Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
63/21.5TRLSB-A.L2-5
Relator: GUILHERMINA FREITAS (PRESIDENTE)
Descritores: PROCESSO PENAL
ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA
DECISÃO INSTRUTÓRIA
IRRECORRIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PENAL
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: I - Mesmo sendo advogado, o arguido não pode recorrer por si só. Terá de o fazer por defensor ou através da constituição de mandatário.
II - A decisão instrutória é irrecorrível, mesmo na parte em que aprecia nulidades, quer elas tenham sido suscitadas antes ou depois dessa decisão, a não ser na situação expressamente prevista no art. 309.º, do CPP.
III - Não tendo havido qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público, no que respeita aos crimes pelos quais o arguido/reclamante foi pronunciado, a decisão instrutória é irrecorrível.
IV - O Tribunal Constitucional tem entendido, por várias vezes, que a garantia concedida no n.º 1, do art. 32.º, da CRP, assegura, em matéria de processo criminal, o duplo grau de jurisdição, mas obviamente não estendido a toda e qualquer decisão, mas somente às situações mais graves e genericamente a todas as decisões que conheçam do mérito da acção penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
R --------------, arguido nos autos, reclama, ao abrigo do disposto no art. 405.º do CPP, do despacho proferido pelo Tribunal reclamado, em 16/9/2024, o qual não admitiu o recurso por si interposto, em 21/8/2024, da decisão instrutória, pedindo que o recurso seja mandado admitir, com os fundamentos que invoca a fls. 2 a 3 destes autos, que aqui se dão como reproduzidos.
O despacho reclamado não admitiu o recurso, em primeiro lugar, por se mostrar subscrito pelo próprio, e se entender que a regra que permite aos advogados advogarem em causa própria é inaplicável aos casos em que o advogado é, ele próprio, arguido em processo penal, em segundo lugar porque a decisão é irrecorrível e em terceiro lugar porque o recurso foi interposto extemporaneamente.
Conhecendo.
Comecemos por analisar o primeiro motivo pelo qual o recurso não foi admitido.
O cerne da questão está em saber se um arguido, que é advogado, pode recorrer por si só, sem ter de o fazer por defensor ou através da constituição de mandatário.
Entendemos, à semelhança do que já foi decidido no âmbito da Reclamação n.º 5869/09.0TDLSB-A.L1, da 5.ª Secção deste tribunal, que mesmo sendo advogado, o arguido não pode recorrer por si só.
Como aí se referiu “Concorda-se com o despacho reclamado, ao não admitir a dedução de recurso pelo próprio arguido, seja ou não advogado, pois que essa posição processual implica a existência de apoio técnico autónomo a efectuar por advogado que não seja arguido no processo, visto que os direitos e deveres do arguido, não são totalmente compatíveis com os direitos e deveres do seu defensor (vide a título de exemplo o disposto no art.º 352.º do Código de Processo Penal).
É pois essa uma das razões, que leva a que a nossa lei processual penal no seu art.º 64.º, n.º 2, al. d) (actual al. e) do Código de Processo Penal, exija que nos recursos ordinários e extraordinários seja obrigatória a assistência de defensor, decorrendo tal exigência do imperativo constitucional vertido no n.º 3 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa «O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.»
No sentido aqui apontado vejam-se os Acds. da Relação de Lisboa, de 25/05/2006, Proc.º 4498/06-9ª, em que foi Relator, João Carrola e de 14-03-2007, Proc.º 1270-3ª, em que foi Relator, Rui Gonçalves (este com sumário disponível em www.dgsi.pt) e a decisão em Processo de Reclamação para o Presidente, proferida em 21-12-2007, Proc.º 10034/07-9ª, pela Vice-Presidente deste Tribunal, Filomena Clemente de Lima.”
Alega o reclamante que uma tal interpretação do art. 64.º, n.º 1, al. e), do CPP, colide com o disposto nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 2 e 32.º, n.º 1, ambos da CRP, sendo inconstitucional, na medida em que acarreta uma compressão do direito de defesa.
Não cremos, porém, salvo o devido respeito, que assim seja.
Conforme se refere no Ac. da RG de 18/12/2017, proferido no âmbito do Proc. 143/15.6T9PTL-B.G1, disponível in www.dgsi.pt, com o qual se concorda, “Uma das garantias do processo criminal estabelecidas no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, a plasmada no nº 3 é a de que “o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.”
Como afirmam em anotação J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira a este artigo (2) “a assistência do defensor é, segundo a Constituição, um direito do arguido em todos os actos do processo (i. é, em todos os actos em que o arguido intervenha ou possa intervir), sendo obrigatória independentemente da vontade dele (…) Incumbe também à lei (depois da revisão de 1997) especificar os casos em que é obrigatória a assistência por advogado. Trata-se de uma concretização do direito ao advogado que implicará uma densificação legal dos casos e fases em que se torna indispensável a competência, a experiência e saber de um profissional do foro para tornar efectiva a defesa nos momentos processuais decisivos à garantia dos direitos materiais e processuais (interrogatório para decretação de medidas de coacção, audiência de julgamento, exercício do direito de recurso)”
Esta garantia vem a ter consagração na lei processual penal quando entre a panóplia dos direitos e deveres processuais do arguido, firmados no artigo 61º do Código do Processo Penal, fica estabelecido nas alíneas e) e f) do nº 1 que “o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos a “constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor” e de “ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele”.
Já no dispositivo legal do artigo 62º do mesmo diploma encontramos versado que “O arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo”, ao passo que no nº 2 daquela norma se firma que “Tendo o arguido mais do que um defensor constituído, as notificações são feitas àquele que for indicado em primeiro lugar no acto da constituição.”
Prudentemente, mais uma vez regulamentando o estatuído em sede constitucional, o Código de Processo Penal vem estabelecer, à luz do disposto no artigo 64º quais os actos em que há obrigatoriedade da assistência do defensor, de cuja leitura se extrai serem aqueles onde é pungente a defesa dos direitos fundamentais do arguido e quando está em causa o debate de questões eminentemente jurídicas.
Tendo Portugal recepcionado no seu Direito a Convenção Europeia dos Direitos do Homem sempre este direito estaria acautelado por força do disposto no artigo 6º, parágrafo 3, alínea c) e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que igualmente o consagra no seu artigo 14º, nº 3, alínea d).
Todavia a nossa Constituição, como a nossa lei de processo penal não fez tal recepção de forma automática ou genérica – como não tinha que fazer – posto que não estabeleceu, em diversas matérias, todas as soluções firmadas em tais diplomas de Direito Internacional.
O que fez, como tinha de fazer, era garantir os princípios fundamentais aí erigidos, no caso o direito do arguido a ser assistido por defensor, que pode ser por si constituído ou nomeado oficiosamente.
Não admitiu já o princípio da auto-defesa em processo penal, mesmo quando se tratem de arguidos Advogados, por diversas ordens de razões:
- Para defesa dos próprios, posto podendo estar em causa, como o determina o principio do mínimo penal, bens de superior valor como a liberdade, o património, o exercício de direitos civis e outros de imensa relevância, não quis que uma visão próxima, sempre e necessariamente apaixonada e afectada por sentimentos que podem toldar a objectividade viessem a tingir o núcleo das garantias e direitos do arguido.
Neste sentido diversa e profusa tem sido a jurisprudência quer do Tribunal Constitucional como dos Tribunais Superiores.
- Para defesa e protecção dos interesses de ordem pública e sua integridade, posto que o direito de defesa estabelecido em favor do arguido é, ainda, património do valor da justiça e do próprio processo.
(…)
- Em prol da defesa do órgão da administração da justiça que é o Defensor, com direitos e deveres próprios nos termos consignados na lei de processo penal nos artigos 62º e 63º, que podem nem sempre ser conciliáveis com a posição processual de arguido.”
Não foram, pois, violados pela decisão reclamada os preceitos constitucionais invocados pelo reclamante relativamente ao primeiro motivo de rejeição do recurso que interpôs.
Analisemos agora o segundo motivo pelo qual o recurso não foi admitido.
Dispõe o art. 310.º, n.º 1, do CPP, que:
“A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283º ou do nº 4 do artigo 285º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”.
No presente caso o arguido/reclamante foi pronunciado por factos que constam da acusação pública.
Assim sendo, a decisão instrutória é irrecorrível, mesmo na parte em que aprecia nulidades, quer elas tenham sido suscitadas antes ou depois dessa decisão, a não ser na situação expressamente prevista no art. 309.º, do CPP.
O princípio geral quanto ao recurso da decisão instrutória que pronuncia o arguido é o contrário ao estabelecido no art. 399.º, do CPP. Com efeito, este princípio especial de irrecorribilidade é firmado pelo art. 310.º, n.º 1, do CPP, ao estabelecer que a decisão instrutória que pronunciar o arguido não é recorrível, mesmo na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais, quando pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público e comporta apenas a exceção estabelecida pelo n.º 2, desse mesmo art. 310.º, por referência à nulidade da própria decisão instrutória, cominada pelo art. 309.º, n.º 1, do CPP, consistente em “…pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.
Não tendo havido qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público, no que respeita aos crimes pelos quais o arguido/reclamante foi pronunciado, a decisão instrutória é irrecorrível.
Suscita o reclamante a inconstitucionalidade material do disposto no art. 310.º, n.º 1, do CPP, por violação do princípio da ampla defesa e do direito ao recurso, consagrado no art. 32.º, n.º 1, e por violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º, n.º 1, ambos os preceitos da CRP.
Não cremos, porém, que lhe assista qualquer razão, porquanto é sempre admissível recurso da decisão final.
O Tribunal Constitucional tem entendido, por várias vezes, que a garantia concedida no n.º 1, do art. 32.º, da CRP, assegura, em matéria de processo criminal, o duplo grau de jurisdição, mas obviamente não estendido a toda e qualquer decisão, mas somente às situações mais graves e genericamente a todas as decisões que conheçam do mérito da acção penal.
As normas constitucionais citadas pelo reclamante não asseguram expressamente aos arguidos o duplo grau de jurisdição ou o direito de recorrer de todas as decisões jurisdicionais, que lhes sejam desfavoráveis, mas apenas das decisões condenatórias e das respeitantes à privação da liberdade e outros direitos fundamentais.
Analisemos, então, o terceiro motivo pelo qual o recurso não foi admitido, por ser manifestamente extemporâneo.
O arguido/reclamante esteve representado por mandatário no dia em que se procedeu à leitura da decisão instrutória – 30/4/2024 – e foi da mesma notificado em 11/5/2024 (cfr. fls. 448 e 454 dos autos principais).
O requerimento de interposição de recurso deu entrada em 21/8/2024, ou seja, muito para além do prazo legal de 30 dias, estabelecido pelo art. 411.º, n.º 1, al. a), do CPP.
É, assim, o mesmo extemporâneo.
Suscita o arguido/reclamante a inconstitucionalidade do art. 411.º, n.º 1, do CPP, por impossibilitar que o arguido recorra de qualquer decisão a qualquer tempo, o que acaba por compreender uma compressão significativa do direito de ampla defesa e do direito ao recurso, consagrados no art. 32.º, n.º 1, da CRP. Esta suscitada inconstitucionalidade não tem qualquer sentido, como bem refere a decisão reclamada. A ser assim as decisões nunca transitariam em julgado, violando-se, destarte, o princípio da segurança jurídica, também ele consagrado constitucionalmente.
Pelas razões apontadas, indefere-se a reclamação.
Custas pelo reclamante.
Notifique-se.

Lisboa, 16 de Outubro de 2024
Guilhermina Freitas – Presidente