Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | LARA MARTINS | ||
| Descritores: | DOLO CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/22/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I- O dolo é definido genericamente como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, definição esta que contém em si mesma os dois elementos basilares que caracterizam uma conduta dolosa. O elemento intelectual que implica a representação, o conhecimento das circunstâncias constitutivas do tipo objectivo de ilícito, e o elemento volitivo que consiste na vontade, por parte do agente de praticar o ilícito, isto é a decisão voluntária do agente de realizar o ilícito típico, após conhecer os elementos constitutivos do tipo objectivo. II- Não se mostra necessário que da acusação por crime de condução de veículo em estado de embriaguez conste qualquer menção ao conhecimento que o arguido tinha da quantidade e qualidade das bebidas alcoólicas que havia ingerido e da taxa de álcool que as mesmas determinariam. Tratando-se de um crime de mera actividade, o que se pune é o mero conhecimento e vontade de conduzir um veículo na via pública sob o efeito do álcool. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam1, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório A- Da decisão recorrida: No âmbito dos supra indicados autos, em 22.04.2025, foi proferido despacho pelo qual, ao abrigo do disposto no artº 311º nºs 1 e 2 al. a) e nº 3 al. b) do Código de Processo Penal (CPP), foi rejeitada a acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, que lhe havia imputado a prática, como autor material na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.p. pelo artº 292º nº 1 do Código Penal (CP), a que acrescia a pena acessória prevista no artº 69º nº 1 al. a) do mesmo diploma legal, por a ter considerado manifestamente infundada, perante a falta de todos os elementos subjectivos necessários do ilícito criminal em causa. * B- Do Recurso Inconformada com a decisão, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: a. O despacho judicial recorrido recusou a recepção da acusação pública, por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, mais concretamente no que se refere ao elemento subjectivo do tipo, nos termos do artigo 311.º, n.º s 1, 2 alínea a) e 3 alínea b) do Código Processo Penal, que inexiste qualquer menção a que o arguido conhecia a quantidade e qualidade de bebidas alcoólicas que ingeriu antes de iniciar a condução, bem como sabia que a ingestão das mesmas lhe determinariam, como determinaram, uma taxa de álcool superior ao permitido por lei, consequentemente determinando o arquivamento dos autos. b. Sucede, porém, que o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objecto do processo e esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado. c. Ora, inexiste uma fórmula única para a descrição factual do dolo, não só porque essa redacção é livre, mas, sobretudo, porque as exigências de concretização factual do dolo dependerão sempre do concreto crime em apreciação. d. Portanto, da leitura da acusação pública resulta claro, ao contrário do que o Tribunal a quo considerou, que o dolo do tipo do crime de condução de veículo em estado de embriaguez está suficientemente descrito factualmente pois o arguido sabia e tinha conhecimento, bem como estava consciente, que conduzia o veículo sob a influência de álcool, e, não obstante, fê-lo na via pública de forma livre, voluntária e conscientemente. e. Assim, não se pode concordar com o entendimento do Tribunal a quo de que é obrigatório constar na acusação pública, e no que ao crime em apreço diz respeito, que o arguido conduzia o veículo, sabendo ser portador de uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. f. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é um crime de mera actividade em que o que se pune é simplesmente o facto de o arguido se ter disposto a conduzir veículo na via pública sob o efeito do álcool, sendo que o elemento emocional do crime não exige que o agente saiba a exacta taxa, mas apenas que ao actuar da forma como actuou teve a consciência de que se encontrava sob o efeito do álcool, não podendo o arguido ter deixado de admitir como possível que a quantidade de álcool que ingerira o faria incorrer no ilícito criminal em causa. g. Assim, não existe um modo semântico único para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo e, neste sentido, acompanhamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 12-01-2011, cujo relator é Rui Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt, onde se enunciam, de forma clara, as diversas formulações efectuadas pelo Ministério Público junto da 1ª instância relativamente a situações factuais idênticas às descritas nos autos. h. É, pois, nosso entendimento que a acusação especificou suficientemente os factos do dolo – que o arguido sabia e quis os actos que objectivamente praticou livremente – bem como os factos relativos à consciência da ilicitude – que a sua conduta era desconforme com o direito: na acusação descreve-se que o arguido sabia que se encontrava sob a influência de álcool – elemento intelectual do dolo – mas que ainda assim conduziu o veículo da forma ali descrita – elemento volitivo do dolo. i. Razão pela qual entendemos que a decisão em causa deveria ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por manifestamente infundada, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data. * C- Da Admissão do recurso Por despacho datado de 09.06.2025, o recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. * D- Da Resposta Notificado o arguido o mesmo não apresentou resposta. * E- Do Parecer Nesta instância, o Exmº Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer através do qual aderiu à posição assumida pelo Ministério Público em 1ª instância, pugnando pela procedência do recurso revogando-se a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que determine o cumprimento do disposto no artº 311º nºs 1 e 2 do CPP, receba a acusação pública deduzida e, em consequência, o prosseguimento dos autos. * II- Fundamentação A- Objecto do recurso Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jurisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso2. Atentas as conclusões apresentadas, a única questão que cabe apreciar é a de saber se se mostra correcta a decisão de rejeição da acusação deduzida nos autos por manifestamente infundada por não conter a narração dos factos, nos termos do disposto no artº 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP. * B- Elementos processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso B1- Da acusação deduzida No dia 21.03.2025, o Ministério Público, para julgamento em processo abreviado, deduziu acusação contra: AA, BB e CC, natural de ..., concelho de ..., nascido a ........1996, solteiro e residente no ... Porquanto: 1. No dia ........2025, pelas 02horas e 25 minutos, na ..., em ..., o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de 1,923g/l, deduzido o erro máximo admissível. 2. O arguido conhecia as características do veículo e do local onde conduzia, bem sabendo que não podia conduzir veículos na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas. 3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Pelo exposto, praticou o arguido, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo: - um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º, n.º 1, a que acresce a pena acessória prevista no art. 69º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal. * Prova: Toda constante dos autos, designadamente: A. Testemunhal: i) DD, Agente da PSP – id. a fls. 1; B. Documental: i) Auto de notícia por detenção– fls. 1-2; ii) Talão da TAS – fls. 6; iii) Certificados de verificação, fls. 8-9; iv) CRC do arguido. * B2- A decisão recorrida É do seguinte teor a decisão recorrida: QUESTÃO PRÉVIA A. DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO PÚBLICA O Ministério Público deduziu acusação em processo abreviado contra o arguido AA, imputando-lhe a prática dos seguintes factos: “1. No dia ........2025, pelas 02horas e 25 minutos, na ..., em Lisboa, o arguido conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de 1,923g/l, deduzido o erro máximo admissível. 2. O arguido conhecia as características do veículo e do local onde conduzia, bem sabendo que não podia conduzir veículos na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas. 3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”. Para além do segmento acima transcrito, nada mais é mencionado, no despacho de acusação, acerca dos factos imputados ao arguido nos presentes autos. Vem então o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal. Cumpre apreciar. Dispõe o artigo 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 391.º-C, n.º 1 do mesmo Código) que, após o recebimento dos autos no tribunal, o presidente tem que se pronunciar sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, desde que possam ser logo conhecidas. Assim, caso o processo tenha sido remetido sem ter tido lugar a fase de instrução (que não existe nesta forma processual), o presidente despachará, designadamente, no sentido de rejeitar a acusação, caso a mesma seja manifestamente infundada, conforme o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal. Ora, a acusação deve ser considerada manifestamente infundada quando se verifique pelo menos um dos seguintes pressupostos: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime (cfr. artigo 311.º, n.º 3 do Código de Processo Penal). Ademais, o artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal determina que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática. Veja-se ainda que, nesta forma processual, a lei prevê expressamente que a acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o n.º 3 do artigo 283.º, sendo que a identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia (cfr. artigo 391.º-B, n.º 1 do Código de Processo Penal). Revertendo agora as considerações para o caso sub judice, constata-se que a acusação pública não contém todos os elementos factuais necessários para preencher o tipo subjectivo de ilícito do crime de condução de veículo em estado de embriaguez. No que concerne ao tipo subjectivo, o mesmo é composto pelos elementos cognitivos, bem como volitivos. Quanto aos elementos subjectivos atinentes ao ilícito acima referido consta apenas que “2. O arguido conhecia as características do veículo e do local onde conduzia, bem sabendo que não podia conduzir veículos na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas.”, e que “3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”. Ora, não é feita qualquer menção na acusação pública a que o arguido conhecia a quantidade e a qualidade de bebidas alcoólicas que ingeriu antes de iniciar a condução, bem como sabia que a ingestão das mesmas lhe determinariam, como determinaram, uma taxa de álcool no superior ao permitido por lei, isto é, igual ou superior a 1,2 g/l (caso se pretendesse imputar a conduta ao arguido com dolo directo). Estamos, assim, perante a falta de descrição de todos os elementos subjectivos necessários do ilícito criminal acima apontado. Neste sentido, “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode er integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal, devendo constar da peça acusatória. O que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente a actuação de forma livre, voluntária ou deliberada, consciente e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 31- 05-2022, processo n.º 977/21.2PFAMD.L1-5, relator: João Carrola, disponível www.dgsi.pt. Também nesse sentido, “Os elementos subjetivos do crime são expressos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre - isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-, voluntária ou deliberadamente-querendo a realização do facto-, conscientemente -isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei -consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2022, processo n.º 3105/21.0T9AMD.L1-3, relator: Alfredo Costa, disponível www.dgsi.pt. Desta forma, não pode deixar de considerar que a presente acusação particular é nula, por falta da descrição suficiente dos elementos supra mencionados. Acrescente-se que a falta do elemento subjectivo não pode ser suprida em sede de audiência de discussão e julgamento, com recurso ao mecanismo do artigo 358.º do Código de Processo Penal, e não pode, igualmente, ser suprida através do mecanismo previsto no artigo 359.º do mesmo Código. Quanto a este aspecto, veja-se que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015. Para além disso, está vedado ao Juiz ultrapassar o objecto que lhe é submetido a julgamento, alterando ou corrigindo o que dele consta, sob pena de estar a substituir-se à parte acusadora e deixar de exercer com imparcialidade a sua função. Isso mesmo resulta da estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente imposta pelo artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. Posto isto, de harmonia com o expendido, afigura-se-nos que a acusação pública deduzida nos presentes autos é manifestamente infundada, pelo que tem que ser rejeitada. Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação pública deduzida nos presentes autos, por ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º. n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal. * Sem custas. * Notifique. * Oportunamente, arquive os presentes autos. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 07-03-2018, processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, relator: Orlando Gonçalves; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2021, processo n.º 205/19.0T9MTA.L1-5, relator: Artur Vargues, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2023, processo n.º 34/21.1PHAMD.L1-9, relatora: Paula Penha, todos disponíveis in www.dgsi.pt, constando do último Acórdão, nomeadamente, que “Mesmo que tivesse havido fundamento para uma rejeição liminar da acusação (que pôs fim à fase de inquérito) não poderia haver lugar à remessa dos autos ao Ministério Público – contrariamente ao demais teor constante do despacho recorrido que, após rejeitar a acusação, ordenara a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público. A este propósito é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que não é possível ordenar numa diferente fase processual o regresso à fase anterior, fazendo retroceder o processo de forma a sanar eventuais invalidades dessa antecedente fase processual.”. * C- Da apreciação da questão objecto do recurso Como supra referido, a única questão que cabe apreciar no presente recurso é a bondade da decisão que rejeitou a acusação deduzida por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, nos termos do disposto no artº 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP. De acordo com o artº 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. A menção feita na nossa Lei Fundamental à estrutura acusatória do processo penal impõe, por um lado, uma diferenciação entre o órgão que investiga e acusa e o órgão que julga e, por outro, a vinculação deste último ao alegado na acusação e à pretensão na mesma formulada.3 Precisamente por esta razão, como decorre do artº 283º nº 3 al. b) do CPP, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. Na ausência destes elementos, deve a acusação ser rejeitada por manifestamente infundada por não conter a narração dos factos susceptíveis de vir a ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança. Com efeito, a alusão à narração dos factos nesta alínea b) (do artº 311º nº 3 do CPP) não pode deixar de ter-se por referida à narração dos factos exigida pela alínea b) do nº 3 do artº 283º. Os factos em causa são, pois, os factos de ordem objectiva e subjectiva que integram os elementos do tipo legal imputado ao arguido, com o detalhe possível em cada caso concreto, a que acrescem outros factos essenciais para a aplicação ao arguido de uma dada pena ou medida de segurança, como sejam os relativos ao preenchimento de causas de punibilidade ou procedibilidade, circunstância agravante comum (reincidência) ou outros de que dependa a responsabilidade penal do arguido e a consequente aplicação da reacção criminal cabida no caso concreto, sem os quais faltará elemento essencial à delimitação do objecto do processo tal como este vem sendo positivamente entendido e, consequentemente, à sujeição dos factos a julgamento com a melhor satisfação dos direitos de defesa do arguido.4 Ora, se assim é, naturalmente que a verificação do fundamento para a rejeição da acusação passa pela análise do tipo legal de crime em causa. Nos presentes autos, o Ministério Público acusou o arguido, em autoria material, sob a forma consumada, pela prática de um crime de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível no artigo 292º, nº1 do Código Penal (CP). De acordo com esta disposição legal quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. Trata-se de um crime de perigo abstracto, não pressupondo, pois, a verificação de qualquer perigo em concreto para os bens jurídicos protegidos, presumindo o legislador que, verificada a conduta típica, essa perigosidade existiu, pelo que o agente é punido independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico protegido. Quanto a este, o que se pretende proteger com esta incriminação é a segurança da circulação rodoviária, se bem que indirectamente se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade física5. Da disposição legal citada resulta que constitui elemento objectivo do tipo de crime em causa a condução do veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l. Quanto ao elemento subjectivo, trata-se de um tipo de crime punível a título de dolo ou de negligência. Quanto ao tipo doloso, é o mesmo definido genericamente como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito6, definição esta que contém em si mesma os dois elementos basilares que caracterizam uma conduta dolosa. O elemento intelectual que implica a representação, o conhecimento das circunstâncias constitutivas do tipo objectivo de ilícito, e o elemento volitivo que consiste na vontade, por parte do agente de praticar o ilícito, isto é a decisão voluntária do agente de realizar o ilícito típico, após conhecer os elementos constitutivos do tipo objectivo. A propósito deste segundo elemento, o qual permite diferenciar as diferentes categorias de dolo enunciadas no artº 14º do CP, refere-nos Figueiredo Dias7 que o conhecimento (previsão) das circunstâncias de facto e, na medida necessária, do decurso do acontecimento não podem, só por si, indiciar a contrariedade ou indiferença ao dever-ser jurídico-penal, manifestada pelo seu agente no seu facto, que dissemos caracterizar a culpa dolosa e, em definitivo, justificar a punição do agente a título de dolo. O dolo do tipo não pode bastar-se com aquele conhecimento, mas exige ainda que a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização. Volvendo ao caso dos autos, como resulta do supra exposto, entendeu o despacho recorrido que a acusação não continha a narração de factos atinentes aos elementos subjectivos por não ser feita menção “a que o arguido conhecia a quantidade e a qualidade de bebidas alcoólicas que ingeriu antes de iniciar a condução, bem como sabia que a ingestão das mesmas lhe determinariam, como determinaram uma taxa de álcool superior ao permitido por lei, isto é, igual ou superior a 1,2 g/l (…)”. Vejamos, pois, se assim é. Quanto ao elemento subjectivo, consta da acusação que: - O arguido conhecia as características da via e do local onde conduzia; - Sabendo que não podia conduzir veículos na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas; - Agiu de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Quanto a esta última expressão, como referido também no Acordão de Uniformização de Jurisprudência 1/2015, citado no despacho recorrido, o dolo costuma ser expresso na acusação através da seguinte fórmula: uma actuação de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico); voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto); conscientemente (isto é tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). Atenta a descrição, ainda que sintéctica, feita na acusação, e ao contrário do despacho recorrido, entendemos que da mesma constam todos os elementos necessários para que, a darem-se por provados, permitam seja aplicada ao arguido uma pena ou uma medida de segurança. Com efeito, para além da descrição factual referente ao tipo objectivo, traduzida na condução na via pública com uma taxa de álcool de 1,92 g/l, resulta também da acusação que o arguido sabia que não podia conduzir o veículo automóvel após ingestão de bebidas alcoólicas (elemento intelectual do dolo) e que ainda assim de forma livre, o quis fazer (elemento volitivo), tendo consciência que a sua conduta era ilícita. Ao contrário do entendimento expendido no despacho recorrido, não se mostra necessário que, da acusação por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, conste qualquer menção ao conhecimento que o arguido tinha da quantidade e qualidade das bebidas alcoólicas que havia ingerido e da taxa de álcool que as mesmas determinariam. Na verdade, tratando-se de um crime de mera actividade, o que se pune é o mero conhecimento e vontade de conduzir um veículo na via pública sob o efeito do álcool8. Deste modo, assiste razão ao recorrente pois que constam da acusação pública deduzida os necessários elementos subjectivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez Assim, será o recurso julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a acusação pública deduzida e ordene o prosseguimento dos autos. * III- Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que admita a acusação pública deduzida e ordene o prosseguimento dos autos. * Sem custas Notifique. * Lisboa, 22 de Outubro de 2025 Lara Martins Ana Rita Loja Cristina Almeida e Sousa _______________________________________________________ 1. Neste acórdão é utilizada a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original 2. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89. 3. Cf Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, I, pg. 522 4. António Latas, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª edição, IV, pg 56 5. Cf, Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, 1999, II, pg 1093 6. Cr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2ª edição (reimpressão, I, pg 349 7. Ibidem, nota 6, pg 366 8. No mesmo sentido AC. RE 19.03.2024 no processo 130/23.0 PTFAR.E1, www.dgsi.pt/nsf.jtre |