Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | AMÉLIA SOFIA REBELO | ||
| Descritores: | PENHOR PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL SEGURANÇA SOCIAL CRÉDITOS LABORAIS GRADUAÇÃO CONFLITO DE NORMAS INTERPRETAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/24/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I – Na ordenação bilateral concursal do penhor com o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social não subsiste qualquer conflito normativo, sendo a ordem de pagamentos claramente definida pela aplicação do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS que, pela sua natureza de norma especial e imperativa, se sobrepõe à previsão dos arts. 666º e 749º, nº 1 do CC, e expressamente define e coloca em primeiro lugar o crédito privilegiado da Segurança Social quando em concurso com crédito pignoratício. II – Diversamente, a aplicação cumulativa dos arts. 666º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, 333º, nº 2, al. a) do Código de Trabalho, art. 204º, nº 1 e 2 do CRCSPSS e art. 747º, nº 1, al. a) para, nos seus precisos termos, fixar a graduação sucessiva dos créditos pignoratício, créditos laborais, e créditos privilegiados do Estado sobre o produto do bem objeto do penhor, desemboca em conflito de normas de impossível conciliação prática, situação que, por força do art. 8º, nº 1 e 3 do Código Civil, determina que pelo menos, mas também pelo mínimo necessário, uma das normas e ordenação legal concursiva por ela regulada tenha que ser preterida em beneficio da aplicação de outra. III – O referido ‘pelo menos, e pelo mínimo’ é cumprido mediante uma interpretação/aplicação restritiva do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, através do sacrifício/preterição da ordenação bilateral legal do penhor e do privilegio creditório da Segurança Social, com o objetivo de dar cumprimento e primazia à preferência de pagamento do crédito laboral sobre o crédito da Segurança Social prevista pela conjugação dos art. 333º, nº 2, al. a) do Código de Trabalho e 204º, nº 1 do CRCSPSS, e que, apenas como efeito colateral, conduz à graduação do penhor em primeiro lugar, seguindo-se-lhe na graduação o crédito laboral e os créditos privilegiados do Estado. IV - A graduação do penhor com preterição de dois graus da preferência legal que lhe é reconhecida – abrangendo a ordenação bilateral legal penhor/impostos e a ordenação bilateral legal penhor/créditos laborais -, para além de corresponder a mutação na ordem jurídica com a qual, razoavelmente, não é exigível que o titular do penhor possa contar, importaria ainda numa onerosidade excessiva, por desproporcional, à contradição legal visada colmatar, introduzida pela norma excepcionamente prevista pelo art. 204º, nº 2 do CRCSPSS e ao interesse por esta visado tutelar. V - No caso sub iudice os credores laborais foram graduados pela sentença recorrida em 3º lugar, depois do crédito privilegiado da Segurança Social e do crédito pignoratício da recorrente, sendo que nessa parte a decisão da primeira instância transitou em julgado porque dela não foi interposto recurso, com a consequente fixação, em definitivo, da posição dos créditos dos trabalhadores reconhecidos nestes autos no terceiro lugar da grelha de pagamentos relativamente ao produto do bem objeto do penhor da recorrente, com a qual os credores laborais se conformaram. VI – Nesse contexto, jurídico-processual, a discussão suscitada pelo recurso apenas pode cingir-se à ordenação/graduação, entre si, do crédito da Segurança Social e do crédito da recorrente, sem que seja influenciada pela posição dos créditos laborais porque, fixada pela força do caso julgado material, sobre ela não se repercute e, por isso, independentemente do resultado do recurso, manter-se-iam igualmente depois do crédito garantido da recorrente e do crédito privilegiado da Segurança Social. VII - Não se colocando agora a necessidade de uma interpretação restritiva do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS para tutela da posição legal dos credores laborais, não se justifica uma qualquer correção da graduação do privilégio creditório da Segurança Social e do penhor nos termos pretendidos pela recorrente, com a graduação deste à frente daquele, pois, esta sim, consubstanciaria violação frontal, mas agora injustificada, da letra e sentido de lei expressa. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I - Relatório 1 - No apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência de “Empresas das Águas do Alardo, Ldª” foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos com o dispositivo que se transcreve, contendo as alterações introduzidas por retificação ordenada por despacho subsequente à apresentação das alegações de recurso (excluindo, por desnecessária, as ali enunciadas alterações à lista de créditos em resultado das impugnações, e a identificação dos credores laborais): Em face do exposto, julgo verificados os créditos constantes da relação de créditos reconhecidos, com as alterações enunciadas (…) Aos créditos agora verificados são aditados os que o foram nas respetivas ações de que correram por apenso ao processo principal e, para serem pagos pelo produto líquido da massa insolvente, graduo os créditos nos termos seguintes: A – Pelo produto da venda dos bens imóveis: 1 – VERBA n.º 1 1º - Em primeiro lugar: os créditos privilegiados dos trabalhadores da insolvente, emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação, na proporção dos seus montantes: (…) 2º - Em segundo lugar: crédito com privilégio creditório imobiliário especial M. PÚBLICO/FAZENDA NACIONAL-€ 1.418,41; 3º- Em terceiro lugar o crédito garantido por hipoteca: BANCO ESPIRITO SANTO, SA., até ao montante máximo € 1.650.000,00; 4º - Em quarto lugar crédito com privilégio imobiliário: INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP-€ 78.295,35; 5º - Em quinto lugar: crédito com privilégio imobiliário IRS: M. PÚBLICO/FAZENDA NACIONAL-€ 2.323,00; 6º - Em sexto lugar: credores comuns na proporção dos seus créditos se a massa for insuficiente para respetiva satisfação integral. 7º - Em sétimo lugar: créditos subordinados, pela ordem segundo a qual são indicados no artigo 48º e na proporção dos respetivos montantes quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral. * 1 – VERBA n.º 2 1º - Em primeiro lugar o crédito com privilégio imobiliário: INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP-€ 78.295,35; 2º - Em segundo lugar o crédito com privilégio imobiliário IRS: M. PÚBLICO/FAZENDA NACIONAL-€ 2.323,00; 3º - Em terceiro lugar: os credores comuns, neles se incluindo os que beneficiam de garantia por hipoteca e privilégio imobiliário especial que não hajam sido integralmente pagos, na proporção dos seus créditos se a massa for insuficiente para respetiva satisfação integral. 4º - Em terceiro lugar: créditos subordinados, pela ordem segundo a qual são indicados no artigo 48º e na proporção dos respetivos montantes quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral. * B – Pelo produto da venda dos bens móveis: 1 – Verbas 1- 67 e 68[1]-71 – compostas de bens e/ou direitos que integram a unidade exploracional do estabelecimento. 1º Em primeiro lugar remanescente do crédito com privilégio mobiliário INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP - € 78.295,35. 2º Em segundo lugar o crédito garantido por penhor: Banco Espírito Santo, SA, até ao máximo de - € 500.000,00. 3º E terceiro lugar o remanescente dos créditos privilegiados dos trabalhadores da insolvente, emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação, na proporção dos seus montantes: (…) 4º - Em quarto lugar o remanescente do crédito com privilégio mobiliário IRS: M. PÚBLICO/FAZENDA NACIONAL -€ 2.323,00 ; 5º - Em quinto lugar: os credores comuns, neles se incluindo os que beneficiam de garantia por hipoteca e privilégio imobiliário especial que não hajam sido integralmente pagos, na proporção dos seus créditos se a massa for insuficiente para respetiva satisfação integral. 6º - Em sexto lugar: créditos subordinados, pela ordem segundo a qual são indicados no artigo 48º e na proporção dos respetivos montantes quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral. * 2 - Verba 68 – viatura da marca LADA, com a matrícula 03-72-EU - e 72 - ações tituladas sob o número 701 a 770 da sociedade “EMPROBAL – Empresa de Produção e Comercialização de Embalagens”» 1º Em primeiro lugar o remanescente dos créditos privilegiados dos trabalhadores da insolvente, emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação, na proporção dos seus montantes: (…) 2º - Em segundo lugar o remanescente do crédito com privilégio mobiliário IRS : M. PÚBLICO/FAZENDA NACIONAL -€ 2.323,00 ; 3º - Em terceiro lugar remanescente do crédito com privilégio mobiliário INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP,-€ 78.295,35. 4º - Em quarto lugar: os credores comuns, neles se incluindo os que beneficiam de garantia por hipoteca e privilégio imobiliário especial que não hajam sido integralmente pagos, na proporção dos seus créditos se a massa for insuficiente para respetiva satisfação integral. 5º - Em quinto lugar: créditos subordinados, pela ordem segundo a qual são indicados no artigo 48º e na proporção dos respetivos montantes quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral. 2 - Recorre dessa decisão o Novo Banco, SA, na posição processual detida nos autos pelo Banco Espírito Santo, SA e em substituição deste[2], invocando nulidade da sentença e requerendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra nos termos que decorrem das seguintes conclusões: 1. Deverá ser determinado que o Novo Banco, S.A. é parte legítima para prosseguir nestes autos no lugar de credor reclamante, substituído o Banco Espírito Santo, S.A., o que ora se requer atenta a argumentação expendida na motivação do presente recurso e a documentação que ora se junta com este articulado. 2. A presente sentença é nula ao abrigo do disposto no art. 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi 17º do CIRE, arguindo-se desde já este vício para todos os efeitos legais. 3. Pois, no âmbito dos presentes autos foi apreendida e vendida a verba n.º 71 - Título de registo de marca nacional n.º 2 (s) 259326 (ALARDO), 284846 (ALARDO), 289384 (ALARDO), 290216 (ALARDO), 340775, 346579, 348743 (ÁGUA NOVA), com a classificação dos produtos e serviços 32 — Águas Mineiras e Gasosas, reprodução do sinal "ÁGUA VIVA", 377678 (Água de Castelo Novo) com a classificação dos produtos e serviços 32 — Águas Mineiras e Gasosas e outras bebidas não alcoólicas, título de registo de marca comunitária n.2 149229 (Alardo) com a classificação dos produtos e serviços 32 — Águas Mineiras e Gasosas e outras bebidas não alcoólicas e apreendida e vendida a verba n.° 72 — Acções tituladas sob o número 701 à 770 da sociedade "EMPROBAL -EMPRESA DE PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE EMBALAGENS, LDA", cfr. Docs. 5 a 8 que ora se juntam e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. 4. Na reclamação de créditos apresentada pelo recorrente é feita a referência e junto documentos que comprovam que para garantia do pagamento do crédito reclamado pelo recorrente no valor de € 1.661.323,62 (um milhão seiscentos e sessenta e um mil trezentos e vinte e três euros e sessenta e dois cêntimos) foi constituído Penhor unilateral sobre o estabelecimento fabril / industrial instalado no imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n° 34 da freguesia de Castelo Novo e inscrito na matriz predial sob o art° 691 e bens nele existentes até ao montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), penhor sobre a Marca "Alardo" de que a sociedade era titular, registada sob o número 289384 junto do Instituto Nacional da Água, e penhor sobre os direitos de exploração de água mineral, denominada "Alardo" de que igualmente a sociedade devedora era titular. 5. Aliás, o próprio administrador de insolvência na lista definitiva de créditos reconhecidos elaborada nos termos do art. 129º do CIRE e a própria decisão aqui recorrida reconhecem e validaram a existência de tais garantias, qualificado tal crédito como garantido por via do penhor e hipoteca. 6. Sobre estes bens, constituídos sobre as aludidas verbas n.º 71 e 72, apreendidos nos autos, a sentença em crise é totalmente omissa. 7. Em face do exposto é patente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar, mormente quanto à graduação pelo produto da venda das verbas n.ºs 71 e 72 que estão apreendidos nos presentes autos, sendo que as mesmas se encontram-se garantidas por penhor a favor do aqui Recorrente, o qual atribui ao aqui credor aqui reclamante a prevalência de pagamento sobre qualquer outro credor, nos termos do n.º 1 do art. 666º e do art. 749º, n.º 1, ambos do Código Civil, pelo produto da respectiva venda. 8. Sem prejuízo da nulidade acima invocada, vem o presente recurso interposto da Sentença proferida em 28.10.2019, com a referência n.º 391102328 pelo Tribunal a quo que graduou os créditos reconhecidos e reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P. à frente do crédito Reclamado pelo credor Novo Banco, S.A., garantido por penhor a favor do banco aqui recorrente, pelo produto da verbas 1 a 67 e 69 e 70 apreendidas nestes autos. 9. Ora, o Recorrente não se pode conformar com tal entendimento, não tendo a decisão recorrida acolhido devidamente a especificidade da matéria em causa e o âmbito jurídico da mesma. 10. Pois, em 24.03.2011 foi elaborado nestes autos o auto de apreensão e arrolamento dos bens móveis e imóveis da titularidade da massa insolvente – cfr. Doc. 5 supra. 11. Para garantia do pagamento do crédito reclamado pelo recorrente no valor de € 1.661.323,62 (um milhão seiscentos e sessenta e um mil trezentos e vinte e três euros e sessenta e dois cêntimos), foi constituído Penhor unilateral sobre o estabelecimento fabril/industrial instalado no imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n° 34 da freguesia de Castelo Novo e inscrito na matriz predial sob o art. 691º e bens nele existentes até ao montante de €500.000,00 (quinhentos mil euros), penhor sobre a Marca "Alardo" de que a sociedade era titular, registada sob o número 289384 junto do Instituto Nacional da Água, e penhor sobre os direitos de exploração de água mineral, denominada "Alardo" de que igualmente a sociedade devedora era titular – cfr. Doc. 6 supra. 12. O crédito acima reclamado, bem como a qualificação do mesmo como tendo natureza garantida, não foi objecto de quaisquer impugnações, tendo sido reconhecido in totum na sentença em apreço – cfr. Doc. 6 supra. 13. Todavia, o Tribunal a quo entendeu graduar os créditos reconhecidos e reclamados pela pelo Instituto da Segurança Social, I.P. à frente dos créditos pignoratícios da titularidade do Novo Banco, S.A., pelo produto da venda das verbas 1 a 67 e 69 e 70 apreendidas nestes autos e vendidas juntamente com as verbas n.º 71 e 72º pelo valor total de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) – cfr. Doc. 8 supra. 14. Deverá pois improceder este entendimento do Tribunal a quo, uma vez que as garantias têm por função proteger os direitos de crédito, sendo certo que a garantia geral dos credores é constituída pelo património do devedor, nos termos do disposto pelo artigo 601º do Código Civil. 15. A esta garantia geral das obrigações pode acrescer um especial reforço através de garantia real dada pelo devedor. 16. O penhor é uma garantia real que confere ao credor, de acordo com o estatuído pelo artigo 666º, nº 1, do CC, “…o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”. 17. Assim, podem ser dados em penhor coisas móveis, créditos ou outros direitos não hipotecáveis. 18. No penhor de direitos, como o acentua a norma do art. 680º do CC, exige-se que estes tenham por objeto coisas móveis e sejam transmissíveis – o que se verifica in casu com o penhor constituído a favor do recorrente sobre o estabelecimento fabril/industrial instalado no imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n° 34 da freguesia de Castelo Novo e inscrito na matriz predial sob o art° 691 e bens nele existentes até ao montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), penhor sobre a Marca "Alardo" de que a sociedade era titular, registada sob o número 289384 junto do Instituto Nacional da Água, e penhor sobre os direitos de exploração de água mineral, denominada "Alardo" de que igualmente a sociedade devedora era titular. 19. Nos termos do art. 749.º, n.º 1, do Código Civil, o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos, que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente. 20. Da conjugação do art. 666.º, n.º 1, do Código Civil, que confere prioridade absoluta ao penhor, com o disposto no art. 749.º, n.º 1, do mesmo diploma resulta que, no confronto entre um privilégio geral e o penhor, a preferência deve ser dada a este direito real de garantia (nesse sentido, cfr. entre outros o Ac. do STJ de 30.05.2006, proc. n.º 06A1449, em www.dgsi.pt). 21. É certo que o art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009 determina que o privilégio mobiliário geral de que beneficiam as instituições de segurança social prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. 22. Todavia é a própria decisão recorrida, no ponto 5.2.5., excluí a aplicação deste regime, defendendo que in casu se aplica o Decreto-Lei 103/80 de 09.05. 23. Ora, dúvidas inexistem que, por força destes normativos – art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009 e art. 10º, n.º 2, do Decreto-Lei 103/80 de 09.05 – se concorrerem apenas créditos das instituições de segurança social com créditos garantidos por penhor, o crédito da Segurança Social deveria ser graduado à frente do crédito pignoratício. 24. No entanto, além de não se aplicar in casu o art. 204.º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009, aplicando-se o art. 10º do Decreto-Lei 103/80 de 09.05, cuja redação é exactamente a mesma, cumpre referir que, para além dos créditos da Segurança Social, concorrem com o crédito pignoratício do recorrente outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral, maxime de créditos por impostos e créditos dos trabalhadores, gerando-se assim uma evidente contradição normativa: é que o n.º 1 do art. 10º do Decreto-Lei 103/80 de 09.05, manda graduar o crédito da segurança social a par com o crédito por impostos e dos créditos dos trabalhadores, o seu n.º 2 gradua o crédito da segurança social à frente do crédito pignoratício e o art. 747.º, n.º 1, do Código Civil, por seu turno, gradua o crédito por impostos com prevalência sobre o crédito da segurança social. 25. Com efeito nestes autos a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, reclamou créditos, que foram considerados como privilegiados, assim como os credores trabalhadores – cfr. Doc. 6 supra. 26. Atento este cenário, perfilhamos do entendimento plasmado no Ac. do TRC, datado de 20.06.2017, proferido no âmbito do Processo n.º 6100/16.8T8CBR-C.C1, onde foi relator Dr. LUÍS CRAVO, cuja consulta se encontra disponível in www.dgsi.pt, de que esta “lacuna de colisão” deve ser colmatada através da prevalência absoluta do crédito pignoratício, no confronto com os diversos créditos privilegiados, tendo em conta a natureza excecional que revestem as normas que conferem privilégios gerais - certo que, à margem da autonomia privada, afetam o princípio da igualdade dos credores -, a determinar que não possam ser aplicadas por analogia e que, quanto a elas, deva prevalecer o critério da sua interpretação restritiva (nesse sentido, o Ac. da RC de 23.04.1996, CJ, t. II, pág. 36, e de 25.01.2011, proc. n.º 825/08.9TBMGR-K, C.1 e o Ac. da RP de 6.05.2010, proc. n.º 744/08.9TBFVR-E.P1, estes em www.dgsi.pt, e Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Almedina, 2004, pág. 302). 27. Como tal, e tendo em consideração o princípio da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico (a que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 363/02, de 17.09.2002, publicado no DR n.º 239, I-A de 16.10.2002, apelou para declarar inconstitucional as normas contidas nos arts. 2.º do Dec. Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do Dec. Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo o qual o privilégio mobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca e Acórdão n.º 362/2002, datado de 17.09.2002, publicado no DR n.º 239, I-A de 16.10.2002, em relação ao créditos de natureza fiscal/tributários da titularidade da Autoridade Tributária/Fazenda Nacional), deve concluir-se que, no confronto entre o direito de crédito garantido por penhor e os direitos de créditos garantidos por privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, derivados de impostos da titularidade do Estado e das autarquias locais e da titularidade das instituições de segurança social derivados de taxa contributiva, a prevalência deve operar por essa ordem, com o crédito garantido por penhor a ser graduado em 1º lugar. 28. Acresce ainda que, não pode igualmente prevalecer o entendimento da prevalência aos créditos dos trabalhadores e aos créditos por impostos e da segurança social sobre o credor pignoratício, sob pena de derrogação do disposto nos arts. 666º, n.º 1 e 749º, n.º1 do Código Civil (CC), frustrando as legítimas expectativas do Banco Apelante, na qualidade de credor pignoratício, pondo em causa a segurança do comércio jurídico. 29. Saliente-se que o atual Código de Trabalho (CT) não atribui qualquer prevalência dos créditos laborais em relação aos créditos pignoratícios, mas tão só quanto aos créditos referidos no n.º 1 do art. 747º do CC, isto é, os créditos por impostos (cf. art. 333º, n.º 2, alínea a), do CT); sendo que a legislação fiscal tão pouco atribui qualquer prevalência dos créditos por impostos relativamente ao penhor. 30. Sendo inquestionável que o penhor é uma garantia real, enquanto os privilégios mobiliários gerais não são verdadeiras garantias reais das obrigações, por não conferirem ao respetivo titular o direito de sequela (cf. arts. 666º, n.º 11 e 749º, n.º 1 do CC). 31. Daí que os créditos pignoratícios prevaleçam, quanto aos bens móveis que incidem, sobre os créditos dos trabalhadores e os créditos fiscais do Estado e da Segurança social que gozam de privilégios mobiliários gerais. 32. Como realçou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05.05.2005, «sendo gerais (não circunscritos ou delimitados, para não dizermos indeterminados), cedem perante os direitos reais de garantia de terceiros – estes sim – circunscritos, delimitados, individualizados sobre bens concretos (…) Não fazia sentido nenhum que, o credor estivesse garantido pelo seu crédito anterior, contando legitimamente com a correspondente segurança (porventura só com base nela financiou), vendo-se, depois, confrontado com o reconhecimento legal de um privilégio, sem limites temporais e oculto (…) que lesasse de surpresa, e porventura irremediavelmente, a protecção da sua confiança ou da sua legítima expectativa naquela segurança pressuposta. Parece racional que, entre a obscuridade de um privilégio, e a clareza de outro, ambos sobre a mesma coisa, a melhor interpretação do Direito, vá pela certeza da transparência» (processo 05B835 in www.dgsi.pt) 33. No mesmo sentido vide Ac. STJ, datado de 10.12.2009, processo n.º 864/07.7TBMRG-I.C1.S1; Ac. do TRC, datado de 21.03.2013, processo 249/12.3TBGRD; Ac. do TRP, datado de 06.05.2010, processo n.º 744/08.9TBVFR E.P1; Ac. do TRG, datado de 11.01.2011, processo n.º 881/07.7TBVCT-M.G1, Ac. TRP, datado de 06.05.2010 e AC. do TRC datado de 11.01.2011, todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt). 34. Como refere o Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão de 13.02.2014, que «têm sido levantados alguns problemas de interpretação face à conjugação das várias disposições legais aplicáveis, designadamente, os artigos 747.º, n.º 1 do CC – que estabelece a ordem dos privilégios creditórios e que coloca em 1.º lugar, os créditos por impostos – e o artigo 377.º, n.º 2 a) do Código do Trabalho – que estabelece que o crédito com o privilégio mobiliário geral que garante os créditos laborais é graduado antes dos créditos referidos naquele n.º 1 do artigo 747.º do CC, ou seja, antes dos impostos – e, estabelecendo o artigo 10.º, n.º 2 do DL 103/80, quanto ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social, a regra de que este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, sendo que o mesmo se gradua logo após os créditos de impostos e, consequentemente, após os créditos laborais, tem conduzido a que alguns venham entendendo que se terá sempre de graduar os créditos laborais em primeiro lugar, seguidos dos créditos por impostos, a que se seguiriam os créditos da Segurança Social e, finalmente, os créditos garantidos por penhor (…). Este entendimento não é de sufragar, não só porque penaliza excessivamente o crédito pignoratício, retirando-lhe toda a relevância prática que lhe é atribuída pela sua natureza real e consequente sequela, como também porque não respeita a ordem estabelecida pelos artigos 747.º, n.º 1 a) do CC, 377.º, n.º 2 a) do CT e 10.º, n.º 1 do DL 103/80 que, sem prejuízo da prioridade do penhor, de acordo com as regras gerais dos artigos 666.º e 749.º do CC, coloca os créditos laborais e os créditos por impostos antes dos créditos da Segurança Social. É, assim, de sufragar, a tese do Conselheiro Salvador da Costa, na obra citada, pág. 310 a 312, que entende que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social só prevalece sobre o penhor quando concorrem os dois sozinhos, mas, quando concorrem com outros créditos garantidos com privilégios mobiliários, tal prioridade não opera, graduando-se os créditos da Segurança Social depois do penhor e depois dos outros créditos privilegiados, em virtude de a norma do n.º 2 do artigo 10.º do DL 103/80 ter caráter excecional e dever ser interpretada restritivamente» (processo 1216/13.5TBBCL-A.G1 in www.dgsi.pt). 35. Por último, cita-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 05.11.2015, processo 284/14.7TBRMR-A.E1 in www.dgsi.pt, cujo relator foi o Juiz Desembargador Mário Serrano, cuja decisão deverá ser aqui aplicável ipsis verbis: «Em relação ao penhor, estabelece o artº 666º, nº 1, do C.Civil que «O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro». Desta norma emerge uma regra geral «no sentido de que o credor que goze do direito de penhor sobre certa coisa móvel (…) beneficia de preferência na realização do respectivo direito de crédito pelo produto do concernente objecto sobre qualquer outro credor» (assim, SALVADOR DA COSTA, Concurso de Credores, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, p. 41). Em coerência com este enquadramento, e na sua concretização a propósito dos privilégios creditórios, estipula o artº 749º, nº 1, do C.Civil que «O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente». 36. Face a tudo o exposto não deveria ter o Tribunal a quo decidiu como decidiu e, em consequência, não devia ter graduado os créditos reconhecidos e reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P. à frente dos créditos pignoratícios da titularidade do Novo Banco, S.A., pelo produto da venda dos bens móveis e direitos constantes das verbas 1 a 67 e 69 e 70 apreendidas nestes autos, devendo antes ser graduado em 1º lugar o crédito garantidos por penhor, com sucede com o crédito reclamado do aqui Recorrente. 37. Nesta conformidade todo exarado na decisão recorrida relativamente à graduação dos créditos reclamados que preferem no produto da venda dos bens móveis e direitos constantes das verbas 1 a 67 e 69 e 70 apreendidas nestes autos deverá, necessariamente, soçobrar, devendo a mesma ser revogada e proferida uma outra nos exactos termos aqui exarados. 38. Tendo a decisão recorrida violado os arts. 666º, n.º 1, 680º, 735º, 747º, n.º 1 e 749º, n.º 1, todos do Código Civil, art. 377.º, n.º 2 a) do CT e art. 2º da CRP. Não foram apresentadas contra-alegações. 3 - O tribunal recorrido admitiu o recurso e, identificando-a como lapso manifesto (emergente da ausência de acesso aos elementos em papel do apenso de apreensão de bens durante o período do estado de emergência decretado e determinado com fundamento na pandemia por SARS-CoV-2), procedeu à supressão da omissão invocada como fundamento da nulidade da sentença arguida pelo recorrente em sede de alegações, integrando as verbas 71 e 72 na graduação dos créditos definidas pela sentença recorrida. Notificado da referida retificação da sentença, a recorrente requereu o alargamento do âmbito do recurso à graduação dos créditos pelo produto da venda das referidas verbas por aquela operada, que foi admitido pelo tribunal recorrido. II. Objeto do Recurso Considerando que o thema decidendum do recurso é balizado pelo objeto da decisão recorrida e, este, pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que ex officio se imponha conhecer, pela presente apelação, e considerando que a omissão fundamento da nulidade da sentença arguida em recurso foi suprida pelo tribunal recorrido, subsiste e cumpre apenas apreciar se a decisão de graduação de créditos deve ser alterada, graduando em primeiro lugar o crédito da recorrente pelo produto dos bens objeto do penhor que lhe foi reconhecido. III. Fundamentação A) De Facto 1. Da lista de créditos homologada por sentença de verificação de créditos proferida pelo tribunal recorrido, constam créditos emergentes da execução e cessação de contratos de trabalho e, entre outros, os seguintes créditos: 11 - BANCO ESPIRITO SANTO, SA. Empréstimos; Juros e Descoberto conta DO (…) Crédito Garantido / Crédito Comum TOTAL € 1.679.684,99 O valor de € 1.679.684,99 encontra-se garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o n° 34 da freguesia de Castelo Novo e inscrito na matriz predial sob o art° 691 até ao montante máximo de € 1.650.000,00. Encontra-se ainda garantido por um penhor unilateral sobre o estabelecimento fabril/industrial instalado no imóvel atrás identificado e bens nele existentes até ao montante de € 500.000,00, pela Marca "Alardo" de que a sociedade é titular e dos direitos de exploração de água mineral, denominada "Alardo". 18 - ESTADO representado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO IMI's (€ 1.377, 10) + Juros (€ 41,31) IRS (€ 2.216,96) + Juros (€ 96,64) Imposto Selo (€ 10,00) + Juros (€ 0,40) Coimas (€ 352,72) + Juros (€ 3,57) + Custas (€ 234,63) € 1.418,41 € 2.323,00 € 590,92 Crédito Garantido (Artº 11º Código do IMI) - Crédito Privilegiado - Crédito Comum TOTAL € 4.332,33. 30 - INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP Contribuições e Juros até um ano antes declaração insolvência - € 78.295,35 Contribuições e Juros - um ano antes da insolvência € 180.782,72 Crédito Privilegiado - Crédito Comum 2. Conforme descrito na sentença recorrida e no despacho de retificação que à mesma foi introduzida, foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens: A - Imóveis 1 - Prédio urbano, sito na Quinta do Alardo ou Alardo, freguesia de Castelo Novo, concelho do Fundão, composto por um agregado com três edifícios: dois de r/c e um de r/c e 1º andar, destinados, um a fábrica de garrafas, linha de enchimento, armazém, escritórios, casas de banho e refeitório, outro a armazém e outro a receção de clientes, e logradouro, confrontando a Norte e Nascente com Herdeiros de Álvaro Gamboa, Sul e Poente com Caminho, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 691, da freguesia de Castelo Novo, e descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o nº 334/Castelo Novo, com o valor Patrimonial de € 383 396,31, sobre o qual incide hipoteca hipotecas voluntárias a favor de Banco Espírito Santo, S.A., para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela Empresa das Águas do Alardo, Lda., até ao montante máximo assegurado de € 1 650 000,00, registada pela apresentação 276/20100731. 2 - Prédio rústico, sito em Churro, freguesia de Castelo Novo, concelho do Fundão, composto de cultura arvense, cultura arvense de regadio, eucaliptal, pinhal, pastagens e mato, confrontando do Norte, Sul e Poente com Junta de Freguesia, de Nascente com Maria Martins Fernandes e outro, com área de 200 000,00m2, inscrito na matriz predial sob o artigo 165, da freguesia de Castelo Novo, e descrito na Conservatória do Registo Predial do Fundão sob o nº 776/Castelo Novo, com o valor patrimonial € 3 657,68. B - Bens móveis e/ou direitos: 1 – verbas 1 a 67 e 69 a 71 - bens e/ou direitos que integram a unidade exploracional do estabelecimento - cf. auto de fls. 6 -23 do apenso de apreensão de bens, cujo teor se dá por reproduzido. 2 - Verbas 68 e 72 – respetivamente, viatura da marca LADA, com a matrícula 03-72-EU, e ações tituladas sob o número 701 a 770 da sociedade “EMPROBAL – Empresa de Produção e Comercialização de Embalagens. 3. A devedora apresentou-se à insolvência através de requerimento remetido a juízo em 18.11.2010, dando origem aos presentes autos de insolvência. B) DE DIREITO Como é sabido e consta dos arts. 627º, nº 1 e 2 e 644º do CPC, o recurso de apelação constitui a forma de impugnação das decisões proferidas pelo tribunal de primeira instância desfavoráveis à parte recorrente que, por essa via, as submete à reapreciação do Tribunal da Relação e requer que este proceda à anulação, revogação ou alteração da decisão recorrida. Nesse contexto, e em conformidade lógica com a noção de legitimidade para efeitos de recurso prevista pelo art. 631º, nº 1 do CPC, só a parte que viu rejeitada a sua pretensão jurídica pode interpor recurso, cingindo-se este, em caso de decaimento parcial, à concreta parte da decisão em que a sua pretensão naufragou. Assim, sem perder de vista que a recorrente apenas detém, e lhe é reconhecida, legitimidade e interesse em agir para impugnar a sentença recorrida na parte em que esta é desfavorável aos seus interesses, e em função da tutela que legalmente lhes assiste, conforme questão de direito supra enunciada, logo se extrai que o objeto deste recurso se circunscreve à ordem de pagamentos determinada pela sentença relativamente ao produto dos bens móveis objeto do penhor reconhecido em benefício de crédito da recorrente, insurgindo-se esta contra o facto de não ter sido graduado para ser pago em primeiro lugar pelo produto daqueles bens, ou seja, contra a graduação do seu crédito em segundo lugar, imediatamente a seguir ao crédito privilegiado da segurança social, graduado em primeiro lugar. Considerando que nenhum outro credor recorreu e que, por isso, cada um deles se conformou com a graduação que para os seus créditos resultou definida pela sentença recorrida, com exceção da ordenação entre o crédito da recorrente e o crédito da segurança social, no demais, a sentença de verificação e graduação de créditos transitou em julgado, não assistido legitimidade à recorrente para discutir a graduação dos créditos que na ordem definida pela sentença lhe sucedem, na precisa medida em que, como é óbvio, o pagamento destes créditos depois do seu não a prejudicam. Em discussão, e através do presente recurso, subsiste apenas a atribuição do 1º e do 2º lugar na grelha dos pagamentos pelo produto dos bens objeto de penhor: se pela ordem atribuída pela sentença recorrida – 1º segurança social, 2º crédito pignoratício -, ou se pela ordem inversa. O crédito da recorrente foi julgado verificado como crédito garantido por penhor. Nos termos dos arts. 666º, nº 1 e 675º, nº 1 do Código Civil, o penhor, que em traços largos se define como garantia acessória e especial do cumprimento de obrigações emergente de contrato, concede ao respetivo titular o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores pelo produto da venda de certa coisa móvel (ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca). Integrado na categoria dos direitos reais de garantia, comunga das características da taxatividade, especialidade, e oponibilidade erga omnes dos direitos reais, concedendo ao respetivo titular o direito de sequela e, por isso, o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores relativamente às coisas móveis sobre que incide e que, pela constituição do penhor, ficam especificamente vinculadas ao cumprimento da obrigação por ele garantida, reflexo da conexão entre o bem sobre que recai a garantia e a causa do crédito. Conforme decorre da sentença recorrida e da lista por ela homologada, por ela foi verificado crédito privilegiado em benefício do Instituto da Segurança Social a título de “contribuições e juros – um ano antes da insolvência” no montante de € 78.295,35. Em sede de fundamentação de direito consta da sentença recorrida que o CIRE determina a extinção, com a declaração de insolvência, dos privilégios creditórios gerais e especiais, que sejam acessórios de créditos sobre a insolvência, titulados pelo Estado, autarquias locais e instituições de segurança social, constituídos ou vencidos, respetivamente, mais de 12 meses antes da data do inicio do processo – cf. art. 97º nº 1 a) e b) do CIRE, pelo que, ainda que nesta parte a redação dos termos da delimitação temporal do crédito da Segurança Social não prime pelo rigor descritivo, daquele segmento se extrai que o crédito da Segurança Social reconhecido como privilegiado reporta a contribuições vencidas nos doze meses que antecederam o início do processo de insolvência, portanto, entre 18.11.2009 a 18.11.2010, data em que o requerimento de apresentação à insolvência da devedora deu entrada em juízo. Não obstante o reconhecido hiato temporal, em sede de qualificação dos créditos por referência às garantias e privilégios de que beneficiam, mais consta da sentença que “atenta a data da declaração de insolvência não é aplicável ao caso dos autos o regime previsto no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela. Lei nº 110/2009 de 16 de Setembro, com entrada em vigor a 1JAN201111, mas o então vigente: Decreto-Lei 103/80 de 09.05. Porém, em sede de fundamentação da graduação do crédito da Segurança Social, é feita referência ao art. 204º do CRCSPSS. Considerando o montante das contribuições reconhecido como crédito privilegiado – cerca de €78.000,00 – e o período de tempo decorrido desde 18.11.2009 até à revogação do Decreto Lei nº 130/80 de 09.05 (inferior a dois meses), com grande probabilidade aqueles segmentos da sentença pecarão, não só pela contradição em si mesmos, mas pela inexatidão, sendo certo que só através do requerimento de reclamação de créditos do credor Segurança Social poderíamos concluir categoricamente nesse sentido, por referência à data de vencimento de cada uma das parcelas que o integra. Porém, ainda que assim suceda, o equacionado erro na determinação da lei sucessivamente aplicável à qualificação e graduação do crédito privilegiado da Segurança Social não é suscetível de interferir no resultado dessa mesma qualificação e graduação, posto que, para o que ora releva, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (CRCSPSS) aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16.09[3] manteve o regime antes previsto pelo art. 10º, nº 2 do Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência aprovado pelo Decreto Lei nº 130/80. Com efeito, sob a epígrafe Privilégio mobiliário, no seu nº 1 previa o art. 10º que Os créditos das Caixas de Previdência por contribuições e impostos e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747º do Código Civil, acrescentando o nº 2 que Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. Nos termos do art. 204º, nº 1 do CRCSPSS[4], os créditos a título de contribuições devidas à segurança social gozam de privilégio creditório mobiliário geral, a graduar nos termos referidos na al. a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil. Em total coincidência, o nº 2 do art. 204º reproduz o nº 2 do art. 10º do regime que o precedeu (Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.). Gozam ainda de privilégio mobiliário geral os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, nos termos previstos pelo art. 333º, nº 1, al. a) e 2, al. a) do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12.02), a graduar com preferência sobre os créditos previstos no nº 1 do art. 747º do CC, cuja al. a) prevê os créditos do Estado a título de impostos. Na definição e âmbitos legais fornecidos pelos arts. 733º e 735º do CC, Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros. Tratando-se de [p]rivilégios mobiliários gerais, abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente. Os privilégios creditórios não são direitos, são meras preferências de pagamento. Os de natureza mobiliária geral, incidem sobre a generalidade dos bens móveis do devedor, adquirindo eficácia aquando do ato da penhora. Cingindo as considerações ao privilégio creditório mobiliário geral, das disposições citadas resulta que, tal como o direito real de garantia, comunga das características da legalidade e da taxatividade. Mas o privilégio creditório é intrínseco à causa ou origem do crédito e, a par com a constituição deste, emerge da lei, no sentido de não ser suscetível de constituição por negócio. Ainda no que os distingue, e de sobremaneira, dos direitos reais, os privilégios creditórios caracterizam-se pelo caráter oculto, no sentido de não serem objeto da publicitação, e pela indeterminação dos bens sobre os quais incidem, que apenas são revelados, definidos ou concretizados, aquando do exercício coativo do crédito com privilégio creditório e pela realização da penhora ou ato equivalente no âmbito de procedimento para satisfação de créditos através da execução/liquidação do património do devedor. Nas palavras da Salvador da Costa, A constituição dos referidos privilégios creditórios ocorre quando se forma o direito de crédito que visam garantir, mas a sua eficácia depende, quanto ao mobiliário geral, do acto de penhora dos bens móveis (…)[5]. Por isso, o privilégio creditório mobiliário geral não concede ao seu titular o direito ou faculdade de sequela que caracteriza os direitos reais de garantia, recaindo apenas sobre o património penhorável existente na esfera do devedor à data em que o mesmo é exercido, que o mesmo é dizer, à data da penhora (ou ato equivalente), e que seja efetivamente objeto da mesma[6]. Características que se refletem no princípio geral da inoponibilidade do privilégio creditório previsto pelo art. 749º, nº 1 do CC, nos termos do qual, O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente., norma que, no âmbito de procedimento concursal, resolve o conflito entre o crédito com privilégio creditório e o direito real de garantia de terceiro e, assim, entre a aplicação cumulativa daquelas normas no âmbito da mesma operação de graduação. De realçar que não resolve o conflito entre créditos com privilégio creditório. Assim, e de acordo com o citado art. 749º, nº 1 do CC, o privilégio creditório é preterido pelos direitos reais de garantia constituídos pelo devedor anteriormente à data da penhora/apreensão do bem sobre os quais incidem, no que se inclui o penhor objeto de contrato validamente celebrado, que é pago com prioridade sobre todos os demais credores, incluindo os que dispõem tão só de privilégio creditório mobiliário. Com efeito, O privilégio creditório mobiliário geral não funciona contra o credor hipotecário visto que os direitos de terceiro oponíveis abrangem não só os direito reais de gozo adquiridos por terceiro, como também os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja constituído.[7] A ordem prevista pelo art. 10º, nº 2 do DL nº 103/80 e mantida pelo art. 204º, nº2 do CRCSPSS, constitui um desvio ao referido princípio geral da inoponibilidade do privilégio mobiliário geral ao penhor, este enquanto direito real de garantia de terceiro sobre bem móvel certo e determinado do devedor. Mas, conforme é aceite pela recorrente, a definição da ordem de pagamento do crédito pignoratício e do crédito privilegiado da Segurança Social, no âmbito da mesma operação de graduação e através da aplicação cumulativa dos arts. 666º, nº 1 do CC, 204º, nº 2 do CRCSPSS, e 749º, nº 1 do CC, não suscita qualquer conflito; este é meramente aparente, pois que se resolve em conformidade com o princípio lex specialis derogat legi generali, sendo lei especial o art. 204º, nº 2 do CRCSPSS que, em derrogação do princípio geral previsto pelo art. 749º, nº 1 do CC, concede ao crédito privilegiado preferência de pagamento sobre direito real de garantia. Conforme consignado no acórdão da Relação de Coimbra de 21.05.2019, [o] penhor prevalece contra e em relação aos privilégios mobiliários gerais de que gozam os créditos laborais e os créditos do Estado. E também seria assim em relação ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos do ISS, se a lei – art. 204.º/2 do CRCSPSS – não determinasse, imperativamente, que este privilégio do ISS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. (…) a prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida imperativamente pela lei).[8] [9] A problemática do conflito normativo na regulação da ordem de pagamento de créditos surge quando, na mesma operação, se impõe proceder à graduação entre crédito com penhor, créditos laborais, e créditos privilegiados da Segurança Social e a título de impostos, pois, e ao que ora releva: i) No concurso bilateral entre o crédito privilegiado da Segurança Social e o crédito pignoratício, conforme arts. 666º, nº 1, 749º, nº 1 do CC e 204º, nº 1 do CRCSPSS: 1º crédito da Segurança Social, 2º crédito pignoratício; ii) No concurso bilateral entre o crédito pignoratício e o crédito laboral, conforme arts. 666º, nº 1, 749º, nº 1 do CC e 333º, nº 1, al. a) do CT: 1º crédito pignoratício, 2º crédito laboral; ii) No concurso entre crédito laboral e créditos privilegiado do Estado a título de contribuições sociais e/ou a título de impostos, conforme arts. 333º, nº 1, a) e 2, al. a) do CT, art. 204º, nº 1 do CRCSPSS e 747º, nº 1, al. a) do CC – 1º crédito laboral, só depois os créditos do Estado. A aplicação cumulativa dos arts. 666º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, 333º, nº 2, al. a), art. 204º, nº 1 e 2 do CRCSPSS, e 747º, nº 1, al. a) para, nos seus precisos termos, fixar a graduação sucessiva de créditos pignoratício, laboral, e privilegiado da Segurança Social sobre o produto do bem objeto do penhor, desemboca em conflito de normas de impossível conciliação, situação que, por estar vedado ao intérprete aplicador do direito uma situação de non liquet, e por força do art. 8º, nº 1 e 3 do Código Civil, determina que pelo menos, mas também pelo mínimo necessário, uma das normas e ordenação legal concursiva por ela regulada tenha que ser preterida em beneficio da aplicação de outra (s), equação problemática que, sem consenso, tem vindo a ser objeto de apreciação jurisprudencial que, nos arestos mais recentes, se divide em duas correntes, com propostas de solução/ordenações divergentes assentes: a) Ou no sacrifício da ordenação bilateral legal entre os créditos laborais e os créditos do Estado (Segurança Social e Autoridade Tributária), dando primazia à aplicação do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS e à preferência de pagamento por ele prevista para o crédito privilegiado da Segurança Social sobre o crédito pignoratício, seguindo-se-lhe na graduação, sucessivamente, o crédito pignoratício e o crédito laboral, o que resulta na preterição da ordem de pagamento prevista pelo art. 333º, n 2, al. a) do CT para o crédito laboral, em benefício – não legalmente contemplado - do crédito da Segurança Social. Foi esta a solução acolhida pela decisão recorrida.[10] No essencial, o fundamento tónico desta posição é colocado na vontade que o legislador expressamente traduziu de, através do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, conferir preferência aos créditos do Estado sobre os interesses particulares representados no penhor, considerando a relevância das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social e o interesse publico de natureza distributiva por ela prosseguido. Argumento que se nos afigura falecer quer perante a natureza e relevância social dos créditos laborais os quais, como serviço publico social, a Segurança Social também ‘serve’, quer perante a primazia que o legislador (também) expressamente reconheceu aos créditos laborais em relação aos créditos da segurança social, plasmada na preferência de pagamento prevista pelo art. 333º, nº 2, al. a) do CT, e por referência aos demais previstos pelo art. 747º, nº 1, al. a) do CC, bem como na proibição legal de nas execuções (singulares) serem reclamados créditos com privilégio creditório geral (que abrange os da Segurança Social) nas situações previstas pelo art. 788º, nº 4 do CPC, para o qual remete o art. 749º, nº 2 do CC. b) Ou, através de uma interpretação restritiva do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS[11], no sacrifício da ordenação bilateral legal do penhor e do privilegio creditório da Segurança Social com o objetivo de dar primazia à preferência de pagamento do crédito laboral prevista pelo art. 333º, nº 2, al. a) do CT sobre o crédito da Segurança Social e que, apenas como efeito colateral, conduz à graduação do penhor em 1º lugar, seguindo-se-lhe na graduação o crédito laboral e o crédito da Segurança Social, o que resulta na preterição (colateral) da ordem prevista pelo 204º, nº 2 do CRCSPSS em benefício – não legalmente contemplado - para o crédito pignoratício. Neste sentido, da preterição da preferência de pagamento do crédito da Segurança Social no concurso com o penhor e com outros privilégios creditórios que àquele preferem, Salvador da Costa: “no concurso entre o direito de crédito de particulares garantido por penhor, o direito de crédito derivados de impostos da titularidade do Estado ou das autarquias locais e o direito de crédito da titularidade de instituições de segurança social derivado de taxa contributiva garantido por privilegio mobiliário gral, a prevalência opera por essa ordem”.[12] [13] Aderimos a esta ultima posição por concordarmos com os pressupostos em que se estriba, desde logo, na necessidade de uma interpretação restritiva do regime legal especialíssimo do privilégio mobiliário geral da Segurança Social previsto pelo art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, que se impõe pela natureza excecional da norma, desde logo, face à natureza (de mera preferência de pagamento) dos privilégios creditórios, mas também no confronto com o princípio da garantia geral do património do devedor e da par conditio creditorum que se lhe associa e, principalmente, no confronto com os princípios da especialidade, oponibilidade e sequela dos direitos reais tutelados contra os privilégios creditórios pelo art. 749º, nº 1 do CC. Interpretação restritiva que se impõe para que, na aplicação do problemático art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, os efeitos por ele produzidos não ‘estilhacem’ em prejuízo de créditos que lhe preferem, como é o caso dos créditos laborais. Créditos que, pela sua natureza (retributiva da força de trabalho, e enquanto fonte de rendimentos e sustento dos seus titulares), reforçam a necessidade da referida interpretação restritiva, por revestirem equivalente, senão maior, relevância publico-social que a função distributiva dos créditos da Segurança Social. Relevância que a própria natureza de serviço publico social da Segurança Social corrobora através das obrigações que para ela decorrem do não pagamento de créditos laborais em situação de insolvência do empregador, ou da situação de desemprego do trabalhador, das quais é possível extrair que, no esforço de adaptação na aplicação prática das normas em questão, a opção pela preferência da posição do credor laboral é a que mais se coaduna com aquela que seria a vontade e interesse do legislador nesta matéria, caso tivesse perspetivado a contradição e o ‘vazio’ normativos por ela gerados, através da salvaguarda, em qualquer circunstância, dos créditos laborais no concurso com os créditos da Segurança Social; solução que, perante o tal vazio ‘de colisão normativa’ criada pelo legislador, além do mais, tem a vantagem de ser conforme aos princípios gerais do direito civil em matéria de garantia das obrigações e, assim, de contribuir para a segurança e reforço da confiança dos destinatários na segurança das normas e dos direitos por elas definidos. Conforme é dito no acórdão da Relação de Guimarães de 25.05.2017, e por referência à relevância do crédito da Segurança Social a título de contribuições, [s]em minimizar o interesse público por ela prosseguido, o certo é que o próprio legislador as situa em terceiro lugar na ordem de pagamentos, nas situações em que os créditos delas derivados concorrem com créditos dos trabalhadores e com créditos do Estado”.[14] Não sendo determinante, mas porque as leis e a interpretação que delas se faça dirigem-se exclusivamente à regulação da esfera jurídica individual de cada um e em relação entre si na multiplicidade de relações em que se faz e caracteriza a vida e, particularmente, a vida empresarial, e porque, conforme velho brocardo penal, "fatta la lege, pensata la malizia", não será despiciendo perspetivar a possibilidade de a ordenação Segurança Social - Penhor - Trabalhadores ser apta a motivar os administradores/gerentes a constituírem penhores mercantis sobre a totalidade do equipamento mobiliário com o propósito de, em caso de insolvência liquidatária, assegurarem o pagamento precípuo das dívidas à segurança social antes de o produto dos bens móveis se esgotar no pagamento dos créditos laborais, pois que, ao contrário destes, cuja garantia se restringe ao património do empregador, aquelas, em caso de insuficiência do património da devedora, revertem sobre o património do administrador/gerente, alçando assim a total subversão da ordenação bilateral trabalhador-Segurança Social e do princípio constitucional do direito à remuneração que lhe subjaz. Mais acresce realçar que, por referência à contradição normativa e opções jurisprudenciais descritas para a resolver, não resulta um qualquer tratamento desfavorável do penhor em relação ao que lhe é reconhecido pela lei. Ao invés: ou é protegido nos termos em que a lei prevê com a colocação na posição que legalmente lhe assiste por força do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, ou seja, em 2º lugar e logo a seguir ao crédito privilegiado da Segurança Social (com prejuízo para os créditos laborais, que veem este crédito graduado à sua frente, apesar de sobre eles não ter preferência legal); ou é melhor protegido em relação ao que para o penhor a lei prevê, com a a colocação em 1º lugar, posição mais vantajosa à que legalmente lhe é reconhecida, mas que assim sucede única e exclusivamente para permitir o cumprimento da relação bilateral legal concursal entre os créditos da Segurança Social e os créditos laborais, ou seja, para proteção da posição preferencial destes face à Segurança Social em concurso com o penhor (na medida em que este prefere sobre os créditos laborais e estes, por sua vez, sobre os créditos privilegiados da Segurança Social). Ainda no campo das soluções equacionadas pela jurisprudência, com o devido respeito cumpre aqui consignar que a solução adotada pelo Supremo Tribunal da Justiça no acórdão de 29.04.2009 (rejeitada nos subsequentes arestos do STJ sobre a matéria), mas que foi recentemente replicada por acórdão da Relação de Lisboa de 09.05.2019[15], de graduar o credor pignoratício no ‘fim da linha’ dos créditos potencialmente em conflito, ou seja, depois do crédito da Segurança Social e, à cabeça, depois de todos os créditos que bilateralmente são graduados com preferência sobre o crédito da Segurança Social ou a par com este (no que se incluem os créditos laborais e os previstos pelo art. 747º, nº 1, al. a) do CC), é de todas a que se nos afigura consubstanciar o desvio mais acentuado e, por isso, intolerável, da tutela prevista pelas normas em conflito e da vontade do legislador por elas previsto, posto que se traduziria na extensão dos efeitos de uma norma especialíssima (o art. 204º, nº 2 do CRCSPSS) a direitos que os não contempla e que, por isso, não são nem o legislador pretende que assim sejam tutelados (os previstos pelo art. 747º, nº 1, al. a). Nesses termos interpretado/aplicado, faltariam argumentos para afastar o juízo de inconstitucionalidade do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS com fundamento na violação do principio da confiança, que [p]ostula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se podia moralmente e razoavelmente contar, nos mesmos termos que fundamentou o veredito do acórdão do Tribunal Constitucional nº 363/2002 pelo qual declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do art. 11º do Decreto Lei nº 103/80 e do art. 2º do Decreto Lei nº 512/76 de 03.07, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do art. 51º do Código Civil (…) na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses terceiros são afectados sem, no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer a existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus do privilégio, devido à inexistência do registo.[16] A graduação do penhor com preterição de dois graus da preferência legal que lhe é reconhecida - por abranger a relação bilateral penhor/impostos e a relação bilateral penhor/créditos laborais -, para além de corresponder a mutação na ordem jurídica com a qual, razoavelmente, não é exigível que o titular do penhor possa contar, importaria ainda numa onerosidade excessiva, por desproporcional, à contradição legal visada colmatar, introduzida pela norma excecionamente prevista pelo art. 204º, nº 2 do CRCSPSS e ao interesse por esta visado tutelar. Não obstante todo o exposto, mas com fundamento no mesmo, afigura-se-nos que, considerando o estado dos autos, no caso sub iudice a resolução da pretensão recursiva não passa sequer pela opção por qualquer uma das soluções propostas, antes apelando à ratio da referida interpretação restritiva, precisamente porque, da equação de normas e créditos que ao conflito subjaz, atendendo à delimitação do segmento da sentença recorrida que por estes autos é possível conhecer e alterar, no caso está já excluída a consideração dos créditos laborais e do crédito privilegiado da Autoridade Tributária, na medida em que foram graduados pela sentença recorrida em 3º e 4º lugares, respetivamente, ou seja, e ao que interessa, depois do crédito privilegiado da Segurança Social (1º) e do crédito pignoratício da recorrente (2º), sendo certo que, não tendo aqueles apresentado recurso, nessa parte a decisão da primeira instância transitou em julgado, com a fixação, em definitivo, da posição dos créditos dos trabalhadores e do crédito privilegiado por impostos reconhecidos nestes autos no terceiro e quarto lugares da grelha de pagamentos relativamente ao produto dos bens objeto do penhor da recorrente, com o que os credores laborais e a Autoridade Tributária se conformaram. Desta feita, e conforme ab initio se pretendeu realçar, a discussão suscitada pelo recurso apenas pode cingir-se à graduação, entre si, do crédito da Segurança Social e do crédito da recorrente, sem que seja influenciada pela posição dos créditos laborais e do crédito da AT porque, fixada pela força do caso julgado material, sobre ela não se repercute e, por isso, independentemente do resultado do recurso, manter-se-iam na depois do crédito garantido da recorrente e do crédito privilegiado da Segurança Social. No referido contexto jurídico-legal-processual da presente instância recursiva, e por referência à supra referida tutela de direitos/preferências de pagamento que reconhecidamente justificam a alteração da ordenação legal do penhor e do privilégio mobiliário da Segurança Social, não subsiste fundamento para proceder à alteração da ordem legal estabelecida pelo tribunal recorrido, tanto mais que, conforme se pronunciou já o Tribunal Constitucional, a opção feita pelo legislador na matéria e plasmada no art. 204º nº 2 do CRCSPSS não suscita uma qualquer inconstitucionalidade normativa[17]. Conforme já supra referido, na relação bilateral concursal destes dois créditos não subsiste qualquer conflito normativo, sendo a ordem de pagamentos claramente definida pela aplicação do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS que, pela sua natureza de norma especial e imperativa, se sobrepõe à previsão dos arts. 666º e 749º, nº 1 do CC, e expressamente define e coloca em primeiro lugar o crédito privilegiado da Segurança Social quando em concurso com crédito pignoratício. Não se colocando no caso a necessidade de uma interpretação restritiva do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS para tutela da posição legal dos credores laborais, não se justifica uma qualquer correção da graduação do penhor e do privilégio creditório da Segurança Social nos termos pretendidos pela recorrente pois que, esta sim, consubstanciaria violação frontal, mas agora injustificada, da letra e sentido de lei expressa. Termos em que, ainda que com fundamentos distintos, por não considerados pelo tribunal a quo[18], se decide pela manutenção da decisão recorrida, com consequente improcedência do recurso. V - DECISÃO Pelo exposto, os Juízes deste coletivo acordam em julgar improcedente a apelação, com consequente manutenção da decisão recorrida, ainda que com fundamentos distintos dos por esta considerados. As custas da instância recursiva - cujo valor corresponde ao valor do bem objeto do penhor – ficam a cargo da recorrente, por nela ter decaído. Lisboa, 24.11.2020 Amélia Sofia Rebelo Manuela Espadaneira Fernando Barroso Cabanelas _______________________________________________________ [1] Só por lapso manifesto de escrita foi introduzida no ponto B-1 do dispositivo da sentença a referência à verba 68 que, conforme se extrai do despacho pelo qual foi determinada a retificação do dispositivo da sentença, constava ab initio e corretamente referida sob o ponto B-2. [2] Com fundamento na deliberação do Conselho da Administração do Banco de Portugal tomada nos termos do art. 145º-G, nº 5 do RGICSF na reunião extraordinária de 3 e 11 de agosto de 2014, pela qual foi deliberada a constituição do recorrente tendo como objeto social a “Administração de ativos, passivos, elementos extra patrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo, S.A. para o Novo Banco, S.A., e desenvolvimento das atividades transferidas enunciadas no artigo 145º - A do RGICSF (…). [3] Sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nº 275/82, de 15 de Julho, 194/83, de 17 de Maio, e 118/84, de 9 de Abril. [4] Aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16.09, em vigor desde 01.01.2010. [5] Concurso de Credores, 3ª ed., p. 308. [6] Sem prejuízo do recurso à ação de impugnação pauliana nos termos dos arts. 610º e ss. do CC. [7] Acórdão do STJ de 12.10.1988, BMJ nº 380, p. 462, citado por Salvador da Costa in O Concurso de Credores, 1998; no mesmo sentido, acórdãos da RL de 11.11.2004, do STJ de 03.04.2003 e 26.10.2004, todos disponíveis na página da dgsi. [8] Processo nº 4705/17.9T8VIS-B.C1, disponível na página da dgsi. [9] No mesmo sentido, acórdão do STA de 17.06.2020, processo nº 1954/19.9BEBRG, disponível na página da dgsi. [10] E que é jurisprudencialmente confortada por acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2003, da Relação de Évora de 30.04.2015, da Relação de Guimarães de 31.03.2016, da Relação de Coimbra de 21.05.2019 (processo nº 4705/17.9T8VIS), da Relação de Lisboa de 02.07.2019 (processo nº 2789/14.0T8SNT-K.L1) [11] Nesse sentido, Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª ed., p. 311. [12] Ob. cit., p. 312. [13] No mesmo sentido, António Carvalho Martins, Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, p. 91, nota 126. Na jurisprudência, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2006 (processo nº 06ª1449)e 10.12.2009 (processo nº 864/07.7BMGR-I.C1.S1), da Relação do Porto de 15.09.2011, da Relação de Guimarães de 13.02.2014, todos citados no acórdão da Relação de Guimarães de 08.07.2020 supra citado, da Relação de Coimbra de 20.06.2017 (processo nº 6100/16.8T8CBR-C.C1, da Relação de Évora de 05.11.2015 (processo nº 284/14.TBRMR-A.E1), da Relação do Porto de 11.09.2018 (processo nº 1211/17.5T8AMT-E.P1), disponíveis na página da dgsi. [14] Processo nº 159/15.2T8VLN-B.G1, disponível na página da dgsi. [15] Processo nº 2540/16.0T8STB-A.L1-2, disponível na página da dgsi. [16] Disponível na página do Tribunal Constitucional. [17] Chamado a pronunciar-se sobre a questão ainda na vigência do Decreto Lei nº 103/80 de 9.05, pelos acórdãos nº 64/09 de 10.02.2009 e 108/09 de 10.03.2009 o Tribunal Constitucional concluiu que a norma do art. 10º, nº 2, idêntica ao art. 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009 de 16.09 não viola o princípio da confiança, no caso, a depositada pelo credor na garantia prestada pelo penhor (disponíveis na página do Tribunal Constitucional). [18] Sobre o concurso dos créditos laborais com o crédito privilegiado da Segurança Social, não obstante a prévia referência aos arts. 333º, nº 2, al. a) do Código de Trabalho e 204º, nº 1 do CRCSPSS em sede de fundamentação legal, a final a sentença fundamentou a graduação deste em primeiro lugar com a mera referência ao art. 204º, nº 2 do CRCSPSS, norma que justifica a graduação relativa entre aquele e o penhor mas, de per si, não justifica a graduação dos créditos laborais em terceiro lugar, portanto, depois do crédito da Segurança Social. |