliário de que beneficia o credor ISS, IP apenas incide sobre bens que existentes na esfera jurídica do contribuinte, nos termos do artº 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, in casu, somente sobre as D e E da CRP … e sobre o prédio CRP ….
3ª- A fração M da descrição predial … é da titularidade de pessoa diversa do contribuinte Educargas, Lda, nomeadamente é da titularidade de EF e CF, pelo que o privilégio imobiliário não se estende a este imóvel.
4ª- De igual sorte, o privilégio imobiliário inexiste ainda que se entendesse ser a dívida revertida, o que não vem alegado pelo credor (entre muitos, Ac. TRP de 21/02/2017, no âmbito do proc. 710/14.5TBSJM-C.P1, in www.dgsi.pt).
5ª – A douta graduação deveria ser individualizada pelos diversos bens e garantias, graduando-se da seguinte forma: sobre as frações D e E da CRP … e sobre o prédio CRP …, em primeiro lugar o crédito reclamado pelo ISS, IP seguido do crédito exequendo garantido por penhora; sobre a fração M da CRP … em primeiro lugar o crédito do BPI garantido por hipoteca, seguido do crédito exequendo garantido por penhora e por último o crédito reclamado pela Caixa Geral de Depósitos, SA garantido por penhora posterior.
6ª- Ao assim não se ter decidido foram violados os artºs 205º do do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, o artº 822º do Código Civil e 788º nº 1 do Código Processo Civil”.
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8. Dos autos não constam contra-alegações.
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9. O recurso foi liminarmente admitido, por despacho proferido em 01-02-2023, tendo sido emitida pronúncia sobre o requerimento de retificação, nos seguintes termos:
“Como resulta claro do disposto no art. 616.º, n.º 2, a contrario, do CPC, o que a recorrente parece ter desconsiderado, por completo, cabendo recurso da decisão reformanda, o requerimento respetivo deve ser feito na alegação, isto é, dirigido ao tribunal de recurso, sendo este o competente para a respetiva apreciação e decisão, e não o tribunal de 1.ª instância. Como tal, nenhuma outra pronúncia cabe aqui emitir a respeito desta matéria.
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No que concerne ao pedido de retificação, considera-se que o que a recorrente pretende, na realidade, é a prolação de uma sentença inteiramente nova, a pretexto de que enferma de um lapso manifesto. Ora, e salvo o devido respeito, a possibilidade de correção de decisões judiciais não se destina à emissão de pronúncias judiciais completamente diferentes da pronúncia judicial inicialmente emitida, sob pena de violação flagrante do princípio do esgotamento do poder jurisdicional. A epígrafe do art.º 614.º do CPC, aqui aplicável, é bastante esclarecedora, ao cingir-se à retificação de erros materiais. Portanto, fica completamente afasta a correção de erros de fundo, que contendem com o próprio sentido do dispositivo, ou seja, com a solução jurídica encontrada. De resto, doutrina e jurisprudência são unânimes no sentido de que os erros passíveis de correção são apenas aqueles que são revelados pelo próprio contexto literal da decisão e não também aqueles que se tornem evidentes com recurso a elementos estranhos ao próprio texto dessa decisão. No caso, o conteúdo, em si mesmo, da sentença recorrida não evidencia que a mesma enferma de inexatidões derivadas de omissões ou lapsos manifestos. Deste modo, indefere-se o pedido de retificação da sentença.
(…)”.
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10. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
A) Se a decisão recorrida proferida em 23-03-2022 deve ser objeto de retificação ou reforma?
B) Se a decisão recorrida viola o artigo 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, o artigo 822.º do CC e o artigo 788.º, n.º 1, do CPC?
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3. Fundamentação de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do recurso, conforme resultam dos autos, os elencados no relatório.
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4. Fundamentação de Direito:
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A) Se a decisão recorrida proferida em 23-03-2022 deve ser objeto de retificação ou reforma?
Os artigos 613.º a 617.º do CPC dispõem, sucessivamente, sobre a extinção do poder jurisdicional e suas limitações, retificação de erros materiais, causas de nulidade da sentença – sendo esta nula quando, não contenha a assinatura do juiz, não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ou quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido – , reforma da sentença e seu processamento.
A recorrente vem pugnar no sentido de que a decisão recorrida seja reformada, por forma a que se proceda à graduação pelos diversos imóveis e garantias e, se assim não se entender, ser a sentença revogada e alterada por outra decisão que gradue os créditos reclamados da seguinte forma: sobre as frações D e E da CRP … e sobre o prédio CRP …, em primeiro lugar o crédito reclamado pelo ISS, IP seguido do crédito exequendo garantido por penhora; sobre a fração M da CRP … em primeiro lugar o crédito do BPI garantido por hipoteca, seguido do crédito exequendo garantido por penhora e por último o crédito reclamado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. garantido por penhora posterior.
Vejamos:
Com a prolação da sentença, esgota-se o poder jurisdicional – cfr. artigo 613.º, n.º 1, do CPC - sem prejuízo das exceções atinentes à retificação de erros materiais, ao suprimento de nulidades e à reforma da sentença nos termos legalmente previstos – cfr. artigos 613.º, n.º 2, 614.º, 615.º e 616.º do CPC, ex vi, do artigo 666º, n.º 1, do mesmo Código.
A apelante requer a “retificação” ou “reforma”.
Não se tratam, todavia, de institutos idênticos, regulando a lei diversos pressupostos para a consideração da sua aplicação.
Assim, sobre a retificação de erros materiais da sentença, importa ter presente o regime previsto no artigo 614.º do CPC:
“1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.”.
“O erro material é uma divergência entre a vontade declarada e vontade real do juiz” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-02-2009, Pº 08A2680, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-03-2015 (Pº 490/11.6TBOHP-D.C2, rel. CATARINA GONÇALVES), “o erro ou lapso que pode ser rectificado, ao abrigo do art. 667º, nº 1, do anterior CPC – ou 614º, nº 1, do actual CPC – é apenas o erro material cuja existência pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquilo que escreveu na sentença (o juiz escreveu coisa diversa daquela que queria escrever) e que não se confunde com o erro de julgamento (que ocorre quando o juiz disse aquilo que pretendia, mas julgou ou decidiu mal)”.
Sucede que, atenta a dificuldade em apurar se ocorreu correta ou errada vontade real do juiz, a lei apenas releva o erro material que seja “manifesto”.
Para que seja qualificado como “manifesto” o erro material deve ser apreensível externamente através do contexto da decisão, de tal forma que possa ser percebido por outrem (que não apenas pelo juiz que a proferiu) que o julgador escreveu coisa diversa da que pretendia, não se tratando de um erro de julgamento.
O objeto do erro material – erro de escrita, erro de cálculo ou inexatidão devida a omissão ou lapso manifesto (cfr. artigo 249.º do CC) - ostensivo ou manifesto não é, pois, o conteúdo do acto decisório, mas sim, a sua expressão material.
“É manifesto o erro material que se revele no contexto do teor ou estrutura da decisão, à semelhança dos “erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada” pela parte, do artigo 146.º, n.º 1” (assim, Rui Pinto; Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, p. 74).
Deste modo, “[n]ão pode ser qualificada como rectificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detectava da leitura do respectivo texto” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-03-2015, Pº 706/05.6TBOER.L1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA).
Conforme sublinha Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, p. 75), “[a]o contrário da arguição da nulidade da decisão e do pedido de reforma da decisão (cf., os referidos artigos 615º nº 4 e 616º nº 2 parte inicial), a retificabilidade de uma decisão em nada depende da admissibilidade de recurso ordinário”.
De todo o modo, em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes dele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à matéria da retificação (cf. artigo 614.º, n.º 2, do CPC).
A retificação é da competência do Tribunal que proferiu a decisão que deve ser retificada (“em conformidade com o n.º 1 do artigo 614.º do CPC, é um poder-dever do tribunal corrigir, por iniciativa sua, os erros e lapsos manifestos em que incorra” (cfr. Ac. do STJ de 23-04-2020, Pº 588/11.0TBCBR-B.P1.S1, rel. CATARINA SERRA), pelo que, não tendo este procedido a tal retificação, apenas a censura sobre um tal juízo poderia ser objeto de apreciação por este Tribunal de recurso, sem que a apelante tenha aduzido algum elemento a este respeito.
Por seu turno, o requerimento de reforma da decisão encontra respaldo na previsão do artigo 616.º do CPC, onde se dispõe o seguinte:
“1 - A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
3 - Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação.”.
Conforme explica Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, p. 92), “além da reforma quanto a custas e multas, o artigo 616º admite no seu nº 2 reforma da sentença quando por “manifesto lapso do juiz” (a) tenha “ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” ou (b) “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”. Trata-se de fundamentos taxativos, pelo que deve ser indeferido todo o requerimento de reforma que se apoie em razões diversas daquelas”.
Os fundamentos de reforma da sentença, previstos no artigo 616.º do CPC não admitem analogia ou interpretação extensiva.
No n.º 1 do artigo 616.º do CPC, consagra-se a reforma quanto a custas e multa.
Nos termos do n.º 2 do artigo 616.º, enuncia-se a possibilidade de reforma por manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou se constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
A reforma pressupõe, como decorre do n.º 2, al. a), do artigo 616.º do CPC, que o Tribunal, por lapso manifesto, tenha errado na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
O “manifesto lapso” a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC consiste num erro grosseiro e patente, um erro juridicamente insustentável, causado por desconhecimento ou má compreensão (“uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção, por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial)” – assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-02-2009, Pº 08A2680, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS) do regime legal.
Conforme sublinha Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, p. 93), este “manifesto lapso” da alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do CPC, nada tem a ver com o “lapso manifesto” do artigo 614.º do mesmo Código: “já não se trata de um erro na expressão do julgamento do juiz, mas de erros nesse próprio julgamento do juiz”.
Este procedimento não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar error in judicando, mas, para invocar erro grosseiro e patente causado por desconhecimento ou má compreensão do regime legal aplicável (assim, o Acórdão do STJ de 15-01-2019, Pº 9126/10.1TBCSC.L1.S1, rel. ROQUE NOGUEIRA).
A reforma por manifesto lapso apenas é admissível, “não cabendo recurso da decisão”, conforme resulta do n.º 2 do artigo 616.º do CPC. Se tal pressuposto não se verificar, não pode ser pedida ao tribunal que deu a decisão cuja reforma se pretende: o respetivo vício terá que ser alegado como fundamento do recurso.
Ora, não se dirigindo a alguma das situações passíveis de reforma – não se tratando de reforma quanto a custas ou multas, nem ocorrendo a situação de manifesto lapso a que se reporta o n.º 2 do artigo 616.º do CPC -, o aludido requerimento de reforma da apelante não pode obter fundamento de procedência.
A questão colocada deverá, pois, receber resposta negativa.
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B) Se a decisão recorrida viola o artigo 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, o artigo 822.º do CC e o artigo 788.º, n.º 1, do CPC?
Conclui a recorrente que a decisão recorrida violou os preceitos legais supra citados, alinhando, em suma, a seguinte ordem de fundamentos:
a) Que o privilégio imobiliário de que beneficia o credor ISS, IP apenas incide sobre bens que existentes na esfera jurídica do contribuinte, nos termos do artº 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, in casu, somente sobre as D e E da CRP … e sobre o prédio CRP …, sendo que, a fração M da descrição predial … é da titularidade de pessoa diversa do contribuinte Educargas, Lda, nomeadamente é da titularidade de EF e CF, pelo que o privilégio imobiliário não se estende a este imóvel;
b) Que o privilégio imobiliário inexiste ainda que se entendesse ser a dívida revertida, o que não vem alegado pelo credor;
c) Que a graduação deveria ser individualizada pelos diversos bens e garantias, graduando-se da forma que menciona:
- Sobre as frações D e E da CRP … e sobre o prédio CRP …:
1º o crédito reclamado pelo ISS, IP
2.º o crédito exequendo garantido por penhora;
- Sobre a fração M da CRP …:
1.º o crédito do BPI garantido por hipoteca
2.º o crédito exequendo garantido por penhora;
3.º o crédito reclamado pela Caixa Geral de Depósitos, SA garantido por penhora posterior.
Os preceitos legais invocados pela recorrente dispõem o seguinte:
- Artigo 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro e objeto de alterações pelo D.L. n.º 140-B/2010, de 30 de dezembro e pelas Leis n.ºs. 55-A/2010, de 31 de dezembro, 64-B/2011, de 30 de dezembro, 20/2012, de 14 de maio, 66-B/2012, de 31 de dezembro e 83-C/2013, de 31 de dezembro) – sob a epígrafe “Privilégio imobiliário”: “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil”;
- Artigo 822.º - com a epígrafe “Preferência resultante da penhora” - do CC:
“1. Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
2. Tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”;
- Artigo 788.º - com a epígrafe “Reclamação dos créditos” - do CPC:
“1 - Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos.
2 - A reclamação tem por base um título exequível e é deduzida no prazo de 15 dias, a contar da citação do reclamante.
3 - Os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados.
4 - Não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário, quando:
a) A penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente penhorável, nos termos do artigo 738.º, renda, outro rendimento periódico, veículo automóvel, ou bens móveis de valor inferior a 25 UC; ou
b) Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, depósito bancário em dinheiro; ou
c) Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, este requeira procedentemente a consignação de rendimentos, ou a adjudicação, em dação em cumprimento, do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de convocados os credores.
5 - Quando, ao abrigo do n.º 3, reclame o seu crédito quem tenha obtido penhora sobre os mesmos bens em outra execução, esta é sustada quanto a esses bens, quando não tenha tido já lugar sustação nos termos do artigo 794.º.
6 - A ressalva constante do n.º 4 não se aplica aos privilégios creditórios dos trabalhadores.
7 - O credor é admitido à execução, ainda que o crédito não esteja vencido; mas se a obrigação for incerta ou ilíquida, torná-la-á certa ou líquida pelos meios de que dispõe o exequente.
8 - As reclamações são autuadas num único apenso ao processo de execução”.
Vejamos:
Os presentes autos reportam-se ao denominado “apenso de reclamação de créditos” (apenso “único”, na expressão do artigo 788.º, n.º 8, do CPC), o qual se insere na tramitação de uma ação executiva e que se destina a reunir num mesmo apenso a relação dos créditos que os credores com garantia real entendam reclamar, no prazo de que dispõem para o efeito, efetivando o chamado “concurso de credores”.
O concurso de credores “significa a possibilidade de intervirem na execução determinados credores do executado, fazendo valer os seus créditos, em concorrência com o exequente. Por isso mesmo, apenas são admitidos à execução como reclamantes os credores que gozam de garantia real sobre os bens penhorados sujeitos a alienação executiva” (assim, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 190).
Aquele que tenha sido citado na qualidade de credor com garantia real sobre bens penhorados numa execução deve reclamar o seu crédito, no prazo de 15 dias, a contar da citação. A falta da reclamação do crédito não tem efeitos preclusivos quanto ao crédito em si mesmo, mas o credor que deixe de reclamar fica privado de, no âmbito dessa execução, ser pago nos termos do n.º 3 do artigo 824.º do CC, isto é, de ver o seu crédito satisfeito à custa da venda do bem sobre o qual tinha garantia real. Dito de outro modo, o credor não reclamante, além de não ser pago na própria execução, torna-se um credor comum, por força da caducidade da garantia a que conduz a venda executiva (cfr. artigo 824.º, n.º 2, do CC).
Conforme resulta do já citado n.º 1 do artigo 788.º do CPC, só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos.
Apresentadas que sejam as reclamações de créditos pelos credores reclamantes, dispõe o artigo 789.º, n.º 1, do CPC que delas são notificadas, pela secretaria do Tribunal, “o executado, o exequente, os credores reclamantes, o cônjuge do executado e o agente de execução”.
A finalidade da ocorrência dessa notificação é, no que toca aos reclamados – exequente e executado – a possibilidade de dedução de impugnação sobre os créditos reclamados, a apresentar no prazo de 15 dias, a contar da mencionada notificação (cfr. artigo 789.º, n.º 2, do CPC). No mesmo prazo, poderão “os restantes credores impugnar garantidos por bens sobre os quais tenham invocado qualquer direito real de garantia, incluindo o crédito exequendo, bem como as garantias reais invocadas, quer pelo exequente, quer pelos outros credores” (cfr. artigo 789.º, n.º 3, do CPC).
Conforme decorre do n.º 4 do artigo 789.º do CPC, “a impugnação pode ter por fundamento qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou que impedem a sua existência”, sendo que, se o crédito estiver garantido por sentença, que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, “a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 729.º e 730.º, na parte em que forem aplicáveis” (cfr. artigo 789.º, n.º 5, do CPC).
A respeito do n.º 4 da norma paralela à do artigo 789.º do CPC - o precedente artigo 866.º do CPC de 1961 - , referia, ainda hoje com atualidade, Eurico Lopes Cardoso (Manual da Ação Executiva, 3.ª ed., Reimp., Almedina, 1992, pp. 480-481) que:
“O impugnante está adstrito ao dever imposto ao contestante pelo artigo 490.º: - tomar posição definida perante cada um dos factos articulados pelo reclamante. E, precisamente como no caso da contestação, reputam-se admitidos por acordo os factos não impugnados especificadamente.
(…) Se o crédito reclamado estiver titulado por sentença, só pode ser impugnado por algum dos fundamentos que podem servir de base aos embargos de executado quando a sentença se funda em título da mesma espécie, isto é, por algum dos fundamentos enunciados no artigo 813.º ou no 814.º, consoante se trate de sentença de tribunal judicial ou de sentença de tribunal arbitral.
(…) Quando a reclamação não se baseie em sentença, a impugnação pode fundar-se em qualquer causa que extinga ou modifique a obrigação, ou impeça a sua existência.
Claro que, em ambos os casos, a impugnação pode ter por objecto tanto a existência do crédito, como o seu montante, como a garantia por ele invocada”.
Sobre a matéria da impugnação poderá ainda o reclamante responder, conforme decorre do artigo 790.º do CPC.
E, após, se tiver tido lugar impugnação dos créditos reclamados, seguir-se-ão os termos do processo comum declarativo, posteriores aos articulados, declarando o despacho saneador reconhecidos os créditos que o possam ser, embora a graduação de todos fique para a sentença final (cfr. n.º 1 do artigo 791.º do CPC).
Caso contrário, “se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos impugnados não depender de prova a produzir, profere-se logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente” (cfr. artigo 791.º, n.º 2, do CPC), sem prejuízo do disposto no n.º 4 do mesmo artigo 791.º (“4 - São havidos como reconhecidos os créditos e as respetivas garantias reais que não forem impugnados, sem prejuízo das exceções ao efeito cominatório da revelia, vigentes em processo declarativo, ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação.”).
Ou seja: “Nos termos do art. 791/2 do CPC, se nenhum dos créditos for impugnado […] profere-se logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente, sem prejuízo do disposto no n.º 4. E o art. 791/4 do CPC acrescenta: são havidos como reconhecidos os créditos e as respectivas garantias reais que não forem impugnados, sem prejuízo das excepções ao efeito cominatório da revelia, vigentes em processo declarativo, ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação” (assim, o Ac. do TRL de 11-12-2019, Pº 11060/17.5T8LSB-A, rel. PEDRO MARTINS).
Consoante decorre do n.º 2 do artigo 796.º do CPC, “o credor reclamante só pode ser pago na execução pelos bens sobre que tiver garantia e conforme a graduação do seu crédito.
Consequentemente, o reclamante só pelo produto desses bens há-de ser graduado o seu crédito.
Todavia, já “o crédito exequendo é que tem de ser graduado relativamente a todos os bens penhorados” (assim, Eurico Lopes Cardoso; Manual da Acção Executiva; 3.ª ed., Reimp., Almedina, 1992, p. 481).
No âmbito do precedente Código de Processo Civil, Fernando Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 4.ª ed., Almedina, 2003, p. 269), a respeito do modo como se deveria proceder à graduação, referia que: A graduação faz-se em separado para os bens móveis e imóveis, de acordo com as regras do direito substantivo; ainda sobre cada um desses bens, se sobre eles concorrerem créditos com diversas garantias.
O crédito exequendo é graduado em relação a todos os bens penhorados”.
Em semelhante sentido e no domínio da legislação vigente, salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado; Vol. II, Almedina, 2020, p. 199), “[a] graduação de créditos é feita para cada bem sobre o qual tenha recaído uma reclamação, pautando-se pelas normas de direito substantivo que estabelecem prevalência entre as garantias reais, bem como pela regra da prevalência da penhora consagrada no art. 822º do CC. Nesta senda, as regras de graduação variam consoante as garantias incidam sobre bens imóveis, bens móveis e créditos”.
Pode assim concluir-se que:
Uma vez que o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar o pagamento dos respetivos créditos, pelo produto dos bens penhorados, a sua garantia apenas incidirá sobre os bens a que respeite, limitação que o credor exequendo não tem, uma vez que o seu crédito respeita ou incide sobre todos os bens penhorados na ação executiva por si intentada.
Nessa medida, a graduação de créditos há-de concretizar-se, autonomamente ou em separado, para cada bem sobre o qual tenha recaído uma reclamação, de acordo com as regras do direito substantivo e, relativamente a cada um desses bens, se sobre eles concorrerem créditos com diversas garantias, tendo-se em conta, em cada uma dessas operações, que o crédito exequendo terá de ser graduado face a todos os bens penhorados.
Ora, conforme resulta do auto de penhora de 02-02-2019, ali foram penhorados 4 bens imóveis:
- Verba 1: Fração “M” (3.º Dt.º) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, pertencente aos executados CF e EF;
- Verba 2: Fração “D” (Garagem Nº 2 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.;
- Verba 3: Fração “E” (Garagem Nº 3 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, …, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e …, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.; e
- Verba 4: Prédio rústico (80 m2 - Cultura arvense, figueiras, oliveiras) situado em BAIRRADA, freguesia Fontes, concelho Abrantes, distrito Santarém, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.
Ora, os créditos reclamados – para além do crédito exequendo que respeita a todos os referidos bens – pelos credores reclamantes incidem sobre os seguintes bens:
- O do BANCO BPI, S.A. – SOCIEDADE ABERTA, sobre a verba 1 (a aludida fração “M”, em razão de hipoteca registada em 16-10-2007);
- O da reclamante CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., sobre a verba 1 (a aludida fração “M”, em razão de penhora registada em 18-01-2019); e
- O do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP, sobre as verbas 2, 3 e 4, atento o esclarecimento constante do requerimento de 23-03-2021.
As regras para se proceder à graduação de créditos constam do direito substantivo. Desde logo, o artigo 604.º, n.º 1 do Código Civil estabelece que, não havendo causa legítima de preferência, os credores de um mesmo património têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos créditos. E, no nº 2, do mesmo preceito considera-se que são causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei (como a penhora -cfr. artigo 822.º Código Civil), a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.
Ora, dado que, o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., dispõe de uma garantia real sobre a fração “M”, a qual, contudo, não pretendeu exercitar, esclarecendo no requerimento de 23-03-2021, que a sua reclamação apenas se reporta aos créditos detidos sobre a Educargas – Transitário, Lda., a indistinção dos bens sobre que incide a graduação, aliada à circunstância de se ter graduado o crédito do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P. antes dos créditos detidos pela exequente e reclamante CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., poderia determinar que o pagamento viesse a ser efetuado – no que respeita à aludida fração “M” - segundo a ordem preconizada no dispositivo da sentença recorrida, o que, como resulta do exposto, não corresponde ao pretendido pelo próprio reclamante INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
Verifica-se, de facto, que não ocorre conflito de causas de preferência entre a hipoteca sobre a fração “M” detida pelo BANCO BPI e a garantia de que o INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. dispõe sobre tais bens, sobre que não deduziu reclamação, sendo que, conforme se deu nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-02-2019 (Pº 551/13.7T2SNT-A.L1-2, rel. ARLINDO CRUA), “relativamente à oponibilidade dos privilégios imobiliários a direitos de terceiro a legal solução prevista na redacção inicial do artº. 751º, do Cód. Civil, que concedia preferência, nomeadamente, aos créditos da Segurança Social, que beneficiam de privilégio imobiliário geral, relativamente á hipoteca, foi definitivamente questionada pelo Tribunal Constitucional que, pelo Acórdão nº. 363/02, de 17/09/2002 – in DR I-A, de 16/10 -, decidiu “declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil”. O que justificou a alteração introduzida no mesmo artº. 751º pelo DL nº. 38/2003, de 06/03, ao restringir a oponibilidade a terceiros dos privilégios imobiliários especiais, assim afastando tal solução às situações de privilégio imobiliário geral”, importando, assim, que o beneficiário do respetivo privilégio o reclamasse para o mesmo poder ser tido em conta, relativamente a tal bem.
Impõe-se, por isso, que a graduação se opere, de forma autónoma e separada, relativamente a cada um dos bens penhorados e, não, como consta da decisão recorrida, indistintamente quanto a todos os bens penhorados (muito embora no dispositivo apenas se aluda ao “imóvel penhorado” – no singular – quando foram, como se viu, penhorados 4 imóveis).
A apelação procederá, em conformidade com o exposto, revogando-se o dispositivo da decisão recorrida, que se substituirá pelo seguinte:
“IV – Pelo exposto, devem os créditos verificados e incidentes sobre os bens penhorados nos autos, ser graduados pela seguinte ordem:
A) No tocante à Fração “M” (3.º Dt.º) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e …, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 142.589,01 EUR, pertencente aos executados CF e EF:
1.º o crédito reclamado pelo BANCO BPI, S.A. – SOCIEDADE ABERTA;
2.º o crédito exequendo;
3.º o crédito reclamado pela CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A.
B) No tocante à Fração “D” (Garagem Nº 2 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, …, … C, com vãos de porta para a Praceta..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 5.397,21 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
C) No tocante à Fração “E” (Garagem Nº 3 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua ... , nºs 16 A, 16 B, 16 C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 12.804,71 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
D) No tocante ao prédio rústico (80 m2 - Cultura arvense, figueiras, oliveiras) situado em BAIRRADA, freguesia Fontes, concelho Abrantes, distrito Santarém, na C.R.P. de Abrantes sob o nº ... da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … &# … secção AP da mesma freguesia de Fontes, com o VP de 2,60 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
As custas da execução sairão precípuas do produto dos bens penhorados (artigo 541.º do CPC).
(…)”.
*
De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses, sendo que, conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá sobre os apelados, que decaíram integralmente no presente recurso - cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o dispositivo da decisão recorrida, que se substituirá pelo seguinte:
“IV – Pelo exposto, devem os créditos verificados e incidentes sobre os bens penhorados nos autos, ser graduados pela seguinte ordem:
A) No tocante à Fração “M” (3.º Dt.º) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 142.589,01 EUR, pertencente aos executados CF e EF:
1.º o crédito reclamado pelo BANCO BPI, S.A. – SOCIEDADE ABERTA;
2.º o crédito exequendo;
3.º o crédito reclamado pela CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A.
B) No tocante à Fração “D” (Garagem Nº 2 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 5.397,21 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
C) No tocante à Fração “E” (Garagem Nº 3 - Piso-1) do prédio urbano situado na Rua …, nºs … A, … B, … C, com vãos de porta para a Praceta ..., nºs … e … A, na localidade e freguesia do Prior Velho, concelho de Loures, distrito Lisboa, descrito na 2ª C.R.P. de Loures sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … da União das freguesias de Sacavém e Prior Velho, com o VP de 12.804,71 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
D) No tocante ao prédio rústico (80 m2 - Cultura arvense, figueiras, oliveiras) situado em BAIRRADA, freguesia Fontes, concelho Abrantes, distrito Santarém, na C.R.P. de Abrantes sob o nº … da indicada freguesia, inscrito na respectiva matriz com o artigo matricial … &# …; secção AP da mesma freguesia de Fontes, com o VP de 2,60 EUR, pertencente à executada Educargas – Transitário, Lda.:
1º o crédito reclamado pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
2.º o crédito exequendo;
As custas da execução sairão precípuas do produto dos bens penhorados (artigo 541.º do CPC).
(…)”.
Custas a cargo dos apelados.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 14 de setembro de 2023.
Carlos Castelo Branco
Laurinda Gemas
João Miguel Mourão Vaz Gomes