Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8533/17.3T8SNT.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PESADO DE PASSAGEIROS
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONCORRÊNCIA ENTRE RISCO E CULPA
PRESSUPOSTOS
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: IÉ de admitir, em tese geral, e conforme vem sendo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), numa interpretação atualista do art. 505 do C.C., no sentido de que a responsabilidade objetiva do condutor só deve ser excluída quando o acidente for única e exclusivamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou resulte apenas de força maior estranha ao funcionamento do veículo;

IITal posição depara-se com naturais dificuldades de aplicação prática, impondo uma apreciação especialmente cuidada de cada caso em particular;

IIIExcluída a culpa do condutor do veículo pesado de passageiros na produção do sinistro, e apurando-se que o processo causal que gerou o evento e os danos daí emergentes não foi desencadeado exclusivamente pela conduta da A. lesada, ainda que com culpa leve, após queda da mesma junto à porta de entrada daquele pesado de passageiros onde pretendia entrar, sendo antes ampliado pelas características do próprio veículo e pelos riscos que a sua circulação envolve, é de fazer uma aplicação atualista do art. 505 do C.C., sujeitando a quantificação da indemnização devida à ponderação prevista no art. 570 do mesmo Código.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


A [Maria F.....] veio, em 1.5.2017, propor contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., ação declarativa sob a forma comum, para ressarcimento dos danos por si sofridos em acidente de viação ocorrido em 9.5.2014. Sustenta, em síntese, que no referido dia, pelas 7h30m, ao deslocar-se para o trabalho, depois de entrar no autocarro da Vimeca seguro na Ré, na Rua ..... ..... - A_____, e uma vez no seu interior, o referido veículo arrancou sem antes fechar a porta, tendo a A. sido projetada para o exterior e a roda deste esmagado o seu pé esquerdo. Em consequência, refere, a A. sofreu traumatismos e fraturas múltiplas que conduziram à amputação da perna esquerda abaixo do joelho, com graves consequências de índole patrimonial e não patrimonial que à Ré compete ressarcir.

Pede a condenação da Ré a pagar-lhe: a quantia de € 162.549,07, a título de indemnização por danos patrimoniais resultantes da perda da capacidade de ganho, acrescida de juros desde a decisão até efetivo e integral pagamento; a quantia mensal de € 419,22 a título de renda vitalícia para assistência de 3ª pessoa; a quantia de € 89.900,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a sentença até efetivo e integral pagamento.

Contestou a Ré, impugnando a factualidade alegada e invocando que foi a A. quem tentou entrar no autocarro quando este ia em andamento, desequilibrando-se, caindo e ficando com o pé debaixo da roda, pelo que o acidente terá ficado a dever-se a culpas concorrentes da A. e do condutor da viatura segura. Requer a intervenção da seguradora Fidelidade, porquanto o acidente rodoviário constituiu simultaneamente acidente de trabalho.

Admitido o incidente de intervenção principal provocada, veio a Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A., invocar a exclusiva responsabilidade do condutor do veículo seguro na Ré Allianz e pedir a condenação desta no reembolso das quantias por si pagas à A. no âmbito do contrato de acidentes de trabalho, no valor de € 66.456,81, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, pedido esse que veio a ampliar para um total de € 83.654,38 (fls. 264 e ss.).

A Ré Allianz contestou o pedido de reembolso, invocando a prescrição do direito da interveniente e impugnando os factos por esta alegados.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que conferiu a validade formal da instância, relegou para final o conhecimento da exceção de prescrição invocada, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova. Fixou-se ainda à causa o valor de € 353.061,87.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, em 18.1.2022, nos seguintes termos:
“(...)
a)- Julgo improcedente a excepção de prescrição invocada pela Ré Allianz relativamente à pretensão da interveniente Fidelidade S.A.
b)- Condeno a Ré Allianz a pagar à Autora a quantia de 37 500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos desde o dia seguinte à presente sentença até integral pagamento, contabilizados às taxas legais;
c)- Condeno a Ré Allianz a pagar à Autora a quantia de € 65 000 (sessenta e cinco mil euros) a título de danos patrimoniais, na vertente de perdas salariais e dano biológico, acrescida de juros vincendos desde o dia seguinte a presente sentença até integral pagamento, deduzido do montante pago até ao presente pela Ré Allianz por conta da indemnização final.
d)- Condeno a Ré Allianz a pagar à autora o montante de € 66 145,00 (sessenta e seis mil cento e quarenta e cinco euros) a título de danos patrimoniais com necessidade de assistência de terceira pessoa.
e)- Condeno a Ré Allianz a reembolsar a interveniente Fidelidade de 50% das despesas efectuadas por conta do sinistro, no montante de € 42 201,07 (quarenta e dois mil duzentos e um euros e sete cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.
f)- absolvo a Ré do demais peticionado pela Autora e pela Interveniente.
Custas por autora, interveniente e ré, em partes iguais.
(…).

Inconformadas, recorreram a A. e a Ré Allianz, esta subordinadamente.

A A. culmina as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A.Efectivamente, da prova produzida não podia a Meritíssima Juiz ter dado como provado que só existia um passageiro na paragem de autocarro. Sobre esta matéria veja-se o depoimento, constante do ficheiro 20210709110213_3932461_2871276, do minuto 3:28 ao minuto 3:50.
B.E que somente um passageiro entrou no autocarro. Sobre esta matéria veja-se o depoimento, constante do ficheiro 20210709110213_3932461_2871276, do minuto 3:28 ao minuto 3:50.
C.Por conseguinte não podia ter concluído que a Autora não entrou no autocarro. Sobre esta matéria veja-se o depoimento, constante do ficheiro 20210709110213_3932461_2871276, do minuto 3:58 ao minuto 4:31.
D.Também não podia ter dado como provado que o condutor do HC avistou a Autora ao tentar entrar no autocarro e que esta se desequilibrou. 
E.Por conseguinte, não podia a Meritíssima Juiz ter dado como não provado que a Autora não estava dentro do autocarro quando foi projectada para fora da viatura.
F.Também assim, não podia a Meritíssima Juiz ter dado como não provado que o autocarro estava longe de estar cheio.
G.Ao contrário do que é dito pela Meritíssima Juiz, que o "depoimento [de Ema …..] se revelou inverosímil, inconsistente e contraditório com o das restantes testemunhas", tal só se admite quanto à localização exacta do autocarro, porquanto em relação ao acidente propriamente dito nenhuma das testemunhas arroladas pela Ré afirmou ter presenciado o acidente.
H.Já quanto ao testemunho de António ….., que não só não presenciou o acidente como afirmou não se recordar do local onde estava sentado, a Meritíssima Juiz nada diz. Sobre esta matéria veja-se o depoimento, constante do ficheiro 20210714101555_3932461_2871276, do minuto 2:16 ao minuto 2:40

I.Deve, por conseguinte, ser proferida decisão que dê como provados os seguintes factos:
1.Que existiam, pelo menos, dois passageiros na paragem de autocarro;
2.Que a Autora chegou a entrar efectivamente no autocarro;
3.Que a Autora foi projectada para fora do autocarro;
4.Que a Autora não contribuiu para o resultado;

Pede a alteração da sentença, sendo a Ré condenada na totalidade do pedido formulado pela A..

Contra-alegou a Ré Allianz em conjunto com o recurso subordinado por si interposto, concluindo da seguinte forma:

A)O depoimento da testemunha Ema ….. foi devidamente desvalorizado pela Mma. Juiz, uma vez que o depoimento se revelou inverosímil, inconsistente e contraditório com as demais testemunhas inquiridas.
B)Foram várias as circunstâncias em que o depoimento da testemunha Ema ..... foi contrário ao das demais testemunhas, nomeadamente António ....., Carlos ..... e Sandra ....., testemunhas estas unânimes no relato da versão da queda da A. que mereceu acolhimento pelo Tribunal a quo.
C)De referir ainda que a testemunha Ema ….. não se encontrava no autocarro, mas no passeio nas imediações do local onde ocorreu o acidente, sendo assim impossível relatar o sucedido como se se encontrasse in loco.
D)O Tribunal deve levar em consideração todas as provas produzidas e apreciá-las de forma livre de acordo com a sua prudente convicção (cf. artigo 607.° n.° 5 do Código de Processo Civil).
E)A qualquer decisão sobre a matéria de facto tem de subjazer três princípios absolutamente essenciais a saber: o princípio da oralidade, o princípio da imediação e o princípio da livre apreciação da prova.
F)Por toda a análise e ponderação da prova produzida, entende-se que não será possível dar provimento ao recurso da Autora para que os aludidos factos sejam dados como provados.
G)No que ao recuso subordinado diz respeito importa considerar três aspectos: a responsabilidade, a indemnização na vertente de perdas salariais e a indemnização relativa à assistência de terceira pessoa.
H)Quanto à responsabilidade, tendo sido apurada a culpa exclusiva da Autora pela ocorrência do acidente, é afastada a aplicação do disposto no artigo 503.° n.° 1 do Código Civil por força do artigo 505.° do Código Civil.
I)O condutor do veículo seguro agiu diligentemente tendo ficado provado que a Autora que se desequilibrou, aquando da tentativa de entrar no autocarro, caindo na via, nunca se encontrando esta dentro do mesmo.
J)A Autora tentou entrar para o autocarro sem se assegurar que o poderia fazer em segurança, razão pela qual se afigura inequívoco que ela foi a causadora e única responsável pelo acidente.
K)Não sendo a Autora inimputável não poderá ser aplicado ao caso sub judice a interpretação singular do disposto no artigo 505.° do Código Civil, no sentido de concorrência entre a culpa exclusiva da Autora e o risco do veículo seguro.
L)Pelos factos apurados, designadamente o facto de o atropelamento se ter devido a culpa exclusiva da Autora deverá ser revogada a douta decisão recorrida, com a consequente absolvição da Ré.
M)Quanto à indemnização na vertente de perdas salariais, constata-se que se encontra desconforme com os cálculos apresentados pelo que, não é devida a condenação da Ré no pagamento do referido montante.
N)Ademais, tendo o Tribunal a quo condenado a Ré em montante único o devido quer na vertente de perdas salariais quer na vertente de dano biológico, não se encontra concretizado o valor respeitante a cada uma das vertentes indemnizatórias.
O)Quanto à indemnização por assistência de terceira pessoa foi determinado pelo Tribunal a quo que a Autora necessitaria da referida assistência, durante 3 horas por semana pelo período de 30 anos.
P)Tendo igualmente estimado o valor horário a 6 euros.
Q)Face ao exposto, o montante da condenação a este título afigura-se excessivo e desenquadrado das considerações anteriormente tecidas pelo Tribunal a quo.
R)Face a todo o exposto, requer-se a que seja ser negado provimento ao recurso da A. e seja julgado procedente o recurso subordinado da Ré uma vez que a douta sentença recorrida viola os artigos 483.°, n.° 2, 563.° e 564.° do Código Civil.”

A A. não respondeu ao recurso subordinado.

Os recursos foram ambos admitidos como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*

IIFundamentos de Facto:

a)-No dia 9 de Maio de 2014, pelas 7.30h, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes a Autora e o pesado de passageiros da Empresa Vimeca Transportes, de matrícula HC, conduzido por Carlos …..   .
b)-À data do embate, o veículo causador do acidente era propriedade da Vimeca, e conduzido por Carlos ….. às ordens daquela, encontrando-se a responsabilidade pelos danos causados a terceiros transferida para a Ré Allianz através de contrato de seguro titulado pela apólice n.° 200710344.
c)-Interveio após o acidente a Polícia de Segurança Pública, Comando Metropolitano de Lisboa, Divisão da A____, Esquadra de Trânsito de Q____, dando origem ao registo n.° 460/AC/14.
d)-À data do acidente a Autora residia na Av. ..... ....., n.° ... -...-...c/v ..., A_____.
e)-E trabalhava como assistente operacional no Serviço de Acção Social da Universidade de Lisboa.
f)-A Autora utilizava o autocarro da Empresa Vimeca Transportes Lda. para se fazer transportar para o seu local de trabalho.
g)-O veículo HC seguia na Rua ..... ....., a qual comporta duas faixas de circulação, com a largura total de 7,20m.
h)-O condutor do veículo HC imobilizou o veículo na paragem de autocarro existente na mencionada artéria, a fim de recolher um passageiro que nela se encontrava.
i)-Após a entrada do referido passageiro, e não vislumbrando qualquer outro passageiro para entrar, o condutor acionou o sistema de fecho da porta da frente do autocarro e iniciou lentamente a sua marcha.
j)-Nesse momento foi alertado por uma passageira dos bancos da frente que havia uma pessoa a pretender entrar no autocarro.
k)-O condutor do HC parou o veículo, abriu a porta da frente e verificou que a Autora, ao tentar entrar no autocarro se desequilibrou e caiu na via, ficando com o pé esquerdo debaixo da roda do autocarro.
l)-Em virtude do sucedido a Autora sofreu lesões traumáticas que lhe determinaram 491 dias de incapacidade com repercussão na sua actividade profissional, até à consolidação das lesões, tendo 91 dias sido de défice funcional temporário total e 400 dias de défice funcional temporário parcial.
m)-A Autora sofreu traumatismos vários, nomeadamente fracturas múltiplas, que conduziram a amputação pelo terço proximal da perna esquerda.
n)-a Autora foi assistida no local pelo INEM e posteriormente levada para o Hospital Egas Moniz, onde deu entrada no serviço de Cirurgia Geral II onde, no próprio dia, foi submetia a osteotaxia e sutura de retalhos cutâneos da perna esquerda.
o)-No dia 12/05/2014, por má evolução do quadro, foi submetida a fasciotomia descompressiva.
p)-No dia 29-05-2014 a Autora foi submetida a nova intervenção para amputação do terço proximal da perna esquerda.
q)-A 04-07-2014 a Autora foi transferida para o Hospital da sua área de residência - Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca onde manteve tratamentos de reabilitação.
r)-Teve alta a 07-08-2014 tendo sido transferida para clínica de São Cristóvão onde esteve até 15-09-2014.
s)-Posteriormente a Autora esteve institucionalizada na Cercitop onde esteve de 20-02-2015 até 05-03-2015.
t)-Entre 05-03-2015 e 30-09-2015 a Autora esteve no Club Sénior Apoio Social Lda.
u)-À Autora foi atribuído no âmbito do processo de acidente de trabalho um grau de incapacidade permanente parcial de 60% com IPATH e ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 30 pontos, impeditiva - atentas as sequelas - do exercício da actividade profissional habitual ou outra.
v)-À data do acidente a Autora tinha 52 anos.
w)-O acidente em causa foi caracterizado com acidente de trabalho, tendo a Autora, no âmbito do processo 21384/15.0T8SNT, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Sintra, Comarca de Lisboa Oeste, sido indemnizada pela Companhia de Seguros Fidelidade S.A.
x)-Até 05-09-2015 a Autora recebeu da Fidelidade a título de ITA e ITA c/ internamento a quantia de € 7612,76.
y)-Antes do acidente a Autora auferia a quantia mensal de € 501,19, acrescido de € 85,40 a título de subsídio de alimentação tendo após a alta a ficar a auferir uma pensão mensal vitalícia no valor de € 352,34.
z)-A Autora necessita de ajuda de terceira pessoa 3h/semana para actos da sua vida diária como, supervisão da sua higiene (nomeadamente tomar banho), vestir e despir e para a realização de tarefas domésticas como limpeza da casa e confecção de refeições.
aa)-Em sede de tentativa de conciliação, no âmbito do processo de acidente de trabalho, a Seguradora Fidelidade declinou o pagamento à Autora da prestação suplementar de assistência a terceira pessoa.
ab)-Os custos do lar estão a ser suportados pela Autora com apoio familiar.
ac)-Com parte da perna amputada a Autora ficou fisicamente desfigurada, o que agravou o síndrome depressivo severo de que a mesma já padecia.
ad)-Até ao acidente a Autora era uma pessoa profissionalmente activa, trabalhando, passando agora os seus dias no lar, maioritariamente sentada.
ae)-A Autora tem antecedentes de obesidade que se agravaram com a acidente.
af)-Durante os meses em que a Autora esteve internada a Autora teve dores que foram sendo mitigadas com recurso a fármacos, sendo o quantum doloris fixável em 6 pontos numa escala de 1 a 7 de gravidade crescente.
ag)-A Autora sofreu emocionalmente por estar privada da sua vida e confinada a quartos de hospital e/ou clínicas de recuperação por onde passou.
ah)- A Autora padece de um dano estético permanente de grau 4 numa escala de 1 a 7 pontos de gravidade crescente, tendo em conta a amputação da perna, a utilização de prótese e a necessidade de recurso a canadianas, tendo ficado igualmente com repercussão permanente nas suas actividades desportivas e de lazer de grau 2 numa escala de 1 a 7 pontos de gravidade crescente.
ai)-A Ré pagou à Autora em 02-11-2015, por conta da indemnização final a quantia de € 2239,67, referente ao remanescente em dívida pela incapacidade temporária absoluta.
aj)-Dado que o acidente configurou também um acidente de trabalho, a Autora foi assistida nos serviços clínicos da seguradora de Acidentes de Trabalho, a Fidelidade - Companhia de Seguros S.A.
ak)-No exercício da sua actividade a Fidelidade Companhia de Seguros S.A. celebrou com os Serviços e Acção Social da Universidade de Lisboa um contrato de seguro para cobertura de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.° AT62633542.
al)-Do acidente resultaram diversas ITA's e sequelas com IPATH de 60%.
am)-Nos termos do contrato de seguro de acidentes de trabalho que a entidade patronal havia celebrado, da participação do sinistro e das condições gerais e especiais do seguro no ramo de acidentes de trabalho a Fidelidade adiantou o pagamento de salários, despesas médicas e outras.
an)-Desde a data do acidente até 27-02-2018 a Fidelidade suportou as despesas elencadas no documento de fls. 95 a 97v., nas datas ali referidas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, no valor de € 66 456,81.
ao)-Posteriormente a 27-02-2018 a Fidelidade suportou as despesas elencadas no documento de fls. 266 a 270, nas datas ali referida, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

Deu-se ainda como não provado:
- Que no dia do acidente com a viatura da Vimeca parada na paragem de autocarros e a Autora já no seu interior o autocarro tenha arrancado sem primeiro fechar a porta, tendo a Autora sido projectada para fora da viatura.
- que a Autora tenha tido alta do Hospital Egas Moniz a 04/07/2014.
- que a Autora se tenha visto obrigada a ingressar num lar a fim de obter o apoio para as suas actividades da vida diária.
- que a Autora trabalhasse nas limpezas aos sábados.
- que o aumento de peso da Autora, após o acidente, lhe provoque angustia e ansiedade.
- que a Autora que viu o seu casamento de mais de vinte anos terminar em Outubro de 2015 se recuse a aceitar o seu estado de dependência de terceiros, sentindo-se um fardo para os familiares.
- que a Autora ainda sinta dor cada vez que faz certos movimentos.
- que o veículo HC seguisse com a lotação completa.
                                                 *
IIIFundamentos de Direito:

Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

Em causa estão dois recursos.

Compulsadas as conclusões de cada um deles, cumpre apreciar:

Apelação da A.:
- da impugnação da matéria de facto;
- da ausência de culpa da A. na produção do acidente com repercussão no montante indemnizatório devido.

Apelação da Ré Seguradora (recurso subordinado):
- da exclusiva culpa da A. na produção do acidente e da consequente absolvição da Ré;
- da indemnização devida por perdas salariais e por assistência de terceira pessoa.

A)Da impugnação da matéria de facto (recurso da A.):
Requer a A./apelante que seja dado como provado que:
1)existiam, pelo menos, dois passageiros na paragem de autocarro;
2)a Autora chegou a entrar efectivamente no autocarro;
3)a Autora foi projectada para fora do autocarro;
4)a Autora não contribuiu para o resultado.
Invoca que foi indevidamente desvalorizado o depoimento da testemunha Ema ….., no confronto com os depoimentos das testemunhas António ….. e Sandra …...
A apelada/Ré defende que foi feita correta apreciação da prova.
Sobre a dinâmica do acidente faz-se, na sentença, detalhada análise dos depoimentos prestados e de outros elementos probatórios disponíveis nos autos, salientando-se que apenas uma testemunha confirma a versão da A. neste tocante: “(…) A única prova nos autos que corrobora a versão da Autora é o depoimento da testemunha Ema ….., cujo depoimento de revelou inverosímil, inconsistente e contraditório com o das restantes testemunhas. Esta testemunha não estava no autocarro - referindo apenas “ter ângulo de visão aberto para o sítio do acidente” - mas reproduz o acidente ao pormenor de quem estava in loco (entendendo-se in loco como autocarro ou paragem), ao ponto de conseguir afirmar «que não ia gente em pé no autocarro”, que “quem ia no autocarro estava sentado”, “o condutor arrancou de porta aberta”. Mais refere a mesma testemunha que após o acidente o trânsito ficou parado e que ninguém andava nem para um lado nem para o outro. Esta descrição de factos atinentes ao acidente foi desmentida quer pelo condutor do autocarro - Carlos ….. - quer pelas testemunhas António .…. e Sandra ….., ambos passageiros no autocarro, em vários aspectos, a saber:
- quer o condutor do autocarro quer a testemunha António ….. referiram que a Autora não estava na paragem de autocarro, referindo o primeiro apenas a existência de um senhor de cor que foi o único a entrar para o telemóvel.
- quer o condutor do autocarro quer as testemunhas Sandra ….. e António ….. desmentiram a afirmação de que o trânsito ficou parado e não passava ninguém nem para um lado nem para o outro. E justificaram esta afirmação com a circunstância de eles próprios (Sandra .…. e António .….) terem apanhado outro autocarro pouco tempo depois, sendo que o mesmo utilizou a segunda faixa à esquerda, resultando assim que a mesma se encontrava desimpedida. Referiu ainda a testemunha António ….. que enquanto o autocarro se encontrava imobilizado continuavam a passar carros e autocarros na faixa da esquerda;
- quer a testemunha Sandra ….. quer a testemunha António ….. referiram, ao contrário do referido pela testemunha Ema ....., que iam pessoas em pé no autocarro, sendo a testemunha Sandra ..... uma delas;
- ao contrário da testemunha Ema ....., a testemunha António ….. e Carlos ….. referiram que o autocarro se imobilizou na paragem junto ao passeio, não utilizando a faixa de rodagem à esquerda, o que se coaduna em termos de verosimilhança com a circunstância de os dois passageiros que seguiam no autocarro e que foram ouvidas como testemunhas terem referido terem apanhado outro autocarro para seguir viagem na faixa de rodagem contrária.
Não é igualmente despiciendo referir que a tese de que a autora se encontrava dentro do autocarro e que este arrancou de portas abertas provocando o desequilibro e queda daquela apenas é trazida aos autos na petição inicial, não constando de mais nenhum elemento dos autos. Bem pelo contrário: atente-se na descrição do acidente feita pelo agente no auto de participação de acidente: “Conforme descrição do peão no local, o sinistro ocorreu devido ao condutor do veículo de matrícula HC ter iniciado a marcha quando esta entrava no autocarro, tendo desequilibrado e caído” (cf. fls. 49 v). No dia e hora do acidente, sem este lapso temporal que nos remete para o julgamento mais de seis anos apos o acidente, a Autora refere que estava a entrar no autocarro e não que já tinha entrado e estava dentro dele quando o condutor iniciou a marcha. A descrição do condutor, embora com menos relevo probatório neste particular, não deixa de ser no mesmo sentido (cf. doc. de fls. 51). Mas há mais: na informação prestada pela Autora, quando examinada no INML, consta - referido pela própria - que “quando se encontrava a tentar entrar no autocarro, sofreu queda e subsequente esmagamento do membro inferior esquerdo pela roda dianteira direita.”. Mais uma vez a referência pela própria Autora a que se encontrava a tentar entrar.
Em face do supra exposto não resultou provada - e daí ter merecido tal resposta - o primeiro facto do elenco dos factos não provados.
(…).”

Como é sabido, de acordo com o princípio consagrado no art. 607, nº 5, do C.P.C., o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. As provas são assim valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.

Por sua vez, ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá indicar, sob pena de rejeição imediata do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões), especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um desses factos e propor, ainda, a decisão alternativa sobre cada um deles (cfr. art. 640 do C.P.C.).

Admitindo que, no caso, a apelante/A. observará, ainda que minimamente, as exigências contidas nos arts. 639 e 640 do C.P.C. – ainda que não requeira a alteração, em concreto, de qualquer dos pontos de facto dados como provados, limitando-se a propor se julguem como assentes os quatro novos pontos acima indicados – vejamos, depois de ouvidos os depoimentos prestados e vistos os autos.

Desde já se diga que a apreciação levada a cabo em 1ª instância sobre a dinâmica do acidente com base nos meios de prova disponíveis não nos merece censura, corroborando-se aqui no essencial.

Com efeito, a versão constante da p.i. de que a A. entrou dentro do autocarro e este arrancou sem antes fechar a porta, causando o desequilíbrio da mesma A. e a sua projeção para fora da viatura, apenas foi afirmada em audiência de julgamento pela testemunha Ema ....., que, segundo disse, trabalhava numa pastelaria próxima de que a A. e a mãe eram clientes.

Esta testemunha refere que circulava no passeio do lado da paragem do autocarro em questão, mas descreve detalhes cuja existência não se mostra suficientemente consistente, atenta a distância provável a que se encontraria do local do sinistro associada a outros depoimentos prestados. Assim, refere que os passageiros seguiam todos sentados no interior do veículo (o que é claramente contrariado pelas testemunhas Sandra ….. e António ….., que seguiam no respetivo interior, a primeira das quais em pé), que o autocarro parou no meio da estrada e não junto à paragem (circunstância contrariada pelas mesmas testemunhas, como se explica na sentença), ou mesmo que os passageiros teriam gritado (conseguiria ouvir no exterior, no local onde se encontrava?) fazendo o condutor recuar a viatura.

Por sua vez, a alusão desta testemunha a que a porta estaria aberta quando o autocarro iniciou a marcha (e a A., no seu interior, teria sido projetada para fora), revela-se incompatível com o depoimento da referida testemunha António Gomes que, seguindo como passageiro, afirmou que, tendo aquele veículo iniciado a marcha, alguém terá chamado a atenção do condutor, batendo nos vidros e dizendo “Abra a porta! Abra a porta!”. Esta testemunha mostrou-se bastante segura na afirmação de que, quando alguém gritou (porque teria sido avistada a A. no exterior), as portas do autocarro estavam fechadas.

Além do mais, não se mostram apuradas ou descritas lesões sofridas pela A. compatíveis com a referida projeção da mesma, em desequilíbrio, para o asfalto a partir do interior da viatura, sendo razoável admitir que as consequências duma tal queda seriam seguramente mais significativas do que as resultantes de uma queda acidental da A. ao andar na rua (excluída, já se vê, a questão do traumatismo no pé esquerdo que, por sua vez, ficou debaixo da roda do autocarro).

Com exceção do mencionado pela referida testemunha Ema ….., ninguém confirma que a A. estivesse a aguardar na paragem do autocarro quando este ali chegou e que logo se tivesse dirigido ao mesmo com outro ou outros passageiros. O condutor do autocarro, Carlos ….., ouvido como testemunha em audiência de julgamento, referiu que apenas uma pessoa, “um senhor”, se encontrava na paragem, que parou o veículo ao sinal deste e que, quando o mesmo entrou, fechou a porta e iniciou a marcha, nunca tendo visto a A., nem pelo espelho retrovisor, o que se compatibiliza com os demais depoimentos sobre as circunstâncias que rodearam o acidente.

Veja-se ainda que, como se refere na sentença e acima transcrevemos, apenas na petição inicial se refere que a A. estava no interior do veículo quando este arrancou sem fechar a porta (causando-lhe desequilíbrio e queda para o exterior), não se mostrando, nos elementos disponíveis nos autos, particularizada tal concreta posição da A., seja na participação (fls. 48v, “descrição do peão no local”), seja, no relatório do INML (fls. 186). Estar “a entrar” ou “a tentar entrar” no autocarro quando caiu, não é o mesmo que já ter entrado para o respetivo interior (v.g., na plataforma junto ao condutor) e ter sido projetada para fora quando este iniciou a marcha de porta aberta.

Suscitam-nos, pois, dúvidas as afirmações da referida testemunha sobre a conduta da A. que não encontram relevante apoio em qualquer outro meio de prova e não se compaginam com as regras da probabilidade e da experiência comum.

Por seu turno, a descrição feita pela testemunha Carlos .…., condutor do autocarro, não obstante o seu envolvimento pessoal no sinistro, afigura-se mais convincente e lógica quando enquadrada pelos depoimentos das testemunhas Sandra ….. e António ….., que ali seguiam como passageiros. Estes não viram a queda da A. mas forneceram outras indicações que melhor se compatibilizam com a narrativa daquele condutor.

Deste modo, e contra o pretendido pela apelante, cremos que não foi feita prova segura de que existissem, na ocasião, pelo menos dois passageiros na paragem de autocarro e de que a A. chegou a entrar dentro do veículo pesado, sendo projetada para fora do mesmo (pontos 1, 2 e 3 propostos pela apelante).

Já quanto ao ponto 4 proposto no recurso – “a Autora não contribuiu para o resultado” – é evidente que estamos perante um juízo/conclusão sobre a conduta da A. que jamais poderia integrar o elenco dos factos provados.

Concluímos, deste modo, que as respostas à matéria de facto encontram plena justificação nos termos indicados pelo Tribunal a quo, não se surpreendendo contradição ou erro manifesto de avaliação entre os elementos de prova disponíveis e as indicadas respostas, o que significa dizer que a convicção expressa pela 1ª instância naquela matéria tem inteiro suporte naquilo que os meios de prova analisados fornecem.

Como temos referido noutras ocasiões, mesmo entendendo o princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, e segundo vem sendo entendimento maioritário do STJ, não deve esquecer-se que a Relação se defronta com inevitáveis limitações quanto à apreensão da prova produzida em audiência, com realce para a expressão física dos depoentes e/ou para outros sinais transmitidos por estes – muitas vezes, na “análise comentada” dos documentos ou fotografias com que são confrontados, como sucedeu neste caso – irrepetíveis na reprodução áudio em sede de recurso, deixando o juiz do julgamento numa clara vantagem de análise decorrente da imediação que sempre recomendará particulares cautelas na busca de uma “nova” ou “melhor convicção em sede de recurso.

Finalmente, relembramos que o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas (art. 607, nº 5, do C.P.C.).

Conforme acentua Luís Filipe Pires de Sousa([1]), o standard de prova que opera no processo civil é “o da probabilidade prevalecente ou «mais provável que não»”, devendo preferir-se, entre as várias hipóteses de facto, a que conte com um grau de confirmação superior com relação às demais, tal como deve preferir-se a hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que falsa.

Em suma, e por quanto se deixa dito, é de manter inalterada a resposta dada em 1ª instância à matéria de facto, improcedendo, nesta parte, o recurso da A..

B)Da responsabilidade na produção do sinistro (recurso independente e subordinado):
Aqui chegados, cumpre apreciar conjuntamente os recursos da A. e da Ré sobre a responsabilidade na produção do sinistro, mormente na contribuição da A. para mesmo.
Defende a apelante/A. a sua total ausência de culpa na produção do acidente (com repercussão no montante indemnizatório devido), enquanto a apelante/Ré invoca a exclusiva culpa da A. no ocorrido e a sua consequente absolvição, discordando da interpretação feita do art. 505 do C.C..

Na sentença faz-se desenvolvida análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e nos acidentes de viação em particular, concluindo-se, no essencial, que da factualidade apurada não resulta a culpa efetiva do condutor do autocarro, antes resultando que tal culpa será atribuível à A., atento o modo como terá tentado fazer a sua entrada no veículo, com o que ficou também afastada a culpa presumida do condutor do pesado (art. 503, nº 3, do C.C.). Adere-se, depois, de forma largamente fundamentada, a uma interpretação atualista do art. 505 do C.C., que vem ganhando apoio doutrinal e jurisprudencial, designadamente à luz do direito comunitário, no sentido de não ser de excluir o concurso da culpa do lesado com o risco do veículo, concluindo-se da seguinte forma: “(…) Assim, está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação actualista e não mecânica do art.° 505° do Código Civil no sentido de não implicar “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.° 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.° 511/14.0T8GRD.D1.S1), in, www.dgsi.pt.
Pelo que é de concluir que, devendo a interpretação das normas nacionais, referentes à responsabilidade civil objectiva, fazer-se de uma forma conforme ao direito comunitário, é de admitir a possibilidade de concurso de risco do condutor do veiculo com a conduta culposa do lesado, só sendo de excluir tal concurso quando o acidente for única e exclusivamente imputável ao próprio lesado ou resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art.° 570° do Código Civil.
No entendimento de Calvão da Silva, a partir do momento em que se adote o entendimento de que aquele preceito não exclui o concurso da culpa do lesado com o risco, a leitura atualizada do art.° 505° do Código Civil deverá ser esta: “sem prejuízo do disposto no artigo 570.° (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, a fortiori, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo (R.L.J., Ano 137.°, pág. 152). Dito por outras palavras, é de admitir o concurso de culpa da vítima com o próprio risco do veículo sempre que ambos colaborarem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo.
Afigura-se-nos oportuna a consideração feita por Brandão Proença a este respeito quando refere que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos- comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.
Na falta de definição rigorosa do que sejam os riscos próprios dos veículos, como conceito normativo ou indeterminado que é, temos que o risco tende a confundir-se com o perigo.
E é exactamente essa a questão que se coloca nos presentes autos: condutas/comportamentos reflexivos, como a maior parte das pessoas tem a apanhar transportes colectivos, de que são exemplo os autocarros e o metro. O comportamento de tentar entrar até à última, mesmo quando esse acto acarreta riscos. E estes comportamentos não são alheios ao exercício da condução de transportes colectivos de passageiros.
Os veículos colectivos de passageiros têm caraterísticas muito específicas que os distinguem dos automóveis ligeiros, desde logo o facto de o ruído interior poder silenciar uma chamada exterior, confiando o peão automaticamente na audição, e desvalorizando comportamentos autómatos por parte do condutor. A própria localização dos rodados nestes veículos a jusante da porta de entrada e de saída comporta um acréscimo de perigos/risco e danos para as consequências de eventuais quedas ou desequilíbrios.
Pela forma como ocorreu no caso sub iudice, temos como adequado fixar no equivalente a 50% do valor total dos danos a medida do risco do funcionamento do veículo contributivo para o acidente, da responsabilidade da R. por força do contrato de seguro.
(…).”

Vejamos.

A decisão proferida não nos merece reparo no essencial.

São pressupostos da responsabilidade civil em geral, o facto, o nexo de imputação, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade.

Como refere Dario Martins de Almeida([2]), em matéria de acidentes de viação com base na culpa entende-se por facto todo o comportamento do agente (ação ou omissão antijurídicas) condicionante do próprio acidente como processo causal que é. Já na esfera da responsabilidade objetiva ou pelo risco, continua o mesmo autor([3]), “a materialidade do facto coincide com o próprio evento resultante do risco-actividade. No que especialmente respeita a acidentes de viação, trata-se dos riscos inerentes à própria viatura que se mantém em actividade e de que se tira proveito.”

No que respeita à dinâmica do acidente aqui em análise, apurou-se que no dia 9.5.2014, pelas 7h30m, o veículo pesado de passageiros da Vimeca Transportes, matrícula HC, conduzido por Carlos ..... por conta da referida empresa, seguia na Av. ..... ....., A_____, que comporta duas faixas de circulação, com a largura total de 7,20m.

Mais se apurou que o referido condutor imobilizou o veículo HC na paragem de autocarro existente na mencionada artéria, a fim de recolher um passageiro que nela se encontrava, e que, após a entrada desse passageiro, e não vislumbrando qualquer outro passageiro para entrar, o condutor acionou o sistema de fecho da porta da frente do autocarro e iniciou lentamente a sua marcha. Nesse momento foi alertado por uma passageira dos bancos da frente que havia uma pessoa a pretender entrar no autocarro. O condutor parou então o veículo, abriu a porta da frente e verificou que a A., ao tentar entrar no autocarro se desequilibrou e caiu na via, ficando com o pé esquerdo debaixo da roda do autocarro.

Do descrito não decorre que o condutor do pesado de passageiros tenha agido em violação de qualquer regra de conduta que lhe fosse exigível, sendo de excluir a sua culpa efetiva na produção do sinistro([4]).

Por sua vez, tem de admitir-se que a A. terá contribuído para a verificação do evento ao tentar entrar no autocarro já depois de se encontrar concluída a entrada de passageiros sem que fosse avistada pelo condutor – quando, com elevada probabilidade, pelo menos se iniciara o fecho das portas ou estas se encontravam mesmo já totalmente encerradas e o veículo retomava a marcha – entrando em desequilíbrio e caindo.

Fica, pois, também ilidida a presunção de culpa que recaía sobre o condutor do pesado (art. 503, nº 3, do C.C.), sendo inevitável concluir que é de imputar à A. o atropelamento ao pretender entrar no veículo nas referidas condições, uma vez que se desequilibra e cai no asfalto, ficando com o pé esquerdo debaixo da roda do indicado veículo (que já iniciara entretanto a marcha).
Note-se que, como foi assinalado na sentença, nestes veículos de transporte coletivo a porta da frente e de entrada de passageiros, ao lado direito do condutor, situa-se, por sua vez, à frente do rodado dianteiro direito, o que representa uma especial perigosidade em caso de queda naquelas circunstâncias (conforme aqui se provou).

As particularidades do caso impõem precisamente a abordagem da questão da concorrência da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo com a culpa do lesado, baseada numa interpretação atualista do art. 505 do C.C..

Dispõe o art. 505 do C.C., sob a epígrafe “Exclusão da responsabilidade”, que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Por seu turno, o art. 570 do C.C., sob a epígrafe “Culpa do lesado”, estabelece que: 1.- Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. 2.- Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”

Segundo a doutrina e a jurisprudência dominantes durante largo período, a verificação da previsão do art. 505 do C.C., designadamente quando o acidente for imputável ao próprio lesado, exclui a responsabilidade objetiva do detentor do veículo. Isto é, a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado, não podendo concorrer ambas.

Essa corrente foi interrompida pelo Ac. do STJ de 4.10.2007([5]) que veio admitir a concorrência da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo com a culpa do lesado, afirmando, nomeadamente: “(…) Não se afigura, assim, compatível com o direito comunitário – e, designadamente, com o art. 1º da 3ª Directiva – a interpretação que, do art. 505º, vem fazendo a doutrina tradicional, no sentido de que a simples culpa ou a mera contribuição do lesado para a produção do dano exclui a responsabilidade pelo risco, contemplada no art. 503º. O efeito útil das disposições comunitárias acima aludidas impõe sempre a indemnização das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.
Como é entendimento do TJ, que diz decorrer dos arts. 189º (actual 249º) e 5º do Tratado CE, as jurisdições nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz das Directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de interpretação conforme.
É também a esta luz que entendemos, procedendo, dentro do possível, a uma interpretação conforme com o direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende CALVÃO DA SILVA, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570º.(…).”

Com efeito, o regime jurídico do seguro obrigatório e o direito da responsabilidade civil encontram-se hoje fortemente determinados por disposições comunitárias, sendo que, nos termos do art. 8, nº 4, da Constituição da República Portuguesa: “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”

Muito embora os tratados constitutivos da união europeia não contenham disposição expressa em relação à primazia do direito comunitário com relação ao direito interno dos países membros, a jurisprudência fundamental do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), hoje designado por Tribunal de Justiça da União Europeia([6]) definiu como elementos caracterizadores do direito comunitário a sua unidade, a sua globalidade e a sua primazia em relação aos ordenamentos internos([7]).

No âmbito específico dos acidentes de viação com veículos, o direito europeu vem-se pronunciando na perspetiva da proteção da vítima, tendo em vista o alcance social do seguro obrigatório. Isso mesmo foi refletido nas cinco diretivas comunitárias no âmbito do seguro obrigatório automóvel([8]) que determinaram sucessivas alterações no direito interno português culminando, a propósito da transposição (parcial) da 5ª Diretiva, na aprovação do DL nº 291/2007, de 21.8, que instituiu o atual regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e revogou, na íntegra, o DL nº 522/85, de 31.12, que vigorava nesta matéria.

Como refere J. C. Moitinho de Almeida([9]): “Existem hoje cinco directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel que, por um lado, visam a assegurar a livre circulação dos veículos com estacionamento habitual no território da Comunidade bem como das pessoas neles transportadas, e, por outro, a garantir que as vítimas de acidentes causados por esses veículos beneficiem de tratamento comparável, seja qual for o local em que o acidente ocorra.”

As preocupações referidas de proteção da vítima foram, como dissemos, sucessivamente salientadas nas mencionadas diretivas, dispondo o art. 1º-A da terceira Diretiva (introduzido pela 5ª Diretiva), que: “O seguro referido no nº 1 do artigo 3º, nº 1, da Directiva 72/166/CEE assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações.”

Mas esta preocupação transcende a legislação comunitária e tem ganho particular incremento com a atividade do Tribunal de Justiça, como no caso dos Acórdãos de 30.6.2005 (caso Kandolin) e de 19.4.2007 (caso Elaine Farrell)([10]).

Conforme se explicou no Ac. do STJ de 22.4.2008([11]), refletindo sobre a realidade normativa da União Europeia: “(…) Esta ideia de protecção da vítima compreende-se, aliás, perfeitamente face à enormidade que atingiu a circulação de veículos a motor e às suas consequências a nível da produção de danos, nomeadamente pessoais e, com infeliz frequência, de gravidade.
Está em sintonia com outros domínios em que a lei se afasta duma equidistância relativamente aos interesses em jogo, beneficiando os que entende merecerem protecção, como é o caso, entre outros, dos acidentados de trabalho, dos consumidores relativamente ao produtor e dos que são vítimas de crimes violentos.(…).”

E ainda, no mesmo aresto, diz-se a propósito dos dois aludidos Acórdãos do Tribunal de Justiça: “(…) Estes arestos, sem porem em causa o edifício da responsabilidade civil, afastam, em alguma medida, a rigidez dos pilares de betão em que assenta a construção emergente das nossas normas internas, incorporando neles materiais mais maleáveis e mais modernos que sustentam um tecto bem mais abrangente.
Assim, a culpa, como elemento em torno do qual gira a responsabilidade civil, foi afastada em ambos os casos, não relevando, nomeadamente no primeiro, a contribuição, bem culposa, do próprio passageiro/lesado. O risco de circulação do veículo – pelo menos como é entendido entre nós - não é referido como requisito, sendo certo que, por exemplo, o falado artigo 1.º da Terceira Directiva, de aplicação directa relativamente aos direitos dos particulares, alude apenas a danos pessoais “resultantes da circulação de um veículo”. Tudo vai ficando obnubilado pela necessidade de protecção dos lesados face à enormidade da circulação de veículos. Vem-se passando, afinal, quanto a este tipo de acidentes, dum “as vítimas serão indemnizadas se…” para um “as vítimas serão indemnizadas, salvo se…”. Inserindo-se este evoluir – cremos poder constatar – na própria evolução do modo de pensar consistente em, face a um acontecimento negativo, procurar o culpado, para outro, mais moderno e menos repressivo, de procurar antes a solução adequada.(…).”

A interpretação atualista do art. 505 do C.C. tem vindo, assim, a consolidar-se na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça([12])([13])

Como foi salientado no Ac. do STJ de 24.9.2020, citado em rodapé: “(…) A possibilidade de concurso entre risco e culpa foi ganhando a adesão da doutrina, designadamente de CALVÃO DA SILVA (RJL, Ano 134, pg. 112; Ano 137, pg. 35), SINDE MONTEIRO (Responsabilidade Civil, RDEc, Ano IV, nº 2, 1978, 313; Responsabilidade por Culpa, Responsabilidade Objectiva, Seguro de Acidentes, RDEc, Ano V, 1979, 317 e Ano VI/VII, 1980/81, 123), BRANDÃO PROENÇA (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação de dano extracontratual, Almedina, 1977; Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”, in CDP, nº 7, JUL/SET2004, pg.25), ANA PRATA (Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela, in Estudos em Comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, 345), AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 8ª ed. Revista e ampliada, 309), ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 10ª ed. Reelaborada, Almedina, 2006, 639 nota 1) e MARIA DA GRAÇA TRIGO (Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, UCP, 2015, pg. 467).
Por outro lado a legislação nacional foi consagrando situações de concorrência entre risco e culpa em outros domínios, designadamente na responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (DL 383/89, 6NOV, art.º 7º), nos acidentes com intervenção de aeronaves (DL 321/89, 25SET, art.º 13º e DL 71/90, 02MAR, art.º 14º) ou embarcações de recreio (DL 329/95, 09DEZ, art.º 43º) e produção e distribuição de energia eléctrica (DL 184/95, 27JUL, art.º 44º).(…).

De tudo o que se deixa exposto, e à luz da posição do TJUE, concordamos na possibilidade de concurso entre risco (próprio do veículo) e culpa, numa interpretação atualista do art. 505 do C.C., no sentido de que a responsabilidade objetiva do condutor só deve ser excluída quando o acidente for única e exclusivamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou resulte apenas de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Esta posição depara-se, porém, com naturais dificuldades de aplicação prática, impondo uma apreciação especialmente cuidada de cada caso em particular.

Numa abordagem cautelosa, afirma-se no Ac. do STJ de 11.1.2018, acima já citado: “(…) Sem prejuízo de, de iure constituendo, ser admissível que o regime do art. 505º do Código Civil venha a ser alterado, no sentido de se atribuir relevância à causação dos danos em lugar da causação do acidente, assim como sem prejuízo de poderem vir a ser introduzidas no nosso ordenamento jurídico soluções que protejam de forma plena e automática as vítimas estradais tidas como especialmente vulneráveis em função da idade e da situação de incapacidade (cfr., a este respeito, a síntese da relatora do presente acórdão em “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.), entende-se que, no plano do direito constituído, que este Tribunal deve aplicar:
(i)- Se impõe, em tese geral, a admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) pelas razões expostas no ponto anterior do presente acórdão;
(ii)- Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado;
(iii)- Implica sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa;
(iv)- Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado, pessoa maior e imputável, a indemnização deve ser totalmente excluída.”

Resume-se, por sua vez, no Ac. do STJ de 5.5.2022, também citado em rodapé: “(….) Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se (tem-se restringido) a dois casos:
I. — àqueles em que haja dolo ou culpa grave do lesado [.];
II. — ainda que não haja nem dolo, nem culpa grave, àqueles em que o facto do lesado deve considerar-se como causa exclusiva do acidente [.].
(…).”

Voltando à situação em análise, já vimos que a factualidade apurada afasta a culpa, efetiva ou presumida, do condutor do pesado de passageiros na produção do evento, não sendo possível afirmar que este violou norma estradal ou que agiu, nas concretas circunstâncias indicadas, quando podia e devia comportar-se de forma distinta. Em suma, não resulta apurado que o mesmo tenha violado qualquer dever de diligência ou prudência ou que tenha infringido disposição legal.

Já a A. contribuiu para a verificação do sinistro ao tentar entrar no autocarro fora das condições de segurança, já depois de se encontrar concluída a entrada de passageiros sem que fosse avistada pelo condutor (quando as portas já estariam a encerrar ou encerradas e o veículo retomava a marcha), entrando em desequilíbrio e caindo no asfalto o que permitiu que o rodado dianteiro do pesado passasse sobre o seu pé esquerdo, causando-lhe as lesões traumáticas descritas nos autos.

Tal conduta constitui, todavia, mais uma desatenção da A. justificada pela quotidiana convivência com os perigos da circulação, designadamente a vulgar utilização de transporte coletivos e a “pressa” de chegar ao emprego, do que uma deliberada exposição a um risco grave, seguindo o critério de apreciação levado a cabo no Ac. do STJ de 24.9.2020 já citado([14]).

Cremos, por isso, que desconhecendo-se até, verdadeiramente, as exatas condições da queda – sabe-se apenas que a A. “tentava entrar” no autocarro e se desequilibrou (pontos i) a k) supra dos factos assentes – não poderá falar-se em dolo ou culpa grave desta, mas quando muito em culpa leve.

Todavia, é inevitável que não foi indiferente ao resultado verificado o facto de estar em causa justamente um veículo pesado de passageiros, com um volume e massa significativos e cujo rodado dianteiro à direita se situa logo atrás da porta de entrada dos passageiros, criando uma especial perigosidade em caso de queda junto a tal porta naquelas circunstâncias. Acresce que, como também se assinalou na sentença, tratando-se de um veículo de transporte de passageiros, é natural que o ruído interior dificulte a audição de um qualquer chamamento a partir do exterior, confiando, todavia, o autor desse chamamento de que foi, de facto, ouvido.

Ou seja, o processo causal que gerou o evento e os danos não foi desencadeado exclusivamente pela conduta da A., ainda que com culpa leve, sendo antes ampliado pelas características do próprio veículo e pelos riscos que a sua circulação envolve.

Donde, a particular vulnerabilidade do peão, a A., e as circunstâncias em que se verificou o sinistro, após queda junto à porta de entrada do veículo pesado de passageiros onde a mesma pretendia entrar, sem que possa concluir-se por dolo ou culpa grave desta, justificam, em concreto, a aplicação atualista do art. 505 do C.C., sujeitando a quantificação da indemnização à ponderação prevista no art. 570 do mesmo Código.

Por sua vez, considera-se adequado e proporcional fixar em 50%, conforme sentenciado, a percentagem da redução da indemnização devida à A., respondendo a Ré seguradora do veículo pesado de passageiros por 50% dos danos resultantes do acidente.

Improcedem, assim, neste tocante, ambos os recursos, da A. e da Ré.
C)Da indemnização devida por perdas salariais e por assistência de terceira pessoa (recurso subordinado da Ré Seguradora)

Argumenta a apelante/Ré que no valor arbitrado por perdas salariais existe erro de cálculo, pelo que não é devida a condenação da Ré no pagamento do referido montante. Por sua vez, diz que tendo o Tribunal a quo condenado a Ré em montante único o devido na vertente de perdas salariais e na vertente de dano biológico, não se encontra concretizado o valor respeitante a cada uma dessas vertentes indemnizatórias.

Na sentença, atribuiu-se à A. uma indemnização no montante de € 65.000,00 pela perda de capacidade de ganho que esta reclamara no valor de € 162.549,07, fazendo-se análise da factualidade apurada e dos valores arbitrados no STJ a esse título, concluindo-se: “(…) Tendo presente o quadro factual apurado e os exemplos citados, podemos desde já avançar a pretensão indemnizatória da Autora não pode ser atendida na sua totalidade. Em primeiro lugar cumpre referir que à Autora foi fixada uma pensão vitalícia, no âmbito do processo laboral, de € 352,34. Pelo que teremos sempre que atender à diferença salarial de € 234,25 (586,59 - 352,34).
Não podemos esquecer que a Autora já recebeu a título de subsidio por situação de elevada incapacidade a quantia de € 4869,66 e recebeu salários até à data da alta, estando a ser paga mensalmente uma pensão vitalícia de € 352,34. Indemnização essa que visa justamente ressarcir a perda de rendimentos salariais associados ao grau de incapacidade laboral, um dano que, como vimos, integra o dano biológico na sua vertente patrimonial.
Assim, e para evitar um duplo ressarcimento do mesmo dano, aquele recebimento não pode deixar de ser considerado na fixação da indemnização por dano biológico.
Teremos a apontar que o cálculo da indemnização por perda de capacidade de ganho não se pode limitar à idade de reforma da vítima, mas sim ao termo do seu período provável de vida - a reforma não significa a cessação de rendimentos, mas antes a concessão de uma pensão que visa garantir a sobrevivência condigna até à morte, e que é calculada, em larga medida, de acordo com o período de contribuições para o sistema de segurança social e as retribuições declaradas. Havendo a notar que a vítima, mercê da incapacidade decorrente do acidente, deixou de poder contribuir na mesma medida em que o poderia fazer para a segurança social, o que significa que o dano decorrente da perda da capacidade de ganho se reflecte necessariamente na redução da pensão de reforma que poderia auferir em condições normais.
Está igualmente apurado que, mercê das lesões sofridas - em especial, a amputação pelo terço inferior da perna esquerda - a Autora ficou afectada de uma Incapacidade Parcial Permanente de 30%.
No entanto, é preciso ter em atenção que as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual. Ora, a lesada que se vê impedida de exercer a sua profissão habitual, está em posição de desvantagem em relação a outro que, mesmo afectado da mesma incapacidade parcial, não ficou impedido de exercer a sua profissão habitual.
De todo o modo, o que releva são os critérios de equidade, uma vez que as tabelas nos dão meras estimativas e concedem um minus indemnizatório, a corrigir e adequar às circunstâncias do caso através de juízos de equidade, que permitam a ponderação de variáveis não contidas nas referidas tabelas.
Em face do exposto, tendo em atenção o tempo de esperança de vida médio para as mulheres (de acordo com dados do INE) como sendo de 83 anos, que a Autora teve uma quebra salarial de € 234,25 x 14/ano e que ficou a padecer de uma incapacidade de 30 pontos, as graves sequelas físicas que lhe advieram, e as psicológicas que se agravaram, afigura-se-nos adequada a indemnização de 130 000,00€ a título de danos patrimoniais na vertente de perdas salariais e dano biológico.
Tendo em atenção a repartição de culpa/risco efectuada supra tem a Autora direito a uma indemnização de € 65 000,00.”

Analisando.

Como se refere no Ac. do STJ de 28.3.2019, também acima já citado em rodapé, a lesada terá direito a ser indemnizada por danos patrimoniais futuros resultantes da incapacidade permanente, correspondente à diminuição da capacidade geral de ganho.

Como também se afirma no dito aresto: “(…) Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; por isso mesmo, não deve ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução[..].(…).”

Admitimos, em tese, a possibilidade de ressarcimento autónomo do dano biológico, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial([15]), mas nada obsta que o mesmo se reflita e integre diretamente o dano patrimonial, o qual passará a ter não só em conta a previsível perda de remunerações mas também a privação de futuras possibilidades profissionais e a compensação pelo esforço acrescido que o lesado deverá suportar na vida profissional ou pessoal, atenta a incapacidade de que ficou a padecer em resultado do sinistro.

Ou seja, mesmo encarando o dano biológico como sendo um dano real ou dano-evento que não deve ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, o mesmo terá consequências que se enquadram numa dessas categorias, ou em ambas, conforme as situações([16]).

O denominado dano biológico corresponde, afinal, a uma diminuição psicossomática que se repercute ao nível da capacidade funcional do lesado, afetando a sua resistência e capacidade de esforço. Para esse efeito avaliam-se, assim, as acrescidas dificuldades que, por causa do acidente sofrido, o lesado passou a ter na capacidade de utilização do corpo para realizar atividades do dia-a-dia e/ou profissionais e na previsível maior penosidade na execução dessas tarefas.

Afirmou-se a propósito no Ac. da RL de 27.10.2015([17]): “(…) na aferição do dano biológico está em causa a avaliação da afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, bem como do reflexo do prejuízo funcional em termos de rebate profissional, ou seja, se as lesões são ou não compatíveis com o exercício da atividade profissional (para toda e qualquer profissão ou se apenas para profissão habitual), se implicam ou não esforços complementares. (…).”

Conforme também se assinalou no Ac. do STJ de 26.1.2017([18]), numa situação em que das lesões decorrentes do acidente de viação não resultou para a lesada uma perda efetiva do rendimento do trabalho: “(…) tem sido dado relevo ao facto de havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização.
Embora com contactos evidentes com os danos de natureza não patrimonial, o dano biológico não se pode reduzir a estes, na medida em que nos danos não patrimoniais apenas estão em causa prejuízos insuscetíveis da avaliação pecuniária e no dano biológico estão em causa prejuízos de natureza patrimonial, provenientes das consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado.(…).”

Feito este enquadramento, e percorrendo a factualidade assente sobre as consequências danosas do acidente para a A., cremos que pode prescindir-se, efetivamente, da autonomização do dano biológico relativamente ao dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade permanente com repercussão na vida laboral – o que não significa que não sejam ponderados os critérios subjacentes ao seu cálculo.

De salientar, ainda, a ponderação feita no Ac. do STJ de 6.12.2018([19]), sobre o cálculo dos danos futuros: “(…) a afetação da integridade físico-psíquica de que o lesado fique a padecer é suscetível de gerar danos patrimoniais, caso em que a indemnização se destina a compensar não só a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afetação, no período de vida expetável, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais e/ou de índole pessoal ou dos custos de maior onerosidade com o desempenho dessas atividades.
Neste contexto, para determinar a indemnização pelos danos futuros, utilizam-se habitualmente os seguintes critérios orientadores:
- A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado;
- As tabelas financeiras ou outras fórmulas matemáticas, a que, por vezes, se recorre, têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
- Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia;
Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa de vida do cidadão masculino médio, à progressão profissional, e aos previsíveis aumentos da remuneração salarial.(…).”

Resulta da matéria de facto que a A. tinha 52 anos de idade à data do sinistro (9.5.2014) e trabalhava como assistente operacional no Serviço de Ação Social da Universidade de Lisboa, auferindo a quantia mensal de € 501,19, acrescida de € 85,40 a título de subsídio de alimentação, tendo, após a alta, ficado a auferir uma pensão mensal vitalícia no valor de € 352,34.

Por sua vez, em consequência das lesões, veio a sofrer amputação pelo terço proximal da perna esquerda, sendo-lhe atribuído um défice funcional permanente da integridade física de 30 pontos, impeditiva - atentas as sequelas - do exercício da atividade profissional habitual ou outra.

É, pois, neste cenário que deve, em nosso entender, ser encontrada a indemnização global por dano patrimonial futuro decorrente da incapacidade permanente sofrida, incluindo o referido prejuízo da capacidade funcional e considerando o aludido dano futuro possível, sem descurar que a A. aufere uma pensão vitalícia de € 352,34.

Constitui jurisprudência dominante que o recurso às fórmulas matemáticas ou de cálculo financeiro para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros ou lucros cessantes jamais poderá substituir o prudente arbítrio do julgador e o apelo aos critérios de equidade referidos no art. 566, nº 3, do C.P.C.. Nessa medida, constituirão critérios últimos de compensação patrimonial por danos futuros a referida equidade a par da teoria da diferença prevista no nº 2 do mesmo dispositivo.

Se, por outro lado, as fórmulas matemáticas e os critérios financeiros permitem um cálculo mais objetivo quando existe perda, ou perspetiva de perda, de proventos por parte do lesado, já assim não sucede quando se visa apenas indemnizar o dano corporal e suas consequências futuras. Nesta situação a equidade ganhará, como é óbvio, um relevo decisivo.

Cumprindo aqui indemnizar o dano corporal sofrido pela A. numa vertente exclusivamente patrimonial e a previsível perda de ganho (este assente, à partida, nos rendimentos do trabalho anteriormente auferidos), deve considerar-se a incapacidade atrás assinalada decorrente do sinistro e as consequências daí decorrentes como o esforço acrescido que, por isso, esta passou a suportar na execução das tarefas normais da sua vida, bem como aquela perda salarial previsível.

Tendo em conta o tempo de vida provável da mesma, por referência à média estatística da esperança de vida para as mulheres portuguesas que será de cerca de 83 anos([20]), a quebra salarial sofrida e o défice funcional permanente da integridade física de 30 pontos, impeditiva do exercício da atividade profissional habitual ou outra, no plano estritamente material e económico, temos por adequado o montante indemnizatório arbitrado na sentença de € 130.000,00, respeitante a perdas salariais e dano biológico, por recurso à equidade, valor que não se afasta dos padrões jurisprudenciais habitualmente utilizados em casos semelhantes.

Donde, fazendo intervir o disposto no artigo 570 do C.C. e a proporção estimada de 50%, é devido à A. o valor de € 65.000,00, como foi sentenciado (isto é, deduzido ainda do montante entretanto pago pela Ré Allianz por conta da indemnização final).
*

Sustenta ainda a apelante/Ré, no que respeita à indemnização por assistência de terceira pessoa, que o valor determinado pelo Tribunal a quo é excessivo, mesmo considerando que a A. necessitará dessa assistência durante 3 horas por semana pelo período de 30 anos, num valor horário estimado em € 6,00, pelo que deveria ter sido fixado o valor final de € 15.120,00 (€ 30.240,00 x 50%).

Na sentença, atribuiu-se à A. uma indemnização no montante de € 66.145,00, por assistência de terceira pessoa, nos seguintes termos: “(…) A este respeito resultou provado que:
z)-A Autora necessita de ajuda de terceira pessoa 3h/semana para actos da sua vida diária como, supervisão da sua higiene (nomeadamente tomar banho), vestir e despir e para a realização de tarefas domésticas como limpeza da casa e confecção de refeições.
aa)- Em sede de tentativa de conciliação, no âmbito do processo de acidente de trabalho, a Seguradora Fidelidade declinou o pagamento à Autora da prestação suplementar de assistência a terceira pessoa.
Ou seja, para realização das atividades básicas da sua vida diária, como vestir-se, alimentar-se, deslocar-se, o autor necessita de ter o auxílio de terceiro.
Já para não falar na execução de algumas tarefas domésticas que a autora efetuava e deixou de poder realizar.
Para a execução de todas estas tarefas, de índole estritamente pessoal, a autora continuará a necessitar de auxílio, estimando-se que o seu desempenho importe uma média de 3horas/dia.
Porém, desconhecemos o custo médio/hora do mercado de empregadas domésticas, na área de residência da autora, sendo certo que, de acordo com regras de experiência, poderemos estimar um custo não inferior a 6,00/hora.
Neste contexto, será de ponderar, por um lado, a esperança média de vida da autora (até aos 83 anos), as obrigações legais e contratuais inerentes à contratação de uma terceira pessoa, como seja, o pagamento dos subsídios de férias e de Natal, impostos, contribuições para a Segurança Social e seguro de acidentes de trabalho, o previsível agravamento do custo de vida, bem como, num outro sentido, o recebimento imediato de todo o capital atribuído a este título.
No caso dos autos, para além da imprevisibilidade da variação da taxa de rentabilidade, atento o período temporal a considerar (30 anos), há que ter em conta o expetável aumento das despesas a suportar nesse período.
Assim, perante todos estes elementos e com recurso à equidade, afigura-se-nos como correto e ajustado dever proceder-se a uma dedução situada à volta dos 10%, tendo por referência o valor de € 147.100,00 (correspondente a €350,00 x 14 meses/ano x 30 anos de expetativa de vida).
Pelo que, com recurso à equidade, entende-se ser de reconhece ao autor o direito ao recebimento, para compensar este dano, de uma indemnização no montante de €132.290,00.
É certo que até agora a Autora não contratou ninguém para o efeito, estando por opção num lar, que consubstancia um custo muitíssimo superior. Não obstante, tal não significa que a Autora ou a sua família consigam toda a vida desta assegurar tal despesa.
Tudo ponderado, afigura-se-nos mais equitativo o quantum indemnizatório de €132.290,00.
Não obstante ser este o cálculo efectuado pelo Tribunal, o facto é que o pedido formulado foi de € 100 612,80.
Ainda assim, somos do entendimento, actualmente maioritário na jurisprudência, de que para efeito de se estabelecer o limite da condenação, a que se refere o art.° 609.°, n.° 1 do CPC, o valor do pedido global a considerar é aquele que, decorrendo da mesma causa de pedir, se apresenta como a soma do valor de várias parcelas, em que o mesmo se desdobra ou decompõe e não as suas concretas parcelas formuladas - neste sentido ver Ac. R.E. de 17-11-2016, Relatora Maria Filomena Lança (disponível em http://www.gde.mi.pt/itre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/0bf7fff5981d68f280258080004fa5c6?OpenDocument).
De acordo com a repartição de culpa/risco tem a Autora direito a ser indemnizada do montante, a título de assistência de terceira pessoa, em € 66 145,00.
(…).”

Analisando, cremos que nesta vertente assiste em parte razão à Ré Seguradora apelante.

Com efeito, na sentença teve-se por referência o valor de € 147.100,00 “correspondente a € 350,00 x 14 meses/ano x 30 anos de expetativa de vida”, considerando o auxílio de terceira pessoa “uma média de 3horas/dia” e um custo médio/hora do mercado de empregadas domésticas não inferior a € 6,00.

Ou seja, considerou-se que a A. necessitaria do auxílio de terceira pessoa 3 horas por dia em lugar das 3 horas por semana tidas como provadas sob o ponto z) supra dos factos assentes – “A Autora necessita de ajuda de terceira pessoa 3h/semana para actos da sua vida diária como, supervisão da sua higiene (nomeadamente tomar banho), vestir e despir e para a realização de tarefas domésticas como limpeza da casa e confecção de refeições.”

Ora, não tendo o referido ponto z) sido impugnado e encontrando-se definitivamente fixado, não pode discorrer-se a partir de factualidade diversa neste tocante, ainda que se encontre um valor global indemnizatório de acordo com critérios de equidade.

Tal significa que o custo mensal dessa ajuda, de acordo com a matéria assente, ficará longe dos € 350,00/mês que foram considerados na sentença.

Deste modo, e tendo em conta os demais critérios referidos na sentença (para além do apoio de 3 horas por semana julgado necessário), designadamente os restantes encargos com a contratação de empregada doméstica (contribuições para a Segurança Social e seguro de acidentes de trabalho) bem como o previsível aumento de tais despesas em tão largo período de tempo (cerca de 30 anos), julga-se adequado fixar o valor indemnizatório global respeitante à assistência de terceira pessoa, por recurso à equidade, em € 40.000,00.

Donde, fazendo intervir, uma vez mais, o disposto no artigo 570 do C.C. e a proporção estimada de 50%, é devido a esse título à A. o valor de € 20.000,00.

Procede aqui em parte o recurso subordinado da Ré Allianz.
*

IVDecisão:

Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
- julgar improcedente a apelação da A.;
- julgar parcialmente procedente a apelação da Ré Seguradora e, assim, alterar o ponto d) do segmento decisório da sentença, fixando em € 20.000,00 o montante a pagar pela Ré Allianz à A. a título de danos patrimoniais com necessidade de assistência de terceira pessoa;
- manter no mais o decidido.
Custas da apelação da A. a seu cargo (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie).
Custas da apelação da Ré Allianz por ambas as partes, na proporção de 3/5 para a A. e 2/5 para a Ré.
Notifique.
*



Lisboa, 11.10.2022



Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                      
Edgar Taborda Lopes

                                                                 


[1]In “Prova por Presunção no Direito Civil”, 2017, 3ª ed., pág. 169.
[2]Cfr. “Manual de Acidentes de Viação”, 1980, pág. 48.
[3]Ob. cit., pág. 50.
[4]Note-se que a menção feita no ponto b) supra dos factos assentes a “veículo causador do acidente” tem de entender-se apenas como veículo atropelante, e não como um juízo/conclusão sobre a conduta do respetivo condutor que nunca poderia constar dos factos provados.
[5]Proc. 07B1710, em www.dgsi.pt.
[6]Ver arts. 251 e ss. do Tratado da União Europeia, com as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa.
[7]Sobre o assunto, Luciara Lima Simeão da Silva, “O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e o princípio da aplicabilidade direta” Prim@ facie, João Pessoa, ano 2, n. 2, p. 75-128, jan./jun. 2003, disponível em: <http: //www.ccj.ufpb.br/primafacie>.
[8]Trata-se da diretiva 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira Diretiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda Diretiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira Diretiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta Diretiva) e 2005/14/CE, de 11 de Maio (quinta Diretiva).
[9]In “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, disponível em www.stj.pt, link Estudos Jurídicos.
[10]O primeiro pode ser consultado na CJ, Acs. STJ, Ano XIII, T. II, 2005, pág. 7, e o segundo no site do respectivo Tribunal.
[11]Proc. 08B742, em www.dgsi.pt.
[12]Do elenco dos mais recentes abordando o tema e aderindo à solução pelo menos em tese geral, destacamos os seguintes Acórdãos do STJ: de 5.5.2022, Proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, de 19.10.2021, Proc. 7007/16.4T8PRT.P1.S1, de 22.6.2021, Proc. 2992/18.4T8AVR.P1.S1, de 25.5.2021, Proc. 3883/18.4T8FAR.E1.S1, de 13.4.2021, Proc. 4883/17.7T8GMR.G1.S1, de 24.9.2020, Proc. 9/14.7T8CPV.P2.S1, de 17.10.2019, Proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1, de 28.3.2019, Proc. 954/13.7TBPMS.C1.S1, de 11.1.2018, Proc. 5705/12.0TBMTS.P1.S1, e de 1.6.2017, Proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13]Sobre o tema ver, ainda, a doutrina amplamente citada nos referidos arestos bem como o artigo de Maria da Graça Trigo, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, disponível online.
[14]Nesse aresto apreciava-se a conduta de peão que sofreu o embate de um veículo quando, sem previamente se assegurar da inexistência de perigo, passou a transitar na extremidade da faixa de rodagem, em vez de o continuar a fazer na berma.
[15]Cfr. Ac. do STJ de 11.11.2010, Proc. 270/04.5TBOFR.C1.S1, em www.dgsi.pt.
[16]Cfr. Maria da Graça Trigo, “Adopção do Conceito de Dano Biológico pelo Direito Português”, ROA, Ano 72, Jan/Mar. 2012, pág. 177.
[17]Proc. 5119/12.2TBALM.L1-1, em www.dgsi.pt.
[18]Proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, em www.dgsi.pt.
[19]Proc. 652/16.0T8GMR.G1.S2, em www.dgsi.pt.
[20]Cfr. PORDATA, Base de Dados Portugal Contemporâneo, em www.pordata.pt.