Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2134/2007-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
DEVER DE INFORMAR
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 - Tratando-se de um serviço público essencial, como é a água, incumbe ao prestador do serviço o dever de informação das condições em que o serviço de fornecimento desse bem é realizado e a prestação de todos os esclarecimentos que se justifiquem de acordo com as circunstâncias, sendo que esse dever contempla, sobretudo, a disponibilização de uma facturação detalhada, pois que apenas assim é possível que o utente verifique a aplicação concreta do tarifário por parte do prestador do serviço.
2 - Por conseguinte, impende sobre o prestador de serviços o ónus de demonstrar o cumprimento de todas as obrigações decorrentes da celebração de um contrato de um bem essencial, designadamente, a obrigação de apurar os consumos reais de água gasta pelo utente e a obrigação de o informar do valor do consumo real por ele efectuado.
3 - Logo, não obstante se tenha tornado prática corrente a facturação baseada em meras estimativas de consumo, continua a impender sobre o prestador de serviços a obrigação de disponibilizar aos seus utentes uma facturação detalhada do consumo real efectuado e do preço devido por aquele mesmo consumo.
4 - Donde, no caso concreto, cabia à autora, na qualidade de prestadora de serviços de bens essenciais, demonstrar que cumpriu todas as obrigações decorrentes do contrato celebrado com o apelado, entre as quais a obrigação de proceder à leitura do consumo efectivo de água na sua residência, cabendo ainda à apelante demonstrar, atentas as regras do ónus da prova e os mecanismos legais de protecção dos consumidores, que o não cumprimento de tal obrigação não resultou de culpa sua.
5 - Não existe um dever do consumidor comunicar a leitura à fornecedora, nem de se certificar que tal leitura é efectuada periodicamente, não obstante a prestadora colocar à disposição do consumidor variados meios para facilmente efectuar a comunicação, pois a obrigação de apurar os consumos reais é do prestador do serviço e não do utente; a modalidade de cobrança do consumo por mera estimativa reverte em benefício da entidade cobradora, e não o inverso.
6 - Donde, a ausência para a realização de leituras por parte da EPAL consubstancia uma verdadeira falha do prestador do serviço.
7 - A impossibilidade de se fazer a rigorosa correspondência temporal entre as diferenças de consumo apuradas e os pagamentos (por estimativa) inferiores que foram sendo feitos pelo réu resulta da metodologia – a estimativa – adoptada pela autora durante mais de três anos, pelo que não recai sobre o réu o ónus de demonstrar quais as datas em que havia efectuado pagamentos inferiores aos consumos realmente efectuados até essas mesmas datas.
8 - Logo, a caducidade do direito da autora ocorreu por erro seu uma vez que não procedeu à leitura do contador da água existente na residência do réu senão decorridos cerca de quarenta meses após a última leitura, sendo certo que a realização atempada das leituras teria permitido não só apurar o consumo real de água, mas também a sua liquidação em prazo razoável para o efeito.
(G.F.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
[EPAL.] intentou, no 7º Juízo Cível de Lisboa, contra [R. E. C. J.] a presente acção declarativa, em processo sumário, pedindo a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de € 4.508,56, acrescida dos juros legais vincendos calculados sobre o capital de € 3.998,51, até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que, ao abrigo do contrato de fornecimento de água celebrado com o Réu, tem vindo a abastecer o domicílio deste, sendo que, não obstante a ter recebido e utilizado, este não a pagou, estando vencida a factura no valor de € 3.998,51.

Contestando, afirmou o Réu que a Autora utilizou o método de estimativa entre 14/03/2000 e 4/07/2003, a esta sendo imputável a circunstância de não ter providenciado pela leitura do consumo real em tal período, pelo que não tem meios para determinar se a factura apresentada a pagamento corresponde ao gasto efectivo da água. Mas, de qualquer modo, sempre está verificada a caducidade do direito reclamado pela Autora, por efeito do artigo 10º, n.º 2 da Lei 23/96, de 26/07, na medida em que a falta de leitura do consumo efectivo consubstancia erro do prestador do serviço.

A Autora replicou, pugnando pela improcedência da excepção suscitada.

Foi elaborado despacho saneador, no âmbito do qual foi seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória, as quais foram posteriormente objecto de alteração.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto e, posteriormente, a sentença em que, considerando-se procedente a excepção de caducidade do direito da Autora ao recebimento da quantia titulada pela factura (junta aos autos com a petição inicial), com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 10º da Lei n.º 23/96, de 26/07, se decidiu absolver o Réu do pedido.

Inconformada, recorreu a Autora, finalizando com as seguintes conclusões:
1ª – A Exc. ma Juiz a quo considerou procedente a excepção de caducidade do direito da ora recorrente ao recebimento da quantia titulada pela factura de fls. 9, com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho, que dispõe o seguinte:
“Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.
2ª – Porém, atenta a matéria de facto provada, constata-se que o recorrido não logrou demonstrar, (como lhe competia), que (i) se verificou um erro, (ii) que o erro verificado é imputável ao prestador do serviço, (iii) em que data procedeu o recorrido ao pagamento da “importância inferior” e (iiii) que, entre a data daquele pagamento e a data em que lhe foi, pela primeira vez, exigido o pagamento da diferença, decorreram mais de seis meses.
3ª - De entre os factos provados não descortinamos nenhum que aluda à verificação de erro, ou seja não se provou a verificação de erro. É, aliás, o recorrido quem reconhece a não (verificação de erro subjacente ao apuramento da medida e valor do seu consumo (na carta de 23/07/2003, que remeteu à recorrente e que consta de a fls. destes autos - documento n. º 42, junto com a réplica, ao referir textualmente que "Não pondo em causa o valor do consumo real verificado na última leitura (...)”.
4ª - E vem provado que o recorrido recebeu e consumiu a água que a recorrente lhe forneceu no valor de € 3.998,51 conforme factura junta como doc. n.º 1 à petição inicial.
5ª – Sem conceder, se dirá que, tendo o recorrido articulado (cfr. artigo 30º da contestação, que não foi levado à base instrutória) que a recorrente “eximiu-se, por iniciativa sua, de proceder à leitura do contador”, situação que, no entender do recorrido, configuraria o erro da recorrente;
6ª - O certo é que resultou do conjunto da prova produzida (designadamente da prova documental carreada para os autos pela recorrente – doc. 23 a 40, 43 e 44 juntos com a réplica - que não foram sequer impugnados pelo recorrido) que os funcionários da recorrente compareceram na casa do recorrido, nas datas em que lhe comunicaram que iriam proceder à leitura e não efectuaram, quando o mesmo não aconteceu com os vizinhos do recorrido (cfr. também pontos 12 e 13 dos factos provados);
7ª - O que permite supor que o facto de a recorrente não ter efectuado (ou logrado efectuar) leitura não se ficou a dever, por isso, nem à omissão nem à iniciativa da recorrente, mas dificuldade de acesso ao contador (cfr. doc. 23 a 40, 43 e 44, juntos com a réplica).
8ª – Tão pouco se desincumbiu o recorrido de provar que, nas datas em que a recorrente se deslocou à morada do recorrido para efectuar a leitura (datas que lhe foram comunicadas com antecedência), o recorrido garantiu à recorrente o acesso ao contador, nos termos a que se encontra obrigado.
9ª - A prova documental e testemunhal produzida e os factos considerados provados nos pontos 11, 12 e 13 são de molde a, pelo menos, suscitar a dúvida sobre a imputabilidade à recorrente do hipotético erro.
10ª - O recorrido também não logrou provar como lhe competia - tão pouco articulou - e não faz(em) parte do universo da factualidade provada(s) a(s) data(s) em que terá procedido ao pagamento da(s) “importância(s) inferior(es) a que alude a citada disposição legal.
11ª - Nem se encontra provado (e competiria ao recorrido demonstrar) que entre a data do pagamento da(s) “importância(s) inferior(es)” e a data em que lhe foi, pela primeira vez, exigido o recebimento da diferença, terão decorrido mais de seis meses.
12ª - O recorrido nunca questionou ter efectuado o consumo da água que lhe foi facturado, todavia, entende não estar obrigado ao seu pagamento por virtude da alegada verificação de caducidade, conforme se retira da citada carta que, em 23/07/2003, o recorrido remeteu à recorrente - onde aquele, reportando-se à factura que recebeu da recorrente, diz que não, põe “(...) em causa o valor do consumo real verificado na última leitura (...).
13ª - Portanto, o recorrido reconhece ser devido à recorrente o montante correspondente ao volume de água fornecido e recebido pelo recorrido determinado nos termos constantes da factura, emitida em 09/07/2003 e vencida em 08/08/2003, que esta reclama e fez juntar fls. (doc. n.º 1 da petição inicial), factura a que alude o ponto 3 da matéria de facto provada.
14ª - Tal reconhecimento, nos termos e para os efeitos do artigo 331° do CC, impede a verificação da caducidade do direito da recorrente.
15ª – Nada do que consta da factualidade provada habilitava a Srª Juiz a quo a decidir como, por manifestos erros de julgamento, decidiu na referida sentença, a qual, por conseguinte, violou as normas dos artigos 331°, 342º e 343º do CC e do nº 2 do artigo 10º da Lei n° 23/96, de 26/07.

O Réu contra – alegou, concluindo que a sentença deve ser confirmada.
2.
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a captação, tratamento, adução e distribuição de água para consumo humano e, bem assim, quaisquer outras actividades industriais, comerciais, de investigação ou de prestação de serviços, designadamente, respeitantes ao ciclo da água, que sejam complementares daquelas ou com elas relacionadas, estando-lhe atribuído o serviço público de abastecimento de água a Lisboa e concelhos circundantes.
2º - Ao abrigo de contrato de fornecimento de água celebrado com o Réu, a Autora tem vindo a abastecer o domicílio deste, na Rua João de Santarém, n.º 1, em Lisboa.
3º - O Réu é cliente da Autora com o n. º 04513010.
4º - A Autora enviou ao Réu a factura n.º 20031075054, emitida em 9/07/2003, no valor de € 3.998,51 e com data de vencimento de 8/08/2003, da qual consta, além do mais, o seguinte:
No campo “LEITURAS”: Anterior 369 m 3 – 2000/03/14 Actual 3469 m 3 – 2003/07/04;
No campo “CONSUMO” 3469 m 3.”
Seguidamente a estes, a expressão: “Leitura efectuada pela Empresa; Deduzido consumo por estimativa”.
5º - Entre 14/03/2000 e 4/07/2003, a Autora utilizou o método de estimativa para determinar o pagamento efectuado pelo Réu.
6º - O Réu recebeu e consumiu água que a Autora lhe forneceu no valor de € 3.998,51, conforme factura aludida em 4 (quesito 1º).
7º - Só em 4/03/2003, quando se deslocou à morada do Réu, a Autora apurou que o consumo de água foi superior ao determinado por estimativa (quesito 3º).
8º - A factura aludida em 4 respeita à diferença entre o consumo de água pelo Réu e a estimativa no período entre 14/03/2000 e 4/07/2003 (quesito 4º).
9º - Durante o período temporal constante da factura aludida em 4, a Autora não interrompeu o serviço (quesito 5º).
10º - O Contador da água encontrava-se instalado na parte exterior da casa do Réu e tem uma porta que é necessário abrir para visualizar o consumo registado (quesito 6º).
11º - Entre 8/05/2000 e 5/11/2003, a Autora emitiu e remeteu ao Réu as facturas constantes de fls. 74 a 95 (quesito 7º).
12º - Em 4/07/2000, em 3/01/2001, em 3/07/2001, em 3/01/2002, em 2/07/2002, em 3/01/2003 e em 2/07/2003, a Autora deslocou-se ao local de consumo do Réu, sito na morada deste, a fim de proceder à leitura do contador, tendo feito constar tais datas, respectivamente, na factura emitida no mês anterior à data em questão (quesito 8º).
13º - Em cada uma das datas referidas em 12, a Autora não procedeu à leitura do contador (quesito 9º).
14º - No período compreendido entre 14/03/2000 e 4/07/2003, o Réu não comunicou à Autora a leitura do contador instalado na sua morada (quesito 10º).
15º - Em 4/07/2003, a Autora procedeu à leitura do contador sem ter avisado previamente o Réu de que ali se iria deslocar (quesito 11º).
3.
A acção foi julgada improcedente e, em consequência, foi o réu absolvido do pedido, com o fundamento de que se verificara a excepção de caducidade do direito da ora recorrente ao recebimento da quantia que a que se arrogava, atento o disposto no n.º 2 do artigo 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho.

A recorrente discorda da sentença porque, em seu entender, a Exc. ma Juiz não terá feito uma correcta interpretação das regras sobre o ónus da prova (artigos 342º e 343º CC), já que competiria ao apelado articular e demonstrar determinados factos que a apelante considera indispensáveis para a verificação da excepção da caducidade consagrada no artigo 10º, n.º 2, da Lei 23/96, nomeadamente, (i) que se verificou um erro; (ii) que o erro verificado é imputável ao prestador do serviço; (iii) a data em que procedeu ao pagamento da “importância inferior” e (iiii) que, entre a data daquele pagamento e a data em que lhe foi, pela primeira vez, exigido, o recebimento da diferença, decorreram mais de seis meses.

Entendimento diferente é o do apelado. Segundo ele, arrogando-se a apelante ser titular de um direito de crédito no valor de € 3.998,51, resultante de um acerto de facturação decorrente de um contrato de fornecimento de água celebrado com o apelado, a ela competiria fazer a prova da existência do alegado direito de crédito e, mais ainda, que o mesmo era exigível.

Sendo estas as teses defendidas pelas partes nas suas doutas alegações, vejamos de que lado estará a razão:

Considerando que o crédito de que a apelante se arroga ser titular emerge de um contrato de prestação de serviços de um bem essencial, concretamente, de um contrato de fornecimento de água, importa atender ao regime consagrado na Lei 23/96, de 26 de Julho, cuja disciplina versa sobre a protecção do consumidor de bens essenciais.

De facto, in casu, entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviço, mais concretamente de fornecimento de água, nos termos do qual o prestador do serviço (ora Autora) se obrigou a fornecer ao utente (ora Réu) o bem água, mediante o pagamento, por este, das quantias facturadas em função dos consumos efectuados.

Trata-se de um serviço público essencial, já que a água é um bem de consumo universal.

Assim, a Lei 23/96, destinada a criar mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, consagrou expressamente o serviço de fornecimento de água como um serviço público abrangido por este regime jurídico.

O n.º 1 do artigo 4º impõe ao prestador do serviço o dever de informação das condições em que o serviço de fornecimento de água é realizado e a prestação de todos os esclarecimentos que se justifiquem de acordo com as circunstâncias. O dever de informar é, aliás, um aspecto decisivo para a tutela dos direitos do consumidor.

Este dever de informação está também consagrado numa dimensão mais concreta da prestação do serviço de fornecimento – a facturação.

Estabelece o artigo 9º da citada Lei que, sobre os prestadores de serviço de bens essenciais, impende o dever de informação ao utente desses bens, sendo que esse dever contempla, sobretudo, a disponibilização de uma facturação detalhada.

Deste modo, o citado artigo 9º da Lei 23/96 estabelece regras importantes de informação e de esclarecimento dos utentes relativamente aos valores incluídos nas facturas dos serviços públicos essenciais. Ao estabelecer o dever de disponibilização de uma facturação detalhada, a Lei reconhece que apenas assim é possível que o utente verifique a regularidade da aplicação dos tarifários progressivos da água, ou seja, a possibilidade de verificação da aplicação concreta do tarifário por parte do prestador do serviço.

Por conseguinte, impende, em nosso entender, sobre o prestador de serviços o ónus de demonstrar o cumprimento de todas as obrigações decorrentes da celebração de um contrato de um bem essencial, designadamente, a obrigação de apurar os consumos reais de água gasta pelo utente e a obrigação de o informar do valor do consumo real por ele efectuado.

Sucede, porém, que a facturação dos valores de consumo de água, gás, electricidade cobrados pelos prestadores de serviços aos seus utentes decorre, na maioria dos casos e nos dias que correm, de um cálculo assente em meras estimativas de consumo.

Também, no caso dos autos, a facturação era, conforme acordado entre as partes, efectuada por estimativa, o que significa que o cliente procede sempre ao pagamento de uma mesma importância pré – determinada, mas está obrigado a pagar a diferença entre o valor estimado e o correspondente ao consumo efectivamente realizado (se este for superior àquele), após a leitura do contador ou a indicação, pelo próprio cliente, da leitura por si efectuada.

Não obstante se tenha tornado prática corrente a facturação baseada em meras estimativas de consumo, continua a impender sobre o prestador de serviços a obrigação de disponibilizar aos seus utentes uma facturação detalhada do consumo real efectuado e do preço devido por aquele mesmo consumo.

Donde, no caso concreto, cabia à apelante na qualidade de prestadora de serviços de bens essenciais, demonstrar que cumpriu todas as obrigações decorrentes do contrato de prestação de serviços celebrado com o apelado, entre as quais a obrigação de proceder à leitura do consumo efectivo de água na sua residência, cabendo ainda à apelante demonstrar, atentas as regras do ónus da prova e os mecanismos legais de protecção dos consumidores, que o não cumprimento de tal obrigação não resultou de culpa sua.

Acresce que “o legislador consagrou, no artigo 10º, o prazo de apenas 6 meses para o prestador exigir o pagamento do preço relativo ao fornecimento de água, sendo que o mesmo prazo vigora para o exercício do direito ao recebimento, por parte do fornecedor, da eventual diferença de preço resultante de deficiente facturação. Trata-se de uma opção do legislador que visa proteger o utente de uma situação de acumulação de dívidas, bem como evitar a inércia do fornecedor que poderia prolongar por tempo inadequado a situação, afectando a segurança do consumidor (para além de que este prazo curto facilita qualquer exigência de prova ao utente) António Costa, “O Contrato de Fornecimento de Água”, in Estudos do Direito do Consumidor, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º 4, 329..

Dispõe o citado artigo 10º:
1 – O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 – Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.

Como realça a sentença, citando um acórdão do STJ Ac. STJ, de 09.07.2003, in www.dgsi.pt, “trata-se de um normativo que contempla, na respectiva formulação, duas diversas situações: as de crédito do preço do serviço prestado e as de crédito da diferença entre o preço facturado e o correspondente ao da água fornecida. Para a primeira, estabelece um regime de prescrição (n.º 1); sujeita a segunda a caducidade (n.º 2)”.

Assim, um mesmo prazo curto – de 6 meses – serve para fazer valer duas consequências jurídicas distintas, correspondentes a dois institutos fundamentais no nosso ordenamento jurídico, ambos destinados a regular os efeitos do decurso do tempo: a prescrição e a caducidade.

In casu, está apenas em causa a questão da caducidade, ou seja, a de saber se sobre o apelado deixou de impender a obrigação de satisfazer o crédito sobre a diferença entre o preço facturado e o correspondente ao da água fornecida.

Tal como ficou provado, é ponto assente que não foi paga à Autora a totalidade da quantia devida pelo fornecimento de água ao Réu. Durante cerca de três anos, este liquidou apenas os montantes titulados pelas facturas emitidas com base em meras estimativas de consumo e não os montantes correspondentes ao consumo real, muito superior àquele cálculo por estimativa.

Igualmente, todos aceitam que a factura apresentada a pagamento corresponde a consumo efectivamente debitado à residência do Réu, durante o período que mediou entre as leituras do contador (cerca de quarenta meses) efectuadas pela Autora.

A questão fundamental é a de saber se houve ou não qualquer erro, isto é, falha, lapso ou engano do prestador do serviço na cobrança do fornecimento de água que impeça a facturação dos consumos como correcta, isto é, correspondente à realidade dos consumos efectuados e, em caso afirmativo, se o prestador de serviços foi impedido pela autora no acesso ao contador da água.

Aqui chegados, não podemos esquecer que não existe um dever do consumidor comunicar a leitura à fornecedora, nem de se certificar que tal leitura é efectuada periodicamente, não obstante a prestadora colocar à disposição do consumidor variados meios para facilmente efectuara a comunicação. Na verdade, a obrigação de apurar os consumos reais é do prestador do serviço e não do utente; a modalidade de cobrança do consumo por mera estimativa reverte em benefício da entidade cobradora, e não o inverso.

Donde, a ausência tão prolongada para a realização de leituras por parte da EPAL consubstancia uma verdadeira falha do prestador do serviço.

Mas terá a Autora sido impedida pelo Réu de poder aceder ao contador da água?

Efectivamente, ficou provado que os funcionários da apelante se deslocaram ao local de consumo e que, (apesar disso), aquela leitura não se chegou a realizar (quesitos 8º e 9º).

Tal circunstância não permite, porém, inferir, como infere a apelante, que foi por dificuldade de acesso ao contador, imputável ao Réu, que não se efectuou a leitura do contador da residência do apelado.

Na verdade, como salienta o apelado, a Autora não logrou demonstrar que deu efectivo conhecimento ao apelado de quais as datas em que iria efectuar a leitura do contador da água existente em sua casa, assim como não demonstrou que, uma vez na residência do apelado para proceder à leitura do seu consumo real, aquele não lhe garantiu o acesso ao contador.

Pelo contrário, a leitura real, que deu origem à correcção da facturação, foi feita sem dificuldades e sem que a apelante tivesse avisado o apelado de que a iria realizar (cfr. resposta ao quesito 11º).

Soçobra, pois, a tese, avançada pela Autora, de que a leitura do consumo de água na residência do apelado não se mostrou possível porque aquele não garantiu o acesso ao contador.

Lógica, pois, a conclusão da sentença, quando salienta que a apelante não logrou provar que a circunstância de não ter procedido a leituras do consumo efectivo, na residência do Réu, lhe não é imputável. E, contrariamente ao que defende a apelante, era ao prestador do serviço que cabia aquele ónus de prova, pois a norma do n.º 2, do artigo 10º, da Lei 23/96, tem como escopo o interesse e a protecção do consumidor.

O facto do apelado não colocar em causa a veracidade da facturação ou a leitura do consumo real levada a cabo pela recorrente não significa que o recorrido se tenha conformado com a exigência do pagamento dos valores que lhe são facturados pela apelante a título de acerto de contas. Como é evidente, uma coisa é aceitar o quantum do valor medido, outra coisa é aceitar pagar o seu preço, facturado cerca de três anos e quatro meses depois da última leitura ao consumo real.

O apelado, contrariamente ao alegado pela apelante, nunca se reconheceu devedor dos valores que lhe foram facturados pela apelante a título de acerto de contas, pelo que se não verifica qualquer causa impeditiva da caducidade prevista no artigo 331º do Código Civil.

O apelado sempre insistiu que aquele acerto resultava de falha imputável à apelante, que não havia procedido à leitura do contador de água existente na sua casa, durante mais de três anos, apesar desta bem saber que, se, por erro seu, enquanto prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito de recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento (cfr. artigo 10º, n.º 2 da Lei 23/96).

E o objectivo do legislador, ao consagrar a fórmula do n.º 2 do citado artigo 10º, foi o de proteger os consumidores de bens essenciais contra a possibilidade de, a todo o tempo, poderem ser surpreendidos, pelos prestadores de serviço, com a exigência de cobrança de importâncias decorrentes de acertos de facturação com origem no apuramento de diferenças entre os consumos facturados e pagos e os consumos realmente efectuados, cuja concreta medição só ao prestador de serviços incumbe.

Por conseguinte, naquele diploma legal, estabeleceu-se assumidamente que o não exercício desses direitos de crédito pelo prestador de serviços durante certo período de tempo acarretaria a sua caducidade.

Já se salientou que o recorrido, entre 14/03/2000 e 4/07/2003, por razões que só a apelante poderá explicar, apenas foi chamado a liquidar os montantes titulados pelas facturas emitidas com base numa mera estimativa de consumo e não o valor correspondente ao consumo real, sendo que só em 9/07/2003 a apelante entendeu por bem cobrar ao apelado a diferença entre o consumo facturado e o consumo real ao longo dos últimos três anos.

E só à apelante caberá a responsabilidade pela eventual dificuldade em apurar a quais dos pagamentos efectuados pelo apelado, naquele período de quarenta meses, se deverão imputar as diferenças de preços globalmente calculados pela recorrente, com respeito a um único período temporal que decorreu de 14/03/2000 a 4/07/2003, pelo que se entendeu por bem socorrer-se de estimativas para facturar os consumos de água ao apelado, deve arcar com todas as consequências que daí decorrem.

Por conseguinte, a caducidade do direito ao recebimento das diferenças de preço, apuradas com respeito aos consumos reais alegadamente efectuados pelo apelado, foi repetidamente ocorrendo nos sucessivos períodos de seis meses após o pagamento pelo apelado de cada uma das facturas que a apelante lhe foi enviando, com estimativas de consumo, no período compreendido entre 14/03/2000 e 4/07/2003.

A impossibilidade de se fazer a rigorosa correspondência temporal entre as diferenças de consumo apuradas e os pagamentos (por estimativa) inferiores que foram sendo feitos pelo apelado resulta da metodologia – a estimativa – adoptada pela apelante durante mais de três anos, pelo que seria impossível, como pretende a apelante, que o apelado demonstrasse quais as datas em que havia efectuado pagamentos inferiores aos consumos realmente efectuados até essas mesmas datas.

Temos, assim, que, atenta a matéria de facto tida por provada, a caducidade do direito da apelante ocorreu por erro seu uma vez que não procedeu à leitura do contador da água existente na residência do apelado senão em 4/07/2003, sendo certo que a realização atempada daquela leitura teria permitido não só apurar o consumo real de água, mas também a sua liquidação em prazo razoável para o efeito.

E, repete-se, era à Autora que incumbia provar que não foi por culpa sua que, durante um longo período de tempo (superior aos seis meses a que se refere o n.º 2 do artigo 10º da Lei 23/96), não houve leitura dos consumos reais do Réu.

Por conseguinte, não fora o erro e a inércia da apelante, não teria esta continuado a fornecer ao apelado, por tão longo período de tempo, um bem cujo consumo real não se encontrava a ser liquidado na sua totalidade.

E o erro da apelante é grosseiro e evidente, pois estimou os consumos de modo de tal forma deficiente que a sua estimativa se veio a mostrar absolutamente errada, quando confrontada com o consumo real medido. E estando ao seu alcance corrigir aquela estimativa – errada – mediante leituras regulares e reais dos consumos efectuados, aceitou manter-se no desconhecimento desses mesmos consumos, omitindo as leituras durante um período de mais de três anos.
4.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 29 de Março de 2007.
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira
___________________________
António Costa, “O Contrato de Fornecimento de Água”, in Estudos do Direito do Consumidor, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º 4, 329.
Ac. STJ, de 09.07.2003, in www.dgsi.pt