Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA RODRIGUES DA SILVA | ||
Descritores: | TESTAMENTO INTERPRETAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/15/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | (elaborado ao abrigo do disposto no art. 663º, nº 7, do CPC) 1. O art. 2187º do CC adoptou uma regra interpretativa de pendor subjetivista, dando relevância e prioridade à intenção do testador, conforme ao testamento globalmente considerado; 2. Daqui resulta a necessidade de interpretar a disposição testamentária no âmbito do contexto do testamento em confronto com as restantes cláusulas do mesmo; 3. Quando, na interpretação de disposição testamentária, o contexto não permita apurar de forma clara e inequívoca a vontade do testador, será admitida prova complementar, nos termos do art. 2187º, nº 2 do CC, sendo que não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. AA e BB intentaram a presente acção comum contra Santa Casa da Misericórdia do... alegando a existência de um testamento relativamente ao qual as partes não estão de acordo quanto ao respectivo teor. Terminam pedindo que seja declarado que ao herdeiro testamentário CC foram deixados, por testamento de DD, a totalidade dos títulos, certificados e afins, existentes no património da Testadora à data do seu falecimento, incluindo os certificados do tesouro melhor identificados no artigo 20.º da presente Petição Inicial. 2. Contestando, a R. impugnou a factualidade alegada na petição inicial. 3. Foi proferido despacho saneador com fixação do objecto do litígio e de temas de prova. 4. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte: “Em face do exposto e tudo ponderado, o Tribunal decide julgar a acção procedente, e nesse seguimento determinar: i. Conferir ao testamento outorgado por DD, a interpretação de pretender a testadora legar ao herdeiro testamentário CC, metade do dinheiro (existente nas contas bancárias) e a totalidade dos títulos, certificados e afins, existentes no património da mesma à data do seu falecimento, incluindo os certificados do tesouro melhor identificados no artigo 20.º da petição inicial. ii. ii) Custas da acção a cargo da Ré – art. 527º CPC.”. 5. Inconformada, a R. recorre desta sentença, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões: “a). Os autos existem por discordância entre AA, Recorridos e Ré, Recorrente quanto à interpretação de uma deixa testamentária do testamento público de DD, utente à data do seu óbito da Recorrente e companheira dos pais dos AA, falecido posteriormente àquela: “Que deixa a CC, divorciado, consigo residente, metade do dinheiro, títulos certificados e afins que possuir à data da sua morte quer se encontrem em seu poder, quer se encontrem em depósitos bancários à ordem ou a prazo.” b). A dissensão entre as partes é saber se ao falecido CC, deveria ser considerado legatário de (i) “metade do dinheiro, metade dos títulos, metade dos certificados e afins” ou legatário de (ii) “metade do dinheiro e de todos os títulos, certificados e afins”. c). O Tribunal a quo desprezou, perante a prova produzida, meios probatórios que deveriam ter sido considerados e, nessa medida, acrescerem à decisão da matéria de facto; outros não poderiam ter merecido a decisão que tiveram na sentença sub judice d). Nos autos consta, e assim foi junto aos autos pelos AA, Assento de óbito da Testadora, doc. n,º 2, donde resulta a idade da testadora à data do falecimento, permitindo igualmente aferir idade da Testadora à data em que outorgou o testamento, elemento interpretativo relevante no contexto dos autos - a interpretação dos testamentos deve fazer-se pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador (Ac. STJ de 22.03.2007). e). Assim, deve ser aditado à matéria de facto dada como provada o seguinte facto: • A testadora, DD, faleceu no dia 14 de Dezembro de 2020, na freguesia do ..., concelho do ..., com a idade de 75 anos, conforme Assento de óbito n.º ... do ano de 2020, da Conservatória do Registo Civil da ... f). O Tribunal, na sua liberdade de julgamento, desprezou o conhecimento científico da testemunha EE, professora de português, quanto à interpretação linguística – e apenas essa – da deixa testamentária em causa; g). Desatendeu, por isso, a posição jurisprudencial a propósito da regra expressa no artigo 2187º do CC, quanto à interpretação do testamento:” impõe-se ao intérprete a tarefa de averiguar com recurso a todos os meios disponíveis a efectiva vontade do testador”. Ac. do STJ de 17.04.2012, proc. n.º 259/10.5TBESP.P1.S1 h). Ora, do depoimento da testemunha, que sabe o que é a linguística e como se constrói a frase, com o sentido e alcance que pretende ter, extrai-se um novo facto que deve ser aditado com o seguinte teor: • A enumeração é uma figura de estilo utilizada na redacção da frase “Que deixa a CC, divorciado consigo residente, metade do dinheiro, títulos certificados e afins que possuir à data da sua morte quer se encontrem em seu poder quer se encontrem em depósitos bancários à ordem ou a prazo” constante no testamento identificado nos factos 1 e 2 i). Face à prova produzida, o Facto 19 - A Testadora por várias vezes, em contexto familiar, aludiu pretender que as suas poupanças, que correspondiam aos certificados de tesouro ficassem, no caso do seu decesso, para o seu companheiro CC – deve ser alterado; j). O Tribunal deu como provado o facto 19, suportado nas declarações de parte do A. e nos depoimentos das testemunhas AA, tio dos AA e de FF, companheira do A. AA. l). Com a reserva óbvia à isenção dos seus depoimentos, os quais, naturalmente, terão de ser sempre compreendidos à luz destas relações de proximidade familiar, há que assinalar o seguinte: a testemunha AA, cuja inquirição está gravada a 10:36 a 10:51 nunca declara ter ouvido a testadora em contexto familiar referir que (iii) as suas poupanças eram constituídas por certificados de tesouro ou de aforro; (iv) e que estas em caso de decesso ficariam para o seu companheiro. m). A testemunha declarou, isso sim, “sem saber valores, nem imaginar, nem hoje sei, nem hoje sei, eu parti sempre do princípio que isso ficaria para o companheiro. Se me pergunta, mas ouviu dizer expressamente que… Não! Toda a conversa (…) é o meu sentimento, a minha interpretação dos acontecimentos e, portanto, eu sempre pensei, porque o que me foi dito foi expressamente sobre a casa e não sobre os valores, que esses valores ficaram, neste caso para o meu irmão.” (negrito é da Recorrente) n). O depoimento da testemunha FF tem uma incongruência, à luz do juízo do homem médio, do senso comum. o). A testemunha refere que a Testadora pretendia deixar ao companheiro as “poupanças de uma vida”. Mas, à data da outorga do testamento – que é afinal o momento que releva para interpretação do mesmo – a testadora teria 53 anos, atentos os seus 75 anos, à data do óbito. Aos 53 anos, não era idade de ter “poupanças de uma vida”! p). A Testemunha GG, depoimento gravado a 11:23 – 11:30, amiga de muitos anos da Testadora, colega de trabalho de todos os dias, como a própria referiu, com amizade e intimidade com o casal, de tal forma que sabia que sendo uma união de facto, estiveram para casar por duas vezes e depois o Sr. CC inventou qualquer coisa e por fim foi ela que não quis casar, diretamente questionada sobre a existência de algum testamento, referiu de pronto: nunca falamos disso. q). Quanto ao facto 20, os AA, ora Recorridos, não são beneficiários de nenhum legado instituído pela testadora pelo que a alegação dessa “proximidade” para efeitos interpretativos do testamento é desnecessária e até irrelevante. r). Alterada a decisão de facto, que inclua a idade da testadora à data da outorga do testamento, a consideração da enumeração como figura de etilo linguístico e a proteção que a Testadora queria conferir ao seu companheiro, tem de ser revista a decisão de direito. s). E ainda que não perca de vista o entendimento doutrinário e jurisprudencial da interpretação subjectivista do testamento defendido pelos A.A., “esgotado o processo interpretativo, as declarações negociais do testador não podem ser objecto de integração, por ampliação, se a cláusula não prevista corresponder a uma adição de previsão factual que não encontra correspondência na vontade expressa no contexto do testamento.” Acórdão do STJ, de 17 de Abril de 2012, disponível em www.dgsi.pt, o que aconteceria se fosse mantida decisão recorrida que mais não faz do que ampliar o legado, modificando o testamento. t). O Notário tem o dever de indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo do seu valor e alcance e exercer” na outorga do testamento– cfr. art.º 4/1 do Código do Notariado u).Na boa interpretação do testamento, teremos de atender ao elemento literal e à presunção que o Notário soube “indagar, interpretar” e esclareceu “o valor e alcance”. v) A interpretação natural, imediata e conforme com as regras da linguística será que o pai dos Recorridos receberia metade de todos os bens mencionados (dinheiro, títulos, certificados e afins). x). E isto porque a expressão "metade do dinheiro, títulos, certificados e afins" sugere que a divisão se aplica a toda a enumeração, e não apenas ao primeiro item. Se a intenção fosse outra (como dar metade apenas do dinheiro e o resto por inteiro), a redação teria de ser mais específica. Ou seja, no texto era obrigatório constar “todos os títulos e certificados” por oposição à metade. A Notária, na redação do testamento, teria que ter diferenciado o que houvesse para diferenciar, se essa fosse a vontade da testadora. z). A prova testemunhal corrobora esta interpretação: a testadora queria proteger o seu companheiro, após o seu decesso. Mas tinha e queria proteger também outros herdeiros aa). Ensina Carvalho Fernandes3 3 Lições de Direito das Sucessões, 4º edição, Lisboa 2012, pp 533-534, que ““A natureza formal do negócio faz da letra do documento que titula o testamento o elemento mais relevante da interpretação; ainda que por referência ao seu contexto a letra constitui um limite ao apuramento do sentido subjetivo do testamento.” bb). Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 2187º do CC, antecipam a situação dos autos: “É no testamento, e não nas conversas ou comentários com familiares, acerca dele, que o testador exprime, ou pelo menos tenta em regra exprimir a sua verdadeira vontade” cc). A decisão recorrida fez errada interpretação do artigo 2187º do CC dd). A testadora exprimiu-se com recurso à enumeração, figura de estilo que lhe permitiu identificar a forma de repartição – metade – dos bens que de seguida enunciou. ee). A decisão recorrida julgou mal e deve ser revogada e substituída por outra que corretamente interprete a deixa testamentária, a qual nunca deixará desprotegido o pai dos Recorridos, aportando-lhe a eles, enquanto herdeiros do pai, legatário do testamento, metade dos saldos bancários, bancários, metade dos certificados de aforro, metade dos títulos e metade dos afins, por ser de elementar Justiça!”. 6. Em contra-alegações, os AA. defenderam a improcedência do recurso. * II. QUESTÕES A DECIDIR Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, são: - da impugnação da matéria de facto; - da interpretação do testamento em causa nos autos. * III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: “A) FACTOS PROVADOS 1. No dia 26.06.1998, foi lavrado o testamento público de DD, a folhas 96 e 97 do Livro número 08-T de testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos do extinto Cartório Notarial da ..., do qual a Notária Licenciada HH é fiel depositária, constante de fls. 11 verso e ss. 2. Do testamento consta: “No dia vinte e seis de junho de mil novecentos e noventa e oito no Cartório Notarial da Baixa de Banheira, perante mim (…), compareceu como outorgante: DD, solteira, maior, natural da freguesia de ..., residente na Rua ..., número ..., segundo andar (…). E por ela foi dito: Que não tem ascendentes vivos nem tem descendentes. Que deixa a CC, divorciado consigo residente, metade do dinheiro, títulos certificados e afins que possuir à data da sua morte quer se encontrem em seu poder quer se encontrem em depósitos bancários à ordem ou a prazo. Que constitui herdeira do remanescente da herança a sua irmã II, casada com JJ digo JJ, residente em ..., mas se esta sua irmã não lhe sobreviver o remanescente da sua herança ficará para a sua sobrinha KK, casada residente no referido lugar de .... Todavia, se à data da sua morte se encontrar aos cuidados de uma Instituição sem fins lucrativos, ou de qualquer pessoa singular, então o remanescente da sua herança deverá ficar para a Instituição ou pessoa singular que esteja a cuidar de si”. 3. A Testadora veio a falecer, no estado civil de solteira, no dia 14.12.2020, na freguesia do ..., concelho do ..., com última residência habitual nas instalações da Ré, sitas na .... 4. No dia 24.02.2021, foi outorgada habilitação de herdeiros, na qual foi declarado: “(…) Que a falecida não deixou descendentes nem ascendentes vivos, mas deixou testamento lavrado no [dia] vinte e seis de junho de mil novecentos e noventa e oito, no extinto Cartório (…), no qual fez um legado, a CC, NIF ..., aí melhor identificado, e instituiu herdeira do remanescente da herança uma Instituição sem fins lucrativos, caso se, à data da sua morte, se encontrasse ao seu cuidado, o que se verifica ser a Misericórdia do ..., NIPC ..., com sede na ..., conforme declarado (…)”, constante de fls. 14 verso e ss. 5. Mais resulta da referida habilitação de herdeiros que não há outras pessoas que, segundo a lei e o referido testamento, prefiram à referida herdeira ou que com ela concorram à sucessão da falecida. 6. O legatário CC é pai dos aqui Autores. 7. O mesmo foi companheiro da Testadora desde pelo menos 1980 até à data do falecimento desta última, tendo vivido como se de marido e mulher se tratassem. 8. Em 17.06.2020, devido às acentuadas restrições provocadas pelas enfermidades de que padecia (doença de Parkinson em estado avançado, com tremores acentuados, dificuldades na marcha e alterações de memória, espondiloartrose grave com canal estenóstico grave e com défice motor e diminuição da força muscular dos membros inferiores, síndrome depressivo e incontinência urinária), a Testadora passou a residir e a estar aos cuidados da aqui Ré, Santa Casa da Misericórdia do .... 9. O companheiro da Testadora, CC, também passou a residir no mesmo estabelecimento, em 07.10.2020 e viria a falecer em 26.12.2020, posteriormente ao falecimento da Testadora. 10. O referido CC deixou como únicos e universais herdeiros os seus dois filhos, aqui Autores. 11. O Autor participou o óbito da Testadora às Finanças, em 31.03.2021. 12. Na referida participação do óbito da Testadora, em conformidade com o Testamento, o Autor declarou que a Autora deixou: a) À aqui Ré, os bens imóveis e o automóvel constantes das verbas 1 a 5 da relação de bens; b) À aqui Ré e ao seu pai, CC, em partes iguais, as contas bancárias identificadas nas verbas 7 e 8 da relação de bens; c)Ao seu pai, CC, os certificados do tesouro constantes das verbas 9 a 14 da relação de bens. 13. O Autor contactou ainda a Ré no sentido de informá-la da existência do Testamento, com vista a dar cumprimento ao mesmo. 14. Nesta sequência, no dia 04.03.2021, conforme lavrado em ata n.º 466 da sessão ordinária da Mesa Administrativa da Ré, a Ré deliberou por unanimidade aceitar o legado feito no Testamento e correspondente aos seguintes bens: - CGD (IBAN PT...): 50% de 48.579,34 € = 24.289,67 €; - Caixa Económica Montepio Geral (PT...): 50% de 8.834,61 € = 4.417,31 €; - Lugar de estacionamento no ..., sob o artigo U-..., com VPT de 9.968,21 €; - Prédio em habitação em ..., sob o artigo ..., com o VPT de 8.372,25 €; - Terreno em ..., sob o artigo ..., com o VPT de 1,86 €; - Terreno em ..., sob o artigo ..., com o VPT de 0,50 €; - Terreno em ..., sob o artigo ..., com o VPT de 2,23 €; - Viatura Lancia – 840 (LANCIA) Y, com o nº do quadro .... 15. No dia 16.03.2021, o Autor enviou um email à Ré constante de fls. 48, a informar que pretendiam avançar com o “agendamento das partilhas” e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 16. Porém, posteriormente, a Ré transmitiu ao Autor que considerava que, para além dos legados aceites, tinha ainda direito a receber 50% dos certificados de tesouro deixados pela Testadora. 17. Tal posição mereceu de imediato a discordância dos Autores. 18. Os “títulos certificados e afins” mencionados no Testamento correspondiam, à data do óbito da Testadora, aos certificados do tesouro que infra se identificam: a) Verba n.º 9 da relação de bens – 85.000 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de e € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros); b) Verba n.º 10 da relação de bens – 22.500 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros); c) Verba n.º 11 da relação de bens – 14.000 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de € 14.000,00 (catorze mil euros); d) Verba n.º 12 da relação de bens – 95.000 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de e € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros); e) Verba n.º 13 da relação de bens – 7.500 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de e € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros); f) Verba n.º 14 da relação de bens – 20.000 unidades de certificados do tesouro correspondentes à subscrição n.º ..., no valor de e € 20.000,00 (vinte mil euros); 19. A Testadora por várias vezes, em contexto familiar, aludiu pretender que as suas “poupanças”, que correspondiam aos certificados de tesouro ficassem, no caso do seu decesso, para o companheiro, CC. 20. A Testadora tinha uma relação muito próxima com os enteados. * B) FACTOS NÃO PROVADOS Nenhum. * A demais matéria alegada pelas partes não foi aqui considerada por ser conclusiva, de direito ou não relevar para a decisão da causa.”. * IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Face às questões a decidir, passemos a efectuar a sua análise. 1. Da impugnação da matéria de facto: Nos termos do art. 662º, nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Por outro lado, dispõe o art. 640º, nº 1 do CPC que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Nos presentes autos, a apelante pretende que seja aditado à matéria de facto dada como provada a idade da testadora no momento do óbito por forma a que se possa aferir “se, com 53 anos de idade, será comum, habitual ou compreensível a menção a “poupanças de uma vida”, isto por referência à data da outorga do testamento. Assiste inteira razão à apelante, nomeadamente por o facto provado nº 3, referindo-se ao óbito da testadora, ser omisso quanto a todos os elementos constantes do assento de óbito em causa. Donde, reformula-se o facto provado nº 3 (A Testadora veio a falecer, no estado civil de solteira, no dia 14.12.2020, na freguesia do ..., concelho do ..., com última residência habitual nas instalações da Ré, sitas na ....), o qual passará a ter a seguinte redacção: “DD, de 75 anos, faleceu no dia 14 de Dezembro de 2020, no estado de solteira, na freguesia do ..., concelho do ..., com última residência habitual na ...”. Defende ainda a apelante que deve ser aditado um novo facto com o seguinte teor: “A enumeração é uma figura de estilo utilizada na redacção da frase “Que deixa a CC, divorciado consigo residente, metade do dinheiro, títulos certificados e afins que possuir à data da sua morte quer se encontrem em seu poder quer se encontrem em depósitos bancários à ordem ou a prazo” constante no testamento identificado nos factos 1 e 2”. Não nos parece que assista razão à apelante. Na verdade, a menção a uma figura de estilo utilizada na frase em disputa nos autos mais é não do que uma conclusão, sem qualquer carácter factual e que, por esse motivo, deve ser arredada dos factos. Donde, e quanto a este aspecto, improcede a pretensão da apelante. Sustenta também a apelante que o facto provado nº 19 (19. A Testadora por várias vezes, em contexto familiar, aludiu pretender que as suas “poupanças”, que correspondiam aos certificados de tesouro ficassem, no caso do seu decesso, para o companheiro, CC) deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção: “A Testadora por várias vezes, em contexto familiar, aludiu pretender que o seu companheiro, CC, ficasse protegido, em caso do seu decesso.”. Quanto a este facto, o tribunal recorrido sustentou a sua decisão nas declarações de parte do A. e no depoimento das testemunhas AA, tio dos AA. e FF, companheira do A. AA. Ouvidos os depoimentos em causa, verifica-se que dos mesmos resulta evidente a relação próxima dos enteados com DD, a proximidade entre DD e sua irmã e sobrinha, a existência de conversas em família sobre a vontade de DD ir residir, na velhice, para a zona onde crescera, bem como a vontade mútua de protecção de DD e de CC, pai dos AA., em caso de óbito. Não obstante, parece-nos excessivo extrair deste conjunto de afirmações que as poupanças de DD fossem unicamente certificados de aforro e que aquela pretendesse afectar os mesmos ao seu companheiro. Na verdade, nenhuma das testemunhas referiu ter alguma vez ouvido DD falar sobre o conteúdo e valor das suas poupanças, nomeadamente se estas eram ou não constituídas por certificados de tesouro ou de aforro e ainda qual o seu destino quando viesse a falecer. Mais, nenhuma das testemunhas conseguiu concretizar que as conversas mantidas quanto a essa questão fossem anteriores ou contemporâneas da outorga do testamento. Ora, nesse momento, 1998, DD não teria, provavelmente, as mesmas economias existentes no momento do seu óbito, não sabendo, nenhumas das testemunhas, os valores que esta detinha à data, nem sequer no momento do óbito. Acresce que o testamento em causa foi efectuado em 1998, sem que tenha sofrido qualquer alteração e sem que no mesmo conste a expressão “poupanças”. Por outro lado, DD e CC viveram como marido e mulher desde o início da década de 80 do século XX até ao óbito daquela, sem que nunca tenham casado, assegurando, por essa via, a transmissão de bens por via sucessória legal para cada um deles. Ou seja, nada nos autos permite concluir que as poupanças de DD fossem constituídas por certificados de aforro e que a mesma, à data do testamento, pretendesse transmitir a sua totalidade para seu companheiro, o qual não foi instituído como seu único herdeiro. Assim sendo, entende-se que as declarações prestadas pelo A. e pelas testemunhas inquiridas não são suficientemente esclarecedoras para que se possa concluir no sentido constante do facto nº 19, na medida em que reflectem apenas a percepção transmitida pelos AA. em contexto familiar, sem qualquer outro suporte, nomeadamente algum escrito de DD referindo essa realidade. Donde, o facto provado nº 19 não pode subsistir na sua integralidade, devendo ser alterado nos seguintes termos: “DD, por várias vezes, em contexto familiar, referiu a necessidade de protecção de seu companheiro, CC, quando viesse a falecer.”. A finalizar, entende a apelante que o facto provado nº 20 (20. A Testadora tinha uma relação muito próxima com os enteados) deve ser eliminado por ser irrelevante. Ora, se é certo que este facto em pouco adiantará à decisão, o mesmo poderá, eventualmente, permitir a contextualização do testamento, pelo que se deve manter no elenco dos factos provados. Consequentemente, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, alterando-se os factos provados nºs 3 e 19 nos termos expostos. 2. Da interpretação do testamento em causa nos autos: Prende-se a questão trazida a juízo com a interpretação de deixa testamentária relativa a legado instituído a favor do pai dos AA.. Vejamos. Sob a epígrafe “Interpretação dos testamentos”, dispõe o art. 2187º do CC o seguinte: “1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento. 2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”. Como tem sido entendido, através deste preceito foi adoptada uma regra interpretativa de pendor subjetivista, dando relevância e prioridade à intenção do testador, conforme ao testamento globalmente considerado. Daqui resulta a necessidade de interpretar a disposição testamentária no âmbito do contexto do testamento em confronto com as restantes cláusulas do mesmo. Neste sentido, veja-se Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Sucessões, Almedina, 2021, pág. 230. Quando, na interpretação de disposição testamentária, o contexto não permita apurar de forma clara e inequívoca a vontade do testador, será admitida prova complementar, nos termos do art. 2187º, nº 2 do CC, sendo que não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. Como se explica no Ac. TRL de 26-09-2024, proc. 1884/21.1T8CSC.L1, relator Higina Castelo, citado na decisão recorrida, “Prova complementar, nas palavras de Inocêncio Galvão Telles, reporta-se aos «elementos estranhos ao testamento que possam contribuir para o esclarecimento de quanto o testador nele declarou» (Sucessão testamentária, Coimbra Editora, 2006, p. 24). Quando, obviamente, esclarecimentos sejam necessários perante o texto de cada disposição no contexto global do testamento. Sendo os testamentos constituídos por declarações não recetícias, justifica-se a procura da vontade real do testador sem o espartilho da impressão do destinatário. Porém, a vontade real encontrada após recurso à dita prova complementar só produzirá efeito se tiver apoio no contexto do testamento. Por que razão, na interpretação de cada disposição testamentária, manda a lei atender ao contexto do testamento e permite, até, recorrer a prova complementar para descortinar a vontade real do testador? Pires de Lima e Antunes Varela explicam da seguinte forma: «o pavor da proximidade da morte, a precipitação com que o ato é muitas vezes realizado, a esclerose provocada pela idade e as pressões que a cada passo se exercem sobre a vontade debilitada e a memória confusa do disponente, fazem que muitas disposições testamentárias, à luz do seu simples texto, se tornam verdadeiramente indecifráveis», incluindo amiúde «confusões de nomes, as repetições de nomes, as aparentes contradições e as omissões de palavras» (Código Civil Anotado, VI, Coimbra Editora, 1998, p. 305). Não obstante, a interpretação da disposição testamentária obtida por meio de prova complementar apenas será lícita se tiver no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso. Afinal, o testamento é um negócio necessariamente formal.”. Relativamente ao que se deve entender por contexto do testamento, entende-se que este será o texto do testamento no seu todo, o qual tem de ser interpretado na sua globalidade. Tal como se pode ler no Ac. TRP de 09-01-2025, proc. 7630/20.2T8VNG-B.P1, relator Ana Luísa Loureiro, “Afigura-se-nos que a boa interpretação é aquela em que “contexto” significa todo o texto do testamento (com texto ou texto que, com a disposição interpretada, constitui o testamento). Só assim faz sentido a ideia de que a vontade do testador (já) apurada deve ter (um mínimo de) “correspondência” “no contexto” – isto é, deve ter correspondência na totalidade do texto do testamento. É desprovido de lógica dizer-se que a vontade do testador (já) apurada deve ter (um mínimo de) “correspondência” nas circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, quando foi a partir destas circunstâncias que a vontade do testador foi apurada. Ou seja, estas circunstâncias são relevantes – porque a lei admite “prova complementar” – na descoberta da vontade do testador, e não, enquanto limite, no afastamento da eficácia desta vontade. Relevante para limitar a eficácia da vontade do testador (já) apurada é, sim, o texto do testamento, visto na sua totalidade – à semelhança, aliás, do disposto no n.º 1 do art. 238.º do Cód. Civil. Em suma, o “contexto do testamento”, no sentido de circunstâncias em que a declaração do testador é proferida, é relevante no apuramento da vontade deste. Uma vez apurada a vontade real do testador, a correspondência mínima ao “contexto” da disposição interpretada no testamento (as restantes disposições, isto é, o texto do testamento no seu todo) constitui o limite à eficácia reconhecida à vontade do testador – de modo a evitar que uma atividade interpretativa redunde numa atividade integrativa.”. Concluindo, dir-se-á que as várias disposições testamentárias devem ser interpretadas no seu conjunto, deste se extraindo qual tenha sido a vontade do testador. Quando não seja possível concluir de forma inequívoca qual tenha sido essa vontade, admite-se prova complementar, ou seja, elementos estranhos ao testamento e que permitem esclarecer a motivação do testador e qual a sua intenção. Esta prova complementar tem como limite a existência de um mínimo de correspondência no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expresso. No caso dos autos, entendeu o tribunal recorrido que “recorrendo à vertente subjectivista, face ao que ficou provado, e atendendo à vontade pretendida pela testadora e sendo que encontra ainda respaldo na letra do testamento, bem como ante o contexto de outorga do testamento, cumpre considerar que a interpretação a conferir à deixa testamentária será a de que a testadora pretendeu legar ao herdeiro testamentário CC, metade do dinheiro (existente nas contas bancárias) e a totalidade dos títulos, certificados e afins, existentes no património da mesma à data do seu falecimento, incluindo os certificados do tesouro melhor identificados no artigo 20.º da petição inicial”. Salvo o devido respeito, não se pode concordar com esta apreciação. Antes de mais, constando do testamento que a testadora deixa “metade do dinheiro, títulos certificados e afins que possuir à data da sua morte quer se encontrem em seu poder quer se encontrem em depósitos bancários à ordem ou a prazo”, importa, antes de mais, analisar esta frase de acordo com as regras gramaticais da língua portuguesa. Ora, a utilização da expressão “metade”, seguida de dois ou mais substantivos mais não é do que uma enumeração de vários bens em metade. Ou seja, estamos perante a apresentação sucessiva de vários bens, do mesmo género, compondo uma lista dos bens a deixar em metade – metade do dinheiro, metade dos títulos certificados e metade dos afins. Caso assim não fosse, pretendendo-se decompor os bens a legar, certamente que teria sido elaborada uma nova entrada no texto do testamento, à semelhança do que se fez nos demais bens referidos no testamento ou ter-se-ia explicitado “metade do dinheiro” e “todos os títulos certificados e afins”. Donde, a interpretação literal do testamento não permite qualquer outra solução do que entender que estamos perante a enumeração de vários bens, deixados ao legatário, sempre em metade. Esta interpretação literal sai reforçada pela leitura integrada de todo o testamento, porquanto as várias deixas testamentárias estão devidamente identificadas, sendo patente que a beneficiária da quase totalidade dos bens da testadora seria sua irmã. Acresce que não se mostram assentes quaisquer factos que permitam infirmar esta conclusão levando a concluir que a vontade da testadora era deixar todos os títulos certificados e afins ao seu companheiro. Com efeito, o facto provado nº19, referindo-se à preocupação da testadora com o futuro do companheiro, não colide com a deixa testamentária em causa e sua interpretação, já que foi legado àquele metade de todas as poupanças de DD, nestas se integrando dinheiro, títulos certificados e afins. Esta conclusão sai reforçada com a conjugação da data da outorga do testamento e o lapso temporal decorrido até ao óbito da testadora e durante o qual nada foi modificado no testamento e/ou na titularidade das contas. E o facto de DD ter mantido uma relação próxima com os enteados, ora AA., em nada altera esta conclusão, pois não foram os mesmos contemplados no testamento em causa. Assim, e com base no que se explanou, tem a presente apelação de proceder, revogando-se a decisão recorrida, a qual é substituída por outra que determina “Conferir ao testamento outorgado por DD, a interpretação de pretender a testadora legar a CC, metade do dinheiro (existente nas contas bancárias) e metade dos títulos, certificados e afins, existentes no património da mesma à data do seu falecimento, incluindo os certificados do tesouro melhor identificados no artigo 20.º da petição inicial”. As custas devidas em juízo serão suportadas pelos apelados, cfr. art. 527º do CPC. * V. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, a qual é substituída por outra que determina “Conferir ao testamento outorgado por DD, a interpretação de pretender a testadora legar a CC, metade do dinheiro (existente nas contas bancárias) e metade dos títulos, certificados e afins, existentes no património da mesma à data do seu falecimento, incluindo os certificados do tesouro melhor identificados no artigo 20.º da petição inicial”. Custas pelos apelados. * Lisboa, 15 de Julho de 2025 Ana Rodrigues da Silva Cristina Silva Maximiano José Capacete |