Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2068/19.7T8FNC-A.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA
ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
FUNDO DE SOCORRO SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGAR PROVIMENTO
Sumário: I - O art. 864.º do CPC, atinente ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, visa a proteção do inquilino, por razões sociais imperiosas, não sendo diretamente aplicável ao arrendamento para fim não habitacional, designadamente do prédio arrendado a uma sociedade comercial para lar de terceira idade.
II - Trata-se de norma especial e não de norma excecional, pelo que não estava vedada a sua aplicação por analogia, numa situação em que se provou que no prédio se encontram a residir 17 pessoas idosas, sem alojamento, não tendo a Segurança Social, contactada para o efeito, capacidade para os acolher.
III - Tendo sido diferida a desocupação de imóvel arrendado para o aludido fim não habitacional, também cabe ao Fundo de Socorro Social pagar aos senhorios as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando sub-rogado nos direitos destes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

ML… e JV… apresentaram em 09-04-2019 requerimento de execução de decisão judicial condenatória, assim dando início à execução movida contra Carvalho Homem & Morna, Lda., que corre termos no Juízo de Execução do Funchal, com base na sentença de 05-02-2018 (confirmada por acórdão da Relação de Lisboa de 22-01-2019, transitado em julgado em 28-02-2019) que julgou procedente a ação de despejo que tinham intentado contra aquela sociedade.
Em 30-05-2019, o Sr. Agente de Execução suspendeu as diligências executórias de entrega do imóvel arrendado para “antecipadamente dar cumprimento ao disposto no n.º 6 do artigo 861.º do Código de Processo Civil”.
Em 01-06-2019, o Sr. Agente de Execução comunicou à Câmara Municipal do Funchal e ao Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM ter sido informado que os idosos utentes da residência assistida “QA…” não têm outra habitação onde residir, solicitando informação sobre se estavam registados para efeitos de realojamento.
Em 11-06-2019, a Executada veio requerer o diferimento da desocupação do imóvel cuja entrega é peticionada, alegando, em síntese, que: o seu objeto social consiste na atividade de apoio a pessoas idosas sem alojamento; a Residência Assistida "QA…" representa um importante meio de auxílio ao Instituto da Segurança Social que não tem meios para prestar assistência a todos os pedidos que recebe; acolhe presentemente 17 (dezassete) utentes, que dependem de apoio especializado aí prestado para viver em condições condignas, devido à sua idade avançada e patologias diversas; a desocupação do locado terá efeitos nefastos para todos os utentes (alheios a esta situação); nem o Instituto da Segurança Social nem os familiares dos utentes têm meios para assegurar o alojamento e a prestação de cuidados imediatos; o desequilíbrio financeiro entre as receitas e as despesas do estabelecimento, fruto da saída de alguns utentes e durante largos meses a ausência de entrada de novos utentes (por não obtido licença de utilização), levou a que ficasse impossibilitada de pagar com regularidade a renda, tendo dado prioridade ao pagamento dos salários dos funcionários e dos bens necessários ao bem-estar dos seus utentes.
Em 21-06-2019, os Exequentes contestaram, defendendo, em suma, que o artigo 864.º, n.º 1, do CPC apenas se aplica a imóveis arrendados a pessoas singulares para habitação e, portanto, não visa o benefício de pessoas coletivas com fins lucrativos.
Em 31-07-2019, foi proferido despacho determinando que se oficiasse à Segurança Social no sentido de informar se estavam asseguradas vagas em outras instituições de acolhimento, uma vez que estava em causa o diferimento da desocupação de “Lar” de 3.ª idade, residência de, pelo menos, 17 idosos.
Em 19-08-2019, o Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM, em resposta, informou que “(…) no presente, a capacidade instalada na vertente Estrutura Residencial para Pessoas Idosas encontra-se esgotada pelo que não consegue este Instituto satisfazer a vossa solicitação em tão curto espaço de tempo tendo em conta o número de cidadãos a acolher de uma só vez.
Contudo, estando sensíveis à situação, iremos promover o melhor enquadramento à medida que exista disponibilidade de acolhimento para os cidadãos em apreço.
Queira Vossa Excelência determinar o que tiver por conveniente.”
Em 13-09-2019, foi proferida a decisão (recorrida) cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Face ao exposto, defiro o requerido e concedo à executada o prazo de 5 (cinco) meses, a contar da data do trânsito em julgado desta decisão, para entregar o imóvel aos exequentes.
Mais determino que se comunique a presente decisão (com cópia da mesma e com cópia da sentença que se executa, ao Fundo de Socorro do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (nos termos e para os efeitos dos artigos 864º n.º 3 e 865º n.º 3 do CPC) e ainda ao Instituto da Segurança Social da Madeira.
Custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça cm 1 UC, a cargo dos exequentes.
Notifique”.
Notificado em 13-09-2019, veio o Instituto da Segurança Social, I.P. interpor recurso de apelação, em que pugna pela revogação do “despacho ora recorrido, na parte que determina a intervenção do Fundo de Socorro Social”, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho a fls., ... de 13-09-2019, na parte em que se determina a intervenção do Fundo de Socorro Social (FSS), do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social I.P., condenando-o no pagamento das rendas correspondentes ao período de diferimento, no valor mensal de €4.000,00 (quatro mil euros).
2. Da conjugação do preceituado no art.º 864.º n.ºs 1, 2 al. a) do C.P.0 e n.º 3 do mesmo preceito, resulta que são pressupostos/ requisitos cumulativos de intervenção do FSS os a seguir discriminados:
- que o contrato de arrendamento tenha por fim a habitação;
- que a resolução do contrato de arrendamento tenha por fundamento o não pagamento de rendas;
- que a falta do pagamento das rendas se deva a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento de inserção social;
3. Nos termos do previsto no art.º 864.º n.º 3 do C.P.C: “No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.”
4. O diferimento de desocupação de imóvel previsto no art.º 864.º do C.P.C. constitui um meio de tutela excepcional, por consubstanciar uma restrição ao direito de propriedade, estando reservado aos casos nele previstos (ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada), e se verificados os pressupostos/requisitos nele exigidos.
5. Na situação dos autos que merece todo o nosso respeito é, ainda assim, manifesto que não resultam verificados os pressupostos/requisitos legais cuja concretização cumulativa é condição necessária à intervenção do FSS.
Com efeito,
6. O contrato de arrendamento resolvido não tinha fim habitacional, mas destinava-se ao “alojamento local de apoio à terceira idade”, conforme referido na decisão de 05-02-2018.
7. Em sede do processo executivo, o legislador prevê nos arts.º 864.º e 865.º do C.P.C um regime próprio de proteção do arrendatário, consagrando as situações em que pode haver diferimento do imóvel arrendado para habitação.
8. No próprio despacho ora recorrido se reconhece que “o diferimento de desocupação do locado não foi desenhado para beneficiar sociedades comerciais...”
9. Salvo o devido respeito é manifesto que o art.º 864.º n.º 2 al. a) não é aplicável à situação dos autos, e tanto quanto nos parece não se afigura que seja possível a sua interpretação extensiva no sentido de determinar a intervenção do FSS.
10. Sem prescindir, sempre se dirá por mero dever de patrocínio, que igualmente não resulta provada a “carência de meios da arrendatária”.
11. O que releva é que a falta de pagamento de rendas se deva à carência de meios do arrendatário, situação que deve ser provada (excepto, no caso de presunção legal que afastasse a necessidade de tal prova, o que não ocorre) e não meramente deduzida, salvo o devido respeito, como parece resultar do despacho proferido, no qual apenas se depreende que a falta de pagamento de rendas adveio de uma situação económica deficitária da empresa, o que não está minimamente provado.
11. O despacho ora recorrido violou o disposto no art.º 864.º n.º 2 al. a) do C.P.C.
Foi apresentada alegação de resposta pelos Exequentes, em que defendem que a decisão recorrida deverá ser confirmada, concluindo nos seguintes termos:
 1ª)- A unidade do sistema jurídico impõe que se a situação dos autos merece a concessão à arrendatária do diferimento da desocupação do locado por interpretação extensiva da alínea a) do nº 2 do artigo 864º do CPC, também o sacrifício que esse diferimento exige aos senhorios na obtenção do locado deve merecer o pagamento da renda do período correspondente pelo Fundo de Socorro Social, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, em consequência de idêntica interpretação daquela norma;
2ª)- Outra solução importaria aos Exequentes, senhorios, um sacrifício injusto e desproporcional dos direitos de uso, fruição e disposição do imóvel locado, inerentes ao seu direito de propriedade.
Não foram apresentadas contra-alegações pela Executada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Face ao teor das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é a de saber se o Fundo de Socorro Social (FSS) do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social I.P. é responsável pelo pagamento aos senhorios das rendas, no valor mensal de 4.000 €, correspondentes ao período de diferimento (de 5 meses).
Factos provados
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos (alterámos o texto em conformidade com o Acordo Ortográfico e aditámos, ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC, o que consta entre parenteses retos, tendo em atenção os documentos aí referidos):
A. Por sentença de 05-02-2018, transitada em julgado, foi declarada a resolução do contrato de arrendamento que vigorou entre os ora Exequentes e a ora Executada, o qual teve por objeto o prédio urbano situado na Rua …, n.º …, lote …, freguesia de Santa Luzia, concelho do Funchal, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número … [com destino a “alojamento local de apoio à terceira idade” e mediante a renda mensal de 4 000,00 €]
[A.1 Nessa sentença, deu-se como provado, além do mais, que:
10. Embora com sucessivos atrasos, a Ré pagou a renda até à referente ao mês de outubro de 2015.
11. A Ré não paga as rendas desde a relativa ao mês de novembro de 2015, nem efetuou depósito liberatório, apesar das insistências do procurador do Autor].
B. Pela mesma decisão [na qual se considerou que “A ré não pagou as rendas referentes aos meses de Novembro de 2015 e seguintes, no valor de € 4 000,00 cada uma. Procede, assim, a pretensão do autor de ver resolvido o contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas], a ora Executada foi condenada a restituir tal prédio aos ora Exequentes, livre de pessoas e bens, bem como a pagar-lhes as rendas vencidas desde novembro de 2015 e uma indemnização correspondente ao valor mensal das rendas (4.000,00 € - quatro mil euros) por cada mês de utilização do locado até à sua entrega.
C. A Executada é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste na atividade de apoio social a pessoas idosas sem alojamento.
D. Presentemente encontram-se a residir no prédio referido em A) dezassete pessoas (utentes) com idades de nascimento compreendidas entre 26-06-1922 e 15-05-1948.
 E. A Segurança Social não tem, neste momento, capacidade para acolher os sobreditos utentes.
Enquadramento jurídico
O diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação está consagrado nos artigos 864.º e 865.º do CPC, nos seguintes termos:
Artigo 864.º
Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Artigo 865.º
Termos do diferimento da desocupação
1 - A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:
a) Tiver sido deduzida fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c) For manifestamente improcedente.
2 - Se a petição for recebida, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
3 - O juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 - O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder.
Na decisão recorrida teceram-se designadamente as seguintes considerações de direito:
“O caso vertente apresenta importantes especificidades que importa ter em conta nesta reflexão, uma vez que a decisão a proferir terá impacto não apenas nas partes do processo, mas também em terceiros.
Apesar de não haver dúvidas de que a executada prossegue uma actividade com fins lucrativos e que o diferimento da desocupação do locado não foi desenhado para beneficiar sociedades comerciais, o certo é que aquela acolhe presentemente 17 (dezassete) utentes idosos nas suas instalações residenciais e que a resolução do contrato ocorreu pela falta do pagamento de rendas, circunstância que se facilmente depreende ter advindo de uma situação económica deficitária.
À luz deste enquadramento fáctico de contornos especialíssimos, impõe-se ao Tribunal fazer uma interpretação extensiva do artigo 864º do CPC e concluir que a letra da lei ficou aquém do seu espírito, ou seja, que o legislador disse menos do que queria.
Tal como decorre do artigo 9º n.º 1 do CC, "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada".
Dada a idiossincrasia do caso concreto, em que a desocupação do imóvel afectará automaticamente dezassete idosos residentes no prédio objecto da presente execução, concluímos pela existência de imperiosos motivos de natureza social que, naturalmente, justificam o diferimento da desocupação do imóvel para permitir a saída dos utentes em condições de dignidade e não abruptamente.
À luz destes condicionalismos, reputa-se justo, proporcional e adequado fixar o para a desocupação do imóvel o prazo de 5 (cinco) meses.
O Apelante não questiona o segmento da decisão que deferiu, por 5 meses, a desocupação do imóvel arrendado, apenas se insurgindo contra a parte do despacho “em que se determina a intervenção do Fundo de Socorro Social (FSS), do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social I.P., condenando-o no pagamento das rendas correspondentes ao período de diferimento, no valor mensal de €4.000,00 (quatro mil euros.)”
Sustenta ter sido violado o disposto no art. 864.º, n.º 2, al. a), do CPC, por não estarem verificados os pressupostos que são, cumulativamente, condição necessária à intervenção do FSS: porque o contrato resolvido não tinha fim habitacional, destinando-se ao “alojamento local de apoio à terceira idade”, e por não estar provada a “carência de meios da arrendatária”; mais defende que o art. 864.º do CPC constitui um meio de tutela excecional, reservado aos casos aí previstos, pelo que não se afigura possível a sua interpretação extensiva no sentido de determinar a intervenção do FSS.
Apreciando.
Repete-se que não é objeto do recurso o segmento da decisão que, com fundamento na dita interpretação extensiva da al. a) do n.º 2 do art. 864.º do CPC, concedeu o diferimento da desocupação, pelo que nos parecem algo deslocadas as objeções levantadas pelo Apelante.
A respeito da inadmissibilidade da interpretação extensiva, não podemos deixar de ter presente o disposto no art. 9.º do CC, nos termos do qual:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Na interpretação do referido art. 864.º não podemos deixar de ter presente que um imóvel pode ser arrendado a uma (arrendatária) sociedade comercial para habitação de terceiros, por exemplo dos seus trabalhadores. Mas não nos parece que este normativo possa ser interpretado de forma extensiva para abranger uma tal situação (ou outras semelhantes, um lar de estudantes ou um alojamento local propriamente dito). Atente-se na letra da lei do n.º 2 do artigo: “a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.” Portanto, o legislador quis proteger o arrendatário – inquilino.
O Tribunal recorrido parece ter considerado - ao afirmar que a letra da lei ficou aquém do seu espírito e que “o diferimento da desocupação do locado não foi desenhado para beneficiar sociedades comerciais” - que o espírito ou a razão de ser do art. 864.º do CPC não abrangeria o imóvel dado de arrendamento a uma sociedade comercial, mas, a ser assim, não faz sentido a interpretação extensiva do preceito. Neste particular, o Apelante está certo. Porém, até pela alusão às especificidades do caso, as considerações desenvolvidas na decisão recorrida mais nos remetem para um juízo de identidade de razão, com a integração de uma verdadeira lacuna da lei, por via de analogia (cf. art. 10.º do CC).
Destinando-se o imóvel, conforme resulta do contrato de arrendamento, ao funcionamento de lar de terceira idade, não resultou provado que existisse licença de utilização para esse efeito. A Executada alegou que não existia, sendo certo que a Segurança Social, procurando prevalecer-se do fim não habitacional do contrato, poderia demonstrar que uma tal licença existia, atento o disposto no art. 1067.º do CC, o que não fez.
Mas admitindo, face ao estipulado no contrato e ao destino que efetivamente lhe tem vindo a ser dado, que o arrendamento em apreço tem fim não habitacional, é certo que não cabe na previsão expressa do n.º 1 do art. 864.º do CPC. Não significa isto que não seja possível, como mais nos parece ter sido o entendimento do Tribunal recorrido, aplicar analogicamente o preceito, para integração do que se afigura constituir uma verdadeira lacuna da lei.
Na verdade, contrariamente ao que defende o Apelante, o art. 864.º não é uma norma excecional, trata-se sim de norma especial, aplicável na execução para entrega de imóvel arrendado para habitação (a ser norma excecional, admitiria interpretação extensiva - cf. 11.º do CC). Neste sentido, veja-se Marco Gonçalves, in “Lições de Processo Civil Executivo”, 2.ª edição, Almedina, pág. 509 (sublinhado nosso): “(…) por razões de natureza social, o Código de Processo Civil prevê regras especiais para as execuções que tenham por objeto a entrega de coisa imóvel arrendada ou que constitua a casa de habitação principal do executado”.
Aliás, essa aplicação estendeu-se na decisão recorrida à alínea a) do n.º 2, quando aí se alude a carência de meios do arrendatário, tendo aqui o Tribunal recorrido lançado mão de uma presunção judicial (o que não lhe estava vedado - cf. art. 351.º do CC) e, assim, considerado que a falta de pagamento de rendas que constituiu fundamento de resolução do contrato adveio de “uma situação económica deficitária”.
Não tendo o recurso por objeto a decisão de diferimento da desocupação, não nos parece que possamos sindicar o acerto dessa decisão, incluindo, pois, da respetiva fundamentação de facto.
Assim, a questão a decidir é a de saber se numa situação como a dos autos em que, por força da interpretação extensiva ou aplicação analógica (para o caso, parece-nos indiferente) do art. 864.º do CPC, tenha sido diferida a desocupação de imóvel arrendado para o aludido fim não habitacional, também cabe ao Fundo de Socorro Social pagar aos senhorios as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando sub-rogado nos direitos destes.
Ora, desde já adiantamos que a resposta deve ser afirmativa, justificando-se igualmente na situação concreta em apreço a aplicação do citado n.º 3 do art. 864.º do CPC (ainda que por analogia).
Com efeito, não obstante a arrendatária seja uma sociedade comercial, a verdade incontornável é que o imóvel se destinava à habitação das pessoas idosas aí alojadas, as quais, como é consabido, merecem da parte do legislador, em particular em matéria de arrendamento urbano, uma proteção especial, evidenciada em diversos preceitos legais [exemplificativamente, artigos 26.º, n.º 4, al. c), 31.º, n.º 4, al. b), 36.º, n.ºs 1, al. a), e 10, e 57.º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 6/2006, de 27-02].
Por outro lado, é facto notório que se a generalidade das pessoas internadas em lares de terceira idade e carecidas de apoio (como é o caso), fossem forçadas a sair, de um momento para o outro, daquela que é a sua atual residência, se geraria uma situação carecida de apoio social, a providenciar precisamente pela Segurança Social. Aliás, a tramitação dos autos espelha isso mesmo, em face das comunicações efetuadas, tanto por parte do Sr. Agente de Execução, como do Tribunal, num claro apelo à intervenção do Instituto da Segurança Social, IP-RAM.
Porém, está provado (facto que a própria Apelante não questiona) que a Segurança Social não tem capacidade para acolher os residentes do lar, verificando-se que foi a falta de uma resposta social adequada por parte do competente Instituto da Segurança Social que determinou a existência das razões sociais imperiosas em que se estribou a decisão de diferimento da desocupação do imóvel arrendado.
Assim, parece-nos justo e adequado que seja o Fundo de Socorro Social a suportar perante os senhorios o pagamento das rendas em causa durante o lapso temporal fixado, justificando-se plenamente a aplicação ao caso, ainda que por analogia, do disposto no art. 864.º do CPC, conforme acima adiantámos.
Isto também porque nada nos autos sugere que estejamos perante uma situação de uso anormal do processo, em que as partes se tenham servido do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei – cf. art. 612.º do CPC.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso.
Vencido o Apelante, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso – artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC.
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida e condenar o Apelante no pagamento das custas do presente recurso.
D.N.

Lisboa, 11-12-2019
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua