Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2006/2006-2
Relator: IASABEL CANADAS
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Ocorre vício de falta de fundamentação de direito quando na sentença, ainda que implicitamente, não revela o enquadramento jurídico deixando ininteligível os fundamentos da decisão.
II - A oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só assume relevância como vício formal, para os efeitos de nulidade, quando se traduza numa contradição que não permite ajuizar sobre o próprio mérito da decisão. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a um erro de julgamento, e por isso, determinativa da improcedência da acção.
III - O juízo probatório positivo relativo a documentos deve reflectir, de forma inequívoca, as declarações negociais ou de ciência constante dos mesmos, sem deixar margem para especular sobre tal assunção. O grau de precisão de tal juízo probatório deverá ser aferido, por um lado, em função e no contexto do que vem alegado e, por outro lado, de harmonia com os resultados da produção de prova e da convicção do julgador sobre eles formar.
IV - Porém, sempre que se esteja em presença de documentos em que se registam dados de leitura e definição inequívocos (ex. registo da propriedade do veículo automóvel) não existe inconveniente em que o juízo probatório positivo seja feito por remissão para os mesmos.
V - A assunção da dívida por terceiro só extingue a obrigação do devedor primitivo, se o credor assim o declarar expressamente. Nessa medida, o efeito liberatório do antigo devedor não se basta com a ratificação ou aceitação expressa por parte do credor do acordo de assunção de dívida, mas requer a declaração expressa de exonerar o devedor primitivo.
(G.A)
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório

1. T, S.A. instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra P e A, pedindo que os Réus sejam, solidariamente, condenados a pagar à A. a importância de capital de 2.742.753$00, acrescida de 404.274$00, a título de juros vencidos até 26 de Novembro de 1999 e de 16.171$00 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, dos juros que sobre a dita quantia de 2.742.753$00 se vencerem, à taxa anual de 26,9%, desde 27 de Novembro de 1999 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.
Para tanto alegou, em resumo, que:
- No exercício da sua actividade, a A. concedeu ao R. P um crédito directo, na modalidade de contrato de mútuo, para aquisição de um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf GTD, com a matrícula , no montante de 2.150.000$00, com juros à taxa nominal de 22,9% ao ano, a pagar em 48 prestações mensais e sucessivas;

- Em caso de mora acrescia, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada acrescida de 4 pontos percentuais;

- O R. P não procedeu ao pagamento da 10ª prestação, vencida em 10 de Maio de 1999 e das seguintes, o que implicou o vencimento automático de todas as prestações vincendas, conforme o expressamente acordado;

- O R. A assumiu perante a A. a responsabilidade de fiador e principal pagador por todas as obrigações assumidas pelo R P no âmbito desse contrato.

2. O R. P e F, em representação do R. A contestaram, sustentando, em síntese que:
- O R. P somente pagou a primeira prestação e acordou com a A. e o Stand a transmissão da dívida, porquanto desistiu da compra do veículo;
- O Stand aceitou a desistência da compra, tendo continuado na posse do veículo;
- O R. A não assinou qualquer documento nem assumiu qualquer responsabilidade como fiador na aquisição feita pelo Réu P, sendo parte ilegítima.
Deduziram, ainda, incidente de intervenção principal provocada de .
Concluem pela improcedência da acção.

3. A A., em extenso articulado, replica, dizendo, no essencial, que:
- Não teve conhecimento de qualquer acordo entre o R. P e o Stand .;
- Em Novembro de 1998, a A. foi contactada pelo R. P no sentido de que pretendia entregar o veículo, não tendo, porém, dado qualquer continuidade à pretensão;
- Não houve qualquer consentimento ou ratificação pela A. de qualquer acordo mediante o qual o Stand . assumiria a dívida dos autos.
Deduziu, igualmente, oposição ao chamamento de Stand ..

4. Por despacho de fls. 80-81, foi admitida a intervenção de Stand .

5. A A. interpôs recurso de agravo desse despacho, o qual foi admitido, tendo a A. apresentado as respectivas alegações recursórias.

6. Por despacho de fls.161, foi considerado findo o incidente, dada a inviabilidade de citação pessoal do interveniente.

7. Por despacho de fls.165, foi ordenada a notificação do R. A para proceder à junção aos autos de procuração outorgada a favor do advogado signatário da contestação.

8. Em face da não junção de tal procuração, por despacho de fls. 168, foi dada «sem efeito a contestação de fls. 18 e segs., quanto ao Réu A».

9. No decurso da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador tabelar, fixada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, que foi objecto de reclamação desatendida.

10. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, perante juiz singular, com gravação da prova - no decurso da qual, além do mais, pelo R. P foi requerida a junção aos autos do original do contrato de mútuo junto com a petição inicial, tendo tal pretensão sido objecto de indeferimento -, sendo decidida a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 339-340.

11. Mediante o requerimento de fls. 291, pelo R. P foi interposto recurso de agravo do despacho de fls. 264 - que indeferiu a requerida junção do original do contrato de mútuo -, o qual foi recebido com regime de subida diferida («a subir com o primeiro que, depois dele interposto, haja de subir»), nos próprios autos e «em princípio» com efeito meramente devolutivo

12. Por fim, foi proferida sentença a julgar a acção procedente, com a consequente condenação dos R.R. do pedido.

13. Inconformados, os R.R. interpuseram recurso de apelação da sentença, tendo formulado, a rematar a alegação, as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. A decisão recorrida não tomou em consideração, na fixação da matéria de facto, factos que resultaram plenamente provados e que constam dos autos, os quais eram decisivos para uma decisão antagónica da que ora se recorre, nomeadamente, quanto à propriedade do veículo e entrega da quantia objecto do contrato aqui em análise, bem como os factos concretizadores da relação de cooperação entre o stand e a apelada.

2ª. A fixação da especificação e do questionário não conduz a caso julgado formal, podendo a selecção da matéria de facto feita pelo tribunal “a quo” ser posteriormente modificada, o que desde já se requer, nos termos do artigo 712º do C.P.C.

3ª. A decisão recorrida não indica explícita, clara e discriminadamente os factos que teve como provados, nomeadamente, quando se limita a remeter para o conteúdo de documentos, sem se explicitar quanto ao seu conteúdo, violando dessa forma o exigido no artigo 659º, nº 2 do C.P.C.

4ª. Tal insuficiência justifica, no entendimento da nossa jurisprudência, a baixa do processo a fim do tribunal recorrido se pronunciar explicitamente, definindo de modo concreto a matéria de facto que considera assente, o que desde já se requer, no caso de improcedência das nulidades e desconformidades que infra se enunciarão.

5ª. Por outro lado, o tribunal “a quo” fez uma errada valoração da prova produzida, o que conduziu a que desse como verificados factos contraditórios entre si, não se prontificando a resolver a questão que esteve na origem dessa contradição, atento o dever que lhe é imposto pelo artigo 660º, nº 2 do C.P.C., cuja violação desde já se invoca.

7ª. O contrato objecto dos presentes autos configura um contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo, pelo que é alvo de uma protecção jurídica especial que limita a liberdade contratual com o objectivo de proteger o consumidor.

8ª. No âmbito dessa protecção está previsto o mecanismo da rescisão ou do arrependimento, no sentido de que a vontade declarada pelo consumidor não constitui uma vontade definitiva mas, apenas, uma etapa na formação do contrato.

9ª. Ficou provado nestes autos que o apelante P exerceu o seu direito de rescisão ou arrependimento.

10ª. Para além disso, a apelada não alegou, nem demonstrou que os apelantes tivessem renunciado ao exercício do mesmo para poder invocar o seu alheamento à desistência efectuada por aquele quanto à compra do bem.

11ª. Ao não tomar em conta tais factos a decisão recorrida revelou, uma vez mais, ter valorado deficientemente os factos que considerou provados e as consequências a retirar dos mesmos.

12ª. O tribunal recorrido fez uma má interpretação das normas do Direito, nomeadamente, no que concerne à disciplina da União dos Contratos e do Instituto da Representação, o que conduziu ao errado enquadramento jurídico da questão que se lhe impunha resolver.

13ª. Por um lado, admite que nos encontramos perante a figura de união de contratos;

14ª. Por outro, contraria todo o entendimento jurisprudencial e doutrinal existente quanto à mesma.

15ª. Tal entendimento baseou-se apenas e, tão só, na opinião pessoal da Meritíssima Juíza “a quo”, sem recurso a qualquer normativo ou referencia a decisões semelhantes àquele ou, ainda, a autores que comungassem do seu raciocínio.

16ª. Tais referências e suporte eram fundamentais para se poder aceitar a posição assumida por aquele tribunal e, essencialmente, para sobrepor tal entendimento à decisão proferida pela 2ª Secção, do 4º Juízo Cível do Porto, proferida no âmbito de um processo cujos factos são iguais (diga-se, até, que os mesmos) aos que se discutem nestes autos.

17ª. A referida decisão mostra-se impecavelmente fundamentada e com um raciocínio lógico, o qual vai no sentido do entendimento sustentado pela jurisprudência e doutrina nacional e estrangeira, às quais são feitas inúmeras referências.

18ª. Tendo sido confirmada pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do recurso que dela foi interposto.

19ª. Existe uma "ligação funcional” entre venda e mutuo de tal modo que essa operação possui uma unidade de interdependência económica, pois, o consumidor não pretende apenas celebrar um contrato de crédito mas obter o financiamento para uma compra e venda precisa;

20ª. O fornecedor só estará, em regra, interessado a celebrar aquele contrato àquele preço mediante o pagamento imediato possibilitado pelo financiamento; ao passo que o financiador nem sequer poderia celebrar um contrato de crédito caso o mesmo não visasse a aquisição de um bem para consumo.

21ª. Esta ligação genética e económica implica consequência do ponto de vista jurídico, já que, as partes ao quererem ambos os contratos associados economicamente, vai levar a que a validade e vigência de um fique dependente da validade e vigência do outro.

22ª. No caso dos presentes autos ficou provado que o contrato de financiamento foi celebrado por causa da aquisição de um veículo; que ocorreu a transferência da verba para a conta da . (vendedor) e que foi celebrado em simultâneo com o contrato de compra e venda, nas instalações daquele stand que possuía modelos dos contratos de crédito da apelada, iguais ao aqui em causa.

23ª. Pelo que, é notório que entre a apelada (financiadora) e o stand (fornecedor) se estabeleceu uma relação de colaboração que criou no apelante P o convencimento de que o contrato de crédito constituía um negócio unitário, por força do qual ele adquiriu o veículo automóvel e obteve as necessárias facilidades de pagamento.

24ª. Essa colaboração consistia no encaminhamento de clientes para a apelada, por parte do stand , que pretendessem adquirir bens, mas que não dispunham ou pretendiam não dispor do respectivo valor de imediato.

25ª. Dessa colaboração recíproca resultou um interesse específico de cada um daqueles na realização dos respectivos negócios, designadamente, nos contratos de crédito e de compra e venda celebrados com o apelante P.

26ª. Dos autos resultam indícios suficientes da verificação desse acordo entre a apelada e o stand , nomeadamente, através de factos que, embora não constando da matéria de facto dada como provada, constam dos autos e foram considerados pela decisão recorrida.

27ª. A decisão recorrida não faz qualquer descrição da figura referente à união de contratos, nem concretiza os elementos que a levaram a concluir pela sua verificação, nomeadamente, no que concerne à ligação funcional dos dois contratos e às respectivas consequências.

28ª. Estes contratos configuram, funcionalmente uma unidade, de tal modo que nenhum se pretendeu sem o outro, representando cada um deles a base negocial do outro, existindo complementaridade e uma reciprocidade entre os dois.

29ª. A apelada só concedeu o crédito em causa para que o apelante P procedesse à aquisição do referido veículo, fornecido pelo stand que com aquela colaborava, sendo inquestionável que aquele contrato tenha tido como finalidade a aquisição daquele bem.

30ª. O financiamento em causa não teve origem na iniciativa do apelante P, mas sim no próprio stand que encaminhou aquele para a apelada.

31ª. Tal actuação conjunta suscitou no apelante P, enquanto consumidor, a impressão de que contratou apenas com uma pessoa, para mais, quando os modelos de pedido de crédito da apelada e respectivo contrato foram fornecidos àquele pelo citado stand, que o auxiliou no preenchimento, enviou e ulteriormente os recebeu desta, formulários esses devidamente coordenados com o relativo à compra e venda do veículo.

32ª. Para além disso, a não intervenção pessoal da apelada nesta operação triangular, em conjunto com todas as circunstâncias já enunciadas, sugeriram ao apelante P, enquanto consumidor, indícios de ligação entre ambos os contratos.

33ª. Nessa medida, a confiança gerada neste pelo comportamento homogéneo das respectivas contra partes (stand e apelada) fundamenta a protecção que a sua disciplina entende dar ao contraente mais débil, ou seja, o consumidor, ao contrário do que se entendeu, e mal, na decisão aqui posta em causa, ao pretender, injustificadamente, que tal protecção recaísse sobre a financiadora (apelada).

34ª Encontrando-se suficientemente indiciada a união desses contratos e a respectiva unidade económica a revogação do contrato de compra e venda incidiu também sobre o contrato de crédito.

35ª. Pelo que, a apelada não pode fazer valer o seu alheamento à citada revogação, como foi entendido pelo tribunal recorrido, porque sobre si impendia, enquanto financiadora- e não, apenas, como um simples mutuário- o ónus de proceder à avaliação da seriedade e grau de insolvência do vendedor (stand) que consigo colaborava, bem como o seu risco de falência.

36ª. De facto, o comportamento da apelada, enquanto financiadora, não pode determinar-se como se o contrato de crédito fosse, em absoluto, alheio às perturbações do contrato de compra e venda, tal como consta na decisão recorrida, quando ao invés de avaliar a seriedade do vendedor com quem colaborava, pretendeu apenas colher os frutos da angariação de clientes.

37ª. A jurisprudência e doutrina, quanto a este aspecto têm entendido que os dadores de crédito ao utilizarem os pontos de venda por si escolhidos para celebrar contratos e assim auferir riscos assumem também a responsabilidade pela conduta desses vendedores sempre que estejam verificados os índices de união de contratos.

38ª. A decisão recorrida errou, igualmente, ao considerar que a colaboração existente entre a apelada e o stand consubstanciava um contrato de mediação.

39ª. Tal entendimento não foi sustentado ou justificado com qualquer raciocínio lógico, coerência, perceptibilidade ou, sequer, base legal ou apoio doutrinal ou jurisprudencial.

40ª. Isto porque, quanto a tal relação, encontram-se verificados os requisitos exigidos pela Representação, ainda que aparente, designadamente:

40.1. A vontade própria do representante, no caso, o stand , em celebrar em nome da apelada (representada) o contrato de crédito, uma vez que este condicionou a realização do contrato de compra e venda em que aquela era directamente interessada;

40.2. Vontade essa autónoma da vontade da representada, aqui apelada, uma vez que ambos tinham objectivos diferentes com a celebração do contrato de crédito;

40.3. O stand foi o autor da declaração negocial e do acto de celebração do contrato, tendo feito a primeira e praticado o segundo no lugar e em substituição da apelante e, inclusivamente, no seu nome.

41ª. Nessa medida, os actos praticados por aquele stand em nome da apelada vinculam-na, não podendo a mesma alegar desconhecimento daqueles, como entendeu a decisão da 1ª Instância, aqui posta em crise.

42ª. A fundamentação constante na decisão recorrida é, por isso, insuficiente, para contrariar a posição assumida pela maior parte da jurisprudência e doutrina (nacional e estrangeira) mostrando-se inócua e apresentando uma visão exageradamente simplista que em nada corresponde às figuras da união de contratos e do contrato de mediação aos quais aquela faz corresponder os factos objecto dos presentes autos.

43ª. A decisão em causa caracteriza-se pela sua subjectividade, baseando-se exclusivamente na impressão e/ou opinião da Meritíssima Juíza "a quo", em detrimento e menosprezo pelas regras do Direito, maxime, nas referentes aos deveres do julgador que impõem objectividade, imparcialidade, razoabilidade e fundamentação, cujo não cumprimento a torna arbitrária e discricionária.

44ª. É uma sentença contraditória, anómica, infundamentada, o que a torna, só por isso, irremediavelmente nula, sendo que os presentes autos contêm todos os elementos que permitem uma decisão de mérito antagónica da proferida.

45ª. A contradição mais fulcral reside, como se referiu, no facto daquela decisão ter confirmado a verificação da união de contratos mas, depois, decidir que as repercussões sentidas no contrato de compra e venda, maxime, a sua revogação não influenciaram o contrato de crédito que, ainda assim, permanece válido, o que contraria a própria natureza e dimensão daquela figura legal.

46ª. Por outro lado, existe uma manifesta falta de fundamentação na decisão recorrida por não especificação dos fundamentos de direito em que se ancora, nomeadamente, no que diz respeito ao motivo da não aplicação ao presente caso da disciplina da união de contratos.

47ª. Não fundamentando a razão pela qual, os apelantes têm de pagar a referida quantia à apelada.

48ª. A (insuficiente) fundamentação apresentada, para além de contrária à lei, à jurisprudência e à Doutrina, é confusa, chegando mesmo, em alguns passos, a ser imperceptível, sendo que a imposição legal vai no sentido de que a mesma deve ser expressa, clara e precisa.

49ª. Existindo contradição, obscuridade ou insuficiência, deve tal circunstância equiparar-se à sua falta.

50ª. Encontram-se, pois, verificados, os vícios constantes nas alíneas b) e c) do nº 1, do artigo 668º e a violação do artigo 659º, nº 2 do C.P.C.

51ª. No entanto, se assim não se vier a entender, não deixa ainda de se invocar a contrariedade da sentença face ao Direito, à Doutrina e à Jurisprudência, por errada aplicação da disciplina da união de contratos, nomeadamente, no que concerne às suas consequências, o mesmo acontecendo quanto ao contrato de mediação, por não aplicável ao caso, mas antes a figura da Representação, ainda que aparente, no que à relação de colaboração entre a apelada e o stand diz respeito.

Conclui pela revogação da sentença recorrida e, consequentemente, pela absolvição dos apelantes do pedido.

14. A apelada ofereceu contra-alegações, sustentando que:

- Os RR. Recorrentes não impugnam qualquer matéria de facto nos termos do artigo 690º-A relativamente à gravação dos depoimentos prestados, como nada do que dos autos consta impõe decisão diversa, quanto mais insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, como, também, o recorrente não apresentou qualquer documento novo superveniente que, por si só, pudesse destruir a prova em que assentou a decisão recorrida.

- Não é, pois, sequer processualmente admissível a pretensão do recorrente em ver alterada a matéria de facto provada nos presentes autos atento que não se verificam sequer os pressupostos de aplicabilidade do normativo ínsito no artigo 712º do Código de Processo Civil.

- Ainda que se ampliasse a matéria de facto como os recorrentes pretendem, tal seria irrelevante e inócuo.

- Não existe qualquer contradição entre os factos constantes dos artigos 19, 24 e 25 da matéria de facto dada como provada.

- Como ressalta da matéria de facto provada nos autos o R. P jamais pretendeu sequer a revogação do contrato de mútuo dos autos junto da recorrida.

- Aquilo que o R. P fez junto do vendedor do veículo dos autos foi comunicar-lhe que “não pretendia ficar com o carro”, o que, quando muito, configura uma revogação da compra e venda que celebrou com o dito vendedor do veículo e não sequer a tentativa de revogação ou resolução do mútuo dos autos.

- A recorrida não ajustou com o fornecedor do veículo qualquer acordo em que se tenha comprometido a financiar, em regime de exclusividade, as aquisições a crédito pelos clientes-compradores deste, dos bens ou equipamentos que este lhes fornece.

- A recorrida financia a aquisição a crédito de diversos bens ou equipamentos pertencentes a diversos comerciantes que os fornecem aos seus clientes-compradores e, para o efeito, a recorrida e o cliente-comprador subscrevem contratos similares ou idênticos àquele a que os presentes autos se reportam.

- A recorrida não ajustou com o dito comerciante vendedor qualquer acordo que obrigue este a solicitar exclusivamente à recorrida a concessão de financiamento para aquisição a crédito pelos clientes-compradores dos bens ou equipamentos vendidos pelo fornecedor.

- A A. e o vendedor do veículo são pessoas jurídicas completamente distintas, com actividades completamente distintas, com quem o R. P celebrou contratos distintos e com objectos distintos e não é, nem pode ser nunca, pelo facto de o R. acordar com o vendedor do veículo a alegada desistência da compra e venda do mesmo que se pode considerar que o R. revogou automaticamente o contrato de crédito que confessadamente celebrou com a recorrida.

- O R. P terá celebrado, sensivelmente na mesma data em que celebrou o contrato de mútuo dos autos, um outro contrato com a Credifin, tendo por objecto o financiamento da aquisição por ele do veículo automóvel destes autos (com a matrícula 85-83-KB).

- É evidente a má fé e o conluio do R. P com o dito “vendedor” do veículo que permitiu que o R. P tenha celebrado sensivelmente na mesma data e com o auxílio do dito vendedor dois contratos de crédito com vista cada um à aquisição do mesmo veículo automóvel, tendo o R. P alegadamente vindo a desistir das compras e vendas que celebrou com vista à aquisição do mesmo veículo automóvel, e tudo isso com o manifesto conluio do dito vendedor que em ambos os casos terá aceite tais desistências e supostamente assumido perante o R. o pagamento dos financiamentos.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida com a condenação dos recorrentes, solidariamente entre si, no pedido formulado.

15. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi ordenada a remessa dos autos ao tribunal recorrido para os fins apontados no despacho de fls. 462-463.

No tribunal a quo, por despacho de fls. 465, o recurso de agravo interposto pela A. - do despacho que admitiu a intervenção principal de Stand .- foi julgado extinto por inutilidade superveniente da lide, e o recurso de agravo interposto pelo R. P (do despacho de fls. 264) foi julgado deserto por falta de alegações.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso

Conforme deflui do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por imperativo do artº. 660º ex vi do artº. 713º, nº 2, do citado diploma legal.

Dentro dos preditos parâmetros, emergem das conclusões da alegação recursória apresentada como questões solvendas as seguintes, alinhadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas:
- error in procedendo: a pretensa verificação dos vícios constantes nas alíneas b) e c) do nº 1 do artº. 668º e a violação do artº. 659º, nº 2, ambos do Cód. Proc. Civil;
- vícios da fundamentação de facto: «a não consideração, na fixação da matéria de facto, de factos que resultaram plenamente provados e que constam dos autos, os quais eram decisivos para uma decisão antagónica da que ora se recorre, nomeadamente quanto à propriedade do veículo e entrega da quantia objecto do contrato aqui em análise, bem como os factos concretizadores da relação de cooperação entre o stand e a apelada» e «a decisão recorrida não indica explícita, clara e discriminadamente os factos que teve como provados, nomeadamente, quando se limita a remeter para o conteúdo de documentos, sem se explicitar quanto ao seu conteúdo»;
- error in judicando, quanto à decisão de direito, por interpretação incorrecta das normas aplicáveis.


III. Fundamentação

1. Dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª instância

1.1. A Autora é uma sociedade financeira para aquisições a crédito (Al. A) da Matéria Assente).

1.2. No exercício da sua actividade comercial e com destino, segundo informação então prestada pelo Réu P, à aquisição de um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf GTD, de matrícula a Autora, por contrato constante de escrito particular datado de 10 de Julho de 1998, concedeu ao dito Réu P crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado ao mesmo a importância de Esc. 2.150.000$00 (Al. B) da Matéria Assente).

1.3. Nos termos do acordo assim celebrado entre a Autora e o referido Réu, aquela emprestou a este a quantia de Esc. 2.150.000$00, com juros à taxa nominal de 22,9% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como o prémio de seguro de vida serem pagos, nos termos acordados, em 48 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Agosto de 1998 e as seguintes nos dias de cada um dos meses subsequentes (Al. C) da Matéria Assente).

1.4. De harmonia com o acordado a importância de cada uma das prestações deveria ser paga – conforme ordem dada pelo Réu P ao seu banco -, mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pela ora Autora (Al. D) da Matéria Assente).

1.5. Conforme também expressamente acordado a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações (Al. E) da Matéria Assente).

1.6. Mais foi acordado entre a Autora e o Réu P que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 22,9 -, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa de 26,9% (Al. F) da Matéria Assente).

1.7. Das prestações referidas a Autora apenas recebeu nove, não tendo sido paga a décima e seguintes, com vencimento, a primeira, em 10 de Maio de 1999 (Al. G) da Matéria Assente).

1.8. O valor de cada prestação era de Esc.70.327$00 (Al. H) da Matéria Assente).

1.9. Por documento datado de 10 de Julho de 1998 o Réu A assumiu perante a Autora a responsabilidade de fiador, ou seja, fiador e principal pagador por todas as obrigações assumidas no contrato referido pelo Réu P para com a Autora (Al. I) da Matéria Assente).

1.10. Com data de 16 de Dezembro de 1998 consta, a fls. 23 dos autos, um documento em como, por escrito, a . declarou que, tendo o Réu P desistido da sua solicitação de crédito à firma C depois da data prevista e uma vez a mesma não ter aceite a revogação do mesmo devido a ser tardia, que a . ficava responsável pelo pagamento do referido pedido de crédito (Al. J) da Matéria Assente).

1.11. Com data de 7 de Outubro de 1999 consta, a fls. 24 dos autos, um documento em como a declarou, por escrito, que se responsabilizava pelo pagamento do financiamento solicitado à firma T em nome de P (Al. L) da Matéria Assente).

1.12. Dou como reproduzido, para todos os efeitos, o teor do documento de fls. 29 dos autos (Al. M) da Matéria Assente);

1.13. Após Novembro de 1998 foram entregues à Autora cheque ou cheques da . para liquidação de prestações do acordo dos autos (Al. N) da Matéria Assente);

1.14. Dá-se como reproduzido o teor dos documentos de fls. 60 a 63 dos autos (Al. O) da Matéria Assente).

1.15. O Réu P deu ao seu banco uma ordem para proceder às transferências bancárias da sua conta do Banco , agência de Corroios, conta com o nº devendo as transferências ser feitas para a conta da Autora com o nº , do Banco , agência do Conde Redondo, sendo as prestações a debitar em número de 48, no valor de Esc. 70.327$00, sendo a primeira com vencimento em 10 de Agosto de 1998 e a última em 10 de Julho de 2002 (resposta ao quesito 1º da Base Instrutória).

1.16. O Réu apenas pagou a primeira prestação através da referida transferência bancária (resposta ao quesito 2º da Base Instrutória).

1.17. O Réu P acordou com o Stand que este pagaria o financiamento solicitado à Autora em nome do Réu (resposta ao quesito 3º da Base Instrutória).

1.18. Cerca de duas semanas após a celebração do acordo com a Autora o Réu P deslocou-se ao stand e comunicou que já não ia ficar com o carro (resposta ao quesito 4º da Base Instrutória).

1.19. O Réu P nunca chegou a ter a posse do veículo (resposta ao quesito 6º da Base Instrutória).

1.20. Foi a . que emitiu a declaração referida em 1.10 (resposta ao quesito 9º da Base Instrutória).

1.21. Foi a . que emitiu a declaração referida em 1.11 (resposta ao quesito 10º da Base Instrutória).

1.22. A . emitiu, com data de Outubro de 1999, a declaração referida em 1.11 (resposta aos quesitos 12º e 13º da Base Instrutória).

1.23. O Stand não deu conhecimento à Autora de qualquer acordo feito com o Réu P (resposta ao quesito 14º da Base Instrutória).

1.24. Em Novembro de 1998 a Autora foi contactada pelo Réu P no sentido de que pretendia entregar o veículo (resposta ao quesito 15º da Base Instrutória).

1.25. Pretensão a que o mesmo não deu seguimento (resposta ao quesito 16º da Base Instrutória).

1.26. A Autora nunca recusou a revogação do acordo dos autos (resposta ao quesito 17º da Base Instrutória).

1.27. Que nunca lhe foi solicitada (resposta ao quesito 18º da Base Instrutória).


2. Dos pretensos erros formais da sentença (error in procedendo): nulidades das als. b) e c) do do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil e violação do disposto no nº 2 do artº. 660º do Cód. Proc. Civil.
2. 1. Enquadramento normativo preliminar
A violação das normas processuais que disciplinam a elaboração da sentença (em geral: artºs. 138º, 139º, nº 1, 143º, nº 1, 157º, 158º e 159º do Cód. Proc. Civil; em particular, artºs. 659º a 661º do Cód. Proc. Civil), enquanto acto processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas da sentença previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil.

No caso vertente, convocam os apelantes, de forma expressa, as nulidades típicas da sentença previstas nas als. b) e c) do citado do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil (falta de fundamentação e oposição entre os fundamentos e a decisão), e, indirectamente, a da al. d) (omissão de pronúncia), por invocação da violação do disposto no nº 2 do artº. 660º do Cód. Proc. Civil.

Quanto à falta de fundamentação de facto e de direito:

O artº. 158º do Cód. Proc. Civil, concretizando a directriz constitucional constante do artº. 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consagra o dever de fundamentação.

Por regra, na fundamentação da sentença, o juiz deve:

- discriminar os factos que considera provados - tomando em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito e os que tiverem sido dados como provados em sede de julgamento de facto -, conforme exigem os nºs. 2 e 3 do artº. 659º do Cód. Proc. Civil;

- e proceder ao seu enquadramento jurídico, indicando, interpretando e aplicando as disposições legais pertinentes (cfr. nº 2 do artº. 659º do Cód. Proc. Civil).

Tal fundamentação é, aliás, uma exigência de racionalidade postulada pela sistematicidade do Direito e pelo princípio constitucional da submissão dos tribunais à Constituição e à lei, garantia essencial de um Estado de Direito democrático.

Ora, o artº. 668º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil sanciona com a nulidade da sentença as hipóteses de violação grave do dever de fundamentação.

Ou seja:

- a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou é, de todo, inintelegível o quadro factual em que era suposto assentar;

- a falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença não se revela qualquer enquadramento jurídico, ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.

Na impressiva síntese de ALBERTO DOS REIS, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto» (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, p. 140).

Relativamente à oposição entre os fundamentos e a decisão:

De harmonia com o citado nº 2 do artº. 659º do Cód. Proc. Civil, o juiz na sentença deve concluir pela decisão final, o que se vem entendendo reconduzir-se, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre:

- uma premissa maior, delineada na base da facti species plasmada no quadro normativo aplicável;

- uma premissa menor integrada pelo universo factual dado como provado;

- e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.

Assim, entre tais premissas e conclusão deve existir um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de recíproca exclusão lógica.

Ora, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na aludida al. c) do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito.

Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito - reconduzida a um erro de julgamento-, e, por conseguinte, determinativa da improcedência da acção.

Na súmula de ALBERTO DOS REIS, «a contradição não é aparente, é real; o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam lógicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto». (in ob. cit., p.141).

No que concerne à omissão de pronúncia:

De harmonia com o disposto no artº. 660º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, o juiz, na sentença, deve conhecer, em primeiro lugar, de todas as questões processuais - suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficiosos, e não se encontrem precludidas - que determinem a absolvição do réu da instância.

Seguidamente, deve conhecer das questões de mérito (pretensão ou pretensões do autor, pretensão reconvencional, excepções peremptórias), só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no nº 2 do artº 660º.

E a omissão de pronúncia quanto a tais questões constitui fundamento de nulidade de sentença, por força do disposto na al. d) do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil

2.2. Das pretensas nulidades da sentença previstas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil

Depois desta sumária indagação e interpretação das normas jurídicas relevantes, importa agora reverter ao caso concreto:

Padece a sentença sob recurso do vício formal de falta de fundamentação para os efeitos da nulidade cominada na al. b) do nº 1 do artº. 668º do Cód. Proc. Civil, como pretextam os R.R.?

Conforme supra referido, só a falta absoluta ou a total ininteligibilidade do quadro factual e/ou do enquadramento jurídico (violação grave do dever de fundamentação) conduz à invocada nulidade da sentença.

Ora, da simples análise da sentença sob recurso resulta não se verificar tal hipótese no caso sub judice.

Na sentença ora sob recurso, em sede de fundamentação:

- na exposição das razões de facto, procedeu-se à enunciação, de forma discriminada (sublinhando-se, desde já, que a problemática da remissão para o teor dos documentos juntos aos autos constante das proposições de facto 12 e 14 será objecto de tratamento em sede dos vícios da decisão de facto), da factualidade assente pelas partes e da provada em julgamento (factos assentes e respostas aos quesitos da base da instrutória): cfr. fls. 365 e 367;

- do enquadramento jurídico da factualidade assente, constam juízos classificatórios da realidade em apreço; juízos interpretativos dos normativos convocados, culminando-se na caracterização jurídica dos factos apurados e na concretização do efeito jurídico correspondente: cfr. fls. 367 a 369.

Termos em que, não obstante se reconhecer que, em sede de enquadramento normativo da factualidade assente, o discurso argumentativo despendido da sentença não é exemplar na óptica de persuasão do mérito da decisão - sendo, mesmo susceptível de censura, em determinados trechos, como infra se analisará -, se tem por não verificada a pretextada falta de fundamentação.

E o mesmo se pode afirmar relativamente à pretensa oposição entre os fundamentos e a decisão.

Efectivamente, da análise da sentença não resulta qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, porquanto entre as premissas - a maior, plasmada no quadro normativo aplicável [delineado, externamente, na base da causa de pedir alegada (incumprimento do contrato de crédito ao consumo, na modalidade de um mútuo finalizado ou de escopo) e, internamente, na base do invocado efeito extintivo da obrigação (consubstanciado numa pretensa assunção de dívida por terceiro)]; a menor, integrada, designadamente, pelos factos discriminados sob os pontos 1., 2., 3., 4., 5., 6., 7., 8., 9., 17., 18., 26. e 27. - e o juízo conclusivo em que se consubstancia o dispositivo da sentença existe um nexo lógico que permite a formulação de um juízo de conformidade nos termos constantes da decisão revidenda.

Todavia, também neste âmbito, desde já se adianta, que existem segmentos da fundamentação de direito sobre os quais é viável a formulação de um juízo de severa censura, concretamente, o enquadramento jurídico operado em sede de tratamento da argumentação – que não questão (uma vez que por questão se entende o efeito pretendido pelo autor e o respectivo pedido, bem como as excepções dilatórias ou peremptórias arguidas ou de que cumpra ao juiz conhecer oficiosamente) – esgrimida pelos apelantes com base “numa outra factualidade” - a alegada e provada no âmbito do processo nº 719-A/2002, que correu termos no 4º Juízo Cível / 2ª Secção da Comarca do Porto - e transposta para os presentes autos em frontal violação do perímetro do respectivo thema decidendum (delimitado - reitera-se -, externamente, pela causa de pedir e pelo pedido e, internamente, pela excepção peremptória invocada), sendo certo que, relativamente a um tal enquadramento, a ora apelante – mais do que a formal invocação da oposição - pretende manifestar a sua divergência.

Um tal enquadramento jurídico, não pode, todavia, extravazar esse domínio de tratamento de um argumento, totalmente distinto do tratamento das questões solvendas suscitadas naquela sentença.

Nesta conformidade, não se verifica qualquer oposição relevante que afecte formalmente a sentença recorrida.

2.3. Da pretensa violação do nº 2 do artº. 660º do Cód. Proc. Civil

Neste particular, sustentam os apelantes que se mostra violado o disposto no nº 2 do artº. 660º do Cód. Proc. Civil, porquanto «o tribunal “a quo” fez uma errada valoração da prova produzida, o que conduziu a que desse como verificados factos contraditórios entre si, não se prontificando a resolver a questão que esteve na origem dessa contradição» (cfr. conclusão 5ª).

Ora, ressalvado o respeito devido pelo respectivo esforço argumentativo, igualmente não se verifica qualquer violação do disposto no nº 2 do artº. 660º, porquanto, encontrando-se o juiz, na delimitação do objecto da sentença, por um lado, confinado ao âmbito das pretensões formuladas pelas partes e, por outro, sujeito aos factos que as partes alegam a título de causa de pedir e como fundamento de excepções, se conclui que, na sentença em apreço, foram tratadas todas as questões suscitadas e, ainda, o argumento esgrimido a propósito do fundamento de excepção expressamente invocado no processo nº 719-A/2002, que correu termos no 4º Juízo Cível / 2ª Secção da Comarca do Porto (no âmbito do qual, foi, desde logo, alegada a «ligação funcional» entre os contratos de mútuo e de compra e venda e resultou provada a desistência da compra do veículo e a aceitação dessa desistência por banda do Stand Universuto).

3. Dos invocados vícios da fundamentação de facto

3.1. Enquadramento preliminar das pretensas deficiências da fundamentação de facto

Relativamente à fundamentação de facto, sustentam os recorrentes:

- a decisão recorrida não tomou em consideração, na fixação da matéria de facto, factos que resultaram plenamente provados e que constam dos autos, os quais eram decisivos para uma decisão antagónica da que ora se recorre, nomeadamente, quanto à propriedade do veículo e entrega da quantia objecto do contrato aqui em análise, bem como os factos concretizadores da relação de cooperação entre o stand e a apelada (conclusão 1ª), pretendendo, assim, que o Tribunal da Relação, com fundamentos nos poderes consignados no artº. 712º do Cód. Proc. Civil, dê como provados esses factos (cfr. conclusão 2ª);

- a decisão recorrida não indica explícita, clara e discriminadamente os factos que teve como provados, nomeadamente, quando se limita a remeter para o conteúdo de documentos, sem se explicitar quanto ao seu conteúdo, violando dessa forma o exigido no artº. 659º, nº 2, do Cód. Proc. Civil (conclusão 3ª), justificando tal insuficiência a baixa do processo a fim de o tribunal recorrido se pronunciar expressamente.

Efectivamente, nos termos do disposto no artº. 712º do Cód. Proc. Civil, há lugar à modificabilidade da decisão de facto pela Relação:

- se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram da base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida (alínea a) do nº 1);

- se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (alínea b) do nº 1);

-se o recorrente apresentar documento superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (alínea c) do nº1).

Acresce que, se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta (nº 4 da citada disposição legal).

3.2. Da remissão para o teor dos documentos:

No caso em apreço, na enunciação da matéria de facto, o tribunal a quo, ao descrever a factualidade assente pelas partes, utilizou a remissão para o teor de documentos juntos aos autos nos pontos 12 e 14 do elenco dos factos provados - transpondo, de resto, o que já constava das als. m) e o) da matéria assente:

- «Dou como reproduzido, para todos os efeitos, o teor dos documentos de fls. 29 dos autos (Al. M) da matéria assente)»;

- «Dá-se como reproduzido o teor dos documentos de fls. 60 a 63 dos autos (Al. O) da matéria assente)».

Ora, em princípio, devem efectivamente transcrever-se os conteúdos do teor do documento que reproduzam factos considerados provados.

Nesta linha de entendimento, o juízo probatório positivo deve reflectir de forma inequívoca as declarações negociais ou de ciência constante de documentos que se considerem assumidas pelos seus autores, sem deixar margem para especular sobre tal assunção.

O grau de precisão de tal juízo probatório deverá ser aferido, por um lado, em função e no contexto do que vem alegado e, por outro lado, de harmonia com os resultados da produção de prova e da convicção do julgador sobre eles formar.

Porém, quando se esteja em presença de documentos em que se registam dados de leitura e definição inequívocos [como é manifestamente o caso em apreço: teor do documento de fls. 29 (no contexto da respectiva alegação: artº. 31º da contestação) - «A propriedade do veículo de matrícula encontra-se registada a favor de R desde 29/01/99»; teor dos documentos de fls. 60 a 63 (no contexto da respectiva alegação: artº. 23º da réplica) - «A A., por cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 22 de Setembro de 1999, que enviou aos R.R. e que estes receberam, instou-os a procederem ao pagamento dos seus débitos para com a A., concedendo-lhes um prazo adicional de 8 dias para o efeito»] não existe qualquer inconveniente em que o juízo probatório positivo seja feito por remissão para tais dados, acrescendo, no caso vertente, a circunstância de se tratar de factos admitidos por acordo. Consequentemente, não existe qualquer fundamento para a pretendida baixa dos autos à 1ª instância.

3.3. Contradições em sede da factualidade dada por assente em 1ª instância:

Sustentam, ainda, os apelantes - em estrita sede de alegação recursória - existir contradição entre os factos provados e descritos sob os pontos 19, 24 e 25 do quadro factual enunciado na sentença, embora, tal questão não seja expressamente transposta para as respectivas alegações (que, consabido é, definem o âmbito do recurso).

Todavia, sempre se adiantará que tais enunciados de facto não exprimem sentidos reciprocamente excludentes: a circunstância de o R. P nunca chegar a ter a posse do veículo, não exclui que o mesmo tenha contactado a A., afirmando pretender entregar o veículo, e, muito menos, exclui que o mesmo não tenha dado seguimento a essa pretensão. A verdadeira contradição verificar-se-ia se o R. P tivesse entregue o veículo.

Como assim, também neste particular, improcede o argumentário dos apelantes.

3.4. Omissões constantes da enunciação dos factos tidos como provados

Finalmente, sustentam os apelantes que a decisão recorrida não tomou em consideração, na fixação da matéria de facto, factos que resultaram plenamente provados e que constam dos autos, os quais eram decisivos para uma decisão antagónica da que ora se recorre, nomeadamente, quanto à propriedade do veículo e entrega da quantia objecto do contrato aqui em análise, bem como os factos concretizadores da relação de cooperação entre o stand e a apelada.

Ora, tal exposição descritivo-narrativa dos factos provados seria deficiente caso fosse incompleta, por não abranger todos os factos (pertinentes, na perspectiva da pretensão da A. e dos meios de defesa) admitidos por acordo, provados por documento e tidos como provados em sede de discussão e julgamento.

Todavia, tal não se verifica no caso vertente pelas razões que se passam a analisar.

Na sentença recorrida, em sede de enquadramento normativo da factualidade tida como provada, após se conhecer da excepção peremptória invocada em sede de contestação (assunção de dívida por terceiro), concluindo pela sua improcedência, procedeu-se ao tratamento da eventual relevância jurídica da pretextada «desistência» pelo R. P da compra do veículo (em face da natureza do contrato de financiamento para aquisição a crédito de um bem), pressupondo-se a ligação entre o contrato de financiamento e o contrato de compra e venda celebrado entre o Réu P e o Stand . e não se tendo em consideração, designadamente, as respostas, restritiva, ao quesito 4º e, negativa, ao quesito 5º da base instrutória .

Nesse tratamento normativo, a sentença recorrida chegou a rebater a argumentação jurídica constante da decisão proferida no processo nº , que correu termos no 4º Juízo Cível / 2ª Secção da Comarca do Porto (e confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto), no pressuposto - erróneo- de a factualidade dada como provada nos dois processos ser idêntica ou aproximada (cfr. quadro factual da sentença sob recurso e factualismo dado como provado no aludido processo nº : fls. 365 a 367 / fls. 297 a 299).

Por sua vez, a alegação recursória mostra-se estruturada no sentido de se estar em presença de um contrato de financiamento para aquisição a crédito de um bem, em que está provada a ligação entre o fornecedor do bem e a entidade financiadora.

Finalmente, acresce a surpreendente - e totalmente infundada - afirmação feita da sentença sob recurso: «(...) sendo que a norma é que a quantia mutuada nestes casos seja directamente entregue pela entidade concessionária do crédito ao fornecedor, o que se entende ter sido o caso dos autos apesar de as partes nada terem alegado nesse sentido, dado o conhecimento oficioso de centenas de processos idênticos a este

Ora, em primeiro lugar, importa ter presente que, através desta acção, a A. pretende dos R.R. o reembolso imediato de todas as prestações ainda não pagas, no âmbito do contrato mútuo celebrado com o R. P e em que o R. A figura como fiador do mutuário, com fundamento na falta de cumprimento da 10ª prestação por parte do R. P. Assim, como causa de pedir, a A. invoca a celebração do contrato de mútuo com o R. P e a sua violação, e a qualidade de fiador do mutuário do R. A .

Em sede de defesa, sustentou-se: o R. P somente pagou a primeira prestação e acordou com a A. e o Stand . a transmissão da dívida, porquanto desistiu da compra do veículo; o Stand . aceitou a desistência da compra, tendo continuado na posse do veículo.
Na réplica, além do mais, em face da invocada desistência da compra do veículo, a A. veio explicitar melhor os contornos do financiamento, bem como os termos em que a intervenção do Stand . ocorreu (cfr. artºs. 36º a 53).

Neste contexto, em sede condensação, foram seleccionados os factos pertinentes ao thema decidendum cujo perímetro ficou traçado, externamente, pela causa de pedir e internamente pela excepção peremptória arguida pelos R.R. (celebração e violação do contrato de mútuo; qualidade de fiador do R. A; assunção da dívida por parte do Stand ) e, posteriormente, após o julgamento da matéria de facto, veio a ser fixado o quadro factual enunciado na sentença.

Inexiste, assim, qualquer fundamento para a pretendida ampliação da matéria de facto, porquanto, proporcionando o processo, na sua espécie declarativa, a fixação de uma dada factualidade para fazer incidir sobre ela - com a força própria do caso julgado- os efeitos que lhe correspondem no plano do Direito constituído, a factualidade fixada na sentença se estriba na factualidade oportunamente alegada como fundamento da medida de tutela jurídica concretamente pretendida.

No mesmo sentido, aponta a circunstância de os R.R., ora apelantes, pretenderem a ampliação da matéria de facto relativamente a factos, que, na estrutura da alegação recursória –uma vez que, na fase dos articulados, tal não era a sua natureza-, revestem a natureza de factos exceptivos, mas com recurso à alegação feita pela A. na réplica.


4. Do pretenso erro (de direito) de julgamento (error in judicando)
4.1. Da pretensa falha na determinação das normas aplicáveis à união de contratos

Do que exposto ficou, resulta inequívoco que, os RR não alegaram, como lhes competia à luz do disposto no artº. 342º, nº 2, do Cód. Civil, factos suficientes para caracterizar uma situação de ligação funcional entre a venda e o mútuo e de funcionamento do «mecanismo de rescisão ou do arrependimento», pelo que, à luz do thema decidendum construído pelas partes neste processo, não há que entrar sequer na disciplina jurídica da união de contratos, pelo que não ocorre qualquer falha na determinação das normas aplicáveis à união de contratos.

Neste particular, a única censura que merece a sentença recorrida prende-se com a circunstância de, no tratamento da relevância jurídica da pretextada desistência do contrato de compra e venda, não ter tido em atenção que, no caso dos autos, nem sequer resultou provada a aceitação da desistência, conforme já anteriormente referido.

4.2. Da pretensa incorrecção da interpretação das normas aplicáveis

Tendo presente que estamos no âmbito de uma acção baseada num contrato de mútuo celebrado com o R. P e em que o R. A figura como fiador do mutuário, em que há na falta de cumprimento da 10ª prestação por parte do R. P, a única questão que foi colocada reconduziu-se à hipótese de um facto extintivo da obrigação de pagamento de todas as prestações em dívida consubstanciado numa pretensa assunção de dívida por terceiro – no caso, a Uiniversauto, Lda.-, com exoneração daqueles devedores.

Ora, diz-nos o artº. 595º do Cód. Civil que:

«1. A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:

a) Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor;

b) Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor.

2. Em qualquer do casos a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado».

Nestes termos, a assunção da dívida por terceiro só extingue a obrigação do devedor primitivo, se o credor assim o declarar expressamente.

Nessa medida, o efeito liberatório do antigo devedor não se basta com a ratificação ou aceitação expressa, por parte do credor, do acordo de assunção de dívida, mas requer a declaração expressa de exonerar o devedor primitivo.

Ora, não tendo os apelantes logrado provar, como lhes competia, à luz do disposto no artº. 342º, nº 2, do Cód. Civil, os factos caracterizadores da assunção de dívida liberatória no âmbito das obrigações por si assumidas no domínio do contrato de mútuo celebrado (cfr. artºs. 4º, 5º e 6º da contestação; quesitos 3º, 4º e 5º da base instrutória; respostas restritivas aos quesitos 3º e 4º e negativa ao quesito 5º), outro não poderia ser o desfecho da acção que não o da sua procedência, com a fundamentação ora traçada.

Consequentemente, não se verifica qualquer fundamento para a pretendida revogação da decisão, pelo que improcedem as conclusões dos apelantes também nesta parte.

IV. Decisão

Posto o que precede, acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em, julgando improcedente a apelação, confirmar com fundamentação não totalmente coincidente, em consequência, a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.


Lisboa, 11 de Janeiro de 2007

(Processado e integralmente revisto pela relatora, que assina e rubrica as demais folhas)

(Isabel Canadas)
(Maria da Graça Mira)
(Vaz Gomes)