Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
282/23.0GACSC-B.L2-3
Relator: FRANCISCO HENRIQUES
Descritores: APLICAÇÃO DE PERDÃO
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do Relator)
1. A aplicação do perdão de pena não pode ser discutida no tribunal recorrido. Este não tem competência para discutir a aplicação do perdão de pena relativamente a uma pena de prisão aplicada noutro processo.
2. Resta, então, entender que o perdão de pena só poderá ser analisado em sede de apreciação do cúmulo jurídico – sendo, agora, a única opção processual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No processo comum, com intervenção do tribunal singular com n.º 282/23.0GACSC, foi proferido despacho a 02/09/2025 pelo Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Cascais do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa Oeste que decidiu determinar a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos dois processos que se entende encontrarem-se em situação de concurso e ordenar a remessa ao Juízo Central Criminal de Cascais do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa Oeste, por ser o competente.
Inconformado o arguido apresentou as seguintes conclusões:
"1. O Arguido foi notificado do despacho com ref. Citius ..., através do qual se determinou a remessa dos autos para o Juízo Central Criminal, com vista à realização do respectivo cúmulo jurídico.
2. Na promoção apresentada pelo Ministério Público com ref. Citius ... a propósito da realização do cúmulo jurídico do Arguido, verifica-se um lapso de escrita, porquanto aí se menciona que a pena aplicada no âmbito do processo 834/20.0PBOER.L1, foi de três anos de prisão, quando, na realidade, a pena única fixada foi de dois anos e quatro meses de prisão, em virtude da parcial procedência do seu recurso junto deste Tribunal da Relação
3. Acresce que, no âmbito do processo n.º º 282/23.0GACSC , o Arguido foi igualmente condenado na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução.
4. Por via do despacho supra referido, o Tribunal determinou a realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao Arguido nos dois processos identificados, por considerar que as mesmas se encontram em situação de concurso.
5. Mais determinou que a competência para a realização do referido cúmulo cabe ao Tribunal Colectivo por referência ao artigo 14.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
6. Assim, no entender do Tribunal, resulta bastamente aplicável ao Arguido uma pena máxima de cinco anos e quatro meses de prisão, cujo aparente efeito prático – relevado o referido lapso – seria o mesmo.
7. No entanto, os factos objecto do processo que correu termos sob o n.º 834/20.0PBOER.L1 são susceptíveis de beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto – o que, aliás, foi tempo tempestivamente requerido pelo Arguido, ainda junto do Tribunal de Oeiras através de requerimento datado de .../.../2025, com ref. Citius 27831811.
8. Porém, por razões que se desconhecem e que ultrapassam o entendimento do arguido, o Tribunal de Oeiras remeteu o processo para o Tribunal de Cascais para efeitos de cúmulo, sem antes cuidar de aplicar o referido perdão, nos termos requeridos.
9. Assim, as penas para cúmulo deveriam ser:
- no processo nº 834/20.0PBOER.L1, um ano e quatro meses (em virtude do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, de um ano na pena de dois anos e quatro meses);
- nos presentes autos a pena de três anos;
10. Deste modo, efectuando-se agora o somatório para efeitos de cúmulo jurídico, verifica-se que a pena de três anos suspensa na sua execução, aplicada nos presentes autos, em adição à pena de um ano e quatro meses aplicada no âmbito do processo n.º 834/20.0PBOER.L1, perfaz uma pena abstractamente aplicável de quatro anos e quatro meses de prisão.
11. Assim, considerando que a moldura penal resultante é inferior a cinco anos, a competência para a realização do cúmulo jurídico passa a caber ao Tribunal Singular e não ao Tribunal Colectivo, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal".
O Ministério Público apresentou resposta, tendo concluído pela improcedência do recurso e para tal formulou as seguintes conclusões:
"1. As situações que envolvam o perdão consagrado na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e cúmulo jurídico das penas parcelares, deverão ser apreciadas em sede de cúmulo jurídico, com a análise das penas parcelares que beneficiam (ou não) do perdão;
2. Daí que a decisão proferida a 22-05-2025, pelo Juízo Local Criminal de Oeiras - J3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste (processo n.º 834/20.0PBOER) tenha entendido postergar a apreciação do perdão para o momento da realização do cúmulo jurídico das penas parcelares;
3. No que concerne ao processo n.º 834/20.0PBOER e a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, o Recorrente pretende sindicar matéria decidida pelo Juízo Local Criminal de Oeiras - J3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste (processo n.º 834/20.0PBOER), no âmbito destes autos – i.e., junto do Juízo Local Criminal de Cascais – J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o que não se compreende;
4. O douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, considerou, e bem, as penas parcelares a que o arguido foi condenado (i.e., a pena de dois anos e quatro meses e a pena de três anos) para efeitos da decisão da competência material do Tribunal;
5. Nessa medida, impõe-se concluir que o Tribunal Singular é incompetente em razão da matéria para julgar o presente processo, sendo o Tribunal Colectivo o competente, por força do disposto no artigo 14.º, n.º 2 al. b) e artigo 16.º, n.º 2, al. b) a contrario, ambos do Código de Processo Penal;
6. O Recorrente baseia-se numa errada interpretação dos normativos legais, pois assume a aplicação do perdão da pena tout court, antes de o mesmo ter sido concedido, para efeitos de determinação da competência do Tribunal singular, em detrimento do Tribunal Colectivo;
7. O Tribunal a quo realizou uma correcta apreciação legal da situação em apreço e justificou e o seu sentido;
8. Isto considerado, e por não merecer qualquer reparo, deve manter-se a decisão proferida nos seus precisos termos".
Os autos subiram a este Tribunal e nos mesmos o Ministério Público elaborou parecer em que conclui pela improcedência do recurso.
Uma vez que o parecer adere às razões fundamentos da resposta não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
Os autos foram a vistos e a conferência.
2. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr., Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995 e artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Processo Penal).
Inexistindo questões de conhecimento oficioso que importe decidir e face ao teor das conclusões da motivação apresentadas, nos presentes autos a questão a apreciar respeita ao momento da aplicação do perdão de pena em caso de concurso de infracções.
3. Fundamentação
O despacho recorrido tem o teor que segue.
"Por sentença proferida a 30.07.2024, transitada em julgado a 02.01.2025, o arguido AA foi condenado nos presentes autos, pela prática (em autoria material e na forma consumada) de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artº 152º, nºs 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5 do Cód. Penal, na pena principal de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período temporal e sujeita a regime de prova.
Mais foi o arguido condenado na pena acessória de 3 (três) anos de proibição de contactos com a ofendida, incluindo, através de interposta pessoa, e de se aproximar da residência/local de trabalho da ofendida ou de aí permanecer, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Para além da presente condenação, foi o arguido igualmente condenado no Processo n.º 834/20.0PBOER, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oeiras (J3), por sentença proferida a 14.07.2023, transitada em julgado a 07.03.2025, pela prática do mesmo crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152º, n.º 1, al. b), e n.ºs 4 e 5 do Cód. Penal, numa pena de prisão efectiva de 3 (três) anos.
Assim, constata-se a existência de uma relação de concurso entre o presente processo e o Processo n.º 834/20.0PBOER, pelo que as penas aplicadas em ambos os processos devem ser sujeitas a cúmulo jurídico.
A decisão dos presentes autos foi proferida em momento posterior à do Processo n.º 834/20.0PBOER, pelo que deverá ser nos presentes autos que se realizará o cúmulo jurídico de penas – arts. 77º e 78º, n.º 1 do Cód. Penal e art. 471º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal – independentemente das vantagens ou desvantagens que, para a situação do condenado, daí possam resultar, havendo lugar a cúmulo jurídico de penas efectivas de prisão e de penas suspensas na sua execução.
Considerando que as penas parcelares em que o arguido foi condenado, incumbirá ao Tribunal Colectivo a realização do competente cúmulo jurídico – art. 14º, n.º 2, alínea b) do Cód. de Processo Penal.
Nestes termos, determino a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos dois processos que se entende encontrarem-se em situação de concurso.
Nestes termos, após instruir os presentes autos, conforme douta promoção que antecede, remeta aos mesmos ao Juízo Central Criminal, por ser o competente para a realização do respectivo cúmulo jurídico – arts. 14º, n.º 2, alínea b), 77º, n.º 2 e 471º, n.º 2, todos do Cód. de Processo Penal e arts. 118º e 134º, ambos da Lei de Organização do Sistema Judiciário".
3.1. Do mérito do recurso.
Do momento da aplicação do perdão de pena em caso de concurso de infracções.
É pacífico que a pena imposta no processo 834/20.0PBOER (2 anos e 4 meses de prisão) e a pena aplicada no processo 282/23.0GACSC (3 anos de prisão) estão em relação de concurso.
O recorrente discorda do limite máximo da moldura abstracta do concurso encontrada pelo tribunal a quo (5 anos e 4 meses de prisão).
E, se é pacífica a relação de concurso, também o deveria ser as penas em concurso. Ou seja, a pena aplicada no processo 282/23.0GACSC não está em discussão, somente a pena imposta no processo 834/20.0PBOER – à qual o recorrente pretende que seja subtraído 1 ano de prisão referente ao perdão de pena constante do artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08. Mas, como bem observa o Ministério Público, a aplicação do perdão de pena não pode ser discutida no tribunal recorrido. Parece claro que o tribunal a quo não tem competência para discutir a aplicação do perdão de pena relativamente a uma pena de prisão aplicada noutro processo.
No processo 834/20.0PBOER foi decidido – sem oposição do recorrente – que a aplicação do perdão ocorreria aquando da realização do cúmulo jurídico. Esta é uma questão decidida, não podendo sequer ser alterada por este tribunal ad quem.
Resta, então, entender que o perdão de pena só poderá ser analisado em sede de apreciação do cúmulo jurídico – sendo, agora, a única opção processual.
Sendo, então de aplicar o n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, sob a epígrafe "perdão de penas", ao dispor que "em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única".
E, se assim é, o despacho recorrido está correcto.
Correcto ao determinar a realização de cúmulo jurídico.
Correcto ao remeter a análise da questão para o Juízo Central Criminal de Cascais.
Deste modo, o recurso não merece provimento.

4. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso e, consequentemente, manter o despacho proferido.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC – artigo 513.º do Código Processo Penal.
Notifique.

Lisboa, 03 de Dezembro de 2025,
Francisco Henriques
João Bártolo
Rosa Vasconcelos