Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
38/23.0YUSTR-E.L1-PICRS
Relator: ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da responsabilidade do Relator)
1. Decorre do disposto no artigo 25.º, n.º 1 e 3 da LdC, que as diligências complementares de prova requeridas por um visado apenas poderão ser recusadas por manifesta irrelevância ou por revelarem um intuito dilatório.
2. No caso concreto, as Recorrentes requereram à AdC para “Aferir os dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE, em cada um dos anos de 2016 a 2022, inclusive, autonomizando, em separado, para 2020 e 2021, iguais dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológico e antigénio)”.
3. Tal requerimento probatório visa, segundo alegado pelas Recorrentes, aferir da estrutura de oferta do mercado”, na qual concorre a fatia pública correspondente aos Hospitais EPE e ULS EPE, a AA e os restantes laboratórios visados, alegadamente com um posicionamento apenas residual destes.
4. A AdC indeferiu o requerido com base na manifesta irrelevância e caráter dilatório da diligência requerida, despacho esse que foi confirmado pelo tribunal a quo (TCRS).
5. Da nossa parte, perante o ora exposto em sede de análise da nota de ilicitude e (contra-) alegações das Recorrentes, e sem prejuízo de ulteriores desenvolvimentos do processo sancionatório em causa, efetivamente afigura-se-nos que a diligência probatória revela-se manifestamente irrelevante e denota um intuito dilatório, pelo que o recurso é julgado improcedente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO

1. As Recorrentes interpuseram recurso sobre despacho judicial de 12-02-2024 (ref.ª 437582), proferido pelo tribunal a quo (despacho recorrido), e que, concluiu nos seguintes termos:
“Por todo o exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por AA Laboratório de Análises Clínicas, SA e AA Saúde SGPS, SA, pelo que se mantém a decisão da Autoridade da Concorrência que indeferiu, como diligência probatória complementar de inquérito, a realização de estudo para aferir dos dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE nos anos de 2016 a 2022, autonomizando os dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológicos e antigénio) nos anos de 2020 e 2021.”.
2. Em sede de exame preliminar, foi decidido pelo Relator do presente acórdão, por despacho proferido em 18-12-2024, que o efeito do recurso deveria ser meramente devolutivo, diferentemente do que requeriam as Recorrentes.
3. Quanto ao fundo da questão do recurso, a Recorrente teceu as seguintes:
CONCLUSÕES e PEDIDO (transcrição)
Do indeferimento da realização da diligência complementar de prova dos autos
G. A confirmação pelo Tribunal a quo do indeferimento da realização da diligência complementar de prova destes autos de recurso é ilícita, por violação de lei.
H. O art.º 25.º n.º 1 da LdC confere às visadas por investigações de direito da concorrência, em sede de instrução e no exercício dos seus direitos de defesa, o direito de requererem diligências complementares de prova.
I. É uma norma que, salvo manifesta irrelevância e carácter dilatório – a ser devidamente fundamentada pela AdC – não limita as diligências que podem ser requeridas pelo visado, nem o objeto das mesmas, na medida em que reconhece que podem compreender aspetos relevantes para a boa decisão final, incluindo não só a factualidade e as provas já produzidas pela AdC, mas também os elementos de contraprova invocados pela visada.
J. Embora caiba à AdC ajuizar sobre a realização ou não das diligências requeridas, não se pode descurar que tal apreciação é vinculada e que a recusa só pode ter lugar, como referido, se as diligências requeridas forem irrelevantes ou dilatórias – não estando em causa uma qualquer livre discricionariedade que a lei reconheça à AdC e que lhe autorize indeferir o requerido sem mais.
K. Não é verdade, como o Tribunal a quo alega na sentença recorrida, que a diligência complementar de prova requerida não verse factos relevantes à prova da infração dos autos – que é uma “infração pelo objeto” – e seja, por esta razão, irrelevante.
L. Com efeito, estando em causa, como referido, uma infração pelo objeto, a sua imputação nunca poderia proceder sem que, previamente, fosse analisado, nos termos da jurisprudência relevante, também o contexto económico e jurídico do mercado. Sendo que, no âmbito da apreciação deste contexto, há que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (ou seja, a análise requerida).
M. Não é legítimo concluir, na ausência desta análise, no sentido de existirem práticas intrinsecamente nocivas e que restringem sensivelmente a concorrência pelo objeto.
N. Pelo que, contrariamente ao que se alega na sentença recorrida, não está em causa a realização de uma diligência que não integre infração que lhe se imputa à AA e que não tenha de ser provada pela AdC. Na verdade, a sua realização é condição e pressuposto deste tipo de infração e da sua imputação em concreto.
O. Não é verdade, como o Tribunal a quo o alega, que a análise sobre o contexto económico do mercado, incluindo a estrutura da oferta e modo de funcionamento, seja irrelevante, por estar em causa uma alegada infração pelo objeto. É precisamente por estar em causa este tipo de infração que se impõe a realização prévia da diligência requerida e, portanto, a análise daquele contexto.
P. Adicionalmente, é uma diligência que incide sobre a factualidade do processo e que prossegue o objetivo (de contraprova) de afastar a equívoca imputação que a N.I. dirige às Recorrentes, servindo o “intuito construtivo”, na aceção jurisprudencial relevante, de impedir o avançar precipitado de um processo que a AA crê não ter fundamento factual e jurídico.
Q. É uma iniciativa que visa esclarecer um conjunto de asserções factuais que constam da N.I. e que são manifestamente erradas e minam o seu sentido decisório (e a licitude da imputação da infração pelo objeto). Em concreto, demonstrar que, naquilo que é a estrutura de oferta do mercado, na qual concorre a fatia pública correspondente aos Hospitais EPE e ULS EPE, a AA e os restantes laboratórios visados têm um posicionamento apenas residual e que a circunstância de a Tutela intervir no mercado simultaneamente como cliente (monopsónico) e concorrente da AA, nesta última dimensão com uma quota de mercado muito significativa, é essencial para dilucidar o que as Recorrentes consideram ser uma muito deficiente e equívoca interpretação dos factos dos autos.
R. A realização da diligência dos autos é particularmente útil e relevante quando resulta patente dos autos de contraordenação que os dados económicos que as Recorrentes juntaram na sua Pronúncia à N.I., ainda que incompletos e desatualizados, conflituam com os dados da N.I. Importando, por conseguinte, compilar informação atual e fidedigna que não se encontra na disponibilidade da AA .
S. Estando em causa diligências essenciais à descoberta da verdade, o indeferimento decidido pela AdC, e confirmado pelo Tribunal a quo, equivale, na verdade, a uma inversão do ónus da prova, traduzindo o entendimento antijurídico de que compete à AA a prova de que não cometeu a infração em causa (para esse efeito, devendo ela própria assegurar a realização das diligências probatórias que requereu à AdC), e não à AdC a prova da existência da infração pelo objeto e sua imputação à AA . Esta é uma abordagem violadora dos princípios do direito público sancionatório e da própria CRP.
T. Resulta de todo o exposto que o indeferimento, decidido pela AdC e confirmado pelo Tribunal a quo, da diligência complementar de prova destes autos é ilícito, porque contrário ao regime do art.º 25º da LdC e porque comprometedor dos direitos fundamentais de audiência e defesa das Recorrentes, nos termos e para os efeitos do art.º 32.º n.ºs 5 e 10 da CRP. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do direito, o que se invoca.
Termos em que deverá o presente recurso ser recebido e julgado procedente, e, em conformidade:
Ser anulada a Sentença recorrida na parte impugnada, e, nessa medida, ser também anulado o respetivo ato de indeferimento, devendo tal Sentença ser substituída por outra que defira a realização da diligência complementar de prova destes autos que consiste em “Aferir os dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE, em cada um dos anos de 2016 a 2022, inclusive, autonomizando, em separado, para 2020 e 2021, iguais dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológico e antigénio)”. Tudo isto pelos fundamentos expostos, como é de Lei e de Justiça!”.
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4. A Recorrida AdC, regularmente notificada para o efeito, respondeu ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência e consequente manutenção do despacho recorrido.
5. O Ministério Público junto do TCRS também pugnou pela improcedência do recurso e consequente manutenção do despacho recorrido.
6. O Ministério Público junto deste tribunal da relação acompanhou o entendimento expresso pelo Ministério Público junto do TCRS.
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II. QUESTÕES
7. O presente recurso segue a tramitação prevista no Código do Processo Penal, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações.
8. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação do recurso (artigo 412.º, nº 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
9. Também decorre das regras processuais e de jurisprudência superior que o presente tribunal deve conter-se nos limites do pedido[1].
10. Nestes termos, perante as conclusões de recurso da arguida cumpre ao presente tribunal responder às seguintes questões:
i. Deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que defira a requerida realização da diligência complementar de prova, que consiste em “aferir os dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE, em cada um dos anos de 2016 a 2022, inclusive, autonomizando, em separado, para 2020 e 2021, iguais dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológico e antigénio)”?
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III. FUNDAMENTAÇÃO
i. Deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que defira a requerida realização da diligência complementar de prova, que consiste em “aferir os dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE, em cada um dos anos de 2016 a 2022, inclusive, autonomizando, em separado, para 2020 e 2021, iguais dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológico e antigénio)”?
11. Alegam as Recorrentes, além do mais, que “não é verdade, como o Tribunal a quo o alega, que a análise sobre o contexto económico do mercado, incluindo a estrutura da oferta e modo de funcionamento, seja irrelevante, por estar em causa uma alegada infração pelo objeto. É precisamente por estar em causa este tipo de infração que se impõe a realização prévia da diligência requerida e, portanto, a análise daquele contexto.” (conclusão O).
12. Acrescentando as Recorrentes que “estando em causa, como referido, uma infração pelo objeto, a sua imputação nunca poderia proceder sem que, previamente, fosse analisado, nos termos da jurisprudência relevante, também o contexto económico e jurídico do mercado. Sendo que, no âmbito da apreciação deste contexto, há que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (ou seja, a análise requerida).” (conclusão L).
13. Mais esclarecem as Recorrentes que a diligência probatória em causa “visa esclarecer um conjunto de asserções factuais que constam da N.I. e que são manifestamente erradas e minam o seu sentido decisório (e a licitude da imputação da infração pelo objeto). Em concreto, demonstrar que, naquilo que é a estrutura de oferta do mercado, na qual concorre a fatia pública correspondente aos Hospitais EPE e ULS EPE, a AA e os restantes laboratórios visados têm um posicionamento apenas residual e que a circunstância de a Tutela intervir no mercado simultaneamente como cliente (monopsónico) e concorrente da AA , nesta última dimensão com uma quota de mercado muito significativa, é essencial para dilucidar o que as Recorrentes consideram ser uma muito deficiente e equívoca interpretação dos factos dos autos.” (conclusão Q).
14. Por sua vez, a AdC, pugnando pela manutenção do decidido, considera, desde logo, que “o Tribunal apenas poderá apreciar se a fundamentação empreendida pela AdC está conforme o ato vinculado que se extrai do n.º 3 do artigo 25.º da Lei da Concorrência, isto é, se a AdC fundamentou a sua decisão devidamente concluindo pela irrelevância ou intuito dilatório do referido pedido de diligência complementar de prova, sob pena de se imiscuir numa fase do processo cujo dominus pertence em exclusivo à AdC, o que, muito doutamente, fez a Sentença Recorrida.”.
15. A AdC mais realça que, “Tal como descrito na decisão da AdC (referência S-AdC/2023/1945, de 24 de maio de 2023) a qualificação jurídica constante da NI desonera a AdC de uma análise de efeitos, tal como detalhadamente explicitado no capítulo 16.2.4. da NI (e no SPD), não sendo necessário proceder a uma análise pormenorizada da estrutura e dinâmicas dos mercados, sob pena de, em sede de qualificação da infração como restrição pelo objeto, se entrar na consideração dos efeitos concretos no mercado.”.
16. Já o Ministério Público, igualmente pugnando pela manutenção do decidido, salienta: “o que deverá ser tido em conta é a necessidade de existir um «caso estabilizado», que, repita-se, pode ser discutido na devida fase de resposta à nota de ilicitude, ou, então, na audiência de julgamento, já em sede de impugnação judicial da decisão administrativa que decida contra as pretensões e entendimentos das recorrentes.”.
Dos atos processuais relevantes para a decisão a proferir
17. A nota de ilicitude, emitida pela AdC em 14-12-2022 (S-AdC/2022/4676), que aqui se dá por reproduzida[2].
18. O despacho recorrido, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
19. Decisão final de indeferimento em resposta a requerimento para realização de diligências complementares de prova, proferida pela AdC em 24-05-2024, que aqui se dá por reproduzida (cf. certidões juntas a estes autos, em 12-06-2024, sob a referência 816607).
20. Conforme resulta da decisão final referida no parágrafo precedente:
1. No âmbito do processo contraordenacional que corre termos sob o n.º PRC/2022/2 ("processo"), a Autoridade da Concorrência ("Autoridade" ou "AdC") encerrou o inquérito e deu início à instrução, através da notificação às visadas de Nota de Ilicitude (“Nl”) proferida em 13.12.2022, nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 24.º da lei n.º 19/2012, de 8 de maio (“LdC”).
6. Na sequência dessa notificação, as visadas AA laboratório de Análises Clínicas, S.A. e AA Saúde SGPS, S.A. ("visadas") apresentaram à AdC a sua pronúncia escrita sobre a NI ("PNI"), requerendo a realização de diligências complementares de prova.”.
21. Dá-se por integralmente reproduzida a pronúncia das Recorrentes referida no n.º anterior, constando certidão da mesma nos presentes autos e onde, além do mais, foi requerida a diligência de prova ora em causa (cf. certidões juntas a estes autos sob a referência 816607). No que aqui concerne é de destacar desta peça, com um total de 303 páginas, o referido requerimento, que é do seguinte teor:
Por se considerar que estão em falta, na acusação da AdC, elementos essenciais à boa descoberta da verdade material, as Visadas consideram crucial e, bem assim, requerem, desde já, nos termos e para os efeitos do art.º 25.º, n.º 1 da LdC, que sejam realizadas diligências complementares de prova no âmbito do presente processo.
i. Desde logo, face ao relevo incontornável do contexto económico das práticas em análise, seria de enorme utilidade aferir os dados de vendas agregados, em volume e valor, dos serviços de análises clínicas prestados pelos hospitais públicos e ULS EPE, em cada um dos anos de 2016 a 2022, inclusive, autonomizando, em separado, para 2020 e 2021, iguais dados relativos aos testes Covid-19 (PCR, serológico e antigénio). Esta análise serviria para validar a estrutura do mercado de oferta durante o período dos autos; se o SNS, ADSE e outros subsistemas públicos de saúde, precisam cada vez menos dos fornecimentos dos laboratórios privados; e qual o impacto da evolução registada na assimetria de poder negocial na cadeia vertical de fornecimento.”.
22. Mais se dão por reproduzidas as certidões do ofício S-AdC/2023/1113, de 23.03.2023 - Sentido provável de decisão em resposta a requerimento para realização de diligências complementares de prova (também designado de “SPD”), e da resposta das Recorrentes, de 5.04.2023, ao Ofício S-AdC/2023/1113, de 23.03.2023 (cf. certidões juntas a estes autos sob a referência 816607).
Apreciação da questão pelo presente tribunal
23. É consensual nos autos que o pedido de diligências probatórias aqui em causa foi apresentado durante a fase da instrução.
24. A instrução realiza-se fora do regime da fase administrativa do processo contraordenacional, que corresponde ao inquérito.
25. Ou seja, o requerimento foi apresentado durante a segunda fase do procedimento sancionatório por alegada infração às proibições fundamentais do direito da concorrência, procedimento esse que corre, no plano do direito interno, como é sabido, perante a AdC, ou seja, uma autoridade administrativa independente, e não perante um tribunal como no Processo Penal.
26. Neste contexto, a instrução aqui em causa assume reduzidas afinidades com a fase de instrução prevista no Código do Processo Penal. Esta é uma fase facultativa e destina-se à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 287.º, n.º 1, do Código do Processo Penal). De notar, ainda, que na instrução penal, o juiz indefere os atos requeridos que entender não interessarem à Instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, por despacho irrecorrível (cf. artigo 291.º, n.º 1 e 2, do Código do Processo Penal).
27. Já nesta sede específica, sob a epígrafe “Instrução do processo”, dispõe o artigo 25.º, n.ºs 1 a 3 da LdC, o seguinte:
1 - Na notificação da nota de ilicitude a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, a AdC fixa ao visado prazo razoável, não inferior a 30 dias úteis, para que se pronuncie por escrito sobre as questões que possam interessar à decisão do processo, sobre as provas produzidas, bem como, sendo o caso, sobre as sanções em que incorre e para que requeira as diligências complementares de prova que considere convenientes.
2 - Na pronúncia por escrito a que se refere o número anterior, o visado pode requerer que a mesma seja complementada por uma audição oral.
3 - A AdC pode recusar, através de decisão fundamentada, a realização das diligências complementares de prova requeridas quando as mesmas forem manifestamente irrelevantes ou tiverem intuito dilatório.” (sublinhados nossos).
28. Decorre, portanto, do citado normativo, que as diligências complementares de prova requeridas por um visado, como trata o presente caso, apenas poderão ser recusadas por manifesta irrelevância ou por revelarem um intuito dilatório.
29. Do despacho recorrido salientam-se as seguintes passagens:
No caso presente, a infração imputada às recorrentes na nota de ilicitude decorreria do fato destas, juntamente com outras visadas, terem participado num acordo de fixação de preços e de repartição de mercado e de fontes de abastecimento, com a finalidade de alcançarem uma estabilidade de preços e de margens (de lucro) no mercado da prestação de análises clínicas durante determinado período. Segundo a AdC, uma tal factualidade seria suscetível de integrar uma prática proibida nos termos do art.º 9º, nº1, alín. a) e c) da LdC e art.º 101º, nº 1, alín. a) e c) do TFUE.
Conforme bem se dá conta nas alegações apresentadas em resposta ao recurso, trata-se de uma infração por objeto, na qual o resultado lesivo no mercado não integra os elementos do tipo da infração (ou, pelo menos, não é necessária a sua prova para que a infração se considere verificada). Nessa medida, o inquérito a realizar pela autoridade competente para a investigação, nos termos do citado artigo 17º da LdC tem a finalidade de determinar a existência dessa prática e recolher a prova dos fatos que integram a prática infratora. Pelo que, nos termos do art.º 25º, as diligências de prova complementares deverão circunscrever-se a esses mesmos fatos.
No caso presente, a diligência probatória requerida pelas recorrentes destina-se a provar que as mesmas não detinham uma parte de mercado que fosse suficientemente relevante para o condicionar. Trata-se de uma circunstância que pode ser muitíssimo relevante para a sua defesa, o que não se contesta – não cabendo ao Tribunal, nesta sede, entrar na apreciação da pertinência dessa prova, da mesma forma que não cabe pronunciar-se sobre a suficiência ou insuficiência da prova recolhida pela autoridade. Contudo, essa consequência sobre o mercado, ou o peso relativo das recorrentes e demais visadas nesse mercado, não integra a infração que lhes é imputada. Pelo que, a AdC não tem de a provar para imputar a infração aos visados no inquérito. Logo, a sua contraprova não tem, também, de ser produzida no inquérito. Nessa medida, o estudo pretendido pelas recorrentes pode constituir uma diligência importante para a defesa, mas não o ser para efeitos de inquérito (tendo em conta as finalidades a que o inquérito se destina). No sentido, também, da desnecessidade de um estudo do contexto de mercado em inquérito por práticas restritivas da concorrência por objeto, decidiu o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de outubro de 2020, no Processo nº 225/15.4YUSTR-U-L1 (também citado pela AdC na resposta ao recurso).
Contudo, reitera-se, a presente decisão não se pronuncia sobre a utilidade ou relevância daquela diligência para a defesa, pelo que nada obsta a que as recorrentes, se assim o entenderem, façam uso de um tal estudo sobre o mercado.
Sendo um fato irrelevante para a imputação da infração, a sua prova ou contraprova deve ser tida como desnecessária para esse fim. E sendo desnecessária, deve a diligência ser julgada como irrelevante para as finalidades do inquérito, nos termos do art.º 25º, nº 3 da LdC.”
30. Ou seja, o tribunal a quo considerou a diligência em causa, na fase que aqui importa (instrução), irrelevante.
31. Por seu turno, a AdC, na decisão final de indeferimento proferido quanto às diligências probatórias requeridas pelas ora Recorrentes, considerou que as diligências probatórias se revelavam manifestamente irrelevantes e possuíam caráter dilatório (v. em especial, n.ºs 13 e ss.).
32. Como é sabido, no âmbito de infrações ao Direito da Concorrência enquadráveis na previsão do artigo 101.º do TFUE ou artigo 9.º da LdC, é importante considerar a distinção entre infrações por “objeto” (na letra do TFUE na versão portuguesa, “por objetivo”) e por “efeito”.
33. De acordo com jurisprudência do TJUE, é aqui de particular importância considerar o seguinte:
O critério jurídico essencial para determinar se um acordo, quer horizontal quer vertical, comporta uma «restrição da concorrência por objeto» reside assim na constatação de que tal acordo apresenta, em si mesmo, um grau suficiente de nocividade para a concorrência (v., neste sentido, Acórdãos de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C‑67/13 P, EU:C:2014:2204, n.º 57, e de 18 de novembro de 2021, Visma Enterprise, C‑306/20, EU:C:2021:935, n.º 59 e jurisprudência referida).
Para apreciar se este critério está preenchido, deve atender‑se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que se insere. No âmbito da apreciação deste contexto, há também que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (Acórdão de 14 de março de 2013, Allianz Hungária Biztosító e o., C‑32/11, EU:C:2013:160, n.º 36 e jurisprudência referida).” (n.ºs 34 e 35 do Acórdão de 29 de junho 2024, Super Bock, C‑211/22, ECLI:EU:C:2023:529, com sublinhados nossos).
33. Ou seja, mesmo no âmbito da denominada infração por “objeto” não é, a priori, dispensada a averiguação do contexto económico relevante, em especial, as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado em causa.
34. De notar, ainda, que caso a análise do objeto da prática não indicie um grau de nocividade suficiente em relação à concorrência, só então são examinados os efeitos, para determinar se fica ou não demonstrado que o jogo da concorrência foi, de facto, impedido, restringido ou falseado de forma apreciável ou sensível (Acórdão TJUE de 11 de setembro de 2014, Cartes Bancaires, ECLI:EU:2014:2204, n. º 52 e jurisprudência aí referida).
35. O requerimento probatório das Recorrentes aqui em causa visa, segundo alegado pelas mesmas, aferir da estrutura de oferta do mercado”, na qual concorre a fatia pública correspondente aos Hospitais EPE e ULS EPE, a AA e os restantes laboratórios visados, alegadamente com um posicionamento apenas residual destes.
36. A diligência requerida não se mostra, assim, numa primeira aparência, “manifestamente irrelevante”.
37. Resulta, contudo, de p. 56 a 76 da extensa nota de ilicitude (com cerca de 500 páginas, incluindo anexos), uma exposição sobre o “mercado” em causa, ou seja, a prestação de serviços de análises clínicas/patologia clínica em Portugal. Neste capítulo 13, dedicado ao respetivo mercado consta, inclusive, um subcapítulo dedicado à apreciação da substituibilidade entre os segmentos de análises clínicas, patologia clínica e anatomia patológica.
38. Acresce, no mesmo capítulo, um subcapítulo dedicado a Público versus Privado e um subcapítulo dedicado à Estrutura da oferta. Neste último podem ser observados, por exemplo, as quotas de mercado de cada uma das visadas numa tabela constante de p. 71. Sobre tais quotas vejam-se, ainda, as tabelas de p. 74, a que acrescem os gráficos e observações a p. 75-76 sobre a evolução (de 2016 a 2021) do volume de negócios das visadas e evolução das respetivas quotas de mercado.
39. Será, porventura útil reproduzir aqui duas de tais tabelas, a primeira referente a quotas de mercado das visadas expressa por número de estabelecimentos, a segunda relativa a quotas de mercado expressa por valores:




40. Será ainda interessante observar os dados relativos à evolução do volume de negócios das visadas expressos na nota de ilicitude (p. 75):



41. Constam ainda, de p. 70 da nota, as seguintes considerações:
“245. De acordo com os dados apresentados no referido parecer [da Entidade Reguladora da Saúde], existem em Portugal Continental 3284 estabelecimentos inscritos que prestam serviços na área das análises clínicas ou patologia clínica (cf. Tabela 1).
246. Destes estabelecimentos, cerca de 67% (2201 estabelecimentos) correspondem a estabelecimentos detidos pelos grupos empresariais prestadores de cuidados de saúde visados no presente processo (cf. Tabela 1).”.
42. Mais adiante na nota de ilicitude, no capítulo dedicado ao enquadramento jurídico das condutas indiciadas, pode ler-se no respetivo n.º 1150 (p. 330): “No caso sub judice e conforme já sobejamente referido, existem elementos sérios, graves, precisos e concordantes da existência de um acordo entre as visadas Affidea, Unilabs, Synlab, AA , BB, CC e Redelab, facilitado pelo exercício do cargo de Direção na ANL, que tem por objeto fixar preços, repartir o mercado e abster-se de angariar ou contratar os trabalhadores de laboratórios concorrentes (cf. capítulo 14 supra), consubstanciando, assim, uma restrição da concorrência por objeto na aceção do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012 e do artigo 101.º do TFUE, pelo que não será necessário analisar os efeitos que o acordo em causa possa concretamente ter produzido.”.
43. Mais se pode ler, no n.º 1152 que “Ademais, o objetivo comum prosseguido pelas partes traduz-se em "Deixar de discutir se descemos muito ou pouco, para discutir o quanto se deve subir" (cf. conversação n.º 173), "Acordo com estabilidade de preços" (cf. CLEM.Affidea-0039 e CLEM.Affidea-0045) e "estabilidade e defesa das margens" (cf. CLEM.Affidea-0046) (cf. parágrafos 390, 440 e 441 supra).”.
44. Como nos parece óbvio o que consta da nota de ilicitude pode ser contraditado por qualquer um dos visados, inclusive, perante um tribunal independente e imparcial.
45. Aliás, conforme alegam as Recorrentes, já existem meios de prova nos autos que enfermam os dados apresentados na nota de ilicitude: “constata-se que a estatística da ERS, quando enquadrada como um indicador da quota de mercado de produção de análises clínicas, é uma estatística que colide com estudos setoriais (cf. e.g. Estudo Deloitte apresentado pelas Recorrentes na sua P.N.I.) e com os próprios dados do INE” (p. 10 da motivação do recurso).
46. As próprias Recorrentes, mais alegam, no que toca a volumes de negócio representados nas tabelas supra aludidas, que “os percentuais reais desta representatividade agregada [das visadas] são muito inferiores, abaixo dos 30%” (p. 11). Ou seja, as visadas representarão, segundo as Recorrentes, aproximadamente 30% do mercado e não uma fatia entre 40% e 75% na estrutura de oferta de análises clínicas em Portugal, conforme alega a AdC (v. n.º 256 da nota de ilicitude).
47. Ora, defender-se que uma quota do mercado próxima dos 30 % é apenas “residual”, parece-nos, no mínimo, discutível. Como um jurista desta área da especialização bem sabe, mesmo conduzindo-nos pelos limiares de quota de minimis adiantados pela Comissão, em casos de quotas de mercado agregada das partes (para acordos entre concorrentes), o limiar é de 10% (cf. ponto II, n.º 8, al. a), da Comunicação de minimis) [3].
48. Aliás, no âmbito do dito limiar de minimis, e tal como salientado na nota de ilicitude (n.ºs 1218 e ss. – p. 347), a mesma não se aplica, nem sequer para a Comissão, quando estão em causa “acordos entre concorrentes”, que visem “a) a fixação de preços de venda de produtos a terceiros; b) a limitação da produção ou das vendas; ou c) a repartição de mercados ou clientes” (n.º 13 da Comunicação de minimis).
49. Será, portanto, neste contexto que se terá de avaliar o entendimento da AdC, expresso na decisão final de indeferimento, de que as diligências probatórias requeridas se revelam manifestamente irrelevantes e possuíam caráter dilatório.
50. Da nossa parte, perante o ora exposto em sede de análise da nota de ilicitude e (contra-) alegações das Recorrentes, e sem prejuízo de ulteriores desenvolvimentos do processo sancionatório em causa, efetivamente afigura-se-nos que a diligência probatória aqui em causa revela-se manifestamente irrelevante e denota um intuito dilatório.
51. Concorda-se, por isso, com o despacho recorrido quando decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo o despacho de indeferimento, proferido pela AdC, da diligência probatória complementar de inquérito em causa.
52. Nestes termos, o recurso deverá ser julgado improcedente.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar o presente recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelas Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (artigo 93.º, n.º 3 do RGCO e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do RCP).
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Lisboa, 15-01-2025
Alexandre Au-Yong Oliveira
Bernardino Tavares
A.M. Luz Cordeiro
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[1] Cf. Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019, DR. n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02.
[2] Esta peça foi junta a estes autos em pen drive, não constando, portanto, da versão digital destes autos de recurso.
[3] Sobre a comunicação de minimis veja-se https://eur-lex.europa.eu/PT/legal-content/summary/de-minimis-notice-exemption-for-agreements-of-minor-importance.html (acedido em 20-12-2024). Sobre o caráter não vinculativo deste tipo de comunicações e outros aspetos conexos, Acórdão TJUE de 03-12-2012, Expedia, C‑226/11, ECLI:EU:C:2012:795.