Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2288/08.0TCLRS.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MEDIDA DE CONFIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
APADRINHAMENTO
MEDIDA DE ACOLHIMENTO EM INSTITUIÇÃO
CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I - Do regime legal e convencional em vigor emana a conceção de que o desenvolvimento feliz e harmonioso de uma criança se processa e deve realizar-se no seio da família biológica, tida como a mais capaz de proporcionar à criança o necessário ambiente de amor, aceitação e bem estar; porém, se esta não poder ou não quiser desempenhar esse papel, haverá que, sendo possível, optar pela sua integração numa outra família, através da adoção.
II - Constitui pressuposto da medida de confiança de menor para adoção que “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação” - tal situação será constatada “pela verificação objectiva” de qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 1978.º do Código Civil (corpo do n.º 1 do art.º 1978.º).
III - Ou seja, a ocorrência de qualquer dessas situações constituirá via necessária para a demonstração da inexistência ou do sério comprometimento do vínculo afetivo entre o progenitor e a criança, para o efeito da confiança da criança para adoção; adicionalmente, porém, haverá que apreciar se essas situações traduzem, em concreto, inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.
IV - Verificando-se, da parte do pai da menor, afastamento, e, do lado da mãe, uma persistente incapacidade de assegurar um ambiente habitacional minimamente organizado e saudável, agravado por um aparente desinteresse por melhorar, tudo isso acompanhado, antes da institucionalização da menor (institucionalização que se verificou aos três anos e meio de idade), de fraco empenho na frequência por esta de equipamento de infância, horários inadequados para a criança dormir e comer e alimentação desequilibrada, longos períodos de total inatividade, permanecendo a mãe deitada e às escuras com a menor, além de a criança dormir quase sempre na cama dos pais, apesar de possuir uma cama própria, deve ser confirmada a decisão recorrida na parte em que afastou o regresso da menor aos cuidados dos progenitores.
V – Porém, não é possivel confiar a criança para adoção, por não se mostrarem comprometidos os laços afetivos próprios da filiação, quando ficou provado que “entre a menor e a progenitora existe grande afectividade”, que após a institucionalização da menor a mãe manteve visitas regulares e frequentes à criança, as quais foram diárias, de 2.ª a 6.ª feira, com a duração de cerca de uma hora, que no decurso da visita a progenitora dava banho à filha, que a criança passou com os pais o dia do seu aniversário, o Natal e o Ano Novo, que a criança foi batizada, por decisão dos pais.
VI – O apadrinhamento civil é um vínculo jurídico que, em regra, concilia a manutenção de vínculos biológicos com os vínculos afetivos típicos do apadrinhamento, constituindo no nosso ordenamento jurídico um meio apto a proporcionar uma solução de proteção a crianças em perigo, de caráter definitivo, sem ser a confiança para adoção.
VII – Mostrando-se a criança, atualmente com seis anos de idade, bem integrada na instituição onde foi acolhida, não sendo possivel confiá-la aos pais e não estando reunidos, pelo menos por ora, os pressupostos de aplicação de uma outra medida, nomeadamente o apadrinhamento civil, é aconselhável que a criança se mantenha na aludida instituição, em prazo que se fixa em um ano, sem prejuízo da revisão semestral imposta pelo art.º 62.º n.º 1 da LPCJP, ou de revisão anterior fundada em factos supervenientes que a justifiquem, nos termos previstos no n.º 2 do art.º 62.º da LPCJP.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 02.11.2007 a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de L... propôs ação de promoção e proteção a favor da menor “A”, nascida a 26.9.2006, filha de “B” e de “C”, todos residentes na ..., L....
A requerente alegou que a menor tem três irmãos, que se encontram acolhidos numa instituição com vista a futura adoção, no âmbito de medida de proteção aplicada. Na sequência de acompanhamento pela Associação “D” constatou-se que na residência não eram respeitadas as regras mínimas de higiene, que a menor dormia na cama dos pais e não tinha horários regulares de alimentação. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de L... instaurou processo de promoção e proteção a favor da menor e subsequentemente deliberou aplicar a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, cujo acordo foi formalizado e subscrito pelos progenitores da menor em 21.5.2007. Porém, os pais não cumpriram o acordo, mantendo-se as péssimas condições higiénico-sanitárias e constatando-se que a criança era deixada sozinha, ou num parque no exterior da casa ou em cima da cama do casal. Em virtude do incumprimento do acordo, a CPCJ de L... remeteu o processo ao Ministério Público. Já é do conhecimento do tribunal, fruto do processo que correu termos relativamente aos irmãos da menor, que não existem familiares idóneos e disponíveis para cuidarem da criança. Assim, não resta outra solução para proteger a menor do que o seu acolhimento institucional.
O Ministério Público terminou pedindo que fosse declarada aberta a instrução e, desde já, se aplicasse a favor da menor, a título provisório, a medida de acolhimento em instituição, emitindo-se os competentes mandados.
Procedeu-se à inquirição dos progenitores, de técnicos e de testemunhas indicadas pelos progenitores. A equipa de acompanhamento a crianças e jovens (ECJ) de L... elaborou dois relatórios sociais e procedeu-se à avaliação psicológica da mãe da menor.
Entretanto, em 27.02.2008, foi determinada a desapensação do processo daquele que se reportava aos três supra referidos irmãos da “A”, em virtude de nele ter sido identificado candidato à adoção de dois dos menores.
Em 23.10.2008, na sequência de conferência realizada no tribunal, foi obtido acordo para a aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, o qual foi homologado por sentença nessa mesma data.
Em 25.3.2009 determinou-se a continuação/prorrogação da aludida medida por mais seis meses.
Em 15.4.2010 foi proferido despacho que determinou a cessação da aludida medida, por ter sido atingido o tempo máximo de duração admitida na lei (art.º 60.º n.º 2 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo -LPCJP).
Na mesma data, por se considerar que se mantinha uma situação de perigo para a menor e a fim de se proceder a um diagnóstico preciso da situação da criança e se definir o seu encaminhamento em termos de futuro, determinou-se a aplicação, a título provisório, da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, por seis meses.
Em 24.6.2010 foi decidido alterar a medida aplicada, aplicando-se a medida provisória de acolhimento em instituição.
Em cumprimento dessa determinação em 02.7.2010 a menor “A” foi internada no Centro de Acolhimento Temporário (CAT) “Casa ...” sito em L....
A aludida medida provisória foi excecionalmente prorrogada, por períodos de três meses, por despachos de 13.01.2011, 10.3.2011, 09.6.2011, 14.7.2011, 20.10.2011.
Entretanto, em 08.4.2011, o CAT Casa ... e a ECJ de L... enviaram relatórios de acompanhamento nos quais indicaram, para concretização do projeto de vida da “A”, a aplicação da medida prevista no art.º 35.º n.º 1 alínea g) da LPCJP (confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção).
Na sequência do que:
Ouviu-se em declarações, em 19.5.2011, a Diretora e a Diretora Adjunta da Casa ..., que também aí são educadoras sociais, duas psicólogas da Casa ... e uma técnica da ECJ de L...; em 07.07.2011 foram ouvidos em declarações os progenitores da menor, o padrinho e a madrinha da menor, uma ex-ama da menor e uma ex-educadora da menor; realizou-se avaliação às condições habitacionais dos progenitores da menor e às condições que os padrinhos da menor ofereciam para acolherem a menor, tendo o CAT Casa ... e a ECJ de L... reiterado o parecer de que deveria aplicar-se a medida prevista no art.º 35.º n.º 1 alínea g) da LPCJP.
Em 20.10.2011 declarou-se encerrada a instrução.
O Ministério Público produziu alegações, requerendo que à menor fosse aplicada a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.
Os pais do menor apresentaram alegações, pugnando pela restituição da menor aos cuidados e guarda dos pais ou, em alternativa, que tal guarda e confiança fosse desempenhada pelos padrinhos da menor.
Foi nomeada patrona à menor.
Realizou-se debate judicial, com gravação dos depoimentos prestados, e a final foi proferida, em 09.3.2012, decisão subscrita pela Sr.ª juíza titular do processo e por dois juízes sociais, na qual se decidiu:
a) Aplicar à menor “A” a medida de promoção e protecção de confiança a instituição, nomeadamente, ao "Centro de Acolhimento Temporário Casa ...", sita em L..., com vista a futura adopção;
b) Designar como curador(a) provisóri(a) da menor “A” o(a) Sr(a) Director(a) da instituição "Casa ...";
c) Inibir os progenitores da menor do exercício das responsabilidades parentais;
d) Determinar se comunique, oportunamente, à Conservatória do Registo Civil a inibição aludida em c);
e) Proibir as visitas por parte da família natural da menor a esta;
f) Solicitar, após trânsito desta decisão, ao CEACF que elabore, dentro de seis meses, a informação a que alude o art. 62°-A, n° 3 da L.P.C.J.P, devendo aquela entidade acompanhar a medida aludida em a).
Os progenitores da menor apelaram da referida decisão, tendo o recurso sido admitido, com subida imediata para esta Relação, no próprio processo e efeito suspensivo.
Nas suas alegações os apelantes formularam as seguintes conclusões:
1.ª - Por sentença de 9 de Março de 2012, foi aplicada à menor “A”, entre outras, a medida de promoção e protecção de confiança ao Centro de Acolhimento Temporário Casa ..., sita em L..., com vista a futura adopção.
2.ª - Quanto a nós e salvo o devido respeito, decidiu mal a meritíssima juíza “a quo”.
3.ª - O caso dos autos foi subsumido na previsão da al. d) do n.º 1 do art.º 1978º do C. Civil, tendo, o tribunal considerado que os pais, com a sua conduta, puseram a menor em situação de perigo.
4.ª - Por seu lado, o n.º 3 da mesma norma processual estipula que o menor se encontra em perigo quando se verifica alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à protecção e à promoção dos direitos dos menores.
5.ª - Assim, as situações que legitimam a intervenção, são enumeradas nas alíneas do n.º 2 do art.º 3.º da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro.
6.ª - O Tribunal entendeu estar legitimada a institucionalização da menor por esta vivenciar, na altura, uma situação de perigo para a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
7.ª - O Tribunal entende que actualmente continua a existir fundamento para a aplicação de uma medida de promoção e protecção, tendo decidido pela institucionalização com vista à adopção da menor.
8.ª - Na verdade, desde o seu nascimento, a “A” e a sua família, foram acompanhadas por técnicas da Associação “D”, da Casa ... e da Segurança Social.
9.ª - Durante esse acompanhamento foi detectado que a mãe da menor tinha períodos depressivos que a levavam a manifestar desinteresse pelas lides domésticas.
10.ª - Porém, nunca foi detectado qualquer desinteresse da mãe pela filha, quer a nível afectivo, quer a nível alimentar ou de higiene do corpo ou roupas da menor.
11.ª - Resulta da experiência comum que uma mãe desleixada com a filha e que não lhe tem amor, não a cuida nem mima como esta mãe faz.
12.ª – Resulta da experiência comum que alguém simplesmente desleixado e preguiçoso não se cuida nem importa com a sua imagem e da filha, como a “C” faz e resulta dos relatórios sociais.
13.ª – Assim, cremos que a apreciação efectuada pela Dr.ª “E”, psicóloga da Casa ..., é fidedigna, tendo revelado em todo o seu depoimento, isenção e imparcialidade, explicando ao tribunal que a anedonia apresentada pela “C”, não poderia ser considerada desleixo, nem preguiça e que consistia numa sintomatologia associada a períodos depressivos.
14.ª – Somos de opinião de que tal testemunho faculta a compreensão pelas oscilações de comportamento relativamente à casa, por parte da “C” – constantes dos vários relatórios sociais juntos aos autos e reconhecidos pelo Tribunal na decisão ora recorrida.
15.ª – Perante tal quadro, o Tribunal decidiu que “(…) todo o contexto relatado para além de pôr em perigo a segurança, a formação moral e educação da menor, face à sua gravidade e persistência comprometem seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação (…) – vide último § de pág. 833.
16.ª – Porém, são contraditórias as informações prestadas pelas Sras. Técnicas, nos quais se alicerçou a decisão recorrida.
17.ª – Relatam um comportamento altivo e arrogante por parte da progenitora da “A”, avesso e resistente às mudanças que lhe são aconselhadas efectuar, referindo que chegou a recusar ajuda nas lides domésticas (ajuda, essa, que a mãe da menor referiu expressamente e de viva voz, em sede de debate judicial, que nunca lhe foi facultada).
18.ª – Contudo, a pág. 573 dos autos, relativamente ao depoimento da Sr.ª psicóloga da Casa ..., pode ler-se “(…) foi-lhe proposto que fosse ela a dar banho à “A” (…). Inicialmente não a fazia por iniciativa própria, era preciso dizer-lhe para lhe dar banho, agora já dá por sua iniciativa;”
19.ª – No mesmo contexto e relativamente ao depoimento da directora adjunta da Casa ..., pode ler-se, também a pág. 573: “Ela acata tudo o lhe dizem (…)”.
20.ª – Ainda a pág. 573, a propósito do depoimento da Sra. psicóloga “F”, podemos ler: “Notam que a progenitora tem uma evolução sempre que se dirigem a ela e lhe dizem como fazer e o que fazer, mas se deixam de a monitorizar, há um retrocesso.”
21.ª – Agora, a pág. 574, no que concerne ao depoimento da Dr.ª “G”: “Relativamente à monitorização da progenitora, (…) o mesmo acontece com a casa, quando fizeram uma visita domiciliária na véspera de Natal, quando foi autorizado que a “A” passasse o Natal com os pais, a casa não parecia a mesma, isto foi sobre sugestão, (…).
22.ª – E, no que toca ao depoimento da Dr.ª “H”, a pág. 574, antepenúltimo §, pode ler-se: “Concorda que, realmente há melhorias significativas sempre que há um alerta à progenitora, (…).
23.ª – Existe, ainda, contradição entre a afirmação de que a “A” não tem horários e que há ainda a considerar questões de saúde – vide penúltimo § de pág. 574 – e os diferentes relatórios sociais, ou os vários depoimentos das técnicas e de mais testemunhas em sede de debate judicial, as quais foram unânimes em referir que a mãe da menor apenas faltou à consulta dos 3 anos, à qual a menor posteriormente compareceu, aquando do regresso da família a L..., depois de quase 1 ano de estada em P..., bem como nenhuma referência fizeram quanto aos horários da “A” enquanto esteve no seio familiar.
24.ª – Refira-se que os depoimentos acima referidos foram prestados perante juiz e já no decurso do ano de 2011.
25.ª - Ao longo de quase 6 anos, tem sempre havido acompanhamento por parte das mesmas instituições e pessoas a esta família, em especial a esta mãe, que até Março de 2011, fazia tudo quanto lhe indicavam, quer explicitamente, quer por mera orientação (palavras das Sras Técnicas) e que nos relatórios e em sede de debate judicial, passa a não fazer porque não quer ou não lhe apetece, comprometendo, seriamente, no entender do tribunal, os vínculos afectivos próprios da filiação.
26.ª - Mais uma vez, salvo o devido respeito, parece-nos que o acompanhamento junto desta família não foi eficaz nem competente.
27.ª- Passando por cima da contradição latente e evidente entre os vários relatórios quanto ao período de ausência desta família em P... (o qual oscila entre os 2 e 11 meses) certo é que a referida família esteve, de facto, sem qualquer acompanhamento por cerca de 1 ano.
28.ª - Quando o acompanhamento foi retomado – consta dos relatórios – a “C” encontrava-se muito deprimida tendo havido notório retrocesso na evolução que manifestou aquando do acompanhamento psicológico por parte da Sra psicóloga “E”.
29.ª – Contudo, a “C”, apesar do seu estado de anedonia se ter agravado e alguma intermitência nas idas às consultas, compareceu, entre Março e Junho de 2010, a 14 consultas, conforme resulta de pág. 820 da sentença recorrida.
30.ª – Consultas que foram interrompidas devido ao facto de, abruptamente, a menor ter sido retirada do seio familiar.
31.ª – Esta mulher que desconfiava das instituições, que estava firmemente convicta que a finalidade de todo aquele processo era retirarem-lhe a filha, mais convencida de tal ficou.
32.ª – Apesar disso, sempre visitou a filha diariamente, com a esperança de poder voltar a tê-la de volta. Enquanto as mesmas Sras. Técnicas continuaram a verificar o estado da casa, a fazer relatórios, a enviá-los a tribunal.
33.ª – Esta família foi apoiada sempre pelas mesmas entidades e da mesma forma, ou seja com visitas fiscalizadoras e com pouco ou nenhum apoio pedagógico que motivasse a mudança do que estava errado.
34.ª – A “C” não necessita que lhe ensinem a fazer os trabalhos domésticos, necessita que a motivem a fazê-los
sempre, e que lhe expliquem porque é que isso é importante para a saúde e bem-estar da família, principalmente da filha e, que a ajudem a fazê-los enquanto a anedonia se manifestar sintomatológca do seu estado depressivo.
35.ª – Nos diversos relatórios dos autos não se faz referência a uma única medida concreta levada a cabo a este nível. Não há uma única medida de formação efectuada com esta mãe desde o início da intervenção efectuada. É como se se pretendesse que a simples presença das técnicas e eventuais reparos que, porventura, estas lhe dirigissem tivessem o condão de modificar o seu comportamento.
36.ª – A nosso ver, a mãe da menor necessita de 4 tipos de ajuda:
a) Sentir a presença directa do Tribunal, em conferência, com a presença de um juiz, onde lhe fosse explicado que as medidas a tomar e o compromisso a assumir teriam como finalidade possibilitar o retorno da menor a casa, e não, a táctica, mais ou menos velada, para chegar à adopção da mesma (quem anda nestas lides, sabe que por vezes se consegue, em 5 minutos, perante o juiz, o acordo que, debalde, se tentou alcançar durante meses ou anos).
b) Frequência de um curso ou programa no qual lhe fossem ministrados conhecimentos básicos de higiene do lar, com conhecimento do porquê dos procedimentos e consequências da sua não efectivação, a nível de saúde e outros.
c) Consultas de psicologia com a Sra. Psicóloga “E”, a qual efectuou um trabalho frutuoso junto da “C” e que estava a ser retomado e a começar a resultar aquando da institucionalização da menor.
d) Ajuda na efectivação das limpezas domésticas, nos períodos em que fosse constatado manifestação do estado depressivo e anedonia referidos a fls 820 dos autos.
37.ª - A família natural, mau grado as suas carências – que poderão, assim, justificar o apoio da sociedade – constitui ainda o meio natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros e, em especial, as crianças – cf. art.º 36.º n.º 6 da CRP.
38.ª - Há, assim, que apoiar as famílias disfuncionais, com apoios de natureza psicopedagógica, social ou económico, para que encontrem o seu equilíbrio.
39.ª - Toda a intervenção deve regular-se pelo superior interesse da criança, consagrada no art.º 3.º n.º 1 da Convenção sobre os direitos da Criança e em nosso entender, é interesse desta criança que a sociedade use de todos os meios ao seu alcance na recuperação desta família, cujas falhas não são inultrapassáveis se houver coerência nos métodos de ajuda.
40.ª – Com uma intervenção ajustada ao caso concreto, poderão ser respeitados os princípios da responsabilidade parental e da prevalência da família, a bem da menor, proporcionando-lhe o fim da agonia em que tem vivido, diariamente, quando se separa da mãe.
Os apelantes terminaram pedindo que a decisão recorrida fosse revogada.
O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Os recorrentes não recorrem de direito.
II. Se for entendido que recorrem deve dar-se cumprimento ao disposto no artigo 690.º n.º4 do CPC.
III. Nenhuma censura merece a decisão do tribunal recorrido em sede de matéria de facto.
IV. Os elementos de prova indicados pelos recorrentes, ao invés de imporem conclusões fácticas diversas das tiradas pelo tribunal recorrido, sustentam-nas, ainda que perspectivados de modo isolado mas de modo acrescido se conjugados com os demais elementos de prova.
V. O Tribunal da Relação só pode modificar a decisão recorrida em termos de facto quando a prova imponha decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal recorrido.
VI. Se a prova indicada no recurso permitiria, eventualmente, uma decisão diversa da recorrida – o que no caso não se verifica -, mas não a impõe, o recurso não pode merecer provimento, por não poder o tribunal de recurso, em casos destes, bulir na decisão recorrida.
VII. A perspectiva que os recorrentes trazem da prova não é defensável, nem única; e não o sendo, não impõe decisão diversa da recorrida.
O apelado terminou pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar são as seguintes: se o recurso é de direito e de facto; se deve manter-se a medida de promoção e proteção da menor determinada pela decisão recorrida.
Primeira questão (avaliação do objeto do recurso)
Desde já se indica a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo:
1. “A” nasceu no dia 26 de Setembro de 2006 e é filha de “B” e de “C”.
2. Integrou um agregado composto por ela e pelos progenitores, então residente na Praceta ..., torre ..., 6° esq°, L....
3. Actualmente, os progenitores da “A” residem numa casa térrea, composta por cozinha, casa de banho e dois quartos, sita na ..., Vivenda “C”, em L...
4. A “A” tem três irmãos — a “I”, o “J” e o “L” —, mas à data do seu nascimento já haviam sido todos acolhidos no CAT "Casa ...", L..., no âmbito do processo de promoção e protecção n° .../05.OTCLRS, no qual acabou por ser aplicada a favor dos mesmos a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, por decisão datada de 23 de Fevereiro de 2007.
5. Após o nascimento da “A”, por força das deficiências reveladas pelos progenitores no exercício da parentalidade, já conhecidas, o agregado passou a ser acompanhado pela Associação “D”, o que sucedeu desde 14 de Outubro de 2006, mantendo-se até à presente data, pela CPCJ de L..., de Dezembro de 2006 a Outubro de 2007, e por este tribunal, conjugadamente com a Segurança Social e as instâncias sociais, de Novembro de 2007 até à presente data.
6. Durante este acompanhamento constatou-se, o que ainda se verifica, que:
a) o “B” desinteressa-se, em absoluto, das questões relacionadas com a “A”, desculpando-se com o trabalho e cometendo o seu tratamento, em exclusivo, à “C”; embora manifeste afecto pela “A”, não quer envolver-se no seu processo educativo, assumindo apenas como seu papel o trabalho e o garante do sustento familiar; desconhece mesmo os contornos, mesmo os mais gerais, da vida da “A”;
b) o “B” e a “C” pouco conversam entre eles; a “C” não informa o “B” dos assuntos relacionados com a “A” nem aquele se interessa em estar informado ou acompanhar;
c) a absoluta incapacidade dos progenitores de manter limpo, organizado e higiénico o espaço habitacional, destacando-se que:
- entre os dias 14 de Outubro de 2006 e 21 de Novembro de 2006, a casa apresentava-se com beatas de cigarro no chão do quarto, teias de aranha em todas as divisões, roupa espalhada pelas divisões, casa de banho muito suja;
- no dia 14 de Maio de 2007, a casa encontrava-se extremamente suja, com lixo e restos de comida espalhados pelo chão e por cima da bancada da cozinha; exalava um cheiro insuportável, resultante de uma mistura de lixo e bafio; a roupa continuava espalhada e espalhados pelo quarto havia vários cinzeiros repletos de beatas de cigarro;
- no dia 18 de Setembro de 2007, a casa mostrava-se cheia de moscas, com a pia da banca cheia de louça suja, a casa-de-banho imunda;
- no dia 3 de Outubro de 2007, a casa-de-banho e a cozinha estavam muito sujas, a roupa espalhada por um dos quartos, o frigorífico imundo;
- entre Abril e Setembro de 2008, a casa apresentou-se frequentemente desorganizada e suja, com amontoados de roupa suja junto à máquina de lavar, copos com restos de leite e beatas de cigarro em cima da mesa de cabeceira, fraldas sujas no chão do quarto;
- no dia 4 de Março de 2010, a casa apresentava-se com uma desorganização exuberante e uma total falta de higiene, havendo dejectos de comida nos pratos, louça por lavar na bancada da cozinha, amontoados de roupa em todas as divisões da casa que, inclusivamente, não permitiam a passagem para o quarto da “A”, estando o chão impregnado de sujidade e lixo;
- em Junho de 2010, a casa mantinha-se desorganizada, com roupa suja espalhada pela casa, louça suja e o frigorífico desprovido de alimentos em suficiência – apenas dois sacos de carne no congelador e dois recipientes com carne putrefacta no refrigerador;
- no dia 22 de Dezembro de 2010, a cozinha apresentava lixo acumulado pelo chão, beatas de cigarro tanto no chão como em cima da mesa, cascas de cebola, molas e uma faca; o fogão estava impregnado de gordura, no lava-louça estava um tacho e restos da refeição, tudo dentro de água; ainda no lava-louça, louça suja; no frigorífico havia apenas o resto de uma refeição – salsichas com massa; no interior de um armário, um prato com carne putrefacta; um dos quartos cheirava a urina de gato;
- no dia 14 de Janeiro de 2011 o fogão estava de novo impregnado de gordura, o chão com lixo, o quarto do casal com amontoado de roupa, cinzeiro com beatas;
- no dia 29 de Julho de 2011, a bancada da cozinha estava ocupada com a louça do jantar do dia anterior, ainda por lavar, a cama do casal por fazer, apresentando-se a “C” às técnicas em camisa de dormir;
- no dia 31 de Dezembro de 2011, o chão encontrava-se sujo de lama, a bancada da cozinha com inúmera loiça por lavar, o fogão com acumulado de gordura, por baixo da bancada e por cima da bilha do gás um prato com dejectos de comida, loiça suja e cinzeiro cheio de beatas em cima da mesa da cozinha, onde também se encontrava uma gaiola com um hamster; no wc um amontoado de roupa no chão e nos quartos igual aglomerado de roupa;
- no dia 20 de Janeiro de 2012, o chão sujo, a bancada da cozinha continuava com inúmera loiça por lavar e com pratos com restos de comida, por baixo da bancada e por cima da bilha do gás mantinha-se o prato com restos de comida; alguidares espalhados no chão da cozinha e na cadeira com roupa amontoada e por lavar; continuavam a estar chávenas cheias de beatas, pratos com comida em putrefacção, pão bolorento, a gaiola do hamster; o tecto da cozinha estava cheio de mosquitos e restos de comida em cima da mesa; os dois quartos encontravam-se desarrumados com as camas por fazer, roupa e calçado espalhados; em cima da cama restos de pão e uma embalagem de manteiga.
7. Durante o acompanhamento referido em 5. constatou-se ainda que:
d) os progenitores, apesar de orientados pela Associação “D” desde o início, em 4 de Abril de 2008 ainda não tinham requerido o abono de família da “A”;
e) até aos dois anos e meio da “A”, a progenitora não imprimia ao dia desta uma rotina saudável, ficando amiúde ambas na cama durante toda a manhã;
f) apesar de orientada pelas técnicas, a progenitora descurava a frequência pela “A” de equipamento de infância, não a inscrevendo de todo, ou não a apresentando, ou deixando por pagar as mensalidades;
g) no ano lectivo 2009/2010, por força desse desinteresse, só a partir de Abril de 2010 a “A” frequentou equipamento de infância e só após muito esforço das técnicas, insistindo amiúde com a progenitora, marcando contactos e entrevistas, intermediando, e assim procurando vencer a inércia da progenitora;
h) também até aos dois anos e meio da “A”, a progenitora, apesar de aconselhada pelas técnicas, acumulava erros alimentares nas refeições da “A”, não lhe proporcionando pequeno-almoço — constituído pelas mamadas na cama —, não lhe dando sopa nem fruta a pretexto de que a mesma não gostava;
i) a “A”, apesar de possuir uma cama própria, dormia a maior parte das noites junto com os pais;
j) a progenitora apresenta(va) um quadro psicopatológico acentuado que se caracterizou, entre o mais, por:
- estado depressivo, que em determinadas alturas a levava a sentir-se deprimida a maior parte do tempo e a chorar compulsivamente;
- anedonia: interesse diminuído na realização das actividades do quotidiano; sensação de inutilidade;
- confusão mental com ideias desesperantes;
k) esse quadro determinou que permanecesse longos períodos temporais apenas por casa, fechada, sem fazer o que quer que fosse, na companhia da “A”, geralmente deitada e às escuras, o que sucedeu, nomeadamente, durante os meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2010;
l) esse quadro determina também instabilidade emocional e, por via dela, incapacidade na colocação e diferenciação de limites no processo educativo da “A”;
m) apesar do apoio prestado, apesar de ter iniciado acompanhamento médico-psiquiátrico suscitado no âmbito desse acompanhamento, a progenitora não foi persistente no mesmo, abandonando-o no início do ano de 2009 e permanecendo sem qualquer acompanhamento pelo menos até ao mês de Abril de 2010, apesar das diligências dos técnicos para que o retomasse, com sucessivas marcações de consultas;
n) apesar de ter retomado o acompanhamento, fê-lo de modo intermitente, faltando às quatro consultas que lhe foram agendadas para Maio de 2010, a várias marcadas para Agosto de 2010 (apenas tendo ido nos dias 19 e 31 deste mês) e a todas as agendadas para Setembro e Outubro de 2010 e parte das designadas para Novembro de 2010 (só tendo ido no dia 30 deste mês; e em Dezembro, no dia 13); foi a consultas nos meses de Abril e Maio de 2011 e, a partir daí, nunca mais compareceu, alegando o incómodo na deslocação, ficar longe e ter ficado farta de tal acompanhamento;
o) durante a vigência da medida provisória, aplicada por decisão de 24 de Junho de 2010, concretizada no dia 2 de Julho de 2010, a progenitora manteve visitas regulares e frequentes à “A”; o pai manteve visitas espaçadas regulares, às quintas-feiras, de 21 de Outubro de 2010 até Dezembro de 2010; a partir de então não mais o fez sob pretexto de ter muito trabalho na quinta.
8. Durante o acompanhamento, denotaram-se algumas melhorias, como sejam:
a) alguns cuidados ao nível da higiene habitacional, especialmente nos quartos; em Março de 2008, a progenitora frequentou as consultas de psicologia; entre Setembro e Dezembro de 2007, a menor frequentou a Creche Familiar da Associação “M”, tendo deixado, no entanto, de a frequentar a partir de Janeiro, por falta de pagamento das mensalidades por parte da progenitora;
b) em Setembro de 2009, melhorias no que se refere à higiene habitacional; apresentando ainda a menor consultas e vacinas actualizadas;
c) início de 2009, a progenitora assegurava a frequência e assiduidade da menor na Creche familiar e aderiu ao acompanhamento psicológico, com frequência quinzenal na Associação “M”;
sendo que, após uma ausência dos progenitores para a zona de P... entre Abril e Setembro de 2009, verificou-se um enorme retrocesso, designadamente ao nível acompanhamento médico-psiquiátrico por parte da progenitora e supra descrito no ponto 7., alínea n), tendo esta, por outro lado, demonstrado ainda maior resistência ao acompanhamento por parte das instâncias sociais e fraca adesão à presença das técnicas, sendo que desde o início recusou a colaboração de uma ajudante familiar no apoio às lides domésticas; retrocesso esse que também se revelou ao nível da organização e da higiene da habitação, o que acabou por motivar a prolação da medida provisória aludida no ponto 7., sob a alínea o).
9. Durante a vigência da medida provisória aludida no ponto 7., sob a alínea o), foi delineado um plano de intervenção para os progenitores, relativamente ao qual não se observou o cumprimento do acompanhamento médico psiquiátrico/psicológico; verificando-se pontualmente algumas melhorias ao nível da higiene habitacional (com pintura da casa, aplicação de loiças novas na casa-de-banho e quartos mais limpos e organizados), mas com retrocessos imediatos, com lixo acumulado no chão, cinzeiros cheios de beatas espalhados no quarto e cozinha, fogão impregnado de gordura e restos de comida no lava-loiça, junto com loiça por lavar, conforme já relatado supra no ponto 6., alínea c).
10. A resistência demonstrada pela progenitora à intervenção das técnicas, designadamente da Associação “D”, foi-se tornando cada vez mais notória, sendo que entre Janeiro e Julho de 2011 apenas conseguiram realizar quatro visitas domiciliárias, não tendo realizado mais, não obstante o seu agendamento, por ausência da progenitora; denotando-se igualmente uma crescente falta de adesão por parte da progenitora, que inviabilizou um acompanhamento sistémico e contínuo.
11. Durante o período em que esteve na ama (2007/2008) e frequentou a Creche Familiar da Associação “M”, designadamente entre Setembro de 2007 e Dezembro de 2007, sendo que nesta ocasião a menor deixou de a frequentar por falta de pagamento das respectivas mensalidades, a “A” apresentava-se com cuidados de higiene e com roupas adequadas; o que acontecia em regra noutras ocasiões.
12. A menor nunca padeceu de doenças significativas; apresentando, no entanto, a sua dentição de leite podre.
13. Entre a menor e a progenitora existe grande afectividade; sendo que os pais, principalmente a mãe, sofrem com a separação da filha.
14. A “C” tem presente, em termos da sua personalidade, alguma desejabilidade social, esforçando-se por mostrar uma imagem de si mesma o mais favorável possível; revela ter uma visão ingénua, imatura e idealizada dos aspectos da realidade, associada a mecanismos de repressão de afectos, por dificuldade de insight e de integração dos mesmos; revela ter um funcionamento rígido, inibido e introvertido, com parco dinamismo mental, empobrecido do ponto de vista afectivo e cognitivo; revela, relativamente à menor, fragilidades na implementação efectiva das normas e estruturação de limites de uma forma prática e objectiva.
15. O “B” revela ter uma personalidade empobrecida, influenciada também pelo contexto sócio-cultural em que se insere e pelos factores cognitivos, mostrando-se vulnerável à ansiedade, agitação e inquietação, que reflecte na capacidade de atenção/concentração; do ponto de vista afectivo, revela imaturidade e auto-centração, com alguma sugestionabilidade face ao exterior, desejabilidade (no sentido de agradar ao outro), insegurança e dependência face ao outro.
16. O “B” trabalha por conta de “N”, proprietário da dita ..., cabendo àquele a realização de variadas tarefas agrícolas, nomeadamente o pastoreio, recolha e alimentação de ovelhas.
17. A “C”, doméstica, auxilia esporadicamente na realização das tarefas da Quinta, designadamente às segundas, quartas e sextas, entre as 13 e as 16 horas; encontrando-se as mais das vezes por casa sem nada fazer.
18. Os progenitores da menor residem numa casa existente na Quinta ..., referida no ponto 3., pertença também de “N”.
19. O “B” aufere cerca de € 700,00 mensais; não pagando qualquer contrapartida pela utilização da casa; sendo que a água e a luz também são suportadas por “N”, que muitas vezes também acaba por ajudar o casal quando o dinheiro não chega e é todo gasto, pagando, designadamente, o passe da progenitora.
20. Pelo menos até Agosto de 2011, era “N” que lhes geria o dinheiro do salário, entregando-o conforme os mesmos necessitavam, sob pena de o gastarem desmedidamente.
21. Por vezes, agora mais pontualmente, é também o “N” que acorda o “B”, de manhã, para ter a certeza que o mesmo se levanta e faz os seus afazeres diários.
22. O agregado familiar de “N” é composto por este, pela mulher “O” e pelo filho de ambos, com 8 anos, “P”.
23. “N” e “O” também exercem funções/trabalham na Quinta, com início das actividades às 5:00 horas; permanecendo o filho a dormir sozinho em casa até às 7:00 horas, hora a que “O” se desloca a casa para acordar o menor e preparar-lhe o pequeno-almoço; sendo que no final do dia volta a casa às 18:00, onde deixa o filho sozinho, regressando novamente a casa às 20:00 horas.
24. Em 2 de Agosto de 2011, “N” e “O” manifestaram a intenção de apoiar os pais com a menor, designadamente nas refeições, no acompanhamento escolar e nas questões de saúde, desde que a menor pernoitasse em casa dos pais, não se mostrando disponíveis para ficar com ela a tempo inteiro, alegando receio quanto à eventual reacção da progenitora por não pernoitar com ela.
25. Em 27 de Fevereiro de 2012, em sede de debate judicial, “N” e “O” mostraram disponibilidade para acolher e assumir os cuidados da menor.
26. Enquanto a menor esteve institucionalizada, “N” e “O” não foram figuras presentes na Instituição.
27. Não existem outros familiares da menor com disponibilidade para acolhê-la.
O Direito
O Ministério Público entende que, se se admitir que os apelantes recorrem de direito, deve dar-se cumprimento ao disposto no art.º 690.º n.º 4 do CPC.
Vejamos.
A este processo aplica-se o regime anterior ao previsto no Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8, pois teve o seu início antes de 01.01.2008 (cfr. artigos 11.º n.º 1 e 12.º do Dec.-Lei n.º 303/2007). Quando nada se diga em contrário, será tida em conta a redação do Código de Processo Civil anterior à introduzida por aquele diploma.
Nos termos do n.º 2 do art.º 690.º do CPC, quando o recurso verse sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas, o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e, invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada. Nos termos do n.º 4 do art.º 690.º do CPC, se nas conclusões não se tiver procedido às supra referidas especificações, o relator deve convidar o recorrente a apresentá-las, sob pena de não se conhecer do objeto do recurso, na parte afetada.
Afigura-se-nos que, embora de forma imperfeita, o recurso é de direito e cumpre, de forma tácita, os requisitos mínimos delineados pela lei. Para o efeito, atente-se no teor das conclusões 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª, 7.ª, 37.ª e 39.ª. Aí os apelantes enunciam as normas legais tidas por pertinentes e que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida.
Entendemos, pois, que não existe a referida omissão apontada pelo apelado.
No que diz respeito a eventual impugnação da matéria de facto, a modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil. Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 690.º-A do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Tratando-se de depoimentos gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na ata (art.º 690.º-A n.º 2).
Compulsadas as alegações da apelação e bem assim as suas conclusões, nelas não se vislumbra a indicação de pontos de facto que tenham sido incorretamente julgados, nem a indicação, pela forma legalmente imposta, dos depoimentos que no entender dos recorrentes imporiam decisão diferente, sobre esses mesmos factos. O que os apelantes empreendem é a invocação de alguns depoimentos, em si mesmos ou em conjugação com outros elementos constantes no processo, para enunciar juízos conclusivos diversos daqueles que o tribunal a quo formulou na sentença para fundar a medida aplicada. Ora, tal tipo de discordância constitui atividade argumentativa que não tem a natureza de impugnação da matéria de facto, para os efeitos previstos no art.º 712.º do CPC.
Entende-se, pois, que neste recurso não ocorre impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Segunda questão (se deve manter-se a medida de promoção e proteção da menor determinada pela decisão recorrida)
A lei protege a família, nomeadamente a família natural. O art.º 67.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa declara que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.” O art.º 68.º da Lei Fundamental acrescenta que “a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes” (n.º 2) e “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país” (n.º 1). O art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “família, casamento e filiação”, proclama que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” (n.º 5) e que “os filhos não podem ser separados dos pais”, mas logo acrescenta: “salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial” (n.º 6). Também a adoção merece consagração constitucional, enquanto fonte de laços familiares, estipulando o n.º 7 do art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa que “a adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva tramitação”.
A proteção da família não sobreleva a proteção da criança.
O art.º 69.º da Constituição da República Portuguesa, consagrado à infância, declara que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições” (n.º 1) e acrescenta que “o Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal” (n.º 2).
A Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989, aprovada por Portugal e publicada no D.R. , I série, de 12.9.1990, estabelece que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança (art.º 3.º n.º 1). Nos termos do n.º 1 do art.º 9.º da Convenção, a criança não será separada dos seus pais contra a vontade destes, a menos que a separação se mostre necessária, “no interesse superior da criança”. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, “por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança” (n.º 1, segundo período, do art.º 9.º). O art.º 20.º da Convenção prevê a situação de crianças que, “no seu interesse superior”, não possam ser deixadas no seu ambiente familiar, reconhecendo-lhes o direito a proteção alternativa, que pode incluir a adoção. O art.º 21.º da Convenção determina que o interesse superior da criança será a consideração primordial no domínio da adoção.
A Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/90 e ratificada por Decreto do Presidente da República publicado no D.R., I série, de 30.5.1990, estipula que “a autoridade competente não decreta uma adopção sem adquirir a convicção de que a adopção assegura os interesses do menor” (art.º 8.º, n.º 1), devendo atribuir-se “particular importância a que a adopção proporcione ao menor um lar estável e harmonioso” (art.º 8.º, n.º 2).
No que concerne ao conteúdo do anteriormente designado “poder paternal”, actualmente substituído, sugestivamente, pelo conceito de “responsabilidades parentais”, o Código Civil evidencia que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação (…)” (art.º 1878.º, n.º 1). Em desenvolvimento desta matéria, o art.º 1885.º declara que “cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos”.
Nos termos do art.º 1915.º n.º 1 do Código Civil, “quando qualquer dos pais infringir culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres”, pode o tribunal decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais. O art.º 1918.º do Código Civil estipula que “quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício do poder paternal”, o tribunal pode “decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência”.
O diploma fundamental em sede de proteção de crianças e jovens em perigo é a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22.8.
Tal lei regula a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, a qual tem lugar “quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” (art.º 3.º n.º 1). Nos termos do n.º 2 do citado artigo, considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, “está abandonada ou vive entregue a si própria” (alínea a), “sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais (alínea b), “não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal” (alínea c), “está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional” (alínea e). O art.º 4.º da LPCJP enuncia os princípios pelos quais se deve reger a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, entre os quais o do interesse superior da criança e do jovem (“a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses presentes no caso concreto”), o da intervenção precoce (“a intervenção deve ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida”), o da intervenção mínima (“a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja acção seja indispensável à efectiva promoção dos direitos e à protecção da criança e do jovem em perigo”), o da proporcionalidade e actualidade (“a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade”), o da responsabilidade parental (“a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem”), o da prevalência da família (“na promoção de direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adopção”).
As medidas em causa têm as seguintes finalidades, enunciadas no art.º 34.º da LPCJP:
a) Afastar o perigo em que a criança e o jovem se encontrem;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
As medidas a aplicar são as seguintes (art.º 35º da LPCJP):
a) Apoio junto dos pais;
b) Apoio junto de outro familiar;
c) Confiança a pessoa idónea;
d) Apoio para a autonomia de vida;
e) Acolhimento familiar;
f) Acolhimento em instituição;
g) Confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção.
As medidas referidas nas alíneas a) a d) consideram-se medidas a executar “no meio natural de vida” e as medidas referidas nas alíneas e) e f) consideram-se “medidas de colocação”; quanto à medida prevista na alínea g), é considerada a executar no meio natural de vida no primeiro caso e de colocação no segundo (n.º 3 do art.º 35.º da LPCJP).
Estas medidas podem ser decididas a título provisório, nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração, nesse caso, exceder seis meses (art.º 35.º n.º 2 e 37.º da LPCJP). As medidas previstas nas alíneas a) a d) não poderão ter duração superior a um ano, podendo tão só ser prorrogadas até 18 meses (art.º 60.º da LPCJP). As medidas previstas nas alíneas e) e f) terão a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial (art.º 61.º). Porém, também em relação a estas duas está subjacente a ideia de uma forma de vida com limitação temporal (quanto ao acolhimento familiar, cfr. art.º 48.º, no qual se menciona expressamente, como pressuposto da sua aplicação, que é previsível o retorno da criança ou jovem à família natural; no que concerne ao acolhimento em instituição, pode ser de curta duração – nos termos expressos nos números dois e três do art.º 50.º da LCPJP – ou de duração prolongada, ou seja, por prazo superior a seis meses – n.º 4 do art.º 50.º -, mas em todo o caso é sujeito a revisão pelo menos de seis em seis meses - art.º 62.º n.º 1 da LPCJP; neste sentido, v.g., Rosa Clemente, “Inovação e Modernidade no Direito de Menores, a perspectiva da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2009, páginas 81 a 85).
Mais adiante se falará no apadrinhamento civil, instituto cujo regime está previsto na Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro, regulamentada pelo Dec.-Lei n.º 121/2010, de 27.10, e que se assume como uma medida tutelar cível com características próprias, tendencialmente de caráter permanente e que cede perante a adoção, pois não pode aplicar-se quando se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção.
Quanto à medida de confiança de menor a outrem com vista a adoção.
O art.º 1974.º do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22.8, enuncia os requisitos gerais da adoção: “a adopção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.”
O art.º 38.º-A da LPCJP, aditado pela Lei n.º 31/2003, de 22.8.2003, prevê a medida de confiança da criança ou do jovem a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção, que, nos termos do artigo, será aplicável “quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 1978.º do Código Civil.”
O art.º 1978.º do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22.8, regula a confiança de menor a casal, a pessoa singular ou a instituição, com vista a futura adoção. Tal ocorrerá quando “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:” (corpo do nº 1 do art.º 1978.º)
a) Se o menor for filho de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado o menor;
d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor;
e) Se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.”
Na verificação dessas situações o tribunal “deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor” (n.º 2 do art.º 1978.º). Quanto à constatação da ocorrência de perigo, mencionada na alínea d) (e que foi invocada na decisão recorrida) o Código estatui que “considera-se que o menor se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à protecção e à promoção dos direitos dos menores” (n.º 3 do art.º 1978.º).
A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) não pode, porém, ser decidida, se o menor se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aquelas pessoas “puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor”, ou “se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse do menor.” (n.º 2 do art.º 1978.º).
A atual redação do art.º 1978.º do Código Civil emerge, como foi dito, da Lei n.º 31/2003, de 22.8. Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 57/IX 3618 (D.A.R., II Série A - Número 088, 26 de Abril de 2003, pág. 3618 e seguintes), que lhe deu origem, lê-se o seguinte:
A adopção constitui o instituto que visa proporcionar às crianças desprovidas de meio familiar o desenvolvimento pleno e harmonioso da sua personalidade num ambiente de amor e compreensão, através da sua integração numa nova família. Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adopção. Esta concepção da adopção corresponde àquela que está plasmada em importantes instrumentos jurídicos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças. Trata-se, por outro lado, de uma intervenção que se reclama urgente, porquanto a personalidade da criança se constrói nos primeiros tempos de vida, revelando-se imprescindível para que a criança seja feliz e saudável que quem exerce as funções parentais lhe preste os adequados cuidados e afecto. E se, atento o primado da família biológica, há efectivamente que apoiar as famílias disfuncionais, quando se vislumbra a possibilidade destas reencontrarem o equilíbrio, situações há em que tal não é viável, ou pelo menos não o é em tempo útil para a criança, devendo em tais situações encetar-se firme e atempadamente o caminho da adopção. (…) Há hoje cerca de onze mil e trezentas crianças acolhidas em instituições e famílias idóneas, cujo projecto de vida deve ser urgentemente definido, sendo certo que a institucionalização não pode ser considerada uma solução, mas tão somente uma medida de protecção. (…). Assim, passa a ser expressamente mencionado o superior interesse da criança como critério fundamental para ser decidida a adopção, o qual constitui, aliás, o conceito de referência nesta matéria. São desenvolvidos os conceitos de colocação do menor em perigo e de manifesto desinteresse pelo filho, pressupostos do decretamento da confiança judicial, clarificando-se que neste segundo conceito está essencialmente em causa a qualidade e a continuidade dos vínculos próprios da filiação. Reduz-se para três meses o período relevante para aferição do desinteresse, sendo certo que este prazo é suficiente para esse efeito e, simultaneamente, permite acelerar o processo.
Do regime legal e convencional supra referido emana a conceção de que o desenvolvimento feliz e harmonioso de uma criança se processa e deve realizar-se no seio da família biológica, tida como a mais capaz de proporcionar à criança o necessário ambiente de amor, aceitação e bem estar. Porém, se esta não poder ou não quiser desempenhar esse papel, haverá que, sendo possível, optar decididamente e rapidamente pela sua integração numa outra família, através da adoção (cfr, v.g., Helena Bolieiro e Paulo Guerra, “A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s)”, Coimbra Editora, 2009, páginas 39, 72, 322, 341, 352, 375 a 378; Beatriz Marques Borges, “Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”, Almedina, 2011, 2.ª edição, páginas 18, 53 a 55, 143, 144, 228; acórdão da Relação de Coimbra, de 25.10.2011, 559/05.6 TMCBR-A.C1; acórdão da Relação de Guimarães, 21.5.2009, 2308/06.2TBVCT.G1, www.dgsi.pt; cfr. também o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, que aprovou o regime jurídico da adoção; qualificando, em jeito de proposta de reflexão de quem desconfia de “consensos alargados”, como um dos atuais “dogmas do Direito da Família e dos Menores”, a ideia da adoção como instrumento ideal para proteger as crianças privadas de um ambiente familiar normal, vide Jorge Duarte Pinheiro, “Critério biológico e critério social ou afectivo na determinação da filiação e da titularidade da guarda dos menores”, in Lex Familiae, Coimbra Editora, ano 5, n.º 9, 2008, páginas 10 a 12).
Constitui pressuposto desta medida (confiança para adoção) que “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação”. Tal situação será constatada “pela verificação objectiva” de qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 1978.º do Código Civil (corpo do n.º 1 do art.º 1978.º).
Ou seja, a ocorrência de qualquer dessas situações constituirá via necessária para a demonstração da inexistência ou do sério comprometimento do vínculo afetivo entre o progenitor e a criança, para o efeito da confiança da criança para adoção. Adicionalmente, porém, haverá que apreciar se essas situações traduzem, em concreto, inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação (cfr., v.g., Helena Bolieiro e Paulo Guerra, obra citada, páginas 349 e 350; Maria Clara Sottomayor, “A nova lei da adopção”, in Direito e Justiça, vol. XVIII, tomo II, 2004, páginas 244 a 247; Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família, volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da filiação; adopção”, Coimbra Editora, 2006, pág. 278; acórdão da Relação de Lisboa, 15.10.2009, 388/07.2TMFUN.L1-6; em sentido aparentemente diverso, considerando que a ocorrência de qualquer das referidas situações configura presunção da inexistência ou comprometimento dos aludidos vínculos, Beatriz Borges, obra citada, páginas 148, 171, 172).
Sendo certo que os vínculos afetivos que obstam à aplicação da medida sob análise são os “próprios da filiação”: não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe – filho, de molde que o progenitor se assuma como pai ou mãe e o filho o reconheça e sinta como verdadeira figura paterna/materna.
Havendo até quem defenda (não é a nossa opinião) que sempre que um tribunal protege uma criança da sua família de origem, essa proteção deve ser, tendencialmente, definitiva, maxime se a medida de proteção durar previsivelmente mais de seis meses, caso em que fica comprometido, de forma irreparável, o desenvolvimento subsequente da criança, a qual deverá ser encaminhada para um processo de adoção (Eduardo Sá, “O poder paternal”, in “Volume comemorativo dos 10 anos do Curso de Pós-Graduação “Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho””, 12, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 87).
Analisemos o caso destes autos.
Verifica-se, da parte do pai da menor, afastamento, traduzido nos pontos 6 a) e b), 7 d) e o), da matéria de facto.
Do lado da mãe (para o que a passividade do pai da menor também contribui), constata-se uma persistente incapacidade de assegurar um ambiente habitacional minimamente organizado e saudável, (pontos 6 c), 8 c), 9), agravado por um aparente desinteresse por melhorar (pontos 7 m) e n), 8 c), 10), tudo isso acompanhado, antes da institucionalização da “A”, de fraco empenho na frequência pela “A” de equipamento de infância (pontos 7 f) e g), 11), horários inadequados para a criança dormir e comer e alimentação desequilibrada dada à “A” (pontos 7 e), h)), longos períodos de total inatividade, permanecendo a mãe deitada e às escuras com a “A” (7 k)), além de a criança dormir quase sempre na cama dos pais, apesar de possuir uma cama própria (ponto 7 i).
Trata-se, pois, de mau trato, por negligência (cfr., v.g., “Conceptualização de situações de mau trato”, Pedro Magalhães Pereira e Salomé Vieira Santos, in “Crianças em Risco e Perigo, contextos, investigação e intervenção”, vol. I, Edições Sílabo, 2011, pág. 15 e seguintes; “Práticas parentais de mães negligentes”, por Tânia Ribeiro e Paula Castro, também em “Crianças em Risco e Perigo…”, pág. 100 e seguintes“).
Algumas melhorias foram apenas pontuais, carecendo de persistência (ponto 8).
Sendo certo que os aludidos aspetos negativos ocorreram apesar do precoce e constante acompanhamento e apoio prestado por diversas entidades (pontos 5, 7 d), f), g), h), m), 8, 9 da matéria de facto).
Tudo isto apesar de os progenitores bem saberem que os três filhos mais velhos lhes haviam sido retirados no âmbito de um processo de promoção e proteção (pontos 4 e 5 da matéria de facto) e que para que a menor “A” continuasse a seu cargo teriam de mudar de atitude.
O facto de até à institucionalização da menor esta não ter apresentado particulares problemas de saúde nem se mostrar descurada do ponto de vista da higiene pessoal e do vestuário (11 e 12 da matéria de facto), pese embora tivesse a dentição podre (12 da matéria de facto), não chegou para colmatar as supra referidas deficiências, as quais, por colocarem em perigo a saúde e o desenvolvimento da “A”, desembocaram na sua institucionalização.
Contrariamente às “queixas” expostas pelos apelantes nas conclusões do recurso (maxime, conclusões 25.ª, 26.ª, 27.ª, 32.ª, 33.ª a 35.ª), este agregado familiar foi acompanhado mesmo antes do nascimento da menor e foi alvo de apoio aparentemente adequado, nomeadamente, e sobretudo a mãe, com um sentido pedagógico. Para confirmar isso atente-se, além do que consta nos números 4, 5, 7 d), f), g), h), m), n), 8 a), c), 9) da matéria de facto, também no teor do acordo de promoção e proteção formalizado em 23.10.2008 (fls 192 e 193 dos autos), nos termos do qual a mãe da “A” se obrigou a “frequentar as acções do projecto “Abraçar”, acções essas que, conforme consta do relatório social elaborado em 17.3.2009 pela ECJ de L... (fls 199 a 202), eram sessões quinzenais na Associação “M”, onde eram trabalhadas, entre outras questões, as competências parentais. Porém, conforme resulta também do n.º 8 c) da matéria de facto, em Abril de 2009 os progenitores ausentaram-se para a região de P..., tendo a mãe da “A” deixado de frequentar as consultas de psicologia e as sessões do projecto Abraçar e cessado qualquer contacto com as estruturas de apoio da segurança social ou equivalentes. Também contrariamente à censura formulada na conclusão 27.ª, a falta de acompanhamento que ocorreu durante a aludida ausência para a região de P... deveu-se aos progenitores, que regressaram à morada anterior em L... sem aviso, tendo sido “reencontrados” apenas na sequência dos esforços feitos nesse sentido pelo tribunal e pelos serviços da segurança social (vide fls 215 a 252). No que concerne aos períodos depressivos, que seriam a causa da “anedonia” subjacente à negligência da mãe da menor na lida da casa e que por conseguinte deveriam ser alvo de tratamento psicológico (conclusões 9.ª, 13.ª, 14.ª, 28.ª, 34.ª, 36.ª), resulta dos factos provados que o problema é mais vasto, radicando antes no aparente desinteresse ou falta de sensibilidade da mãe pela manutenção e organização do lar, independentemente de estar ou não a passar por uma crise depressiva, sendo certo que, pesem embora os esforços feitos pelas instituições intervenientes, a apelante descurou a frequência das sessões de apoio psicológico, mesmo antes da institucionalização da menor (vide factos 7 m) e n), 8 c)). De resto, a própria Dr.ª “E”, psicóloga que acompanhou a mãe da menor nas consultas referidas nos autos e que os apelantes mencionam nas conclusões 13.ª, 14.ª e 36.ª c), comunicou ao tribunal, em 01.9.2011 (fls 661), a impossibilidade de a mãe da menor continuar a ser seguida naquele serviço (Associação “M”), “decisão clínica” essa cujas razões eram as “constantes faltas da utente às consultas de Psicologia, prejudicando o estabelecimento da relação e do processo terapêutico.”
Afinal, os “quatro tipos de ajuda”, propugnados pelos apelantes (conclusão 36.ª), já foram tentados no âmbito deste processo de promoção e proteção, sem sucesso duradouro.
Sendo certo que as “contradições” apontadas nas conclusões 16.ª a 25.ª, entre uma mãe que é arrogante e resistente à mudança e uma mãe que acata o que lhe dizem, é meramente aparente: conforme resulta da matéria provada, houve alguns períodos de melhoria, só que de escassa duração. De resto, as próprias declarações de aceitação por parte da progenitora não tinham, depois, sequência (vide declarações da Dra “Q”, directora adjunta e educadora social da Casa ..., datadas de 19.5.2011 e transcritas a fls 573, citadas pelos apelantes na conclusão 19.ª: “Ela [a mãe da menor] acata tudo o que lhe dizem, mas não dá continuidade no tempo, não integra como necessidade”).
Concorda-se, pois, com a decisão recorrida, na parte em que afastou o regresso da menor aos cuidados dos progenitores.
Vejamos, porém, se se mostram reunidos os pressupostos da confiança da menor para adoção.
Ficou provado que “entre a menor e a progenitora existe grande afectividade; sendo que os pais, principalmente a mãe, sofrem com a separação da filha” (n.º 13 da matéria de facto).
Concomitantemente, deu-se como provado que após a institucionalização da menor, ocorrida em 2.7.2010, a mãe manteve visitas regulares e frequentes à “A” (n.º 7 o) da matéria de facto).
Concretizando o referente às visitas, estas foram diárias, de 2.ª a 6.ª feira, com a duração de cerca de uma hora. Embora inicialmente sob o impulso das técnicas, no decurso da visita a progenitora dava banho à filha - declarações das técnicas prestadas em tribunal, em 19.5.2011, fls 571 a 573 dos autos.
Além disso, no dia 18.9.2010, dia de anos da apelante, esta lanchou com a “A” (fls 380). A criança deslocou-se à casa dos padrinhos para almoçar com estes e os pais, em 26.9.2010, dia dos seus anos (fls 380 a 382). A criança passou o Natal com os pais, de 24.12.2010 a 26.12.2010 e bem assim o Ano Novo, de 31.12.2010 a 02.01.2011 (fls 430, 433, 449). Em 12.6.2011 a “A” foi batizada, sendo padrinhos os supra referidos “N” e “O” (fls 593 a 596, 609, n.ºs 18 a 25 da matéria de facto). A “A” passou um dia, não determinado, de finais de Outubro de 2011, com os pais e os padrinhos, para comemorar o seu aniversário (fls 684 a 686). A “A” passou com os pais o Natal de 24 a 25.12.2011 e o Ano Novo de 31.12.2011 a 01.01.2012 (fls 730, 736, 747).
Aquando do internamento da “A” na “Casa ...”, ocorrido em 02.7.2010, “no início, a “A” tinha muita dificuldade em aceitar a separação da mãe no final da visita; depois, com o tempo começou a interiorizar e a perceber, porque também via os outros meninos na mesma situação” – declarações da Dr.ª “G”, Diretora e educadora social na Casa ..., a fls 572, datadas de 19.5.2011.
Sendo certo que a “A” “é uma criança que se encontra perfeitamente adaptada às rotinas e dinâmica do Centro de Acolhimento. É uma criança bem-disposta, meiga, disponível para a brincadeira e com facilidade de relacionamento, estabelecendo uma boa interacção com adultos e com os pares. Está a frequentar o Jardim de Infância, pertencente à Associação “M”, no qual é descrita como uma menina que interage muito bem com os seus pares e educadores. Participa com gosto nas actividades propostas, acompanhando o grupo da sua faixa etária.” (último relatório social de acompanhamento, elaborado pela ECJ de L..., datado de 30.9.2011, fls 676).
Ou seja, a menor mostra-se uma criança equilibrada, bem desenvolvida e feliz. O que seguramente assenta no excelente trabalho das pessoas que com ela interagiram na “Casa ...” (a filosofia de ação da Casa ..., enquanto instituição da CrescerSer, está bem retratada por Maria de Fátima Fernandes Pereira Líbano Serrano, em “Acolhimento temporário de crianças e jovens, experiência da CrescerSer – “case study”, in “Volume comemorativo…”, citado, pág. 283 e seguintes) mas, também, no contacto contínuo que a apelante “C” manteve com a filha, com ela forjando um forte laço afetivo.
Ora, se assim é, não é pensável, por violar a lei, confiar a “A” para adoção. A confiança para adoção pressupõe, como se expôs supra, que se mostrem seriamente comprometidos os laços afetivos próprios da filiação.
É certo que, no que concerne às visitas da mãe à menor, se consignou na decisão recorrida, em sede de motivação da matéria de facto, declarações de teor algo depreciativo, proferidas no debate judicial.
Assim, a assistente social da Casa ..., Dra “G”, caracterizou as visitas da progenitora como “um pouco pobres”, sendo que, não obstante existir afectividade entre mãe e filha, a mãe limita-se a estar com a filha, com ela ao colo, a ouvir música, sem por sua livre iniciativa estimular a criança, colocando-se ainda ao mesmo nível desta, sem assumir o "papel de mãe" e de alguma autoridade, havendo uma interacção, na sua perspectiva, pobre. Para além disso, referiu que a progenitora nunca se preocupava em perguntar às técnicas da instituição como estavam as coisas com a menor, na escola ou durante o dia, no fundo inteirar-se da situação diária da menor” (pág. 14 da decisão recorrida, quanto à motivação da matéria de facto). Também a educadora social da Casa ..., Dr.ª “Q”, no debate judicial, referiu que “da observação que fez durante as visitas efectuadas pela progenitora, verificou existir uma relação de afecto mas inexistir investimento consistente e interessado por parte da mãe, inexistindo por parte desta iniciativa para estimular a criança, através de jogos, pinturas, etc., só o fazendo quando se insistia; ou verificava que era a mãe a fazer de imediato as coisas (pintar, completar os puzzles); ficando a sensação de que a progenitora não identifica a necessidade de aprendizagem da menor e o estímulo que é necessário realizar; que a maior parte do tempo a criança estava ao colo da mãe, a ouvir música no telemóvel, o que não se revelava suficiente” (pág. 15 da decisão recorrida). Também a Dr.ª “R”, psicóloga na Casa ..., declarou “que se apercebeu de haver afectividade mútua entre a mãe e a menor, sendo que, de acordo com as suas declarações, a relação de interactividade deixava mais a desejar, sendo que muitas vezes era a própria “A” a ter iniciativa para as brincadeiras e a mãe nem sempre correspondia, faltando interacção, não podendo a visita resumir-se a colo e guloseimas. Além disso, referiu ainda que muitas vezes era a própria “C” a fazer pela “A”, por exemplo, um desenho, não estimulando a filha nesse sentido, mas substituindo-se a esta. Adiantou que quando se insistia com a progenitora, a mesma acabava por aderir às actividades lúdicas a ter com a filha; mas que a progenitora é muito passiva. Referiu que nas visitas iniciais a mãe investia mais, e que agora tinha uma atitude mais passiva. Adiantou que a progenitora não demonstrava preocupação, designadamente a inteirar-se das vivências diárias da menor.” (página 15 da decisão).
Mas tudo o exposto não apaga a realidade do nexo existente entre a apelante “C” e a “A”, que não se vê que assuma outra natureza que a de uma relação afetiva entre mãe e filha, como tal representadas no quadro mental tanto de uma como de outra (v.g., a mãe dá banho à filha, celebram a data em que uma deu à luz a outra, uma dá prendas à outra, valorizam a data em que a mãe nasceu, etc, etc…). Imagem essa que não parece, pelo menos nada transparece nos autos nesse sentido, trazer à menor qualquer sofrimento, por ausência, agressividade, indiferença por parte da mãe.
Ou seja, tudo indica que, pesem embora as dificuldades da apelante “C”, que a impedem de assumir na plenitude o encargo de cuidar da filha, a apelante representa para a menor “A” uma figura constitutiva do seu “EU”, uma ligação psicológica profunda e significante, parte integrante da sua personalidade, cuja continuidade deve ser preservada, conforme decorre diretamente de normas constitucionais como as que consagram o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento integral (artigos 25.º e 26.º, 69.º, da CRP) (cfr. Maria Clara Sottomayor, “Qual é o interesse da criança? Identidade biológica versus relação afectiva” in “Volume comemorativo dos 10 anos do Curso de Pós-Graduação “Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho””, 12, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 25).
Note-se que foi a apelante quem cuidou da menor até aos 3 anos e meio, período essencial ao processo de vinculação (vide, v.g., Carla Patrícia Pereira Oliveira, “Entre a mística do sangue e a ascensão dos afectos: o conhecimento das origens biológicas”, Coimbra Editora, 2011, pág. 39; “Programa de Estimulação do Desenvolvimento (0-24 meses) para Crianças em Acolhimento Residencial”, por Salomé Vieira Santos, Maria Manuela Calheiros, Conceição Ramos & Sara Gamito, in “Crianças em Risco e Perigo, contextos, investigação e intervenção”, vol. I, supra citado, páginas 195 a 197) e nunca quebrou o contacto com a “A” após a sua institucionalização. Não há registo nos autos de que, aquando da institucionalização, a menor manifestasse qualquer atraso, pelo menos significativo, no seu desenvolvimento. O que denota que, apesar das suas limitações, que impuseram, pela sua reiteração, a institucionalização da “A”, antes do acolhimento institucional a mãe deu à sua filha cuidados e atenções suficientes para satisfazer as suas necessidades, para o que também contribuiu, é certo, a já supra descrita intervenção das estruturas sociais de apoio.
Neste contexto, não se vê como se pode lançar a menor “A”, que tem uma mãe, que sabe que a tem, que a reconhece como tal, que demonstra querê-la e amá-la como tal, para a solução incerta da adoção, incerta por que a esmagadora maioria dos candidatos a adoptantes pretende adotar crianças com menos de três anos de idade (cerca de 80% dos candidatos, segundo um estudo publicitado em 2008 – vide Helena Bolieiro e Paulo Guerra, “A criança e a família…” , citado, pág. 336, nota 55), incerta porque, como facilmente se intui, o sucesso da adoção é tanto maior quanto mais tenra for a idade da criança a adotar (v.g., Carla Oliveira, “Entre a mística do sangue…”, citado, pág. 106, nota 208; “Programa de Estimulação do Desenvolvimento…”, citado, pág. 197), incerta porque se ignora se a “A” quer ser adotada…
E isto com a agravante de a medida de confiança para adoção não estar sujeita a revisão (n.º 1 do art.º 62.º-A da LPCJP) e implicar a cessação das visitas por parte da família natural (n.º 2 do citado art.º 62.º-A). Ora, se no caso de confiança a pessoa selecionada para adoção poderá perspetivar-se desde logo uma razoável probabilidade de sucesso na aplicação da medida, o mesmo não se passará se a criança for confiada a uma instituição para adoção. Aqui a medida contém em si um elevado grau de abstração, dada a imprevisibilidade significativa da existência de candidatos com as condições e motivações adequadas para adotar determinada criança, atendendo às suas características pessoais, como a sua idade e outras (qualificando esta solução legal - irrevisibilidade da medida - como “séria e inexorável violação dos direitos da criança”, vide Rosa Clemente, “Inovação e modernidade…”, citada, pág. 88).
Face a este obstáculo, que se nos afigura inultrapassável, que fazer?
Desde 2010 que no nosso ordenamento jurídico se prevê um instituto apto a proporcionar uma solução de proteção a crianças em perigo, de carater definitivo, sem ser a confiança para adoção.
Falamos do apadrinhamento civil.
Há muito que se fazia sentir a necessidade de “uma figura jurídica intermédia que estivesse “entre a adopção plena e o regresso da criança aos pais biológicos”, uma medida em que a criança continuasse “a manter o contacto com os pais biológicos, sendo limitados os direitos dos pais adoptivos (figura aparentada com a adopção restrita, tão caída em desuso)” (Helena Bolieiro e Paulo Guerra, obra citada, pág. 555; manifestando-se contra esta solução, tida como de “serviços mínimos”, vide Eduardo Sá, in Volume comemorativo…, citado, pág. 116).
O apadrinhamento civil, aprovado pela Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro e regulamentado pelo Dec.-Lei n.º 121/2010, de 27.10, procura responder à supra referida necessidade. Conforme a definição constante no art.º 2.º da Lei n.º 103/2009, o apadrinhamento civil “é uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento, constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil.” O apadrinhamento assenta essencialmente numa relação de afeto, sendo a integração em ambiente familiar uma sua nota distintiva, nomeadamente face à tutela, tendo por objetivo “permitir o desenvolvimento e/ou a criação de vínculos afectivos, tidos como indispensáveis para um desenvolvimento equilibrado e saudável da criança ou jovem, conferindo-lhe a possibilidade de desenvolver laços afectivos próprios das relações familiares de grande proximidade, tudo isto num ambiente que suporte o seu desenvolvimento integral” (Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil anotado, número especial do Observatório Permanente da Adopção, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Março de 2011, pág. 7). Tem como destinatários crianças e jovens cujos pais não estejam em condições de exercer de modo adequado as responsabilidades parentais, evitando-se, nomeadamente, a sua institucionalização ou pondo termo à mesma (Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil anotado, citado, pág. 7).
Os padrinhos exercem as responsabilidades parentais, ressalvadas as limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na decisão judicial que estabeleça o apadrinhamento (n.º 1 do art.º 7.º da Lei n.º 103/2009). É um vínculo jurídico que, em regra, concilia a manutenção de vínculos biológicos com os vínculos afetivos típicos do apadrinhamento. Com efeito, ressalvados os casos de pais que tenham sido inibidos das responsabilidades parentais por terem infringido culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes (n.º 3 do art.º 14.º e corpo do n.º 1 do art.º 8.º da Lei n.º 103/2009), os pais do afilhado beneficiam de diversos direitos, nos termos regulados no art.º 8.º da Lei n.º 103/2009, que lhes permitem, de forma que em concreto será mais intensa ou mais ténue, acompanhar o percurso de vida do filho. Tal flexibilidade, porém, tem um limite: “não se pode constituir um apadrinhamento civil – e entregar as responsabilidades parentais aos padrinhos – e depois entregar a criança ou o jovem mais ao cuidado dos pais do que dos padrinhos” (Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil anotado, citado, pág. 22).
O apadrinhamento, contudo, não se sobrepõe ou concorre com a adoção: nos termos do n.º 1 do art.º 5.º da Lei n.º 103/2009, o apadrinhamento só ocorrerá “desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adopção”. Como se escreve na obra supra mencionada (Regime Jurídico do Apadrinhamento Civil anotado, pág. 14), “o apadrinhamento tem uma vocação distinta da que preside à adopção: pretende responder a situações em que a manutenção dos vínculos com a família biológica a par de outros vínculos afectivos se revela a melhor solução para o interesse da criança ou jovem. Por isso, preenchidos que estejam os pressupostos da adopção, à partida, será essa a solução para onde se deve encaminhar o projecto de vida daquela criança ou jovem. Nestes termos, uma criança que possa ser adoptada não pode ser apadrinhada.
Se não se verificarem os pressupostos da adoção, então o apadrinhamento pode ser a solução, nomeadamente, para qualquer criança ou jovem menor de 18 anos “que esteja a beneficiar de uma medida de acolhimento em instituição” (alínea a) do n.º 1 do art.º 5.º citado) ou “…de outra medida de promoção e protecção” (alínea b) do citado n.º 1).
Mais, embora em regra seja necessário o consentimento dos pais do afilhado para o apadrinhamento civil (alínea c) do n.º 1 do art.º 14.º), o tribunal pode dispensar esse consentimento, além de outros casos, “quando, tendo sido aplicada qualquer medida de promoção e protecção, a criança ou o jovem não possa regressar para junto deles ou aí permanecer por persistirem factores de perigo que imponham o afastamento, passados 18 meses após o início da execução da medida” (alínea e) do n.º 4 do art.º 14.º).
Sendo certo que o apadrinhamento civil, embora em regra deva ser da iniciativa de alguma das pessoas ou entidades referidas no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 103/2009, pode também ser constituído oficiosamente pelo tribunal (n.º 3 do art.º 10.º) e pode constituir-se em qualquer altura do processo de promoção e proteção (n.º 3 do art.º 13.º da Lei n.º 103/2009).
O que, porém, sempre pressuporá a correspondente tramitação de habilitação e designação do(s) padrinho(s) (artigos 11.º e 12.º), ou seja, certificação de que o futuro padrinho ou os futuros padrinhos têm idoneidade e autonomia de vida que lhes permitam assumir as responsabilidades próprias do vínculo de apadrinhamento civil (n.º 1 do art.º 12.º), tudo com respeito pelo princípio da audição obrigatória e da participação no processo da criança ou do jovem e dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a sua guarda de facto, assim como do Ministério Público (n.º 6 do art.º 11.º, n.º 5 do art.º 19.º), eventualmente com debate judicial (n.º 6 do art.º 19.º). E devendo levar-se ainda em consideração os exigentes “factores de habilitação” enunciados no Dec.-Lei n.º 121/2010, de 27 de outubro, já supra referido, que regulamenta o regime jurídico do apadrinhamento civil, concretizando os requisitos e os procedimentos necessários à habilitação da pessoa que pretende apadrinhar uma criança, “factores” esses enunciados no art.º 3.º.
De registar, ainda, que também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem que, tendo sido encaminhada para adoção (“beneficiando de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção ou a pessoa seleccionada para a adopção” – n.º 2 do art.º 5.º da Lei n.º 103/2009), se mostre, “depois de uma reapreciação fundamentada do caso”,”que a adopção é inviável” (n.º 2 do art.º 5.º da Lei n.º 103/2009).
Embora não se tenha falado, neste processo, expressamente na eventualidade de a “A” ser alvo de apadrinhamento, a certa altura ventilou-se a possibilidade de a “A” ser confiada aos seus padrinhos de batismo (aparentemente no âmbito da medida de proteção de confiança a pessoa idónea), tendo-se procedido em Agosto de 2011 a avaliação (fls 668 a 678), em que se deu parecer negativo, sobretudo porque as pessoas em referência (“N” e “O”), embora estivessem de acordo em dar apoio aos pais da “A” nos cuidados a ter com a menor, não encaravam a possibilidade de ficar com ela de noite, por recearem que a mãe a isso se opusesse. No relatório de avaliação apontou-se ainda, como fator negativo, os alargados horários de trabalho do casal.
Deu-se como provado, no que concerne a este casal, o seguinte:
18. Os progenitores da menor residem numa casa existente na Quinta ..., referida no ponto 3., pertença também de “N”.
19. O “B” aufere cerca de € 700,00 mensais; não pagando qualquer contrapartida pela utilização da casa; sendo que a água e a luz também são suportadas por “N”, que muitas vezes também acaba por ajudar o casal quando o dinheiro não chega e é todo gasto, pagando, designadamente, o passe da progenitora.
20. Pelo menos até Agosto de 2011, era “N” que lhes geria o dinheiro do salário, entregando-o conforme os mesmos necessitavam, sob pena de o gastarem desmedidamente.
21. Por vezes, agora mais pontualmente, é também o “N” que acorda o “B”, de manhã, para ter a certeza que o mesmo se levanta e faz os seus afazeres diários.
22. O agregado familiar de “N” é composto por este, pela mulher “O” e pelo filho de ambos, com 8 anos, “P”.
23. “N” e “O” também exercem funções/trabalham na Quinta, com início das actividades às 5:00 horas; permanecendo o filho a dormir sozinho em casa até às 7:00 horas, hora a que “O” se desloca a casa para acordar o menor e preparar-lhe o pequeno-almoço; sendo que no final do dia volta a casa às 18:00, onde deixa o filho sozinho, regressando novamente a casa às 20:00 horas.
24. Em 2 de Agosto de 2011, “N” e “O” manifestaram a intenção de apoiar os pais com a menor, designadamente nas refeições, no acompanhamento escolar e nas questões de saúde, desde que a menor pernoitasse em casa dos pais, não se mostrando disponíveis para ficar com ela a tempo inteiro, alegando receio quanto à eventual reacção da progenitora por não pernoitar com ela.
25. Em 27 de Fevereiro de 2012, em sede de debate judicial, “N” e “O” mostraram disponibilidade para acolher e assumir os cuidados da menor.
26. Enquanto a menor esteve institucionalizada, “N” e “O” não foram figuras presentes na Instituição.
Sobre isto escreveu-se na decisão recorrida o seguinte:
“E serão “N” e “O” alternativa em termos de resposta, com a consequente aplicação de medida de promoção e protecção de confiança a pessoa idónea?
A este Tribunal afigura-se-lhe que não! É um agregado familiar composto por três elementos, aqueles e mais o filho de ambos, com 8 anos; caracterizado como muito trabalhador e com uma rotina horária já estabelecida há muito, ao ponto de deixarem o menor de 8 anos sozinho em casa durante período em que “O” ainda anda nas lides da Quinta. Além de não surgirem como uma resposta devidamente estruturada, sendo que a integração da menor seria uma sobrecarga para esta família, ignorando-se de que forma e através de que meios seria dada resposta às exigências diárias da menor (não tendo sido minimamente abordada, em termos práticos, a forma de darem resposta à presença permanente da “A” em casa dos mesmos, sendo que não tem mais ninguém que os auxilie (v. g., empregada doméstica) e apenas contam com o apoio dos progenitores da menor); relevante para este Tribunal é [também] a circunstância de a vontade declarada em sede de debate judicial não se revelar séria e verdadeiramente sentida! Importa ter em consideração que em Agosto apenas pretendiam apoiar os pais nos termos descritos no ponto 24. dos Factos Provados, não tendo manifestado disponibilidade para acolher a “A” e assumir os seus cuidados a tempo inteiro, desde logo com receio de conflitos com a progenitora; tendo ambos alterado o seu discurso em sede de debate judicial, demonstrando agora toda a disponibilidade para cuidar da menor. É uma vontade meramente verbalizada mas não estruturada em termos práticos, desde logo considerando a falta de tempo que os dois revelam ter e, por outro lado, fazendo denotar que os motivos poderão ser outros que não o exclusivo interesse em zelar pelo bem-estar da criança de forma plena e eficaz, sendo que também não basta para o efeito ter receio de "a perder!", conforme verbalizou “N”, que para todos os efeitos também delega na companheira todos os cuidados que o filho de 8 anos exige.
Importa ter em consideração que este agregado familiar depende muito do “B” (e da “C”), tendo sido a própria “O” a verbalizar que não arranja mais ninguém para exercer aquelas funções. Sem pôr em causa o declarado gosto e afecto que têm pela menor (não obstante não terem sido figuras presentes durante todo este período em que a “A” esteve na Instituição, salvo aquando das saídas da mesma), certo é que para “N” e “O” manter este agregado familiar na Quinta é essencial, sendo que o regresso da menor àquele espaço asseguraria essa permanência. Além do mais, importa pensar que tipo de educação seria dada à “A”, se a estabelecida pela “O” e, sendo esta porventura do desagrado da progenitora, com eventuais conflitos (que foram referenciados em Agosto), negativos para a estabilidade da menor; se, para evitar esses conflitos, a querida pela progenitora, permanecendo a menor na mesma situação.
Se se afastou aqui, de forma motivada, a competência dos pais para educar e acompanhar a tempo inteiro a filha não se vê que vá ao encontro dos interesses da menor (com a inerente necessidade de a afastar de determinados perigos) aplicar uma medida que acabaria por consubstanciar uma medida de apoio junto dos pais encapotada, ficando a menor entregue a tempo inteiro aos cuidados da progenitora, que surgiria como solução/resposta prática para “O”, que é uma mulher muito atarefada e, face ao que se apurou, não tem disponibilidade de ter a seu cargo uma criança de 5 anos (e não pretenderá com certeza deixá-la sozinha com o filho de 8 anos, nos momentos em que se ausenta de casa para se ocupar das lides da Quinta).
Em conclusão, este agregado familiar não surge de forma séria e estruturada como alternativa à menor! Não são vontades sem sustento e sem uma real e sincera motivação (caracterizada esta por ser exclusivamente direccionada para os interesses da menor e no que é melhor para esta) que podem surgir como alternativa a uma criança que tem direito a um futuro mais firme, sustentado e sem conflitos!”
As considerações da decisão supra apontam para o afastamento da solução do apadrinhamento civil como projeto de vida da menor.
Sendo certo que a confiança da menor aos padrinhos nem sequer foi aflorada nas alegações de recurso.
E, dada a juventude do instituto em Portugal, não há elementos que permitam ajuizar da viabilidade do apadrinhamento por outras pessoas, que a tal se tenham candidatado.
De todo o modo, “N” e “O” são, respetivamente, padrinho e madrinha de batismo da pequena “A”. O que ainda tem, na nossa sociedade, uma força simbólica com algum peso.
“N” e “O” manifestaram vontade de cuidar da criança.
É certo que as suas circunstâncias de vida dificultam o bom desempenho desse encargo, mas não vemos que lhes seja impossível proceder às alterações ou tomar as providências que para tal se afigurem necessárias.
Também é certo que entre “N” e “O” e os progenitores da “A” existe uma ligação de natureza económica, que pode influenciar as motivações dos primeiros no que concerne à menor. Mas tal não significa que esse seja o único fator relevante, nem que esse fator, a existir, impeça a existência, atual ou futura, de uma ligação afetiva significativa entre os padrinhos e a “A”. O apadrinhamento civil e a adoção constituem o desfecho de um processo em que muitas vezes, no seu início, os candidatos a adotantes ou a padrinhos nem sequer conhecem os potenciais filhos adotivos ou afilhados.
De resto, o apadrinhamento civil beneficia de um sistema de apoio por parte do Estado, tendo em vista criar ou intensificar as condições necessárias para o êxito da relação de apadrinhamento (art.º 20.º da Lei n.º 103/2009).
De todo o modo, não estão reunidas as condições, inclusive do ponto de vista formal/processual, para esta Relação proferir decisão sobre a constituição de uma relação de apadrinhamento civil relativamente à “A”.
Essa é questão que fica em aberto, para apreciação na primeira instância.
Por ora, haverá que revogar a decisão recorrida e substituir a medida aplicada, por uma outra.
São conhecidos os atributos negativos associados ao acolhimento em instituição: pouco espaço para a individualidade, dificuldade no estabelecimento de relações estáveis com figuras significativas, desresponsabilização por parte da família, estigma social, tudo com as correspondentes perturbações ao nível do desenvolvimento e comportamento (vide, v.g., “As múltiplas faces da institucionalização de crianças e jovens”, Luísa Ribeiro Trigo e Isabel Alberto, pág. 125 e seguintes, in “Intervenção com crianças, jovens e famílias”, Universidade do Minho, Almedina, Dezembro 2010). Daí que, ao nível das medidas de colocação (por contraposição às medidas a executar em “meio natural de vida”), se defenda a preferência pela medida de acolhimento familiar, a qual proporciona à criança ou ao jovem um modo de vida mais individualizado e melhor inserido no dia a dia da comunidade, sendo aliás essa a medida de colocação preferencial em países como o Reino Unido, Irlanda, Dinamarca (vide “O acolhimento familiar em Portugal: conceitos, práticas e (in)definições”, Paulo Delgado, in “Intervenção com crianças, jovens e famílias”, citado, pág. 287 e seguintes; “O acolhimento familiar de crianças – uma perspectiva ecológica”, Paulo Delgado, Profedições, Julho 2011) – contrariamente ao que ocorre em Portugal, em que, porventura por razões históricas, culturais e até eventual falta de divulgação ao nível da captação de famílias acolhedoras, o acolhimento institucional é claramente maioritário.
De todo o modo, a institucionalização de crianças tem sido alvo de um novo olhar, no sentido de proporcionar às crianças acolhidas um local de vida mais individualizado, afetivo e estimulante, o que passa pela diminuição do número de crianças internadas por unidade de acolhimento, por maior estabilidade e preparação do pessoal interveniente, pela abertura ao contacto com a família ou outras pessoas ligadas à criança e à boa inserção na comunidade (vide, além dos trabalhos, supra referidos, de Luísa Ribeiro Trigo e Isabel Alberto e de Paulo Delgado, o escrito de Maria de Fátima Fernandes Pereira Líbano Serrano, em “Acolhimento temporário de crianças e jovens, experiência da CrescerSer – “case study”, in “Volume comemorativo dos 10 anos do Curso de Pós-Graduação …”, citado, pág. 283 e seguintes; essa é, também, a filosofia consagrada na LPCJP: cfr. artigos 53.º e 58.º).
A “A” está bem integrada no CAT “Casa ...”.
Está em idade escolar e provavelmente iniciou agora a frequência do ensino básico.
É aconselhável, pois, que por ora a criança se mantenha na aludida instituição, em prazo que se fixa em um ano, sem prejuízo da revisão semestral imposta pelo art.º 62.º n.º 1 da LPCJP, ou de revisão anterior fundada em factos supervenientes que a justifiquem, nos termos previstos no n.º 2 do art.º 62.º da LPCJP.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a decisão recorrida e em sua substituição aplica-se a medida de acolhimento da “A” em instituição, pelo prazo de um ano, sujeita a revisão nos termos legais, de preferência a ser executada na “Casa ...”, onde a criança já se encontra.
Sem custas, por isenção (art.º 4.º n.º 2 alínea f) do RCP).

Lisboa, 22 de Novembro de 2012

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins