Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
647/13.5PDAMD.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA INDICIÁRIA
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I- Uma alegada insuficiência de prova não é confundível com o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como acima definimos.
II- O erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
III- Mesmo não havendo prova directa do facto, o Tribunal pode “perceber” quem foi o autor por apelo à prova indirecta, ou indiciária. É o que acontece quando há um relatório pericial realizado no boné deixado no interior da residência alvo de furto (de onde resulta pertencer tal boné ao arguido por ter o seu ADN) conjugado com a circunstância de a residência em causa ser privada, não acessível livremente por terceiros e inexistir qualquer outra justificação legítima para o facto de o boné ali ter sido deixado que não pelo autor do furto.
IV- Uma decisão do Tribunal, cumprido que se mostra o contraditório, não é uma decisão surpresa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum (Colectivo) nº 647/13.5PDAMD, que corre termos no Juízo Central de Sintra (Juiz 6), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi o arguido,
AA, solteiro, ..., nascido a ........1985 na freguesia de ..., filho de BB e de CC, residente na ..., e atualmente preso no E.P. de …, em cumprimento de pena à ordem do Processo Comum Coletivo nº 205/21.0PEAMD, do Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 4,
condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 2 al. e), com referência ao art. 202º, als. d) e e), todos do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, ficando absolvido do demais peticionado.
*
Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs recurso onde pede a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
1ª - No presente recurso, o arguido vem respeitosamente sindicar o douto Acórdão proferido em 1ª instância com base nas seguintes questões:
- Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
- A violação do Princípio do In Dubio pro Reo.
2ª - Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz 6, que condenou o arguido pela prática, de um crime de furto qualificado p. e p. pelo Artigo 203º nº1 e 204º nº2 al. e), com referência ao artigo 202º al. d e e) do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3ª - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
4ª - O Acórdão recorrido fundamenta a decisão de condenação do recorrente com base numa perícia forense por parte do Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária, realizado a 19/12/2023, e que incidiu na comparação do perfil de ADN do recorrente com os vestígios “cabelos com origem humana e com raiz” que haviam sido detetados e recolhidos pelo mesmo L.P.C.P.J. na data de 13/11/2013 num boné, encontrado no local da prática do crime.
5ª - Acontece que, no relatório da recolha dos vestígios na altura, em 13/11/2013, junto aos autos a fls. 30 e 31, consta a seguinte informação: No boné detetaram-se cabelos de origem humana e com raiz e não se detetaram vestígios de sangue.
6ª - Ou seja, tal relatório, realizado logo após a análise do boné à altura dos factos (2013) apenas refere a existência, a recolha e o respetivo acondicionamento dos vestígios “cabelos”.
7ª - Havendo outros vestígios e tendo esses vestígios também sido recolhidos e acondicionados, imporiam as regras das boas práticas forenses que tais vestígios, estivessem também reportados no relatório de 2013.
8ª - O facto é que não estão.
9ª - Chegados a 2023, já no decurso da audiência de julgamento, o douto Tribunal a quo ordena oficiosamente a recolha de ADN do recorrente e o respetivo exame de comparação com o ADN que se encontraria nos vestígios “cabelos” encontrados no boné em Novembro de 2013 e guardados no Laboratório da Polícia Científica da P.J.
10ª - Realizado tal exame de comparação, o relatório do mesmo, junto aos autos a fls.190 vem concluir o seguinte:
No(s) item(s) 1R1 e 1R2 (…) obteve-se um perfil idêntico ao perfil de AA.
No(s) item(s) 1R3 (…) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não é possível proceder a qualquer estudo comparativo.
11ª - A requerimento da defesa, veio o Douto Tribunal a quo notificar os especialistas da polícia científica que assinam o relatório para prestarem esclarecimentos em audiência de julgamento.
12ª - Na data de 7/02/2024, DD, na qualidade de perito, prestou esclarecimentos em audiência de julgamento, tendo o douto Tribunal a quo prescindido de ouvir o outro especialista por entender que as declarações do primeiro eram suficientes e esclarecedoras.
13ª - A instâncias da Senhora Juíza Presidente do Tribunal Coletivo a quo, o especialista DD veio explicar que os itens 1R1 e 1R2, referidos naquele relatório, eram, afinal, vestígios de pele; e que o 1R3, cujo resultado deu negativo, correspondia aos cabelos, os únicos vestígios mencionados no Relatório pericial de 2013.
14ª - Ora, a alegada existência de vestígios de pele recolhidos, alegadamente em 2013, revelaram-se nos presentes autos “prova surpresa”, por não estarem devidamente referenciados no respetivo relatório na altura do inquérito.
15ª - Resulta evidente destes esclarecimentos prestados, e que aqui se transcrevem, que o especialista não conseguiu explicar o facto de os colegas, no relatório de 2013, não terem referido naquele documento os outros vestígios biológicos que alegadamente teriam encontrado no objeto examinado.
16ª - Ao tempo 1:24 da gravação, refere “Eles só fizeram a recolha de…”.
17ª - Logo a seguir, ao tempo 1:39, diz «realmente aqui no relatório fala só de recolhas… não está diferenciado…».
18ª - A questão que se impõe e que ficou por explicar é que, se foram realmente na altura recolhidos vestígios biológicos de pele no boné, elemento de prova nos presentes autos, a recolha desses vestígios não teria que estar reportada no relatório de 2013?
19ª - Por outro lado, como é que se recolhem vestígios num elemento de prova, como se procede ao acondicionamento dos mesmos, sem que tal não fique devidamente referenciado no relatório, que é, afinal, o documento legal – científico e objetivo – que regista os resultados e as conclusões do exame?
20ª - O especialista DD não conseguiu explicar tal situação.
21ª - O douto Acórdão de que aqui se recorre entende a situação como uma omissão do relatório de 2013.
22ª - Tal mereceria até ser catalogado como uma falha grave dos especialistas da polícia científica que procederam na altura dos factos ao exame pericial ao boné e que não terão registado no seu relatório, nas suas conclusões, que também teriam detetado, recolhido e acondicionado outros vestígios biológicos em quantidade suficiente para poderem ser comparados, tal como aconteceu com os cabelos de origem humana e com raiz (1R3).
23ª - Porém, a ser entendido este caso como uma simples omissão sem consequências de maior, tal é grave e abre desde já um precedente de dúvidas acerca da falta de rigor e transparência no trabalho da Polícia Científica da P.J., que não se pode admitir em processo penal.
24ª - Sendo que, no futuro e em relação a perícias forenses noutros processos, assistirá total legitimidade quer ao Tribunal, quer ao Ministério Público, quer à defesa dos arguidos, em questionar a validade das conclusões das perícias registadas no respetivo relatório, pois, afinal, poderá sempre haver vestígios que tenham sido detetados e que não estejam devidamente referenciados onde e como deveriam, i.e., no documento legal designado como “Relatório”.
25ª - Decorre das práticas forenses e do próprio processo penal que o cumprimento escrupuloso das leges artis no procedimento pericial técnico-científico é exigível, sindicável e injuntivo, porque é, afinal, um garante da decisão correta, acertada, rigorosa e justa.
26ª - E este escrutínio cabia ao Tribunal Coletivo a quo, que, com todo o respeito que é muito, se demitiu de o realizar de forma crítica.
27ª - Ora, o que o Acórdão recorrido fez, e com o qual não se pode concordar, foi assumir que os especialistas que realizaram a recolha dos vestígios do boné em 2013 e que elaboraram o respetivo relatório, na altura dos factos, violaram de forma grave as legis artis, sem que os próprios tenham sequer sido ouvidos, naquilo que seria afinal a sua própria defesa, na defesa do seu bom nome enquanto profissionais forenses.
28ª - Como já referido supra, o especialista DD, ouvido na qualidade de perito em audiência de julgamento, não consegue explicar a razão dos colegas não terem incluído no relatório de 2013 determinados procedimentos que tenham resultado na alegada recolha de vestígios biológicos que não os cabelos.
29ª - Aquele especialista chega mesmo quase a referir que os colegas talvez não os tivessem considerado relevantes… pelo menos é o sentido que se retira da seguinte frase:
PERITO: SE CALHAR OS MEUS COLEGAS ACHARAM QUE NÃO ERA… QUE NÃO SE DISCRIMINAVA AS RECOLHAS, PRONTO…
30ª - Ou seja, o douto Tribunal Coletivo a quo, para poder condenar o recorrente, assumiu que teria havido uma omissão no Relatório pericial de 2013, sem perceber junto dos seus responsáveis se tal corresponde de facto à verdade;
31ª - E, entendendo sem mais ter havido uma omissão, passou uma borracha na alegada situação de violação grosseira das legis artis nos presentes autos.
32ª - Salvo mais douta opinião, e com todo o respeito que é muito, tal, atenta contra as regras da vida e da experiência comum, bem como contra os princípios do rigor e da transparência que acabam por dar razão de ser à inatacabilidade da prova forense, que vincula o próprio julgador: a prova pericial, como decorre do artigo 163º do Código de Processo Penal.
33ª - Antes de tal, teria o Tribunal a quo, pelo menos, de aferir junto dos especialistas do laboratório científico da P.J. que intervieram no processo na fase do inquérito e que assinaram o relatório das perícias em 2013, se de facto se terão esquecido de reportar no mesmo que, para além dos cabelos, também recolheram vestígios de pele e que os acondicionaram e armazenaram devidamente a prova biológica.
34ª - Seria imprescindível este cabal esclarecimento dos especialistas visados, antes de qualquer juízo de valor que desprestigia o profissionalismo daqueles especialistas e que se aproveita para condenar o recorrente.
35ª - Afinal, de acordo com o artigo 156º, nº1 do Código de Processo Penal, no procedimento «os peritos prestam compromisso (…)».
36ª - Mas o facto do relatório de 2024 referir vestígios não reportados no relatório pericial de 2013, o que a ter acontecido denota no mínimo uma falha inadmissível na própria organização dos trabalhos naquele laboratório, e dado até o registo criminal do recorrente com várias condenações noutros processos por factos praticados na área de Lisboa, que lhe garantiram, evidentemente, a recolha e armazenamento de vestígios biológicos enquanto suspeito e condenado, certamente armazenados no mesmo Laboratório da Polícia Científica da P.J., também nos leva de forma legítima à seguinte questão:
- A existirem realmente os vestígios de pele que o especialista ouvido referiu no seu relatório de 2024, esses vestígios terão sido recolhidos e armazenados no âmbito deste mesmo processo? Ou seriam por outro lado, vestígios de pele do recorrente recolhidos num outro processo pelo qual fora condenado e que ali ficaram acondicionados e armazenados?
37ª - Na realidade, os únicos vestígios mencionados, quer no relatório de 2013 quer no relatório de 2024 – os cabelos com raiz –, quando comparados com o perfil de ADN do recorrente, resultam negativo, ou seja, não foi possível concluir que aqueles cabelos, encontrados no referido boné em 2013, eram cabelos do arguido, aqui recorrente.
38ª - E são esses os únicos vestígios que o Tribunal a quo deveria considerar como válidos, em nome da certeza, do rigor e da transparência que são afinal pilares essenciais de um processo penal que se quer seguro e justo.
39ª - Condenar-se o arguido pela prática dos factos com base na correspondência positiva entre o perfil do ADN do arguido e o perfil de ADN encontrado em vestígios de pele que não estavam referenciados no relatório de 2013 realizado no inquérito, significa condenar-se o arguido por uma ÚNICA prova que está, na sua estrutura cronológica, inquinada, pelo menos mal explicada, desde o seu início – a prova pericial.
40ª - Quando o legislador subtrai ao julgador a livre apreciação da prova pericial e lhe atribui um valor probatório pleno, quase irrefutável, fá-lo para situações de certeza, em que não se verifique qualquer discrepância nas provas periciais no processo.
41ª - Aqui manifestamente não é o caso, tal a discrepância verificada entre os dois relatórios, ambos do mesmo Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária.
42ª - Perante tal, o Tribunal Coletivo a quo devia ter promovido um esforço diferente para perceber a razão de os vestígios biológicos referenciados no relatório de 2024 não terem sido antes referenciados no relatório de 2013, uma vez que o especialista ouvido em audiência não explicou de forma suficiente e sustentada o porquê destes vestígios de pele não terem sido referidos em 2013, tendo só agora surgido no processo com o efeito surpresa.
43ª - Aliás, o próprio especialista sugere ao Tribunal que questione os colegas que procederam à recolha, referenciação e acondicionamento dos vestígios recolhidos do boné e que assinaram o respetivo relatório de 2013.
44ª – Da Violação do Princípio do In Dubio pro Reo.
45ª - Exigia-se o esclarecimento cabal de tal facto como fundamento da condenação do arguido, já que os vestígios de pele, a tal prova surpresa, são afinal a ÚNICA prova que sustenta a sua condenação pelos factos de que vinha pronunciado.
46ª - Entende-se, assim, que a discrepância manifesta entre os dois relatórios periciais deveria ter sido valorizada em Tribunal a favor do Recorrente, com a necessidade da sua absolvição.
47ª - Não o tendo feito, o Tribunal Coletivo a quo incorreu na violação do princípio do in dúbio pro reu, persistindo a dúvida pertinente dos vestígios terem sido recolhidos em 2013 e não terem sido na altura devidamente reportados no respetivo Relatório.
*
A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido e apresentando as seguintes conclusões:
1- O arguido AA veio recorrer do douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, no âmbito dos presentes autos, que deliberou “1. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2 al. e), com referência ao art. 202º, als. d) e e), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2- No caso concreto, o recurso interposto pelo arguido visa matéria de facto e de direito, sendo as questões suscitadas, em sede de recurso, essencialmente relativas a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
3- O arguido veio invocar que a decisão recorrida alegadamente padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, fundamentando que: “4ª - O Acórdão recorrido fundamenta a decisão de condenação do recorrente com base numa perícia forense por parte do Laboratório da Polícia Científica da Polícia Judiciária, realizado a 19/12/2023, e que incidiu na comparação do perfil de ADN do recorrente com os vestígios “cabelos com origem humana e com raiz” que haviam sido detetados e recolhidos pelo mesmo L.P.C.P.J. na data de 13/11/2013 num boné, encontrado no local da prática do crime. 5ª - Acontece que, no relatório da recolha dos vestígios na altura, em 13/11/2013, junto aos autos a fls. 30 e 31, consta a seguinte informação: No boné detetaram-se cabelos de origem humana e com raiz e não se detetaram vestígios de sangue. 6ª - Ou seja, tal relatório, realizado logo após a análise do boné à altura dos factos (2013) apenas refere a existência, a recolha e o respetivo acondicionamento dos vestígios “cabelos”. 7ª - Havendo outros vestígios e tendo esses vestígios também sido recolhidos e acondicionados, imporiam as regras das boas práticas forenses que tais vestígios, estivessem também reportados no relatório de 2013. 8ª - O facto é que não estão. 9ª - Chegados a 2023, já no decurso da audiência de julgamento, o douto Tribunal a quo ordena oficiosamente a recolha de ADN do recorrente e o respetivo exame de comparação com o ADN que se encontraria nos vestígios “cabelos” encontrados no boné em Novembro de 2013 e guardados no Laboratório da Polícia Científica da P.J. 10ª - Realizado tal exame de comparação, o relatório do mesmo, junto aos autos a fls.190 vem concluir o seguinte: No(s) item(s) 1R1 e 1R2 (…) obteve-se um perfil idêntico ao perfil de AA. No(s) item(s) 1R3 (…) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não é possível proceder a qualquer estudo comparativo. (...) 13a- A instâncias da Senhora Juíza Presidente do Tribunal Coletivo a quo, o especialista DD veio explicar que os itens 1R1 e 1R2, referidos naquele relatório, eram, afinal, vestígios de pele; e que o 1R3, cujo resultado deu negativo, correspondia aos cabelos, os únicos vestígios mencionados no Relatório pericial de 2013.14a - Ora, a alegada existência de vestígios de pele recolhidos, alegadamente em 2013, revelaram-se nos presentes autos "prova surpresa", por não estarem devidamente referenciados no respetivo relatório na altura do inquérito. (...) 18a - A questão que se impõe e que ficou por explicar é que, se foram realmente na altura recolhidos vestígios biológicos de pele no boné, elemento de prova nos presentes autos, a recolha desses vestígios não teria que estar reportada no relatório de 2013? 19a Por outro Lado, como é que se recolhem vestígios num elemento de prova, como se procede ao acondicionamento dos mesmos, sem que tal não fique devidamente referenciado no relatório, que é, afinal, o documento Legal - científico e objetivo - que regista os resultados e as conclusões do exame? 20a - O especialista DD não conseguiu explicar tal situação. 21a - O douto Acórdão de que aqui se recorre entende a situação como uma omissão do relatório de2013. (..)23a Porém, a ser entendido este caso como uma simples omissão sem consequências de maior, tal é grave e abre desde já um precedente de dúvidas acerca da falta de rigor e transparência no trabalho da Polícia Científica da P.J., que não se pode admitir em processo penal. (...) 33a - Antes de tal, teria o Tribunal a quo, pelo menos, de aferir junto dos especialistas do Laboratório científico da PJ. que intervieram no processo na fase do inquérito e que assinaram o relatório das perícias em 2013, se de facto se terão esquecido de reportar no mesmo que, para além dos cabelos, também recolheram vestígios de pele e que os acondicionaram e armazenaram devidamente a prova biológica. 34a - Seria imprescindível este cabal esclarecimento dos especialistas visados, antes de qualquer juízo de valor que desprestigia o profissionalismo daqueles especialistas e que se aproveita para condenar o recorrente. (...) 45a - Exigia-se o esclarecimento cabal de tal facto como fundamento da condenação do arguido, já que os vestígios de pele, a tal prova surpresa, são afinal a ÚNICA prova que sustenta a sua condenação pelos factos de que vinha pronunciado. 46a - Entende-se, assim, que a discrepância manifesta entre os dois relatórios periciais deveria ter sido valorizada em Tribunal a favor do Recorrente, com a necessidade da sua absolvição. 47a - Não o tendo feito, o Tribunal Coletivo a quo incorreu na violação do princípio do in dúbio pro reu, persistindo a dúvida pertinente dos vestígios terem sido recolhidos em 2013 e não terem sido na altura devidamente reportados no respetivo Relatório."
4- O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre a matéria de facto, quanto ao ora recorrente, com base "na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental e pericial constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede, com apelo ainda às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da Livre apreciação da prova ínsito no art. 127° do Código de Processo Penal."
5- O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que o recorrente veio arguir, conforme SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, corresponde a "lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vicio quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final. Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorreta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstancia de o tribunal não ter dado como provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.1 E segundo MOTA RIBEIRO2 "existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340° do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição."
6- Analisado no entanto o caso concreto, verifica-se que não corresponde à verdade que não se tenham provado factos que alicercem a condenação do recorrente pelos factos que lhe foram imputados, estando tais factos provados não só com base em meio de prova pericial, mas também com base no depoimento da ofendida, proprietária da residência, a qual esclareceu o modo como o responsável pelo furto se terá introduzido na habitação e que nunca, à data dos factos, ali entrou o arguido ou qualquer outra pessoa estranha e bem assim explicou o modo como o boné apreendido, a partir do qual foi realizado o exame pericial, surgiu no interior da sua residência, concomitantemente com a subtração de um boné da sua filha e dos restantes bens subtraídos na data dos factos.
7- Relativamente à validade do exame pericial em causa, não está em causa “prova surpresa”, nem nenhum meio proibido ou nulo, ainda que no documento relativo à respetiva recolha de material para efeitos de exame biológico, não tivesse sido feita expressa referência à recolha de pele, para além da recolha de cabelo.
8- Efetivamente, no caso em concreto, consta do relatório alusivo à recolha de material para exame pericial de fls. 30 que “no boné (1) detetaram-se cabelos de origem humana com raiz”, mas não se pode considerar a prova resultante do exame à pele recolhida, como “prova surpresa”, porquanto, no momento em que os vestígios biológicos foram recolhidos, era impossível conhecerem-se desde logo todo o tipo de vestígios que pudessem estar presentes no objeto alvo de recolha.
9- Por outro lado, a recolha de pele não é algo estranho à recolha de amostra de cabelo de um suspeito, uma vez que os folículos capilares se formam a partir da pele e se encontram envolvidos pela mesma, daí que em geral o ADN seja em regra possível de identificar a partir da raiz do cabelo, porquanto a mesma se encontra ligada à pele, sendo nesta que se encontra maioritariamente o material genético.
10- Todavia, no caso em concreto, consta do relatório alusivo à recolha de material para exame pericial de fls. 30 que “no boné (1) detetaram-se cabelos de origem humana com raiz”.
11- Assim sendo, não se pode considerar a prova resultante do exame à pele recolhida, como “prova surpresa”, porquanto, no momento em que os vestígios biológicos são recolhidos, é impossível conhecerem-se logo todo o tipo de vestígios que possam estar presentes em determinado objeto alvo de recolha. Por outro lado, a recolha de pele não é algo estranho à recolha de amostra de cabelo de um suspeito, uma vez que os folículos capilares se formam a partir da pele e se encontram envolvidos pela mesma, daí que em geral o ADN seja em regra possível de identificar a partir da raiz do cabelo, porquanto é a mesma que se encontra ligada à pele, sendo nesta que se encontra maioritariamente o respetivo material genético.
12- Assim, a matéria de facto provada, foi assim considerada com base em vários meios de prova conjugados com as regras da experiência comum, amplamente suficientes para terem fundamentado a comprovação da prática dos crimes pelos quais foi condenada, não se verificando qualquer vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada tal como vem previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal).
13- Pelo exposto, à luz do que se acaba de expor, somos de parecer que o douto acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se nos seus precisos termos, negando-se total provimento ao recurso interposto pela arguida
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
* * *
Fundamentação
No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
(Da pronúncia)
1. No dia ... de ... de 2013, a hora não concretamente apurada, mas anterior às 20h00, o arguido AA introduziu-se no apartamento sito na ..., trepando o muro do respetivo terraço e erguendo o estore da porta de vidro da cozinha, forçando-a igualmente, por aí penetrando no interior da habitação.
2. O arguido pretendia fazer seus os objetos que encontrasse no local, tendo-se apoderado, pelo menos, dos seguintes: um computador portátil da marca “HP”, no valor de € 499, uma consola “PSP”, no valor de € 169, uma consola “...”, no valor de € 165, um tablet da marca “...”, no valor de € 299, um tablet da marca “...”, no valor de € 499, um relógio branco, no valor de € 209, uma depiladora da marca “...”, no valor de € 84,90, um telemóvel da marca “...”, no valor de € 59, uma consola “Wii”, no valor de € 193,99, umas colunas para MP3, no valor de € 59,90, dois fios de ouro e uma pulseira, no valor de € 200, e 20 jogos das referidas consolas, no valor de € 600, bem como da quantia monetária de € 90, bens e dinheiro que fez seus.
3. O arguido agiu com intenção de se apoderar dos referidos objetos, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que o fazia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
4. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. O arguido AA sofreu as seguintes condenações, transitadas em julgado:
5.1. No Processo n.º 836/04.3PCAMD, por factos de 2003 e 2004, decisão de 5 de junho de 2009, transitada em julgado a 25 de junho de 2009, em cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena de dez anos de prisão efetiva pela prática de crimes de furto (Processos n.ºs 1627/04.7PBAMD, 1541/04.6PBAMD, 301/04.9PCAMD, 1564/03.2PBAMD e 310/04.8PBAMD);
5.2. No Processo n.º 952/04.1PCAMD, por factos de 2003 e 2004, decisão de 4 de janeiro de 2013, transitada em julgado a 4 de janeiro de 2013, foi condenado por crimes de furto qualificado, em cúmulo jurídico, na pena única de 11 anos de prisão efetiva.
6. O arguido encontra-se atualmente preso no Estabelecimento Prisional de...
7. As aludidas condenações não constituíram suficiente motivação para afastar o arguido da criminalidade, revelando a sua personalidade uma acentuada inclinação para o crime.
8. Pelo menos à data da prática dos factos o arguido não tinha ocupação profissional, nem meios de subsistência lícitos.
* (Condições pessoais do arguido e antecedentes criminais)
9. O desenvolvimento do arguido AA decorreu num contexto sociofamiliar de condição modesta, inserido numa comunidade com características de exclusão social e marcado pelo alcoolismo paterno, bem como por episódios de violência doméstica que determinaram a separação dos pais, quando tinha 5 anos. A mãe veio a estabelecer posteriormente um outro relacionamento, também conflituoso, que terminou em separação, e do qual teve mais dois filhos.
10. Ao nível escolar o arguido demonstrou um elevado absentismo e desinteresse pela aprendizagem, acompanhados por dificuldades cognitivas e fragilidades emocionais, que não foram sujeitas a despiste ou acompanhamento, em virtude de tal situação ter sido desvalorizada pela família, já que vários elementos da família alargada tinham problemas similares.
11. Assim, o arguido abandonou a escola aos 13 anos, sem completar o 4º ano de escolaridade, tendo começado a trabalhar precocemente, aos 14 anos, maioritariamente na construção civil, atividade para a qual sempre revelou motivação e empenho e foi valorizada pela família e pelas entidades empregadoras
12. Quando o arguido tinha cerca de 18 anos, a mãe foi viver para a ... com um novo companheiro paquistanês, deixando-o a cargo dos irmãos, altura em que o mesmo iniciou um percurso de consumos de estupefacientes (haxixe, heroína e cocaína) e um modo de vida problemático e orientado para os consumos, que culminou numa primeira reclusão em 2004.
13. Ao fim de alguns anos a progenitora deixou aquele país, onde se instalara como comerciante, regressando a ... para dar apoio mais consistente a este filho, então em cumprimento de pena.
14. O arguido AA passava as licenças de saída jurisdicional junto da família, onde era bem acolhido, quer pela família próxima, como por outros familiares (tios e primos), residentes na proximidade e igualmente apoiantes.
15. Em meio prisional concluiu o 1º ciclo e manteve atividade laboral regular na …, registando, contudo, alguns consumos esporádicos de haxixe, que interferiram pontualmente na sua estabilidade emocional e disciplinar, mas que o arguido desvalorizou, atribuindo-os ao longo período de reclusão.
16. Assim, nesse contexto revelou, de forma geral, uma boa adesão às regras institucionais, dedicou-se ao trabalho e beneficiou de medidas de flexibilização da pena, tendo abandonado sempre, em situação de reclusão, o consumo de estupefacientes, por opção pessoal, facto atestado pela condição de trabalhador ativo, que sempre manteve nos estabelecimentos prisionais onde esteve recluído. Sem prejuízo, no decurso do último período de reclusão foram-lhe detetados consumos de haxixe, após o benefício de uma licença de saída jurisdicional, perdendo o posto de trabalho em consequência da revogação da mesma.
17. Posteriormente voltou a ser inserido num posto de trabalho, que manteve até à sua libertação, revelando, nesse sentido, capacidade para corrigir e alterar comportamentos desajustados.
18. Contudo, em meio externo e em contextos menos normativos, o arguido AA tem evidenciado, regra geral, dificuldades para estruturar e manter um modo de vida socialmente integrado, retomando habitualmente os hábitos aditivos em fases de maior instabilidade emocional.
19. O arguido mostra-se particularmente vulnerável aos pares de convívio, recaindo ou agravando os seus consumos quando permanece junto destes.
20. Após o cumprimento da penúltima pena de prisão, da qual foi libertado no dia 31 de janeiro de 2020, o arguido reintegrou o agregado familiar constituído pela progenitora e pelos dois irmãos, dispondo igualmente de suporte familiar alargado por parte de tios e primos a viver na proximidade. Nesse circunstancialismo, um dos tios colocou-o de imediato a trabalhar numa empresa de construção civil, tendo-se verificado, da parte do arguido, uma boa adesão à rotina profissional, bem como sentido de responsabilidade e de colaboração no exercício das suas funções.
21. O arguido manteve-se assim estável durante cerca de um ano e meio, a trabalhar e aparentemente sem retomar consumos de substâncias aditivas. Todavia, recomeçou a sair aos fins de semana, com amigos, e arranjou também uma namorada, que era toxicodependente. Começou a pernoitar fora de casa e a faltar ao trabalho, acabando por ficar com paradeiro desconhecido.
22. Nessa altura passou a viver como sem abrigo e a pernoitar no bairro de ..., onde tinha muitos conhecidos. A família encontrou-o novamente já em fase de consumo ativo, mas não conseguiu intervir, nem infletir os seus hábitos aditivos (heroína e cocaína), contexto em que o mesmo voltou a ser preso no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 205/21.0PEAMD, em agosto de 2022.
23. No Estabelecimento Prisional de... optou por aderir ao programa de metadona e fez alguma terapêutica, por um curto espaço de tempo, com ansiolíticos. Atualmente refere sentir-se bem e estar em fase de redução da metadona.
24. O arguido regista alguns averbamentos disciplinares, por posse de telemóvel e conflito com outros reclusos, que o impede, por alguns meses, de ser colocado num posto de trabalho, como pretendia. Permanece, assim, sem qualquer ocupação estruturada e ocupa-se com atividades desportivas e lúdicas.
25. Tem recebido visitas de um irmão, pese embora a mãe continue a ser uma figura de referência e de suporte em meio livre, com disponibilidade para o voltar a apoiar futuramente.
26. O arguido e os irmãos são herdeiros de uma habitação sita na ..., deixada pelo progenitor, mas esta encontra-se presentemente arrendada, sendo assim a sua referência habitacional atual a morada da mãe. A progenitora trabalha como doméstica para particulares e é cuidadora da filha, com doença crónica, sendo dessa atividade, assim como do subsídio atribuído a esta filha, que obtém rendimentos.
27. Em liberdade o arguido AA pretende residir com a mãe e com os irmãos até se autonomizar e voltar a trabalhar na construção civil.
28. O arguido revela dificuldades para gerir situações de frustração ou emocionalmente perturbadoras e tendência para a adoção de atitudes mais impulsivas e imaturas nessas ocasiões, revelando ainda uma fraca capacidade crítica e de autocrítica sobre a sua conduta ou sobre o grupo de pares.
29. De uma forma geral, e em meio externo, o tem igualmente evidenciado maiores vulnerabilidades na relação com os pares e no âmbito da toxicodependência, concomitantemente a dificuldades para manter num quotidiano estruturado em função de objetivos pró sociais, facto que poderá estar também relacionado com as limitações cognitivas que parece apresentar.
30. O arguido AA foi anteriormente condenado:
30.1. No âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 1352/03.6PBAMD, da 8ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 1 de março de 2005, transitado em julgado a 16 de março de 2005, foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, pela prática, no dia 16 de outubro de 2003, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2 al. e) do Código Penal.
30.2. No Processo Comum Coletivo n.º 1627/04.7PBAMD, da 6ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 19 de maio de 2005, transitado em julgado a 6 de junho de 2005, foi condenado na pena única de 5 anos de prisão, pela prática, no dia 9 de outubro de 2003, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º do Código Penal, e de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelo art. 203º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, no dia 26 de janeiro de 2004.
30.3. No âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 173/04.3GBOER, do 3º Juízo Criminal de Oeiras, por acórdão de 25 de outubro de 2005, transitado em julgado a 9 de novembro de 2005, foi o arguido condenado pela prática, no dia 24 de setembro de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, julgada extinta.
30.4. No Processo Comum Singular n.º 1564/03.2PBAMD, do 1º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença datada de 25 de janeiro de 2006, transitada em julgado a 8 de fevereiro de 2006, foi condenado pela prática, no dia 28 de novembro de 2003, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 2.
30.5. Por sentença proferida a 18 de outubro de 2006, transitada em julgado a 3 de novembro de 2006, no Processo Comum Singular n.º 301/04.9PCAMD, do 3º Juízo Criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, no dia 21 de março de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 202º, al. e), 203º e 204º, n.º 2 al. e) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão.
30.6. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 310/04.8PBAMD, do 1º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença proferida a 17 de abril de 2007, transitada em julgado a 2 de maio de 2007, foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática, no dia 29 de fevereiro de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, n.º 1 al. a) do Código Penal.
30.7. Por sentença datada de 30 de janeiro de 2008, transitada em julgado a 19 de fevereiro de 2008, no Processo n.º 1211/03.2PBAMD, do 3º Juízo Criminal de Lisboa, foi o arguido condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática, no dia 20 de setembro de 2003, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º do Código Penal, pena que foi já julgada extinta nos termos do art. 57º do mesmo diploma legal.
30.8. No âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 1541/04.6PBAMD, da 6ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão proferido a 10 de abril de 2008, transitado em julgado a 12 de maio de 2008, foi condenado pela prática, no dia 6 de setembro de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
30.9. No Processo Comum Coletivo n.º 836/04.3PCAMD, da 6ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 17 de outubro de 2008, transitado em julgado a 6 de novembro de 2008, o arguido foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática, no dia 18 de agosto de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, n.º 2 al. e) do Código Penal.
30.10. Por sentença proferida a 15 de junho de 2010, transitada em julgado a 5 de julho de 2010, no Processo Comum Singular n.º 1808/04.3PASNT, da Secção de Recuperação de Pendências de Sintra, foi o arguido AA condenado pela prática, no dia 14 de setembro de 2004, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova.
30.11. No Processo Comum Coletivo n.º 952/04.1PCAMD, da 4ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão datado de 16 de julho de 2010, transitado em julgado a 30 de setembro de 2010, o arguido foi condenado na pena de 10 meses de prisão, pela prática, no dia 31 de agosto de 2004, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 202º, als. c) e e), 203º e 204º, n.º 2 al. e) e n.º 4, todos do Código Penal.
30.12. Por acórdão proferido nesse mesmo processo, datado e transitado em julgado a 4 de janeiro de 2013, foi realizado o cúmulo jurídico entre a pena aí aplicada e as penas em que o arguido foi condenado nos Processos n.ºs 301/04.9PCAMD, 1352/03.6PBAMD, 310/04.8PBAMD, 1808/04.3PASNT, 1541/04.6PBAMD, 1564/03.2PBAMD, 1627/04.7PBAMD e 836/04.3PCAMD, tendo-lhe sido aplicada a pena única de 11 anos de prisão e de 90 dias de multa, à razão diária de € 1, no total de € 90, está última julgada extinta pelo pagamento. 30.13. Por decisão do T.E.P. datada de 10 de julho de 2013, transitada em julgado na mesma data (Processo n.º 1081/10.4TXCBRJ), foi concedida a liberdade condicional ao arguido, pelo período de tempo que lhe faltava cumprir desde a data da respetiva libertação – 10 de julho de 2013 – e até ao dia 27 de outubro de 2015.
30.14. Posteriormente, por decisão datada de 11 de julho de 2014, transitada em julgado a 11 de setembro de 2014, foi revogada a liberdade condicional anteriormente concedida ao arguido AA, tendo o mesmo cumprido o remanescente da pena de prisão em que foi condenado no Processo Comum Coletivo n.º 952/04.1PCAMD, e sido libertado no dia 13 de janeiro de 2018.
30.15. No âmbito do Processo Sumário n.º 1161/13.4PBAMD, do Juízo de Pequena Instância Criminal da ..., por sentença proferida a 4 de outubro de 2013, transitada em julgado a 4 de novembro de 2013, foi o arguido condenado pela prática, no dia 27 de setembro de 2013, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, n.º 2 al. e) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, julgada extinta pelo cumprimento.
30.16. No Processo Comum Singular n.º 429/20.8PHAMD, do Juízo Local Criminal da ..., por sentença proferida a 4 de julho de 2022, transitada em julgado a 30 de setembro de 2022, foi o arguido condenado pela prática, no dia 11 de novembro de 2021, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 5, no total de € 600, posteriormente substituída por 80 dias de prisão subsidiária, suspensa na respetiva execução.
30.17. No âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 205/21.0PEAMD, do Juízo Central Criminal de Sintra, por acórdão datado de 31 de março de 2023, transitado em julgado a 2 de maio de 2023, o arguido foi ainda condenado pela prática, no dia 23 de outubro de 2021, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2 al. e), com referência ao art. 202º, als. e) e d), respetivamente, na pena única de 5 anos de prisão.
Considerou o acórdão recorrido inexistirem factos não provados a elencar.
E o acórdão recorrido motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:
O Tribunal fundou a sua convicção, no que diz respeito à matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental e pericial constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede, com apelo ainda às regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127º do Código de Processo Penal.
Na ausência de declarações do arguido, que usou do respetivo direito ao silêncio, a única prova pessoal produzida consistiu no depoimento da testemunha EE, a proprietária da habitação sita na ..., que de forma absolutamente séria, isenta e credível referiu que ao regressar a casa, no sábado em questão, se deparou com as luzes acesas, a sala e os quartos remexidos e a porta da cozinha – que antes estava fechada e tinha o estore corrido – aberta, constatando, então, que este estava levantado e que a porta havia sido forçada (cf. reportagem fotográfica de fls. 17 e 19).
A testemunha – e ofendida – corroborou, outrossim, os objetos que lhe foram subtraídos do interior daquela residência, com recurso a uma lista que trazia (dado o lapso de tempo decorrido, ou seja, mais de dez anos), e que foi aquela que apresentou oportunamente à seguradora, com base nas faturas referentes à aquisição desses bens, mas também mediante o confronto com aqueloutra que se encontra junta a fls. 8 dos autos (sendo que nesta acresce a quantia monetária que igualmente lhe foi subtraída, bem como outros objetos, como um computador da marca ..., um relógio da marca ... e uma Playstation 2, que não foram discriminados na peça acusatória).
Ainda relevantemente, descreveu o terraço da sua habitação, referindo que o mesmo tem um muro ou gradeamento com cerca de 1,20 metros de altura e um vidro com a altura de 1,80 metros, colocado por fora daquele, existindo uma pequena saliência desse mesmo lado, através da qual é possível colocar o pé e saltar por cima (cf. fotografia de fls. 18), e bem assim que apesar de o muro do terraço do vizinho ser mais baixo e não ter vedação, é sua convicção que o autor dos factos entrou do modo antes descrito.
Acrescentou, depois, que quando estava a entrar na cozinha verificou um chapéu/boné ali caído no chão (circunstância em que igualmente constatou que o cap que havia comprado à sua filha uns dias antes, e que estava no corredor da habitação, também desaparecera), que preservou até à chegada da “polícia científica” (sic), mais referindo, por último, não conhecer o arguido, nem tão pouco o mesmo ter frequentado alguma vez a sua casa, para além de que ninguém estranho ali esteve anteriormente à data dos factos.
Ora, do depoimento da testemunha EE, em conjugação com a reportagem fotográfica de fls. 17 a 18, com o teor do auto de notícia de fls. 3 e com o teor do documento de fls. 8, resultou, de modo inequívoco, o juízo probatório realizado do Tribunal Coletivo quanto à factualidade – objetiva – ínsita na acusação.
Por outro lado, afigurou-se-nos igualmente isenta de quaisquer dúvidas a circunstância de a entrada do autor dos factos ter ocorrido através do terraço, trepando o respetivo muro e vedação em vidro, sendo disso demonstrativo o relatório de inspeção lofoscópica de fls. 12 e 13 e o relatório de exame pericial de lofoscopia junto a fls. 37 a 39, de cuja conjugação resulta terem sido recolhidos vestígios digitais com valor identificativo produzidos “de fora para dentro, de cima para baixo, na face interna da zona superior do vidro da vedação do terraço” e “produzidos de cima para baixo na face exterior da zona superior do vidro da vedação do terraço”, ali identificados sob as letras “A”, “D” e “E”, respetivamente. Contrariamente, já não podemos acompanhar a conclusão vertida na acusação, no sentido da correspondência desses mesmos vestígios digitais com as impressões do ora arguido AA, por omissão da pertinente prova pericial. A este propósito concorda-se com os argumentos expendidos pela defesa em sede de alegações, na medida em que dos autos consta apenas, em fase posterior, a informação policial de fls. 49, segundo a qual “ao proceder à introdução, no ficheiro AFIS, da resenha lofoscópica com o n.º biográfico 04846931, em nome de AA, identificou o vestígio existente em memória AFIS com o n.º ..., referente ao exame n.º 201300455- COMETLIS”, aí se solicitando informação sobre a necessidade de se proceder a perícia lofoscópica, acrescentando a informação de fls. 50 o envio da “respetiva demonstração gráfica, cópia informática da resenha e cópia da ficha biográfica”. Ora, para além de apenas constar dos autos a referida ficha biográfica, cf. fls. 51, não tendo sido remetidas a demonstração gráfica e a cópia informática da resenha acima referenciadas, a verdade é que também não foi realizado qualquer exame pericial lofoscópico comparativo dos vestígios digitais com valor identificativo encontrados no vidro da vedação do terraço e a resenha lofoscópica do arguido, o que seria determinante para se concluir pela coincidência absoluta entre uns e outra.
Sem prejuízo, o juízo probatório positivo quanto à autoria dos factos pelo arguido assentou, de modo inequívoco, na análise crítica e conjugada do teor dos relatórios de exame pericial constantes de fls. 30 e 31, 185 a 188 e 190 dos autos, complementados com os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelo perito responsável pela realização desta última perícia, DD, e ainda com as regras da vida e da experiência comum.
Com efeito, e conforme se teve ocasião de referir anteriormente, foi encontrado e apreendido na cozinha da habitação, alvo de introdução e subtração de bens, um boné, que foi apreendido (cf. aditamento de fls. 10 e reportagem fotográfica de fls. 17 e 18), e no qual foram detetados cabelos de origem humana, não tendo sido detetados, contrariamente, vestígios de sangue (cf. relatório de exame pericial de fls. 30 e 31). Já no decurso da audiência de julgamento, determinou o Tribunal Coletivo a recolha de amostra de ADN ao arguido, a fim de proceder-se à comparação da amostra referência assim obtida com a amostra problema, vindo o senhor perito a concluir que “nos itens 1R1 e 1R2 (Exame 201322200-BBG) obteve-se um perfil idêntico ao perfil de AA”, e que “no item 1R3 (Exame 201322200-BBG) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não é possível proceder a qualquer tipo de estudo comparativo” (cf. relatório pericial de fls. 190). E atendendo a que o exame pericial n.º 201322200-BBG não discriminava os itens “1R1”, “1R2” e “1R3”, apenas se referindo, genericamente, à deteção de cabelos de origem humana, sem alusão à deteção de quaisquer outros vestígios biológicos, foram determinantes, a este propósito, os esclarecimentos prestados pelo senhor perito, que não tendo sido responsável pelo exame realizado em 2013, referiu que para além daqueles cabelos (catalogados sob a referência “1R3”), foram igualmente recolhidos no boné os vestígios biológicos – de pele - “1R1” - através de zaragatoa efetuada no seu interior -, e “1R2” - através do corte de um pedaço de tecido do próprio boné -, concluindo-se que em ambos foi obtido um perfil de ADN idêntico ao perfil do arguido AA.
Pugnou a defesa, uma vez mais em sede de alegações orais, e sustentada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de abril de 2020 (no Processo n.º 243/18.0JAFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt), que a convicção do julgador não pode assentar única e exclusivamente na prova obtida mediante a análise do perfil de ADN, com fundamento no art. 38º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, sendo que in casu, e nesse seu mesmo entendimento, inexistem qualquer outros meios de prova suscetíveis de a corroborar.
Contudo, e com o devido respeito, a conclusão retirada pela defesa afigura-se-nos um pouco precipitada, uma vez que, e citando o ali transcrito da fundamentação da decisão de primeira instância: “A invocação do art. 38º da Lei 5/2008, de 12.02, o qual, sob a epígrafe «Decisões individuais automatizadas», dispõe que “em caso algum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN” não perturba, ao contrário do pretendido, a utilização probatória do ADN em causa. Por um lado, a norma apenas se reporta à utilização de bases de dados de perfis de ADN, única matéria que a Lei em causa regula (v. os art. 1º, n.º 1, 14º e 19º e ss.), o que não está em causa. Por outro lado, e ainda que assim não fosse, a norma apenas proscreve o tratamento meramente formal, mecânico, automático, da informação (perfil de ADN da base de dados) para nela alicerçar resultados com efeitos jurídicos, sem qualquer avaliação crítica nem problematização.
Aliás, diz-se que a norma foi criada justamente para ressalvar ou valorizar a livre apreciação da prova pelos magistrados. Nas palavras de Inês Ferreira Leite, a “lei veda que sejam impostos certos efeitos jurídicos aos cidadãos por força de meras operações automatizadas. Ou seja, não é possível que do mero cruzamento ou tratamento de dados resulte um determinado efeito jurídico, sendo sempre necessária a mediação judicial que reconheça o resultado obtido e lhe conceda força jurídica”. Ora, no caso ocorre esta mediação valorativa concreta e problematizante, ficando excluída qualquer decisão automática (que a norma proíbe) – e sempre assim será em processos judiciais, que a norma não tem, notoriamente, em vista. Por fim, a valorização dos dados de ADN também não é realizada apenas em si mas por referência a outros contextos probatórios, como referido, o que também excluiria a verificação da hipótese da norma”.
Ora, no caso presente, e para além do que ressaltou – de modo inequívoco – da prova pericial de natureza biológica realizada, no sentido de que no boné deixado no interior da residência – aquando da prática dos factos - foram recolhidos vestígios de pele nos quais se obteve um perfil de ADN coincidente com o do arguido AA, há que atentar, em segundo lugar, no facto de que, tratando-se aquela de um local privado, não acessível livremente por terceiros, inexistir qualquer outra justificação legítima para o facto de o boné – utilizado pelo arguido (pois possuía vestígios da sua pele) - ali ter sido deixado e encontrado, a que acresce ainda, de acordo com as regras da vida e da experiência comum, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, a circunstância de tal ter sucedido em virtude de o mesmo ter subtraído, concomitantemente a vários outros bens, o boné/cap da filha da proprietária da habitação.
* Finalmente, no que diz respeito às condições económicas, pessoais e familiares do arguido, atendeu-se ao relatório social elaborado pela D.G.R.S.P., e constante dos autos (fls. 168 a 171); relativamente aos respetivos antecedentes criminais, tomou-se em consideração o certificado de registo criminal igualmente junto a fls. 155 e seguintes.
* * *
Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
O recorrente alega a existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e violação do princípio in dubio pro reo.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, ocorre quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o Tribunal não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão.
Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”. Ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito.
Como se refere no Acórdão do STJ de 21.06.2007 (Processo 07P2268), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é “a insuficiência que decorre da circunstância de o Tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da decisão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339º, nº 4 do CPP”.
O que o recorrente afirma é que não foi feita prova bastante de ter sido ele o autor dos factos, na medida em que a sua condenação teve por base, apenas, uma perícia forense realizada em 19.12.2023, e que incidiu na comparação do perfil de ADN do recorrente com os vestígios que haviam sido detectados e recolhidos num boné, e relativamente aos quais tinha sido realizada uma primeira perícia, pelo mesmo L.P.C.P.J., em 13.11.2013, em cujo relatório se referiu que “no boné detectaram-se cabelos de origem humana e com raiz e não se detectaram vestígios de sangue”, nada se referindo quanto a outros vestígios biológicos que vieram a ser analisados na perícia de 2023.
Porém, esta alegada insuficiência de prova não é confundível com o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como acima definimos.
E analisada a decisão recorrida, não se vê que esta não tenha dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão e constituam o objecto da decisão da causa.
Pelo que não existe o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Contudo, as questões suscitadas pelo recorrente podem ser enquadráveis no vício de erro notório na apreciação da prova, de conhecimento oficioso.
O erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova – quer a directa quer a indiciária – estando o fundamento da sua credibilidade dependente da convicção do julgador (que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável) que a valorará, por si e na conjugação dos vários indícios, sempre de acordo com as regras da experiência.
Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova que, no entanto, e como ensina o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “(a livre valoração da prova) não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Diz Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p. 199 e ss.), que esta liberdade está de acordo com um dever: o dever de perseguir a chamada “verdade material”. Ou seja, a liberdade do convencimento do Julgador, se não deixa de ser expressão de uma convicção pessoal, também não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que se tem que basear na verdade histórica das situações e necessita de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão.
No caso em análise não há prova directa do facto. Ninguém viu quem cometeu o furto. Todavia, isso não significa que o Tribunal não possa “perceber” quem foi o autor por apelo à já falada prova indirecta, ou indiciária.
Resulta da motivação supra transcrita que “(…) o juízo probatório positivo quanto à autoria dos factos pelo arguido assentou, de modo inequívoco, na análise crítica e conjugada do teor dos relatórios de exame pericial constantes de fls. 30 e 31, 185 a 188 e 190 dos autos, complementados com os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelo perito responsável pela realização desta última perícia, DD, e ainda com as regras da vida e da experiência comum. (…) para além do que ressaltou – de modo inequívoco – da prova pericial de natureza biológica realizada, no sentido de que no boné deixado no interior da residência – aquando da prática dos factos - foram recolhidos vestígios de pele nos quais se obteve um perfil de ADN coincidente com o do arguido AA, há que atentar, em segundo lugar, no facto de que, tratando-se aquela de um local privado, não acessível livremente por terceiros, inexistir qualquer outra justificação legítima para o facto de o boné – utilizado pelo arguido (pois possuía vestígios da sua pele) - ali ter sido deixado e encontrado, a que acresce ainda, de acordo com as regras da vida e da experiência comum, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, a circunstância de tal ter sucedido em virtude de o mesmo ter subtraído, concomitantemente a vários outros bens, o boné/cap da filha da proprietária da habitação.”
Refere o Tribunal recorrido a prova indiciária em que foi baseada a convicção: o relatório pericial realizado no boné deixado no interior da residência alvo de furto, de onde resulta pertencer tal boné ao arguido por ter o seu ADN; e a circunstância de a residência em causa ser privada, não acessível livremente por terceiros e inexistir qualquer outra justificação legítima para o facto de o boné ali ter sido deixado que não pelo autor do furto.
Não se conforma o arguido com tal análise, alegando que quando o boné foi apreendido foi realizada sobre ele perícia e do relatório (de 13.11.2013) resultava que “No boné detetaram-se cabelos de origem humana e com raiz e não se detetaram vestígios de sangue”, nada se referindo quanto a outros vestígios biológicos. Só após perícia forense realizada a 19.12.2023, ordenada oficiosamente no decurso da audiência de julgamento, visando a recolha de ADN do recorrente e o respetivo exame de comparação com o ADN que se encontraria nos vestígios encontrados no boné em Novembro de 2013 e guardados no Laboratório da Polícia Científica da P.J., é que surge o relatório que concluiu: No(s) item(s) 1R1 e 1R2 (…) obteve-se um perfil idêntico ao perfil de AA; no(s) item(s) 1R3 (…) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não é possível proceder a qualquer estudo comparativo.
Refere o recorrente que havendo outros vestígios no boné e tendo esses vestígios também sido recolhidos e acondicionados, imporiam as regras das boas práticas forenses que tais vestígios, estivessem também reportados no relatório de 2013 e não estão, o que segundo o recorrente é uma falha grave. E o Sr. Perito que procedeu ao exame em 2023 também não conseguiu explicar o facto.
Diz o recorrente que não tendo havido um cumprimento escrupuloso das leges artis no procedimento pericial técnico-científico, o Tribunal Coletivo devia ter ouvido os Peritos que intervieram em 2013 para perceber o porquê da omissão, saber se de facto se terão esquecido de reportar que, para além dos cabelos (1R3), também recolheram vestígios de pele (1R1 e 1R2) e que acondicionaram e armazenaram devidamente a prova biológica. E questiona mesmo que os vestígios de pele analisados em 2023 tenham sido recolhidos no âmbito deste processo (ou antes noutro dos vários processos que correram contra ele na área de Lisboa). Conclui que os únicos vestígios mencionados, quer no relatório de 2013 quer no relatório de 2023 (os cabelos com raiz), deveriam ser os únicos a serem considerados válidos, por ser a única prova que não está inquinada e, quanto a esses, a perícia não conseguiu afirmar que pertenciam ao recorrente.
Em questão está a perícia (realizada a 19.12.2023) ordenada oficiosamente no decurso da audiência de julgamento, visando a recolha de ADN do recorrente e o respetivo exame de comparação com o ADN que se encontraria nos vestígios encontrados no boné em Novembro de 2013 e guardados no Laboratório da Polícia Científica da P.J..
Realizada a perícia, concluiu o relatório que no(s) item(s) 1R1 e 1R2 (…) obteve-se um perfil idêntico ao perfil de AA; no(s) item(s) 1R3 (…) não se obtiveram resultados ou estes não foram concludentes, pelo que não foi possível proceder a qualquer estudo comparativo (os vestígios biológicos 1R1 são pele recolhida através de zaragatoa efetuada no interior do boné; os 1R2 são pele recolhida através do corte de um pedaço de tecido do próprio boné; os 1R3 são cabelos encontrados no boné).
Diga-se, desde já, que não se vê qualquer motivo para desconfiar que houve qualquer adulteração de provas e que os vestígios biológicos não tenham sido os recolhidos no âmbito deste processo, pelo que não há qualquer razão para ter apenas em conta a perícia efectuada aos cabelos.
A circunstância de o relatório pericial de 2013 não fazer referência à recolha de outros vestígios biológicos para além dos cabelos é uma falha, mas não significa que não tenha existido essa outra recolha, a qual estava disponível para a perícia realizada em 2023, e que permitiu a análise explicada em audiência de julgamento pelo Sr. Perito. Não há qualquer motivo para pensar que os Srs. Peritos que realizaram a perícia em 2023 “inventaram” vestígios biológicos e também não se vê qualquer motivo para ouvir os Peritos que intervieram em 2013, os quais, após milhares de perícias realizadas em 10 anos, dificilmente conseguiriam esclarecer algo.
Refere Alexandra Rosa Carvalho Costa (“A Prova por Meio de ADN – procedimentos de recolha de material biológico em cenário de crime: da validade da obtenção da prova e sua valoração”, p. 22) que “O Ácido Desoxirribonucleico (ADN) é um composto orgânico cujas moléculas contém as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e que têm como uma das finalidades transmitir as características hereditárias destes. No interior de cada célula encontramos um núcleo, onde existem vinte e três conjuntos de cromossomas emparelhados que formam o genoma humano. Os segmentos de ADN que incluem a informação genética são então denominados genes. Metade da informação que o compõe é transmitida pela progenitora e a outra metade pelo progenitor, sendo assim a base da hereditariedade.
O emparelhamento das bases que compõem o ADN (adenina-guanina [A-G] e timina citosina [T-C]) e a totalidade das combinações possíveis destas quatro letras, encerra a resposta para a biodiversidade entre espécies, mas também define características únicas entre indivíduos da mesma espécie.
Denominada frequentemente de “DNA fingerprinting”, permite identificar um indivíduo com base numa sequência específica de nucleótidos, o que assume especial relevância no contexto da investigação criminal”.
O ADN pode ser retirado do sangue, do sémen, da saliva ou de raízes de cabelos, mas pode também surgir por contacto, já que “Na pele humana existem células que, por serem nucleadas, poderão ser uma fonte de ADN nuclear. Estas poderão aderir a qualquer superfície, através das secreções produzidas pelas glândulas sudoríparas e sebáceas, mas também através do mecanismo de descamação da própria pele, que segundo a ciência liberta 400000 células por dia” (Fernando Viana da Cruz Cardoso Colaço, “O ADN e a sua relevância na investigação criminal”, pp. 9 e 10).
Posto isto, dir-se-á que não há discrepância nas provas periciais no processo, há apenas um relatório que não menciona todos os vestígios biológicos recolhidos e um outro que os menciona porque compara o ADN que se encontra em tais vestígios com o ADN recolhido ao recorrente.
Por outro lado, a existência de vestígios de pele recolhidos em 2013 – e analisados em 2023 – não pode ser considerada uma prova surpresa. A decisão de ordenar oficiosamente a recolha de ADN ao arguido para a comparar com os vestígios biológicos recolhidos em 2013 foi notificada ao arguido; a perícia foi também notificada; a requerimento da defesa, o Tribunal a quo notificou os especialistas da polícia científica que assinam o relatório de 2023 para prestarem esclarecimentos em audiência de julgamento; em 7.02.2024, o Perito DD prestou esclarecimentos em audiência de julgamento. A decisão do Tribunal, cumprido que se mostra o contraditório, não é uma decisão surpresa.
Por último, sublinha-se que a perícia realizada em 2023 não é o único elemento de prova a ter sido considerado.
Tal como refere o acórdão recorrido, “A invocação do art. 38º da Lei 5/2008, de 12.02, o qual, sob a epígrafe «Decisões individuais automatizadas», dispõe que “em caso algum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN” não perturba, ao contrário do pretendido, a utilização probatória do ADN em causa”, precisamente porque a decisão não se baseou apenas no ADN encontrado no boné, mas também no facto de o boné ter sido deixado no interior da residência alvo de furto, conjugado com o facto de a residência em causa ser privada, não acessível livremente por terceiros e inexistir qualquer outra justificação legítima para o facto de o boné ali ter sido deixado que não pelo autor do furto.
Sabido que não basta a coincidência técnica entre uma amostra problema e uma amostra referência, para se dar como certo que o agente cuja identificação tenha sido obtida seja o autor do crime (pois que podem ser várias as circunstâncias e razões para o ADN de um indivíduo estar presente no local da prática do facto) e que o perfil de ADN não é mais do que uma ferramenta probatória que tem de ser complementada, a conjugação dos indícios referidos, analisados de acordo com as regras da experiência, permitem concluir que o arguido/recorrente foi o autor do delito em apreciação.
Pelo que forçoso é concluir que inexiste o vício previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
E não se afigura ter havido qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Este princípio resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Assim, o princípio em questão só se aplica perante uma situação de non liquet, uma dúvida insanável. E no caso, lida a motivação da decisão de facto, verificamos que o Tribunal recorrido não ficou com qualquer dúvida sobre a prova (tal como nós não ficamos), pelo que não pode pôr-se a questão de violação do princípio in dubio pro reo. Como se refere no sumário do Ac. do STJ de 27.05.2010, no Proc. 18/07.2GAAMT.P1.S1, “a eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida…quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida ‘patentemente insuperável’ e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido”. Posto que uma tal referida evidência não se verifica no caso, é impossível concluir pela violação daquele princípio.
Termos em que não há motivo para alterar o decidido na 1ª instância.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Lisboa, 21.05.2024
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro)
Manuel Advínculo Sequeira
Manuel José Ramos da Fonseca
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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/1999. Processo n.° 1126/98. Rel. Disponível em
2. RIBEIRO, Francisco Mota-Processo e Decisao Penal: Textos. Jurisdição penal e processual penal. Centro de Estudos Judiciários. Lisboa. 2019. Pág. 40 e ss.