Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
37/24.4TXPDL-C.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
PRISÃO PREVENTIVA
INTERNAMENTO PREVENTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DIRIMIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - Tendo sido decretado o tratamento involuntário, em ambulatório, de um determinado Requerido, nos termos dos art.ºs 15.º, n.ºs 1, 2 e 3, primeira parte, e 23.º da Lei n.º 35/2023, de 21/07 (Lei de Saúde Mental), e posteriormente, em diferente processo, sendo-lhe aplicada a medida coativa de prisão preventiva, e de forma concomitante, determinado o seu internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, caso “exista vaga para o efeito”, enquanto essa situação de prisão ou de internamento preventivo se mantiver, será o respetivo Juízo de Execução das Penas o competente para assegurar a tramitação e acompanhamento daquela primeira medida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Conflito de Competência

I - 1.) A Senhora Magistrada do Juízo de Execução das Penas dos Açores veio suscitar o presente conflito negativo de competência a opor o respetivo Tribunal ao Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, tendo em vista determinar qual deles deverá assegurar o acompanhamento do Requerido AA, em relação ao qual foi decretado o respetivo tratamento involuntário, em ambulatório, nos termos dos art.ºs 15.º, n.ºs 1, 2 e 3, primeira parte, e 23.º da Lei n.º 35/2023, de 21/07, mas em que posteriormente, lhe veio a ser aplicada também a medida coativa de prisão preventiva, e de forma concomitante, determinado o seu internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, caso “exista vaga para o efeito”.

i. Na fundamentação apresentada para o dissídio assim formado, pode ler-se no despacho proferido por aquele último:

“Por decisão datada de 04-03-2024 foi determinado o tratamento involuntário em ambulatório do Requerido AA no serviço local/regional de saúde mental responsável pela área de residência.

No âmbito do Processo n.º 87/23.8T9SCF, por despacho datado de 11-03-2024, foi aplicada ao arguido/requerido AA, para além do TIR já prestado nos autos, a medida de coacção de prisão preventiva, a qual se encontra a ser cumprida no Estabelecimento Prisional de....

Sob a epígrafe “Regras de competência”, o artigo 34.º, n.º 1 da Lei nº 35/2023, de 21 de Julho, dispõe do seguinte modo:

1 - Sem prejuízo dos números seguintes, para efeitos do disposto no presente capítulo, é competente:

a. O juízo local criminal com competência na área de residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal;

b. O tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

Por sua vez, estabelece o artigo 138.º, n.º 4, alínea bb) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade que “Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria: (...) bb) Decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei”.

Por outra banda, de acordo com o disposto no artigo 114.º, n.º 3, alínea y) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, Sem prejuízo de outras disposições legais, compete ao tribunal de execução das penas, em razão da matéria: (...) y) Decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei”.

Sem prejuízo da diferença de redacção entre o artigo 34.º, n.º 1, alínea b) da Lei nº 35/2023, de 21 de Julho, e os artigos 138.º, n.º 4, alínea bb) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 114.º, n.º 3, alínea y) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, visto que estes dois últimos preceitos se referem à competência para a decisão sobre o tratamento involuntário do “condenado” com necessidade de cuidados de saúde mental, considera-se que não se deve questionar a competência do Tribunal de Execução das Penas para decidir sobre o tratamento involuntário de requerido que se encontre sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, tal como sucede nos presente autos.

No dizer de Pedro Soares Albergaria,Sempre que o requerido esteja na condição de preso ou internado preventivo, ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, o tribunal de execução de penas será o competente – é o que decorre do art.º 34º/1/b e também do art.º 138.º/4/bb, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e do art.º 114.º/3/y da Lei da Organização do Sistema Judiciário, ambos na redacção da Lei n.º 35/2023”, adiantando que “Apesar de pouco rigorosa a previsão, não creio que diante da formulação constante dos arts. 138.º/4/bb CEPMPL e 114.º/3/yLOSJ (“sem prejuízo de outras disposições legais se deva questionar a competência do TEP para decidir sobre o tratamento involuntário de pessoas reclusas por mor de medida de coaccão.” (in Primeiras notas sobre o tratamento involuntário na Nova Lei da Saúde Mental, RPCC, Ano 33, n.º 2, Maio - Agosto de 2023, Gestlegal, p. 262).

Esclarece ainda Pedro Soares Albergaria, que “A atribuição de competência aos TEPs ou aos juízos locais criminais (ou ainda aos juízos locais genéricos) conforme a pessoa em tratamento esteja ou não privada da liberdade em razão de medida de coacção ou de reacção penal coloca a questão de a competência dos últimos cessar, assumindo-a os primeiros, no caso de pessoa em tratamento involuntário ser, entretanto, privada da liberdade por força das faladas medida de coacção ou de reacção penal (naturalmente, o contrário também pode suceder). Na ausência de norma específica dispondo sobre o ponto, creio que será de aplicar, com as devidas adaptações, a regra contida no n.º1 do art.º 33.º CPP (ex vi do, art.º 37.º), com remessa do processo de tratamento involuntário em curso ao tribunal (que passa a ser) competente.” [in op. cit., p. 262, nota de rodapé 23).

Em conformidade, considerando que após decisão sobre o tratamento involuntário (datada de 04-03-2024) foi aplicada ao arguido/requerido AA a medida de coacção de prisão preventiva no âmbito do Processo n.º 87/23.8T9SCF (despacho datado de 11-03-2024), verifica-se que este Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores não é mais competente em razão da matéria para os termos subsequentes do processo de tratamento involuntário, sendo competente em razão da matéria o Tribunal de Execução das Penas dos Açores - Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (artigos 34.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho; artigo 138.º, n.º 4, alínea bb) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade; artigo 114.º, n.º 3, alínea y) da Lei da Organização do Sistema Judiciário; artigo 33.º, n.º 1 do Código de Processo Penal aplicável ex vi do artigo 37.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho).

Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, excepciono a incompetência em razão da matéria deste Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores para o processamento dos termos posteriores do presente processo de tratamento involuntário, determinando a remessa imediata dos autos ao Tribunal de Execução das Penas dos Açores - Tribunal Judicial da Comarca dos Açores por ser o materialmente competente.

Notifique.

ii. Já a Mm.ª Juíza do Tribunal de Execução das Penas dos Açores sustenta, na parte que aqui sobretudo releva:

“(…)

1.1 - FACTOS

Os presentes autos tiveram início com a apresentação do requerimento inicial por parte do Ministério Público, dirigido ao Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, com vista ao tratamento involuntário do Requerido AA (cfr. fls. 4 a 19 verso). Nessa sequência, por esse Juízo, foi proferida decisão datada de 04/03/2024, com a Ref.ª 56826478 (cfr. fls. 63 verso a 65 verso), com o seguinte dispositivo:

Nestes termos e para os efeitos do disposto nos artigos 15º, n.ºs 1, 2 e 3, primeira parte e 23º da Lei nº 35/2023, de 21/07, determina-se o tratamento involuntário em ambulatório do Requerido AA no serviço local/regional de saúde mental responsável pela área de residência.

No âmbito do Processo de Inquérito n.º 87/23.8T9SCF, do mesmo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, em 11/03/2024 (uma semana depois), no âmbito de I.º interrogatório judicial de arguido detido, foi proferido o seguinte despacho no qual foi determinado o seguinte (vide Ref.ª 5639003, de 18/03/2024, a fls. 76-A a 76-V):

Por todo o exposto, em face dos fatores expostos e ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 193º, 195º, 196º, 202º, nº 1, alínea b) e nº 2 e 204º, alínea c) do Código de Processo Penal, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coacção:

- obrigações decorrentes do TIR já prestado nos autos;

- prisão preventiva.

Mais se determina que, enquanto persistir a necessidade de acompanhamento médico psiquiátrico por parte do arguido, seja o mesmo preventivamente internado em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, conquanto, claro está, exista vaga para o efeito.

Passe mandados de condução a estabelecimento prisional, sem prejuízo do acima determinado quanto ao internamento em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado.” (sublinhado nosso).

Nessa sequência, o arguido foi conduzido ao Estabelecimento Prisional de ... (vide fls. 13 e 14 do Apenso A), onde se encontra até ao momento.

Logo em 12/03/2024 (no dia seguinte), a Exma. Sra. Directora de Psiquiatria e Saúde Mental do ..., dirigiu aos presentes autos o requerimento com a Ref.ª 5628061 (vide fls. 71/80), em que dá nota da impossibilidade de acompanhar o utente no âmbito dos presentes autos por via daquele despacho proferido no âmbito do Proc. n.º 87/23.8T9SCF, atenta a detenção e transferência do mesmo para o Estabelecimento Prisional de .... E, em 18/03/2024 (Ref.ª 5639003, a fls. 76-A a 76-V), é remetido pelo Proc. n.º 87/23.8T9SCF aos presentes autos cópia do auto do supra referido 1º interrogatório judicial de arguido detido, onde consta o despacho que aplicou as referidas medidas de coacção.

Havendo conhecimento (inclusivamente funcional) que o Requerido se encontrava desde 11/03/2024, no âmbito do Proc. nº 87/23.8T9SCF, sujeito às referidas medidas de coacção, os presentes autos continuaram a ser tramitados pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, tendo sido proferidos pelo mesmo 8 despachos entre 14/03/2024 e 22/04/2024, designadamente:

- despacho datado de 14/03/2024, com a Ref. a 56896979 (cfr. fls. 74);

- despacho datado de 18/03/2024, com a Ref. a 56910414 (cfr. fls. 76);

- despacho datado de 22/03/2024, com a Ref. a 56951587 (cfr. fls. 83);

- despacho datado de 04/04/2024, com a Ref. a 57007042 (cfr. fls. 86);

- despacho datado de 09/04/2024, com a Ref. a 57031222 (cfr. fls. 89);

- despacho datado de 17/04/2024, com a Ref. a 57094279 (cfr. fls. 94);

- despacho datado de 22/04/2024, com a Ref. a 57122403 (cfr. fls. 97);

- despacho datado de 22/04/2024, com a Ref. a 57128966 (cfr. fls. 99).

Apenas em 23/04/2024, foi proferido o despacho, com a Ref.ª 57132626 (cfr. fls. 100 a 101), pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores a excepcionar a incompetência em razão da matéria desse Juízo “para o processamento dos termos posteriores do presente processo de tratamento involuntário, determinando a remessa imediata dos autos ao Tribunal de Execução das Penas dos Açores - Tribunal Judicial da Comarca dos Açores por ser o materialmente competente”.

1.2 - ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Refere o art.º 34.º, n.º 1 da Lei n.º 35/2023, de 21/07 (Lei de Saúde Mental – doravante LSM) que “Sem prejuízo dos números seguintes, para efeitos do disposto no presente capítulo, é competente:

a) O juízo local criminal com competência na área de residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal;

b) O tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade (sublinhado nosso).

No entanto, o art.º 138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e o art.º 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ (na redação dada pelos arts. 47.º e 49.º dessa LSM, respectivamente) consagram que “Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria, decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei”.

*

Quanto ao caso concreto, começamos por referir que, face ao teor do supra referido despacho proferido em 11/03/2024, no âmbito do Proc. nº 87/23.8T9SCF, referente à aplicação de medidas de coação (vide fls. 76-A a 76-V), salvo o devido respeito, não se nos afigura claro se o arguido ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva e passará a internamento preventivo, automaticamente, no caso de ser transferido para um hospital psiquiátrico (ou outro estabelecimento análogo adequado), ou se, em vez da prisão preventiva, lhe foi imposto o internamento preventivo, ficando apenas sujeito a prisão preventiva enquanto não for possível a transferência para um hospital psiquiátrico (ou outro estabelecimento análogo adequado). Na certeza, porém, que o arguido estará sujeito a prisão preventiva ou a internamento preventivo e não às duas medidas de coação distintas simultaneamente.

De todo o modo, independentemente desta questão, importa atentar que, do confronto das normas supra referidas (art.º 34.º, n.º 1, al. b) da LSM e arts. 138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ), resulta que não existe harmonização entre os textos legais citados, o que suscita dúvidas quanto à interpretação e conjugação das normas legais em vigor.

Sendo certo que não se vislumbra fundamento bastante da atribuição da competência material ao TEP no caso de tratamento involuntário, mormente, no caso de prisão preventiva ou internamento preventivo, em que existe um quadro de incerteza de manutenção da privação de liberdade, porquanto, tais medidas de coação podem a todo o tempo cessar/ser alteradas.

Por outro lado, a inserção desta específica competência material no Tribunal de Execução das Penas levanta questões não só estigmatizantes para o cidadão com necessidade de cuidados de saúde mental, que se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão do processo crime (cfr. art.º 32.º, n.º 2 da CRP), como levanta questões de ordem prática geradoras de instabilidade e incerteza processual, com prejuízo para tal cidadão.

Desde logo, porque a competência territorial do TEP afere-se pelo estabelecimento prisional ou unidade de saúde mental (prisional ou não) de afectação e tal afectação é matéria da exclusiva competência do Director Geral da DGRSP, o que pode implicar mudança de competência territorial do TEP consoante a localização do estabelecimento de afectação, quantas vezes o requerido for transferido.

Ora, no decurso de processado de natureza urgente como é o de processo de tratamento involuntário, afigura-se como preocupante que tal possa acontecer, com inerente prejuízo para o cidadão recluso com necessidades de cuidados de saúde mental, em especial ao nível da competência para a realização da avaliação clínico-psiquiátrica, na consideração de que o “serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência” do recluso (cff. art.º 23.º, n.º 3 da LSM) seja lido por referência ao local onde a privação da liberdade opera. Sendo certo que nem sequer se mostra esclarecido se tais serviços são os dos Serviços Prisionais (art.º 58.º do RGEP) ou dos hospitais civis.

Por tudo o exposto, considera-se que os arts. 138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ (na redação dada pelos arts. 47.º e 49.º da LSM, respectivamente), ao preverem apenas “condenados” (que manifestamente não o é o caso de arguidos, em fase de inquérito, sujeitos a medidas de coação), limitam/restringem o disposto do art.º 34.º, n.º 1, al. b) dessa mesma LSM, o qual deve ser, nessa medida, interpretado restritivamente, excluindo os arguidos sujeitos a prisão preventiva ou internamento preventivo, que beneficiam da presunção de inocência e que, por isso, não podem ser considerados “condenados”. Pelo que, no nosso entender, quando o requerido estiver em prisão ou internamentos preventivos, a competência não é do TEP.

Nem se diga que o segmento “sem prejuízo de outras disposições legais”, constante do art.º138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e do art.º 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ, serve para acomodar o art.º 34.º, n.º 1, al. b) da LSM, na parte em que prevê a competência do TEP quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos, porquanto a redacção actual de tais normas (138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e art.º 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ) foi dada precisamente pela mesma LSM que instituiu o referido art.º 34.º, n.º 1, al. b). Com efeito, é a mesma lei (LSM) que, no seu art.º 34.º, n.º 1, al. b), prevê a competência do TEP para quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade e, na redacção que dá ao art.º 138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e ao art.º 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ, nos seus arts. 47.º e 49.º respectivamente, apenas prevê “condenados”.

Pelo exposto e atenta a unidade do sistema jurídico, afigura-se-nos que a manutenção (não eliminação) do segmento referente à prisão e internamento preventivos, no art.º 34.º, n.º 1, al. b) da LSM, se tratou de um erro/lapso do legislador, devendo ser efectuada uma interpretação ab-rogante dessa disposição legal, nos moldes impostos pelo art.º 138.º, n.º 4, al. bb) do CEPMPL e pelo art.º 114.º, n.º 3, al. y) da LOSJ, na redação dada pelos arts. 47.º e 49.º da LSM, respectivamente, de acordo com o art.º 9.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil.

Mesmo que assim não se entenda, sem conceder, caso se admita a competência do TEP, nos termos do art.º 34.º, n.º 1, al. b) da LSM, para quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos, deve entender-se que a competência do TEP se cinge às situações em que o Requerido já se encontra em prisão preventiva e não para as situações em que só supervenientemente à determinação do tratamento involuntário é que o Requerido fica sujeito à prisão ou internamento preventivos, porquanto inexiste norma de desaforamento de competência que o permita. [1. Vide, neste sentido, RAMOS DA FONSECA, Reenquadramento de competências do Tribunal de Execução das Penas à luz da Nova Lei de Saúde Mental, in “Doença Mental: da imputabilidade à ressocialização”, acessível em https://www.sti.pt/wp-content/uploads/2024/02/ebookdmental2023.pdf. pp. 141 a 154, que seguimos de perto.]

E acrescentamos ainda que, mesmo que assim não se entenda, igualmente sem conceder, caso se admita o desaforamento do processo, in casu, o que aconteceu foi o seguinte: mesmo depois de ser aplicada a prisão preventiva/internamento preventivo, no âmbito do Proc. nº 87/23.8T9SCF, os presentes autos de tratamento involuntário continuaram a ser tramitados pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, tendo sido proferidos pelo mesmo 8 despachos entre 14/03/2024 e 22/04/2024.

Apenas em 23/04/2024 foi proferido o despacho com a Ref.ª 57132626 (cfr. fls. 94 a 95), pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, a excepcionar a incompetência em razão da matéria desse Juízo e a determinar a remessa imediata dos autos ao TEP (quase 1 mês e meio depois).

Sendo certo que essa remessa tardia teve lugar sem que qualquer serviço de saúde mental esteja ainda a elaborar o relatório de avaliação a que alude o art.º 25.º, n.º 4 da LSM, necessário à revisão da decisão de tratamento involuntário ambulatório aplicada, a efectuar no curto prazo de 2 meses sobre o início do tratamento, de acordo com o art.º 25.º, n.º 2 da LSM.

Pelo exposto, no caso concreto, mesmo após ter sido aplicada a prisão preventiva/internamento preventivo, no âmbito do Proc. n.º 87/23.8T9SCF, o Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores continuou a tramitar os presentes autos, assumindo/aceitando a sua competência para tal, sendo extemporânea a sua declaração de incompetência neste momento.

Por tudo o exposto, declaro este Juízo de Execução das Penas dos Açores incompetente para a tramitação dos presentes autos, devendo tal tramitação ser empreendida pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores.

Pelo exposto, existe um conflito negativo de competência, na medida em que, quer o Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, quer o Juízo de Execução das Penas dos Açores, se consideram incompetentes para a subsequente tramitação dos autos.

(…)”

I - 2.) Processualizado o pertinente conflito e cumprido o disposto no art.º 36.º, n.º 1, daquele mesmo Diploma, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de ser atribuída competência “ao tribunal que decretou a prisão preventiva do arguido conforme o disposto no art.º 202º nº 2 do CPP”.

II - Cumpre a apreciar e decidir:

II - 1.) Tal como o nosso Exm.º Colega, Desembargador Manuel Ramos da Fonseca, já havia deixado antecipado na sua comunicação intitulada “Reenquadramento de Competências do Tribunal de Execução das Penas à Luz da Nova Lei de Saúde Mental”, apresentada no colóquio «Doença Mental: da imputabilidade à ressocialização» (CEJ - Coleção Formação Contínua, Novembro de 2023, pág.ª 145), a alteração conferida pela al. b) do n.º 1 do art.º 34.º da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de julho), em termos de «delimitação de competência ao nível do Tribunal de Execução das Penas, entre os mesmos e nas relações destes com os demais Tribunais afigura-se problemática por geradora de instabilidade e incerteza processual para as pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental».

Como já foi observado, o Legislador, no preceito em causa, veio regular em sede de disposições processuais comuns, a competência material para “efeitos do disposto no presente capítulo”, repartindo-a pelos juízos locais criminais com competência na área de residência do requerido ou os de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal (cfr. respetiva alínea a)), e pelos tribunais de execução das penas, na hipótese contida na alínea b), ou seja, “quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade”.

O que no fundo deixa subentendido, em termos de uma leitura de “primeira impressão”, que será a situação de liberdade ou a sua privação, o que constituirá o critério que preside a essa dualidade integrativa.

Concomitantemente, tal Diploma acrescentou uma alínea bb) ao art.º 138.º, n.º 4, do CEPMPL, para incluir na competência material daquele segundo Tribunal, a de “decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei”, e bem assim, uma alínea y) no art.º 114.º, n.º 3, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, para aí contemplar, agora, o “decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei.”

II - 2.) Como vaticinado, a congruência de alguns dos aspetos de conjugação destas disposições legais, mormente quando o requerido esteja preso ou internado preventivamente, cedo conduziram a entendimentos desencontrados, tal como os Autores citados nos despachos acima transcritos claramente o evidenciam.

Sendo que a essa complexidade normativa, se junta ainda, no caso sub-judice, a menor linearidade da situação jurídica em que o Requerido se encontra, temática que o Mm.ª Juíza do TEP não deixa de abordar.

Tendo sido decidida em 04/03/2024 a aplicação do tratamento involuntário (anteriormente coercivo), em ambulatório, dias depois, por decisão de 11/03/2024, foi-lhe imposta, em diferente processo, a medida coativa de prisão preventiva, e concomitantemente, nos termos do art.º 202.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, a de internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo, caso “exista vaga para o efeito”.

Atualmente, está no estabelecimento prisional de ....

II – 3.) Elemento essencial em todo este debate dissonante, é a expressão “condenado”, agora utilizada naqueles dois últimos diplomas, para mais resultante de alterações coevas à própria Lei de Saúde Mental.

Ora ainda que tal redação surja consonante com o disposto no art.º 138.º, n.º 2, do CEPMPL, segundo o qual, o pressuposto da intervenção do TEP passou a ser o «trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade», em condição alguma o Legislador poderia ignorar a total desadequação da expressão condenado quando referida a alguém a quem seja aplicada uma medida de coação, mesmo de prisão preventiva.

Pelo que, neste jogo interpretativo, algum anacronismo nunca poderá ser totalmente eliminado.

Nessa conformidade, deverá concluir-se, como o sugere a Mm.ª Juíza do TEP, de que se tratará de um erro/lapso do Legislador, a impor uma solução ab-rogante em relação ao trecho “quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos”?

Parece-nos excessivo, dado o teor literal do preceito e a pesada contrariedade que tal solução importaria para a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º, n.º 3, do Cód. Civil).

Para lhe conferir uma leitura mais restritiva, em termos de se entender - também como alvitrado -, que a competência do TEP se limitaria às situações em que o Requerido já se encontrasse em prisão preventiva e não para aquelas em que a determinação do tratamento involuntário fosse anterior a essa situação?

Em face da eminente identidade da situação objetiva de ambas - a de que, em qualquer delas, os visados estão privados de liberdade - e de serem perfeitamente idênticas as decorrências colocadas para a sua recuperação, em termos de saúde mental, não vemos o que em termos essenciais possa justificar tal diferenciação de soluções.

Dir-se-á: esse entendimento conflitua com as finalidades cautelares que determinaram a aplicação da medida, levanta questões de natureza estigmatizante para o cidadão, para além de colocar diversas questões de índole prática…

É verdade. Mas as ideias de uma intervenção próxima da comunidade e da família, descentralizada e em meio aberto, estão agora totalmente prejudicadas.

E com elas, as justificações de tratamento que poderiam conduzir a uma preferência pelo tribunal da área de residência.

Em qualquer caso, não se desamparará ao essencial, ou seja, a possibilidade de prestação de cuidados de saúde mental orientados “para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial”, finalidade última do Diploma que aqui nos ocupa.

O que vale dizer então, na senda da opinião defendida por Pedro Soares de Albergaria (Primeiras notas sobre o tratamento involuntário na nova Lei da Saúde Mental, RPCC, ano 33, n.º 2, pág.ªs 262/3), que sem prejuízo da claramente menos feliz redação conferida à al. b) do n.º 1 do art.º 34.º, não “se deva questionar a competência do TEP para decidir sobre o tratamento involuntário de pessoas reclusas por mor de medida de coacção”.

II – 3.) Aqui chegados, naturalmente que não terminam as dificuldades colocadas por tais previsões normativas.

Desde logo, a decorrente da circunstância de o tratamento involuntário do Requerido ter sido decretada pelo Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, e não existir qualquer norma que previna ou regulamente o consequente desaforamento inerente à interpretação acima perfilhada, a favor do Tribunal de Execução das Penas.

Mas neste particular acompanharmos também a posição defendida por Pedro Albergaria na sua obra já citada, em relação a dois dos pontos por si defendidos:

- O de que, neste caso, haverá de aplicar-se, com as devidas adaptações, a regra contida no n.º 1 do art.º 33.º do Cód. Proc. Penal, por força do art.º 37.º da Lei de Saúde Mental;

- Aquele outro, em que propugna que tal situação funcionará em “ambos os sentidos”. Isto é, se por alguma razão vier a cessar a prisão ou o internamento preventivo do Requerido, o processo deverá regressar à competência do juízo local criminal ou ao do juízo de competência genérica com competência na área da sua residência, que assim recuperará a sua competência inicial.

II – 4.) Finalmente, como vimos, para sustentar a sua posição, a Mm.ª Juíza do TEP não deixa de subsidiariamente chamar em seu abono a extemporaneidade da invocação da respetiva incompetência por parte do Juízo de Competência Genérica de Santa Cruz das Flores, uma vez que, entre 14/03/2024 (ou seja, já depois do despacho que aplicou as mencionadas medidas de coação ao Requerido) e 22/04/2024 (data daquela primeira decisão), proferiu oito despachos.

Os atos em causa, tiverem em vista, essencialmente, reagir à informação, por parte do ..., de que não possuía Enfermaria de Saúde Mental e que perante a nova situação criada, não tinha condições para proceder ao acompanhamento do Requerido, expressando assim a sugestão de que seria mais adequado o respetivo acompanhamento ser assegurado pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital do Divino Espírito Santo da Ilha Terceira.

Proposta que o Mm.º Juiz aceitou, tendo requisitado a este último, entre o mais, a elaboração do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica preconizado pelo art.º 25.º, n.ºs 2 e 4 da Lei de Saúde Mental...

Tratando-se de uma situação de incompetência material, postula o art.º 32.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, que a mesma pode ser conhecida e declarada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão final.

Ao momento da sua determinação, na sequência da sessão conjunta a que melhor aludem fls. 21 a 24 deste translado, aquele condicionalismo coativo ainda não se tinha verificado.

Para além do que, num procedimento desta natureza, sujeito a modificações, quer pelas circunstâncias da doença quer por via de revisões obrigatórias, ou não, falar de “trânsito em julgado da decisão final” afigura-se-nos algo de excessivo.

Donde, no contexto indicado não tomarmos o processamento desenvolvido pelo Mm.º Juiz de Santa Cruz das Flores como uma assunção intransponível da sua competência.

Nesta conformidade

III – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos indicados, decide-se dirimir o presente conflito, atribuindo a competência para assegurar a tramitação do acompanhamento, mormente em termos de tratamento involuntário, do Requerido/Arguido AA, enquanto a sua situação de prisão ou de internamento preventivo se mantiver, ao Juízo de Execução das Penas dos Açores.

Sem tributação.

Cumpra o art.º 36.º, n.º 3, daquele primeiro Diploma.

Elaborado em computador. Revisto nos termos do art.º 94.º, n.º 2, do CPP.

Lisboa, 28de Maio de 2024

Luís Gominho