Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9702/19.7T9LSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
ELEMENTOS OBJECTIVOS DO TIPO
ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO TIPO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O direito penal tem carácter subsidiário.
Se o ofendido declara não entender determinadas palavras, objetivamente ameaçadoras, como uma verdadeira ameaça, antes as relevando na circunstância em que foram produzidas, não pode o Tribunal retirar das mesmas uma intenção que o próprio visado não retirou, faltando o elemento subjetivo do crime.
Os artigos 283º e 308º do CPP exigem, sob pena de nulidade da acusação ou da pronúncia, a narração sempre que possível da motivação da prática dos factos suscetíveis de constituir crime.
Tais exigências aplicam-se à sentença que, dentre os factos constantes das referidas peças, tem que enumerar os provados e não provados, sendo a circunstanciação um elemento importante a considerar.
Claramente está em causa a necessidade o circunstanciar a actuação do agente, de modo que se possa perceber se ela merece a tutela do direito penal, se integra os elementos objetivos típicos do crime e se, desses elementos objetivos, se retira um elemento subjetivo adequado a essa tipificação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

I – Relatório:
HLM, solteiro, maior, residente na Rua Dr. Bastos …Lisboa, interpôs recurso da decisão instrutória proferida nos presentes autos, que o pronunciou pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º/1 e 155º/ 1 alínea a), do Código Penal (CP).
***
II- Fundamentação de facto:
Há que considerar os seguintes os factos:
1- Findo o inquérito o Ministério Público (MP) produziu despacho de arquivamento, que se transcreve na parte relevante para apreciar o recurso, relativo à imputação do crime de ameaça:
« Foi a instauração do presente inquérito motivada pela queixa apresentada por LL____ contra HLM pelos factos constantes de fls. 2 a 20, 248 a 249 e 316, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Foi aberto inquérito e, no decurso do mesmo, procedeu-se à realização das diligências que se afiguraram úteis e pertinentes para a descoberta da verdade material, a saber:
- Inquirição da ofendida LL___, a fls. 59, na qual confirma e esclarece a queixa apresentada, cujo depoimento aqui se dá por integralmente reproduzido.
- Inquirição das testemunhas indicadas pela ofendida, a sua irmã __________, a fls. 76, a sua mãe MB_______ , a fls. 78, a sua empregada _____, a fls. 80, a sua colega de trabalho ______, a fls 82, cujos depoimentos que aqui se dão por integralmente reproduzidos e, que, em suma, não referem factos que constituam ilícito criminal que tenham presenciado, sabendo apenas aquilo que a ofendida lhes contou e visualizaram marcas na cara da ofendida.
- Foi junto pela ofendida uma gravação de uma discussão com o arguido, reproduzida em parte nos factos descritos na queixa.
A referida discussão ocorreu em 15.07.2019, mas desde meados de 2018 que havia desentendimentos entre a ofendida e o arguido que levaram à sua separação.
Nesse dia a ofendida encontrou-se com o arguido, num apartamento pertencente a ambos, sito em Lisboa, local onde o arguido passou a residir após a separação, para falarem sobre a partilha das responsabilidades parentais.
Durante uma altura em que a ofendida se deslocou ao quarto de banho, achou por bem aproveitar para pôr o telemóvel a gravar, sem o arguido saber. Quando a ofendida saiu da casa de banho o arguido agarrou a ofendida, que disse: “Está quieto estás-me a magoar ... estás-me a magoar”, enquanto o arguido dizia: “Vais ouvir, tu vais ouvir” e a ofendida o acusava: “tu ias-me matando, eu não conseguia respirar” e o arguido respondeu: “É, e faço-te isso agora outra vez”. E mais à frente disse “Olha, eu descarrego a minha arma toda em vocês, todos, um por um, estas a perceber? Um por um” e mais à frente “...isto é uma promessa, um por um, faz-me a vida negra”.
Na sequência da discussão o arguido disse à ofendida: “... não me estás a ouvir” ao que esta disse: “vais-me tapar outra vez a boca para eu não respirar!?”, tendo o arguido respondido: “Vou-te estrangular e isto hoje morre aqui, vou ao meu serviço e depois limpo-vos a todos, estas a perceber?”.
A ofendida pediu para esclarecer quem eram todos e o arguido respondeu: “O teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado, todos eles levam um balázio meu, estas a perceber?” tendo a ofendida dito: “Para, estás-me a magoar”.
A discussão entre os dois continuou com o arguido a dizer que estava farto de mentiras da boca da ofendida e esta a acusá-lo de traição e quando a ofendida pede para sair o arguido diz-lhe: “Não, vais ouvir o que eu tenho para dizer”, a ofendida protesta dizendo “Tu não me podes prender aqui” e o arguido disse-lhe: “Não vais sair daqui hoje já, olha, tu não estás bem a ver, tu não sais daqui hoje, os meus filhos não estão cá eu faço o que eu quero, estas a perceber? E se me apetecer meter um balásio nos cornos também faço, mas é no fim, até lá limpo-vos a todos, entendeste?” continuando a conversa justificando-se das acusações da ofendida de traição, enquanto esta gritava “Eu sabia que tu ias fazer e tu fizeste. Tu preferiste aquela puta de merda a mim e ficar em casa comigo e com os teus filhos. Tu preferiste a puta, isso para mim é igual tu teres ido antes ou depois, é igual, entendes?” tendo o arguido voltado a tapar-lhe a boca e a dizer para falar baixo, continuando de seguida ambos a discutir se o arguido tinha ido para a cama com outra, tendo o arguido dito a certa altura: “Vamos parar com isto LL___, vais-me ouvir? Ou tenho de te apertar outra vez a boca para poder falar?”, continuando os dois a discussão.
- Em interrogatório o arguido prestou declarações a fls. 161, que aqui se dão por integralmente reproduzidas e que, em suma, refere que após a separação a ofendida começou a fazer esperas ao arguido no seu trabalho e a combinar uma coisa relativamente aos filhos e a fazer outra, pelo que, se desentenderam não conseguindo chegar a acordo sobre a regulação das responsabilidades parentais, após o que a arguida apresentou a presente queixa crime.
Mais disse que, em janeiro/fevereiro de 2019, poderão ter discutido e dito coisas menos próprias, mas nunca agrediu fisicamente a ofendida, que numa dessas discussões, a ofendida é que empurrou o arguido na frente dos filhos e disse na frente deles que o pai ia sair de casa para ficar com outra mulher, a ofendida enviou um SMS ao arguido a admitir o que fez e a pedir desculpas, tendo no dia 19¬02-2019, pelas 03h52m, a ofendida enviado uma mensagem pelo WhatsApp ao arguido onde transmitiu que já tinha dito (a fls. 215) aos miúdos que o pai nunca os ia deixar, e que os problemas eram com ela, prometendo que nunca mais se ia exaltar na frente deles, entre outras coisas, juntando - a fls. 213 a 229, - as mensagens trocadas com a ofendida pelo WhatsApp, entre 5.12.18 e 29.10.19, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
Que nunca empurrou o filho contra o muro da escola e a situação de ter ido à clínica foi para procurar os filhos que tinha combinado levar a um festival de jazz. O arguido foi buscá-los à escola e a ofendida tinha ido buscá-los mais cedo, que foi depois a casa da ofendida e esta deixou levar a filha e mais tarde apareceu com o filho no espetáculo. A ofendida sentou-se à mesa com ele, deixando depois as crianças com ele, pois iam pernoitar em sua casa. Em momento algum desse dia, o arguido se exaltou com a ofendida·
Quanto aos factos do dia 15.07.2019, o arguido enviou uma mensagem à ofendida para falarem, já depois de terem estado a jantar num restaurante e a ofendida à saída ter lhe dado um estalo, negando que tenha havido violência física no interior do apartamento.
No dia 22.07.2019, pelas 12h38m, o arguido recebeu um email da ofendida, que juntou a fls. 237 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual refere no seu início que: “Depois dos últimos acontecimentos na passada 2ª feira em que foste violento fisicamente comigo e fizeste ameaças de morte a mim e à minha família, tenho naturalmente pensado sobre o assunto.
Pensei fazer queixa, mas decidi não o fazer nesta fase uma vez que considero que o aconteceu e o teu comportamento comigo foram um descontrolo único a que após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o beneficio da duvida.
...” continuando depois a falar sobre a forma de partilhar os bens e as responsabilidades parentais e terminando “Por mim espero resolver tudo isto com base no respeito e pondo sempre o bem estar e estabilidade emocional das crianças em primeiro lugar.”
Quanto a estes factos refere o arguido que a ofendida alega que ele foi violento com ela nesse encontro, mas só não fazia queixa dele, porque foi o único episódio onde foi violento para ela ao longo da relação, o que é uma contradição com as alegações de que foi agredida anteriormente.
E mais à frente a fls. 208, o arguido refere que no calor da discussão ocorrida em 15.07.19, são proferidas frases que serviram o mero propósito de magoar emocionalmente os envolvidos não tendo qualquer objetivo intencional que não o referido. Tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção e a ofendida nunca se sentiu verdadeiramente ameaçada, tendo apenas utilizado a referida gravação nas vésperas da conferência de pais com vista a evitar que o Tribunal fixasse a residência alternada dos menores.
Disse ainda o arguido, em interrogatório, que não é verdade que persiga a ofendida, ou ande atrás dela, mas o inverso aconteceu, conforme resulta das mensagens trocadas pelos dois a 3.01.19, pelas 12h53m.
Concluindo que tentou tudo para sair da relação sem criar incidentes, que a ofendida efetuou a queixa apenas para poder obter proveito na regulação das responsabilidades parentais, e para, devido à profissão do arguido, pressioná-lo e criar-lhe instabilidade e sofrimento e fazê-lo desistir de lutar pela guarda dos seus filhos.
Foi junto pelo arguido o email de resposta ao email do dia 22.07.2019, (a fls 237) enviado no mesmo dia às 16h26, em que, para além da resposta sobre a guarda dos menores que espalha o desentendimento entre os dois, considerando o arguido que as atitudes tomadas pela ofendida são fruto de a mesma procurara “vingança, por todos os meios possíveis”, lhe diz ainda que “relativamente à queixa. Deves fazer o que achares melhor para ti. Não te esqueças de mencionar o acesso ilegítimo à minha conta de correio eletrónico e as várias estaladas que me deste em diversas situações, duas delas em frente aos nossos filhos. Mas vá lá tens tempo de mudar de ideias. Como de resto andas a fazer nestas últimas semanas. Acrescenta também as ofensas que proferiste num restaurante onde nos conhecem há anos e onde tínhamos uma rotina familiar muito agradável. Aliás ainda não percebo porque razão quiseste marcar o jantar naquele local. Avisei-te que se fosse para acabar, como acabou, em estalada da tua parte, que devias escolher outro. Fui ingénuo.”
Foram juntas mensagens trocadas com a ofendida, pelo WhatsApp, entre 16.03.19 e 03.04.20, (a fls. 166 a 182), emails de março, julho e agosto de 2019, (fls. 237 a 243) e informação da USQAT ao Tribunal de Família após entrevista com a ofendida e o arguido, (a fls. 230 a 236), que aqui se dão por integralmente reproduzidas, querendo o arguido demonstrar que após a separação a sua preocupação foi sempre manter uma boa relação com a ofendida e usufruir da companhia dos filhos, enquanto a ofendida se encontrava mais centrada na existência de outra mulher na vida do arguido e na confirmação que os dois se contactam, verificando até se estavam ao mesmo tempo online e dificultando o diálogo entre os dois, com observações sobre o assunto.
Foram ouvidas as testemunhas indicadas pelo arguido, a saber:
- LT____ , a fls. 185, cujo depoimento aqui se dá por integralmente reproduzido, e que, em suma, refere que no dia 15-07-2019, quando a ofendida estava no restaurante Adega Solar Minhoto, em Lisboa, a jantar com o arguido e quando saiu da mesa disse ao arguido, em voz alta: “TU NÃO PRESTAS”.
(…)
São constantes as mensagens de correio eletrónico de terror psicológico que o arguido recebe da ofendida:
· “(...) De facto, cabe ao juiz decidir, contudo trata-se de um acordo PROVISÓRIO cujos contornos foram definidos pela juíza, em sequência do seu desconhecimento do processo de violência doméstica em curso (o que a própria reconheceu recentemente). (...)” (sic.)- mensagem datada de 03 de janeiro de 2021 .
· “(...) a impossibilidade de estar presente mais do que um representante por aluno devido ao Covid e por recear pela minha integridade na tua presença. (...)” (sic.)- mensagem datada de 26 de setembro de 2020.
· “(...) Conforme comunicado, irei buscar a J____ e o M______às 11 h, amanhã, tendo em conta a existência de um segurança no Green Park, seguindo assim o aconselhamento jurídico que me foi prestado, considerando os contornos do processo em curso. (...) (sic.). –mensagem datada de 31 de dezembro de 2020.
Juntando o arguido as mensagens trocadas a fls. 414 a 468.
Relativamente aos factos ocorridos em junho de 2019, refere que a queixa da ofendida só ocorreu em novembro de 2019, quando o arguido já tinha encetado a sua nova relação e essa era do conhecimento da ofendida.
Qualquer ameaça que tenha sido proferida por ambos os intervenientes, foi seguramente sem intenção de a concretizar.
Que o que subjaz nesta denúncia não é o receio que a ofendida agora afirma ter, mas sim, a sua vontade em destruir a vida do arguido por todos os meios possíveis, seja criando ciladas, seja alegando maus tratos que nunca ocorreram, seja levantando suspeição em atos que apenas a beneficiariam, pelo que, para terminar com a senda de acusações juntou rol de testemunhas, para se entender o contexto que rodeou o fim da relação do casal.
Foi inquirido:
- DM_____, a fls. 474, cujo depoimento aqui se dá por integralmente reproduzido, que refere, em suma, que acompanhou o arguido à pastelaria Mexicana onde este se encontrou com a ofendida.
Que enquanto aguardava o arguido visualizou os dois a dirigirem-se ao carro da ofendida que se encontrava na Rua Guerra Junqueiro, que a ofendida aparentava estar exaltada, pela atitude e por falar em tom de voz alto, e ao chegar junto ao veículo a ofendida, subitamente, deu uma estalada na face do arguido, que se manteve impávido e sereno.
- MC______ , a fls. 476, cujo depoimento aqui se dá por integralmente reproduzido, que refere, em suma, que depois de saber que a relação do arguido com a ofendida tinha terminado chegou a ver a ofendida a circular ou parada em frente ao edifício da Polícia Judiciária e que nunca antes tinha visto a ofendida naquela zona.
- MS_____ . a fls. 478, cujo depoimento aqui se dá por integralmente reproduzido, que refere, em suma, que teve conhecimento através do arguido, que o relacionamento entre o casal não estava bem e que ele pretendia terminar a relação. Mais tarde, quanto se encontrou com o HLM e foram beber um café, ele comunicou-lhe que eles tinham terminado o relacionamento, já não residia com a ofendida, que esta ameaçou por diversas vezes, caso ele saísse, não voltar a ver os filhos. Nesse dia reparou no pescoço do arguido, onde o mesmo apresentava uns arranhões, o qual referiu que tinha sido arranhada pela ofendida, que quanto a isto não ia fazer nada, porque ela era a mãe dos seus filhos e que era uma situação passageira.
No primeiro trimestre de 2019, iniciou uma relação com o arguido, a partir daí o arguido passou a receber inúmeros telefonemas da LL___, onde a mesma gritava com ele de um modo descontrolado dizendo: «Que lhe ia fazer a vida negra e num inferno, que lhe ia tirar os filhos, que lhe ia tirar o emprego. Vou-te desgraçar. Se não deixas essa puta vais ver o que vai acontecer». Além dos telefonemas, a ofendida, perseguia o arguido de carro, que chegou a vê-la estacionada junto do Edifício da Polícia Judiciária ou nas ruas adjacentes. Que não pode precisar em que datas tais situações aconteceram, mas passaram-se no primeiro semestre de 2019.
(…)
Assim, analisados conjunta e criticamente os elementos de prova recolhidos, e acima sumariados, dá-se como indiciado, - considerando que, dadas as circunstâncias, a gravação efetuada pela ofendida seria julgada lícita - os seguintes factos:
- A ofendida exerce a profissão de veterinária e o arguido é inspetor da Polícia Judiciária, ambos iniciaram um relacionamento em junho do ano de 2000, tendo passado a viver juntos desde julho de 2003, tendo dessa relação nascido, em 02/05/2010, JM e em 11/04/2012, MM
- Em julho de 2010 ambos passaram a viver na residência da ofendida, sita na Rua Esqº, em Lisboa.
- Em meados de 2018 e início de 2019, ocorreram desentendimentos entre a ofendida e o arguido devido ao facto de a ofendida “descobrir uma relação extraconjugal” do arguido com a sua atual companheira.
- Em fevereiro de 2019, a ofendida e o arguido separaram-se.
- Após a separação, em virtude da dificuldade de ambos em lidarem com os acontecimentos que levaram ao desfecho da relação e com a partilha da guarda dos filhos, foram vários os desentendimentos entre ambos, nomeadamente por o arguido estar a sentir que a ofendida estava a afastá-lo dos filhos, pelo que lhes dizia, e por combinar uma coisa relativamente aos filhos e fazer outra.
- Na sequência dos desentendimentos, a ofendida e o arguido decidiram encontrar-se no dia 15.07.2019, para discutir o exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos.
- Nesse dia 15.07.2019, a ofendida encontrou-se com o arguido, num apartamento pertencente a ambos, sito em Lisboa, local onde o arguido passou a residir após a separação, para falarem sobre a partilha das responsabilidades parentais.
- Durante essa discussão que a ofendida gravou, em parte, e que acima se transcreveu, percebe-se que o arguido segurou a ofendida para que não se fosse embora sem o escutar e tapou-lhe a boca, dizendo para falar mais baixo e para ouvir o que tinha para lhe dizer, tendo proferido ameaças de morte à ofendida e à sua família.
- Que no mesmo dia 15-07-2019, antes de a ofendida ir ter ao apartamento do arguido, ambos encontraram-se para jantar no restaurante Adega Solar Minhoto, em Lisboa, e quando a ofendida saiu da mesa do restaurante, disse ao arguido em voz alta: “TU NÃO PRESTAS”.
- Que no primeiro semestre de 2019 o arguido encontrou-se com a ofendida na pastelaria Mexicana e que, após os dois se dirigirem ao carro da ofendida e já junto ao veículo desta, a ofendida deu uma estalada na face do arguido, que se manteve impávido e sereno.
- Que no primeiro semestre de 2019 a ofendida passou a circular ou a parar em frente ao edifício da Polícia Judiciária.
- Que no primeiro semestre de 2019 o arguido tinha uns arranhões no pescoço e que a ofendida gritava ao telefone para o arguido: «Que lhe ia fazer a vida negra e num inferno, que lhe ia tirar os filhos, que lhe ia tirar o emprego. Vou-te desgraçar. Se não deixas essa puta vais ver o que vai acontecer».
*
Vejamos se tais factos são suscetíveis de integrarem a prática de crime de violência doméstica p. e p. pelo arº 152º, nº 1, al. b) e nº 2 al. a), do Código Penal:
(…)
Aqui chegados cumpre avaliar se os factos indiciados podem ainda integrar a prática de outros crimes:
A)      Pelo arguido dos crimes de:
- ameaça agravada, p.e p. pelos arts.153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal.
(…)
Relativamente às ameaças proferidas, (art.153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal), preceitua o art. 153º, n.º 1, do C.P. que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
O crime de ameaça é, assim, um crime de mera ação e de perigo, não é exigido que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do transcrito no artº. 153º, basta que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
E, como ensina Taipa de Carvalho, em anotação ao art. 153º, o critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual:
Objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do "homem comum");
Individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das "sub-capacidades" do ameaçado).
Podemos, então, concluir que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).
No caso dos autos, quanto às expressões utilizadas pelo arguido, o mesmo refere que no calor da discussão ocorrida em 15.07.19, são proferidas frases que serviram o mero propósito de magoar emocionalmente os envolvidos não tendo qualquer objetivo intencional que não o referido. Tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção e a ofendida nunca se sentiu verdadeiramente ameaçada, tendo apenas utilizado a referida gravação nas vésperas da conferência de pais com vista a evitar que o Tribunal fixasse a residência alternada dos menores.
De facto, toda a prova remete para que, embora tais ameaças tenham sido proferidas pelo arguido, as mesmas, como este refere, e como foi entendido pela ofendida no email que enviou ao arguido, uma semana após o referido episódio, foram resultado de “um descontrolo único” e como o arguido refere tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção, o que aliás foi interpretado pela própria ofendida, que conhecendo bem o arguido lhe disse: “Pensei fazer queixa, mas decidi não o fazer nesta fase uma vez que considero que o aconteceu e o teu comportamento comigo foram um descontrolo único a que após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o beneficio da duvida”.
De facto, 18 anos de convivência com o arguido permitiram à ofendida conhecer a personalidade do arguido, e, tendo em conta as circunstâncias em que as expressões foram proferidas, a ofendida duvidou da seriedade das mesmas, o que, aliás, se encontra espelhado em toda a comunicação escrita trocada entre a ofendida e o arguido logo após a referida discussão, dela não resultando que a ofendida tivesse levado a sério tais ameaças, ou que ficasse com medo que o arguido as cumprisse, ou mesmo, que se sentisse prejudicada na sua liberdade de determinação em resultado das expressões proferidas pelo arguido, não podendo deixar-se de acompanhar aqui a admiração do arguido, de que o receio do mesmo pela ofendida se fosse intensificando à medida que foi crescendo o desentendimento relativo à guarda dos menores, filhos de ambos, quando as conversas trocadas com o arguido em que este pede para não ligar “ao que foi dito por raiva” (a fls. 447), pede desculpas pelo sofrimento que causou á ofendida, que foi sem intenção de a magoar e o próprio decurso do tempo, em que o arguido nada fez para concretizar as ameaças, deveriam, de acordo com a experiência comum, dissipar e não aumentar qualquer receio inicial.
Assim sendo, a tipicidade do crime em análise não se pode considerar preenchida.
Pelo que se determina, nesta parte, o arquivamento dos autos, atento o disposto no art.º 277°, n.º 1, do CPP»
2- A queixosa requereu a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do arguido pelos crimes de violência doméstica ou, se assim não se entendesse, de crimes de ameaça agravada, sequestro e ofensas à integridade física qualificada.
3- Finda a instrução foi proferido o despacho recorrido que se contem nos seguintes termos, na parte relevante para o conhecimento do recurso:
« (…)
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem natureza meramente indiciária, ou seja, é fundada em sinais, suspeitas, indicações suficientes e bastantes para o convencimento do prática do crime e de quem é o seu responsável e, consequentemente, para que um arguido seja pronunciado não se exigem certezas quanto à prática da infracção, bastando que a factualidade recolhida seja suficiente e bastante, por forma a que, logicamente relacionada e conjugada forme um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe imputado.
Il. O DIREITO
Tendo em conta as finalidades da instrução e delimitando o seu objecto pela matéria vertida no requerimento de abertura desta fase processual, importa determinar se dos elementos de prova recolhidos nos presentes autos resultam ou não indícios suficientes da prática por parte do arguido do crime que lhe foi imputado pela assistente no seu requerimento de abertura de instrução e, por conseguinte, se é possível a formulação de um juízo de probabilidade razoável de que ao mesmo venha a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança em sede de julgamento.
(…)
Foi, ainda, junta aos autos a gravação constante do cd de fls. 20, cuja transcrição se mostra junta a fls. 21 e seguintes dos autos.
Analisadas as declarações prestadas nos autos, constata-se que, com exceção do assistente e do arguido, nenhuma testemunha logrou referir factos de que tivesse conhecimento direto relativamente à atuação do arguido para com a ofendida.  (…)
Na verdade, quanto aos factos que no requerimento de abertura de instrução são descritos pela assistente, o elemento de prova nuclear de que dispomos é a gravação constante do cd de fls. 20, havendo que apreciar da sua validade enquanto meio de prova, uma vez que a mesma foi obtida sem autorização ou conhecimento do arguido.
Tal como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 6.11.2019, disponível em www.dgsi.pt, "esta matéria tem suscitado muita controvérsia, levando a grandes debates doutrinais e jurisprudenciais. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, tratou bem cedo desta matéria seguindo de perto o debate suscitado na doutrina e jurisprudência alemãs. Vejam-se fls 242 e seguintes, desta monografia, editada pela Coimbra Editora em 1992, onde se aborda o tema das gravações ilícitas, não deixando de considerar o que ocorre nos crimes de extorsão, coacção, injúria, corrupção, fraude e outos tipos legais propensos à integração por esta via: como momento comum o estas situações sobressai um comportamento ilícito ou ao menos, eticamente censurável, por parte do pessoa cuja palavra é, sem o seu consentimento, gravada. Igualmente comum e consensual, entre o doutrina e jurisprudência, é o entendimento de que os autores destas gravações não devem ser criminalmente sancionados. Mas as divergências começam já a ganhar expressão em sede de enquadramento doutrinal da exclusão da responsabilidade penal. Enquanto uns privilegiam o efeito tipicidade, em nome da redução teleológica da área de tutela da norma incriminatória, outros consideram que só a doutrina da ilicitude e das causas de justificação detém as virtualidades para um ajustado enquadramento dos problemas".
A gravação das comunicações entre particulares como meio de prova em processo penal coloca questões delicadas no domínio dos direitos fundamentais: intimidade da vida privada inviolabilidade das comunicações e, por outro lado, o direito do arguido a não se auto-incriminar (nemo tenetur se Ipsum ocusar) e de evitar que esta manifestação consubstancie uma forma dissimulada de confissão.
Conclui o citado aresto jurisprudencial que «é praticamente pacífica a jurisprudência, destacando por dizer respeito a caso muito semelhante ao dos autos, o Acórdão da Relação do Porto de 27/01/2016, no processo 1548/12.0TDPRT.P1, acessível em "1...)
II — Pode ser considerada válida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
III — Se a gravação documenta a comunicação telefónica do autor, daqueles ilícitos da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduto ilícita do arguido (crimes de ameaça e injuria) é justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente sem o consentimento do autor daqueles ilícitos."
Hoje em dia não há quaisquer dúvidas que as gravações de chamadas telefónicas, ou por outros meios electrónicos, entre particulares, são válidas como meio de prova, desde que esta matéria seja analisada casuisticamente, como meio de proteger um conjunto de direitos fundamentais que brigam com esta temática.
Entre outra prova, podemos consistentemente afirmar que a gravação, como meio adjuvante, serviu para demonstrar o iter criminis — tentativa de extorsão.
A gravação entre particulares é legal e por isso a prova não pode ser considerado proibida».
Temos, pois, que a gravação junta aos autos a fls. 20, atento o seu teor e circunstâncias em que foi efetuada, não constitui meio proibido de prova, sendo legal.
Em face do que se deixou dito, constata-se existirem nos autos indícios de que entre a ofendida e o arguido tenha ocorrido uma discussão com os contornos que pudemos ouvir através do cd de fls. 20 e que se mostram transcritos com rigor a fls. 21 e seguintes.
E é sobre esta discussão que deverá incidira análise do Tribunal para verificar se existe ou não probabilidade de em face do indiciado, o arguido vir a ser condenado em julgamento pela prático de algum dos crimes que a assistente pretende ver-lhe imputados em termos acusatórios.
Com efeito, para além do que naquele dia 15.07.2019, data em que foi feita a gravação junta aos autos, sucedeu nada consta dos autos que nos permita concluir pela verificação de factos suscetíveis de, por si só, integrar o crime de violência doméstica ou qualquer outro. Veja-se que o episódio da ida à clínica da ofendida por parte do arguido alguns dias antes dos eventos de 15.07.0219 em nada se refere à própria ofendida, que não se encontrava presente na clínica quando o arguido aí se deslocou pelo que nenhuma relevância criminal se pode atribuir a tal evento.
Já da análise da gravação junta aos autos, é possível constatar que, no decurso da discussão, entre outras coisas, o arguido tapou a boca da assistente por mais de uma vez com o objetivo de evitar que esta continuasse a falar alto e ouvisse o que o arguido queria dizer-lhe, bem como ameaçou a ofendida e a sua família de que ia ao trabalho e depois "limpo-vos a todos, tás a perceber?", "o teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado...todos eles levam um balázio meu...ta a perceber?".
No mais, a referida gravação retrata uma discussão mantida entre ambos ao Iongo de alguns minutos.
(…)
Denota a referida gravação que ocorreu uma discussão muito arreigada entre ofendida e o arguido e que no decurso da mesma, não só a ofendida se encontrava nervosa e agitada, como também o arguido parecia estar bastante alterado, ao ponto de proferir as ameaças referidas.
Importa apreciar tal discussão e os factos que no decurso da mesma terão sido praticados no sentido de apurar se os mesmos são suscetíveis de configurar, desde logo, a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica.
Para que tal suceda, impõe-se considerar que aquele evento isolado e único se revestiu de gravidade suficiente para justificar o enquadramento da situação em apreço na tipicidade do crime de violência doméstica.
A coadjuvar tal análise, importa chamar à colação a mensagem se email remetida ao arguido pela ofendida alguns dias depois do sucedido e em que esta escreveu 'Depois dos últimos acontecimentos da passada 2.0 feira em que foste violento fisicamente comigo e fizeste ameaças de morte a mim e à minha família, tenho naturalmente pensado sobre o assunto.
Pensei fazer queixa mas decidi não o fazer nesta fase porque considero que o que aconteceu e o teu comportamento comigo foram um descontrolo único a que, após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o benefício da dúvida..."
Desde logo, importa referir que o comportamento da ofendida ao, tendo oportunidade de se deslocar à casa de banho, um local fechado, onde poderia ter solicitado ajuda, nomeadamente das autoridades, preferir colocar o seu telemóvel a gravar imagem e som, voltando para perto do arguido nessas circunstâncias denota alguma frieza de espírito num momento em que se esperaria que o mesma se sentisse de tal modo assustada (em face do que alegou ter acontecido) que a sua preocupação jamais seria registar os momentos que se seguissem em gravação, mas sim sair do local o quanto antes, fosse por sua iniciativa ou com a ajuda de terceiros (nomeadamente as autoridades:, por forma a que não se repetissem ou ocorressem quaisquer outros factos que pudesse recear.
Mais, constata-se pela audição da gravação que ao longo da discussão, é patente a intenção manifestada pelo arguido de conseguir que a ofendida ouvisse o que teria para lhe dizer e um diálogo entre os dois em que a ofendida não se apresenta como alguém assustado ou com medo do arguido, tanto mais que consegue confrontá-lo de forma veemente com inúmeros factos por este praticados e relativamente aos quais manifestou o seu desagrado.
Finalmente, refira-se que a mensagem de email enviada ao arguido pela ofendida a 22.07.2019, na sequência e a propósito dos eventos de dia 15.07.2019 espelha a forma como a próprio encarou o então sucedido, "um descontrolo único a que, após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o benefício da dúvida".
Atendendo a tudo o que se deixa exposto, entendemos não poder considerar que os eventos de 15.07.2019, enquanto episódio único no decurso, nomeadamente, da separação de arguido e ofendida e definição dos termos das responsabilidades parentais relativamente aos seus dois filhos.:,, assumam gravidade suficiente para que possamos qualificá-los como violência doméstica (…).
Não assumindo tais eventos a referida gravidade, importa apurar da existência de indícios da prática de outros crimes por parte do arguido, que não o de violência doméstica.
Em face do que é invocado pela assistente no seu requerimento de abertura de instrução, subsidiariamente à verificação de indícios de um crime de violência doméstica, existem indícios da prática pelo arguido de um crime de ameaça agravado, sequestro e ofensa à integridade física qualificado.
(…)
Entendemos, assim, inexistirem quaisquer indícios da prática pelo arguido do crime de sequestro.
No que se refere ao crime de ofensa à integridade física qualificado (…) ( mostra-se) acertado o arquivamento feito pelo Ministério Público nesta sede.
Finalmente, importa referir o crime de ameaça agravado que a assistente pretende ver imputado ao arguido.
Nesta sede, mostra-se indiciado que o arguido, dirigindo-se à ofendida disse 'Olha... eu descarrego a minha arma em todos vocês...todos...um por um...tas a perceber? Um por um'; "vou-te estrangular e isto hoje morre aqui... vou ao meu serviço e depois limpo-vos a todos...tas a perceber" “teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado...todos eles levam um balázio meu...tas a perceber?".
Nos termos do artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal "quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias'.
Por sua vez, quando os factos previstos no artigo 153.°, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.°.
Encontramos protegida por esta incriminação a liberdade de decisão e de ação, já que, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, as ameaças afetam a paz individual, condição essencial para uma verdadeira liberdade.
Como conceito, a ameaça consiste num mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
Aquele mal tanto pode ser de natureza pessoal como de natureza patrimonial, devendo ser um mal futuro e não iminente, pois então já não estaremos perante uma ameaça mas um início do concretização do facto violento em si.
A ação de ameaçar pode revestir qualquer forma, podendo ser realizada quer por ação quer por omissão.
Quanto ao mal ameaçado, ou seja, quanto ao objeto da ameaça, tem o mesmo de constituir crime, ou seja, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico, facto esse produzido contra bens jurídicos devidamente catalogados e discriminados no referido artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal: a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor patrimonial.
No artigo 155.° do Código Penal, encontramos uma agravação da pena abstrata motivado pelo facto de o objeto da ameaça constituir crime punível com pena de prisão superiora 3 anos
Trata-se aqui de considerar que, entre a gravidade do crime objeto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação existe uma relação de proporção, já que quanto mais grave for a ameaça, maior será a perturbação por aquela causada.
Sujeito passivo ou vítima do crime de ameaça é o destinatário da ameaça, o qual se distingue do objeto do crime ameaçado, que pode não coincidir com aquele primeiro, sendo, é claro, exigível, que este último esteja para com o primeiro numa relação de proximidade.
Analisados os factos indiciados acima discriminados, impõe-se constatar que o arguido efetivamente formalizou para com a ofendida uma ameaça de um mal futuro, sendo tal ameaça apto a causar medo e inquietação na ofendida, sendo irrelevante para a verificação do tipo que tenho efetivamente causado ou não tal medo. A ameaça feita pelo arguido da forma como o fez considerando a sua profissão que lhe permite o uso e porte de arma de fogo com a qual anunciou levar a cabo as ameaças que proferiu, leva-nos a crer que a ameaça pelo mesmo formulado, nomeadamente, quanto à ofendida o foi de forma séria e determinada, devendo o mesmo ser pronunciado pelos respetivos factos, o que se decide
III. CONCLUSÃO
Por tudo quanto fica exposto, de harmonia com o disposto nos artigos 307.°, n.° 1, e 308.`, n.° 1, do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido pelos crimes de violência doméstica, sequestro e ofensa à integridade física simples, que pela assistente lhe vinham imputados no seu requerimento de abertura de instrução e pronunciar o arguido HLM, melhor identificado a fls. 160, pelos seguintes factos:
1. A assistente exerce a profissão de veterinária e o arguido é inspetor da Polícia Judiciária;
2. Ambos iniciaram um relacionamento em junho do ano de 2000, tendo passado a viver juntos desde julho de 2003;
3. Dessa relação tiveram dois filhos, J___, nascida em ….2010___, nascido em …2012;
4. Em julho de 2010 ambos passaram a viver na residência da assistente, sita na Rua…, n.° 5, 1.° esquerdo, em Lisboa;
5. Em meados de fevereiro de 2019, o arguido saiu de casa, sendo que após a separação não houve acordo quanto à guarda dos filhos;
6. No dia 15.07.2019 a ofendida dirigiu-se até à casa onde reside o arguido;
7. Pouco depois de entrar, togo se desentenderam e iniciou-se uma discussão, no decurso da qual o arguido num tom descontrolado e enraivecido disse "olha... eu descarrego a minha arma em todos vocês... todos...um por um... tas a perceber? Um por um...";
8. O arguido, em tom sério e determinado disse "olha, não te admires, isto é uma promessa...um por um...";
9. Após, o arguido, com as suas mãos, voltou a tapar a boca da assistente e disse-lhe 'Vou-te estrangular e isto hoje morre aqui...vou ao meu serviço e depois limpo-vos a todos... tas a perceber?'
10. O arguido sabia que as promessas de mal futuro — nomeadamente a morte — por si dirigidas à ofendida eram adequadas a causar-lhe insegurança, medo e inquietação, o que efetivamente sucedeu, não se coibindo ainda assim de as realizar;
11. O arguido de forma livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Face ao exposto, o arguido cometeu, em autoria material e sob a forma consumada, um crime de ameaça agravado, previsto e punível pelos artigos 153°, n.° 1, e 155°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.»
***
IV- Recurso:
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« A - Vem o presente recurso interposto da decisão que pronunciou HLM, o que faz nos termos do disposto no artigo 310.° a contrario e do n.°1 do artigo 410.° do Código de Processo Penal.
B - A decisão recorrida, podendo conhecer do conteúdo, fiabilidade, integridade, manipulação e validade dos documentos n.° s 4 e 5 juntos pela recorrida na sua queixa, não o fez, apesar dos alertas para tal dados pelo recorrente.
C - LL____ apresentou queixa contra o recorrente, alegando factos que poderiam integrar a prática pelo arguido dos crimes de Violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, al. b) e n.° 2, al. a) do Código Penal, Ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.°, n.° 1 e 155.°, n.° 1, al. a) do Código Penal, Sequestro, p. e p. pelo artigo 158.°, n.° 1 do Código Penal, Ofensas à integridade física simples ou qualificadas, p. e p. pelo artigo 143.°, n.° 1 e 145.°, n.° 1, al. a) por referência artigo 132.°, n.° 2, al. b) do Código Penal e falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.°, n.° 1, al. c) do Código Penal.
D - O Ministério Público analisou se os factos apurados poderiam também indiciar a prática, pela assistente, dos crimes de Ofensas à integridade física simples ou qualificadas, p. e p. pelo artigo 143.°, n.° 1 e 145.°, n.° 1, al. a) por referência artigo 132.°, n.° 2, al. b) do Código Penal, Ameaça, p. e p. pelo artigo 153.°, n.° 1 do Código Penal, Perseguição, p. e p. pelo artigo 154.°-A, n.° 1 do Código Penal, Injúrias, p. e p. pelo artigo 181.°, n.° 1 do Código Penal,
E - E concluiu, relativamente à ofendida, porque o arguido não manifestou o desejo de procedimento criminal contra a mesma e porque o direito de queixa estava extinto por sobre os factos estarem volvidos mais de seis meses sobre a sua prática, carecer de legitimidade para a prossecução do processo penal, determinando o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 277.° do Código de Processo Penal.
F - Relativamente ao arguido, o Ministério Público ordenou o arquivamento total dos autos, nos termos do n.° 1 do artigo 277.° do Código de Processo Penal, por não se encontrarem preenchidos os elementos de nenhum dos tipos de crime imputados ao arguido pela ofendida.
G - A recorrida requereu a abertura de Instrução e foi proferida decisão instrutória que pronunciou o arguido pelo crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal.
H - A decisão recorrida refere que “. com excepção da assistente e do arguido, nenhuma testemunha logrou referir factos de que tivesse conhecimento directo relativamente à atuação do arguido para com a ofendida.”, pelo que o recorrente pretende sujeitar à apreciação de V.as Ex.as a validade e licitude da única prova, ou seja, o CD constante de fls. 20 e a sua transcrição de fls. 21 a 27 junta como documento n.° 5.
I- A decisão recorrida reconhece que a prova (o CD) “...foi obtida sem autorização ou conhecimento do arguido.” e que “a gravação junta aos autos a fls. 20, atento o seu teor e circunstâncias em que foi efectuada, não constitui meio proibido de prova, sendo legal.”.
J - Para tal, cita o Acordão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 27/01/2016 no Processo n.° 1548/12.0TDPRT.P1, mas este trata de um caso com uma factualidade completamente diferente: não é no interior do lar do arguido, não é uma gravação vídeo escondida e a chamada é feita pelo próprio arguido.
L - Análise não foi feita casuisticamente de forma a proteger um conjunto de direitos fundamentais do arguido, nem com apelo ao critério de adequação objectivo-individual que o Ministério Público refere.
M - Não é possível ter a certeza de qual o dia, hora, duração, manipulação, fidelidade da gravação apresentada pela recorrida.
N - Recorrente alertou desde o início para tal circunstância, nomeadamente, no dia da sua constituição como arguido, a fls. 150, 161; a fls. 188; a fls. 206, no seu depoimento de 13-01-20121, a fls. 375.
O - Citando o Prof. Manuel Costa Andrade, alega que uma prova proibida é aquela que é conseguida “com violação de direitos constitucionalmente garantidos e relativamente aos quais a Constituição estabelece verdadeiras normas processuais que devem ser respeitadas para poderem, excepcionalmente, incidir sobre as liberdades constitucionais tuteladas, donde resulta, por um lado, que é muito circunscrita a discricionariedade do legislador ordinário, e por outro, que as provas obtidas mediante modalidades desrespeitosas da regras estabelecidas pela lei ordinária para tutela dos direitos constitucionalmente protegidos se devem considerar como directamente violadoras da Constituição”.
P - O artigo 126.° do Código de Processo Penal enumera e define as provas proibidas, sendo uma regra genérica de exclusão de provas proibidas, com base legal no artigo 32.°, n.° 8 da Constituição da República Portuguesa.
Q - O n.° 3 do artigo 126.° do Código de Processo Penal refere-se à utilização de meios de prova através da intromissão na vida privada e no domicílio sem o consentimento do respectivo titular, o que aconteceu nos presentes autos, pois o recorrente deu consentimento de entrada no seu domicílio, mas não para a captação de gravações.
R - O Ministério Público profere despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277.° do Código de Processo Penal, mas apenas diz que “... analisados conjunta e criticamente os elementos de prova recolhidos, e acima sumariados, dá-se como indiciado - considerando que, dadas as circunstâncias, a gravação efectuada pela ofendida seria julgada lícita - os seguintes factos.” - cfr. despacho de arquivamento.
S- O Ministério Público, ao escrever cautelosamente “seria julgada lícita”, pretendeu equacionar a possibilidade de os factos constantes da queixa apresentada pela ofendida serem susceptíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, al. b) e n.° 2 al. a) do Código Penal, num juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação, o interesse público da realização da justiça se sobrepor aos interesses pessoais do recorrente, excluindo-se a ilicitude da gravação, nos termos do n.° 1 do artigo 31.° do Código Penal.
T - Mas do Inquérito e da Instrução resulta a decisão fundamentada de que o recorrente não praticou qualquer facto que possa constituir indício susceptível de integrar a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.°, n.° 1, al. b) e n.° 2 al. a) do Código Penal.
U - Assim, a gravação áudio apresentada como ÚNICA PROVA pela recorrida deve ser considerada, sem mais, prova proibida e ilícita por violação do disposto no n.° 1, al. a) do artigo 199.° do Código Penal, pelo que nula.
V - O que consta do CD não é uma conversa telefónica, mas sim uma conversa em contexto de discussão presencial - gravação ambiental - onde urge a necessidade de incluir o contexto inicial e o seu consequente desfecho.
X - A suposta gravação vídeo constituiu um acto planeado e premeditado por parte da recorrida, que insiste em descontextualizar e manipular o momento, sendo a transcrição junta um documento entregue sem qualquer certificação, não se sabendo em que telemóvel foi gravada/filmada, nem se é integral ou truncada.
Z - A simples leitura da transcrição da gravação do CD que o recorrente agora junta como doc. n.° 1, permite ver que a transcrição junta pela recorrida tem bastantes diferenças, desde logo onde a recorrida escreve “Choro”, o que se ouve são risos da recorrida.
AA - Não houve qualquer perícia ordenada à gravação e respectiva transcrição, pelo que não se pode aceitar o CD como PROVA ÚNICA VÁLIDA.
BB - Nos autos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais - Proc. n.° 21503/19.8T8LSB - que correm termos pelo Juiz 1 do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, encontra-se designada a audiência de julgamento para o próximo dia 21 de Setembro de 2021.
CC - Resulta indiciado no douto despacho de arquivamento que “.foram vários os desentendimentos entre ambos, nomeadamente por o arguido estar a sentir que a ofendida estava a afastá-lo dos filhos, pelo que lhes dizia, e por combinar uma coisa relativamente aos filhos e fazer outra.”, bem como que “.o motor deste processo não parece ser os factos denunciados, ocorridos muito antes da data da queixa, mas a disputa do poder paternal sobre os filhos, não podendo o processo crime ser um meio para atingir tal fim, exigindo o bem-estar dos menores e o superior interesse da criança acima de tudo entendimento entre os pais.”.
DD - A queixa crime apresentada pela recorrida foi a “última cartada” para evitar que o exercício da regulação das responsabilidades parentais que no dia 21 de Setembro de 2021 vai ser fixado definitivamente o seja nos moldes de residência alternada como até aqui se tem verificado.
EE - A validade de uma gravação/vídeo entre particulares só poderá ser considerada como meio de prova fidedigno se comprovada cabalmente a sua integridade e originalidade, mas os documentos 4 e 5 foram criados e editados pela recorrida e são a única prova considerada para a pronúncia do recorrente.
FF - A decisão recorrida não valorou o facto de a gravação ter sido obtida fora de uma conversa telefónica, com contornos de escuta ambiental, alegadamente em casa do arguido, sem que este tivesse conhecimento que a mesma se encontrava a decorrer, depois de a recorrida ali se ter deslocado de livre e espontânea vontade, após de ter injuriado o recorrido num jantar que precedeu esta visita (veja-se o depoimento de fls. 185 da testemunha LT____ ).
GG - O recorrente vê-se indiciado pela prática de um crime de ameaça agravada suportado em prova recolhida que não apresenta confirmação da sua integridade e sobre a qual há fortes indícios de manipulação posterior.
HH - O ficheiro exibe sinais de ter sido alvo de edição e não ficou demonstrado que foram cumpridas as normas internacionais geralmente aceites quanto à validade dos indícios digitais recolhidos, designadamente, a observação do princípio da integridade e do não repúdio: não foi tecnicamente avaliado quanto à integridade e, não estando íntegro, pode ter sido editado à medida.
II- O equipamento móvel - qual?? - visou gravar a reação esperada pela recorrida da sua provocação intensa feita ao recorrente, não correspondendo a uma situação de emergência.
JJ - O CD apresenta-se em ficheiro áudio e vídeo denominado por V_20190716_001633_N0, com a assinatura digital MD5 dcda8ccf5cdc1906145c4009dfb2b551, tendo a duração de 6 (seis) minutos e 1 (um) segundo.
LL - Da leitura aos elementos forenses que o ficheiro apresenta é possível registar uma interacção com um sistema Goolge Inc., no dia 30 de Julho de 2019.
(…)
MM - Desta interacção resultam fortes indícios de alteração das características do ficheiro original, nomeadamente, na duração do mesmo, em virtude de não ser perceptível ao longo da gravação apresentada como é que o mesmo é colocado em pausa ou terminado.
NN - Indícios suficientes para se considerar que a prova apresentada foi manipulada em data posterior - sabe-se lá quantas vezes - e, por esse motivo, deve ser considerada prova proibida, pelo que nula e de nenhum efeito e, consequentemente, desentranhada do Inquérito.
OO - A gravação constante do CD é nula por ter sido captada sem conhecimento e autorização do recorrente, no interior do seu domicílio, com intromissão na sua vida privada, logo, em violação do disposto no artigo 199.°, n.° 1, al. b) do Código Penal e, ainda, por ter sido manipulada em data posterior à da sua alegada captura, sem se saber quando e como, e, por esse motivo, deve ser considerada prova proibida, pelo que nula e de nenhum efeito nos termos do disposto nos artigos 122.°, n.° 1 e 126.°, n.° 1 e 3 do Código de Processo Penal.
PP - Reunir provas, em si mesmo, não constitui crime, mas, para tal, a captação/gravação de imagens e voz tinha que corresponder à defesa de um interesse protegido, numa situação de legítima defesa ou de direito de necessidade e nunca a recorrida esteve numa situação de emergência, de legítima defesa ou de estado de necessidade nos presentes autos.
QQ - É a decisão recorrida que conclui que “.o comportamento da ofendida ao, tendo oportunidade se deslocar à casa de banho, um local fechado, onde poderia ter solicitado ajuda, nomeadamente das autoridades, preferir colocar o seu telemóvel a gravar imagem e som, voltando para perto do arguido nessas circunstâncias denota alguma frieza de espírito num momento em que se esperaria que a mesma se sentisse de tal modo assustada. que a sua preocupação jamais seria registar os momentos que se seguissem em gravação, mas sim sair do local o quanto antes, fosse por sua iniciativa ou com a ajuda de terceiros.”.
RR - Até vai mais longe: “.constata-se pela audição da gravação a ofendida não se apresenta como alguém assustado ou com medo do arguido, tanto mais que consegue confrontá-lo de forma veemente com inúmeros factos.” - cfr. decisão instrutória de que se recorre.
SS   - A presente decisão de que ora se recorre viola claramente o conjuntamente disposto no artigo 38.° e no n.° 1 do artigo 199.° do Código Penal, artigo 122.°, n.° 1 e 126.°, n.° 3 do Código de Processo Penal e n.° 8 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, o que faz com que o CD e a transcrição juntos como documentos n.° s 4 e 5 da queixa apresentada pela recorrida tenham que ser desentranhados dos autos por violação clara das disposições legais citadas, classificando-os como provas ilícitas, pelo que nulas e de nenhum efeito.
TT - Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não deveria ter pronunciado o recorrente pela prática do crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, desde logo por falta de prova válida, lícita e não proibida.
UU - CONCLUINDO: nos termos do que se deixa exposto e com fundamento no disposto no artigo 310.° a contrario e no n.° 1 do artigo 410.° do Código de Processo Penal, recorre-se da decisão que pronuncia o recorrente pela prática de um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, pois, podendo conhecer do conteúdo, fiabilidade, integridade e manipulação e, ainda, validade dos documentos n.°s 4 e 5 juntos pela recorrida na sua queixa não o fez, pelo que se requer-se a V.as Exªs se dignem revogar a douta decisão proferida substituindo-a por outra que não pronuncie o recorrente pelo crime de ameaça agravada (…)».
***
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
« 1) A luz da motivação do recorrente, não merece qualquer reparo a douta decisão instrutória proferida pelo Tribunal a quo, de cujo teor se extraem fundamentos bastantes da prática do crime de ameaça agravada praticado pelo arguido.
2) Quanto à invocada nulidade ou prova proibida da gravação da conversa, concluímos que não assistirá razão ao aqui recorrente e que o mesmo confunde uma prova directa dos factos obtida por um particular, no caso o assistente, com os meios de obtenção de prova previstos e definidos pelo Código de Processo Penal.
3) De acordo com o art.° 125.°, do Código de Processo Penal, "são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, podendo afirma-se ser a gravação admissível como meio de prova, por não se tratar de prova proibida - cf. Acórdão da Relação do Porto de 17-12-1997, CJ, ano XXII, Tomo 5, pág. 240, no qual pode ler-se o seguinte: "pode ser utilizada como meio de prova de um crime de ameaça, a cassete que contém a gravação da mensagem ditada pelo arguido para o telemóvel do ofendido para aí ficar gravada".
4) No caso dos autos, a gravação da conversação foi efectuada, não se tratando de prova obtida mediante tortura, coacção ou em geral ofensa à integridade físicas ou moral da sua pessoa, pelo que, não se conclui tratar-se de prova nula ou proibida, nos termos previstos no art.° 126.° n.° 1, do Código de Processo Penal.
5) Tendo o arguido proferido expressões que configuram a prática de crime, mostra-se excluída a proibição da prova prevista no art.° 126.° n.° 3, do Código de Processo Penal.
6) Concluímos assim que a gravação da conversa no caso em concreto, é uma prova admissível por fazer prova sobre factos que constituem a prática de um crime, não assistindo razão ao recorrente quando defende a sua ilegalidade e nulidade.
7) Na douta decisão recorrida não foi valorada, nem admitida prova proibida, pois a prova produzida, tratou-se de prova válida e admissível, cuja valoração obedeceu ao princípio da livre apreciação da prova e foi valorada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador — art.° 127.°, do Código de Processo Penal.
8) Ressalta de forma clara do texto da decisão recorrida ter o Tribunal a quo efectuado a ponderação, reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida e obtido a convicção plena sobre a verificação e prática dos factos imputados ao arguido.
9) O Tribunal recorrido bem ponderou a prova, pois se por um lado o arguido negou os factos que lhe são imputados, a prova dos factos como se constata foi alicerçada e sustentada nas declarações da assistente (prova testemunhal), que como vítima, descreveu os factos, de forma linear, coerente e credível nos exactos termos como se considerou e deu como assentes.
10) Igualmente ponderou a gravação da conversação entre o arguido e a assistente e que, no domínio desse conversação, o arguido proferiu os termos e expressões dados como consolidados.
11) Resulta assim devidamente fundamentada na douta decisão recorrida que a versão do arguido não logrou convencer o Tribunal.
12) Do supra exposto, não se observa qualquer nulidade ou irregularidade na valoração da prova, pois a mesma foi minuciosamente descrita e valorada, ponto por ponto, especificando-se em concreto todas as questões e circunstâncias relevantes em termos probatórios e todas as particularidades que se passaram em julgamento e que foram tidas em consideração na fundamentação dos factos.
13) Deste modo, deve entender-se que age no exercício de um direito e, portanto, vê excluída a ilicitude do seu comportamento, o agente cuja conduta é autorizada por uma qualquer disposição de qualquer ramo do direito, nisso consistindo o chamado «princípio da unidade da ordem jurídica».
14) Na verdade, quando os valores jurídicos protegidos pela estatuição do art. 199.° do CP — relativos à imagem ou à palavra —estão a ser instrumentalizados na defesa de outros direitos, ou quando a não protecção concreta do direito à imagem ou à palavra é condição de eficácia da actuação do Estado na protecção de outros valores, eventualmente situados num patamar qualitativo superior, não se vislumbrando a possibilidade de afirmação da prevalência daquela protecção contra tudo e contra todos.
15) A protecção da palavra que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata têm de ceder perante o interesse de protecção da vítima e a eficiência da justiça penal: a protecção acaba quando aquilo que se protege constitui um crime.
16) Nestes termos e em face ao supra exposto, não ocorrendo, nem se verificando os invocados vícios, nulidades em relação à douta decisão recorrida e à prova, nem ocorrendo qualquer violação de direitos ou de princípios de direito constitucional; de direito penal e ou de direito processual penal, pugnamos pela rejeição e improcedência do presente recurso, concluindo que o douto despacho de pronúncia, ora recorrido, efectuou um correcto enquadramento jurídico-penal do caso concreto em apreço, pelo que deverá ser mantido nos seus precisos termos.».
***
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- Inexistência do crime pelo qual foi pronunciado;
- Nulidade da prova contida na gravação considerada como único meio de prova pela decisão recorrida.
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VI- Fundamentos de direito:
O recorrente defende que resulta do despacho de arquivamento do inquérito e também do despacho de pronúncia e não pronúncia que os factos que lhe são imputados não configuram um crime, porque carecem de ser contextualizados. Refere que a «suposta gravação vídeo constituiu um acto planeado e premeditado por parte da recorrida, que insiste em descontextualizar e manipular o momento» e pede a sua não pronúncia pelo crime de ameaça agravada.
Invoca ainda que a prova contida no CD apresentado pela assistente é nula e não pode ser usada nos autos, ficando assim aqueles desprovidos da única prova utilizada para a imputação do crime pelo qual foi pronunciado. No entendimento do recorrente, a transcrição junta aos autos pela assistente não corresponde à gravação e o Tribunal tinha que ter analisado a fiabilidade, integridade ou manipulação da gravação apresentada.
A primeira questão, da aptidão das palavras dirigidas à assistente por parte do arguido constituírem, ou não crime, implica a pressuposição de que a gravação seja admissível como meio de prova. E a questão que se coloca é saber se essas palavras preenchem, ou não, os elementos típicos do tipo criminal em apreço.
O despacho recorrido entendeu que o arguido havia cometido o crime mediante a seguinte fundamentação:
« Finalmente, importa referir o crime de ameaça agravado que a assistente pretende ver imputado ao arguido.
Nesta sede, mostra-se indiciado que o arguido, dirigindo-se à ofendida disse 'Olha... eu descarrego a minha arma em todos vocês...todos...um por um...tas a perceber? Um por um'; "vou-te estrangular e isto hoje morre aqui... vou ao meu serviço e depois limpo-vos a todos...tas a perceber" “teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado...todos eles levam um balázio meu...tas a perceber?".
Nos termos do artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal "quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias'.
Por sua vez, quando os factos previstos no artigo 153.°, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.°.
Encontramos protegida por esta incriminação a liberdade de decisão e de ação, já que, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, as ameaças afetam a paz individual, condição essencial para uma verdadeira liberdade.
Como conceito, a ameaça consiste num mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
Aquele mal tanto pode ser de natureza pessoal como de natureza patrimonial, devendo ser um mal futuro e não iminente, pois então já não estaremos perante uma ameaça mas um início do concretização do facto violento em si.
A ação de ameaçar pode revestir qualquer forma, podendo ser realizada quer por ação quer por omissão.
Quanto ao mal ameaçado, ou seja, quanto ao objeto da ameaça, tem o mesmo de constituir crime, ou seja, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico, facto esse produzido contra bens jurídicos devidamente catalogados e discriminados no referido artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal: a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor patrimonial.
No artigo 155.° do Código Penal, encontramos uma agravação da pena abstrata motivado pelo facto de o objeto da ameaça constituir crime punível com pena de prisão superiora 3 anos
Trata-se aqui de considerar que, entre a gravidade do crime objeto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação existe uma relação de proporção, já que quanto mais grave for a ameaça, maior será a perturbação por aquela causada.
Sujeito passivo ou vítima do crime de ameaça é o destinatário da ameaça, o qual s? distingue do objeto do crime ameaçado, que pode não coincidir com aquele primeiro, sendo, é clarc, exigível, que este último esteja para com o primeiro numa relação de proximidade.
Analisados os factos indiciados acima discriminados, impõe-se constatar que o arguido efetivamente formalizou para com a ofendida uma ameaça de um mal futuro, sendo tal ameaça apto a causar medo e inquietação na ofendida, sendo irrelevante para a verificação do tipo que tenho efetivamente causado ou não tal medo. A ameaça feita pelo arguido da forma como o fez considerando a sua profissão que lhe permite o uso e porte de arma de fogo com a qual anunciou levar a cabo as ameaças que proferiu, leva-nos a crer que a ameaça pelo mesmo formulado, nomeadamente, quanto à ofendida o foi de forma séria e determinada, devendo o mesmo ser pronunciado pelos respetivos factos, o que se decide.» 
O que deste despacho se retira é que mediante a consideração exclusiva das palavras proferidas pelo arguido, sem contextualização alguma, se entendeu que o seu significado implicava a ameaça de um mal futuro e, por isso, estava preenchido o crime.
Ora, sucede que o artigo 283º/CPP exige que da acusação conste, sob pena de nulidade, a narração dos factos susceptíveis de integrar os elementos típicos do crime, mas também, sempre que possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática. Claramente está em causa a necessidade de a acusação circunstanciar a actuação do agente, de modo a que se possa perceber se ela merece a tutela do direito penal, se integra os elementos objectivos típicos do crime e se, desses elementos objectivos, se retira um elemento subjectivo adequado a essa tipificação.
As referidas exigências são transpostas para o despacho de pronúncia (artigo 308º/CPP).
No caso, claramente, o despacho de pronúncia desenquadrou a conduta do agente das circunstâncias do momento em que foi executada, das circunstâncias em que decorria a relação do casal, no seio da qual foi executada e das suas consequências, entre as quais releva o entendimento da pressuposta vítima sobre a sua gravidade, o que é totalmente contraditório com a exigência de enquadramento feito pela norma aplicável.
 Nesse aspecto, aliás, o próprio despacho recorrido refere, ainda que a propósito de crime distinto, que «Já da análise da gravação junta aos autos, é possível constatar que, no decurso da discussão, entre outras coisas, o arguido tapou a boca da assistente por mais de uma vez com o objetivo de evitar que esta continuasse a falar alto e ouvisse o que o arguido queria dizer-lhe, bem como ameaçou a ofendida e a sua família de que ia ao trabalho e depois "limpo-vos a todos, tás a perceber?", "o teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado...todos eles levam um balázio meu...ta a perceber?".
No mais, a referida gravação retrata uma discussão mantida entre ambos ao Iongo de alguns minutos.
(…)
Denota a referida gravação que ocorreu uma discussão muito arreigada entre ofendida e o arguido e que no decurso da mesma, não só a ofendida se encontrava nervosa e agitada, como também o arguido parecia estar bastante alterado, ao ponto de proferir as ameaças referidas.
Importa apreciar tal discussão e os factos que no decurso da mesma terão sido praticados no sentido de apurar se os mesmos são suscetíveis de configurar, desde logo, a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica.
Para que tal suceda, impõe-se considerar que aquele evento isolado e único se revestiu de gravidade suficiente para justificar o enquadramento da situação em apreço na tipicidade do crime de violência doméstica.
A coadjuvar tal análise, importa chamar à colação a mensagem de email remetida ao arguido pela ofendida alguns dias depois do sucedido e em que esta escreveu 'Depois dos últimos acontecimentos da passada 2.ª feira em que foste violento fisicamente comigo e fizeste ameaças de morte a mim e à minha família, tenho naturalmente pensado sobre o assunto.
Pensei fazer queixa mas decidi não o fazer nesta fase porque considero que o que aconteceu e o teu comportamento comigo foram um descontrolo único a que, após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o benefício da dúvida..."
Desde logo, importa referir que o comportamento da ofendida ao, tendo oportunidade de se deslocar à casa de banho, um local fechado, onde poderia ter solicitado ajuda, nomeadamente das autoridades, preferir colocar o seu telemóvel a gravar imagem e som, voltando para perto do arguido nessas circunstâncias denota alguma frieza de espírito num momento em que se esperaria que o mesma se sentisse de tal modo assustada (em face do que alegou ter acontecido) que a sua preocupação jamais seria registar os momentos que se seguissem em gravação, mas sim sair do local o quanto antes, fosse por sua iniciativa ou com a ajuda de terceiros (nomeadamente as autoridades:, por forma a que não se repetissem ou ocorressem quaisquer outros factos que pudesse recear.
Mais, constata-se pela audição da gravação que ao longo da discussão, é patente a intenção manifestada pelo arguido de conseguir que a ofendida ouvisse o que teria para lhe dizer e um diálogo entre os dois em que a ofendida não se apresenta como alguém assustado ou com medo do arguido, tanto mais que consegue confrontá-lo de forma veemente com inúmeros factos por este praticados e relativamente aos quais manifestou o seu desagrado.
Finalmente, refira-se que a mensagem de email enviada ao arguido pela ofendida a 22.07.2019, na sequência e a propósito dos eventos de dia 15.07.2019 espelha a forma como a próprio encarou o então sucedido, "um descontrolo único a que, após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o benefício da dúvida".
Atendendo a tudo o que se deixa exposto, entendemos não poder considerar que os eventos de 15.07.2019, enquanto episódio único no decurso, nomeadamente, da separação de arguido e ofendida e definição dos termos das responsabilidades parentais relativamente aos seus dois filhos.:,, assumam gravidade suficiente para que possamos qualificá-los como violência doméstica (…).» 
Esta apreciação reflecte um enquadramento da conduta pressupostamente criminosa, em que ressalta a falta de adequação da mesma para provocar medo ou inquietação na assistente e bem assim para a tolher na sua liberdade de determinação, que são elementos típicos do crime. Perante essa insuficiência não há como enquadrar a conduta no tipo legal de ameaça.
Mas a circunstanciação não se fica por aqui.
Conforme referiu o MP no despacho de arquivamento os factos passaram-se segundo a seguinte ordem:
« Durante uma altura em que a ofendida se deslocou ao quarto de banho, achou por bem aproveitar para pôr o telemóvel a gravar, sem o arguido saber. Quando a ofendida saiu da casa de banho o arguido agarrou a ofendida, que disse: “Está quieto estás-me a magoar ... estás-me a magoar”, enquanto o arguido dizia: “Vais ouvir, tu vais ouvir” e a ofendida o acusava: “tu ias-me matando, eu não conseguia respirar” e o arguido respondeu: “É, e faço-te isso agora outra vez”. E mais à frente disse “Olha, eu descarrego a minha arma toda em vocês, todos, um por um, estas a perceber? Um por um” e mais à frente “...isto é uma promessa, um por um, faz-me a vida negra”.
Na sequência da discussão o arguido disse à ofendida: “... não me estás a ouvir” ao que esta disse: “vais-me tapar outra vez a boca para eu não respirar!?”, tendo o arguido respondido: “Vou-te estrangular e isto hoje morre aqui, vou ao meu serviço e depois limpo-vos a todos, estas a perceber?”.
A ofendida pediu para esclarecer quem eram todos e o arguido respondeu: “O teu pai, a tua mãe, a tua irmã ou e o teu cunhado, todos eles levam um balázio meu, estas a perceber?” tendo a ofendida dito: “Para, estás-me a magoar”.
A discussão entre os dois continuou com o arguido a dizer que estava farto de mentiras da boca da ofendida e esta a acusá-lo de traição e quando a ofendida pede para sair o arguido diz-lhe: “Não, vais ouvir o que eu tenho para dizer”, a ofendida protesta dizendo “Tu não me podes prender aqui” e o arguido disse-lhe: “Não vais sair daqui hoje já, olha, tu não estás bem a ver, tu não sais daqui hoje, os meus filhos não estão cá eu faço o que eu quero, estas a perceber? E se me apetecer meter um balásio nos cornos também faço, mas é no fim, até lá limpo-vos a todos, entendeste?” continuando a conversa justificando-se das acusações da ofendida de traição, enquanto esta gritava “Eu sabia que tu ias fazer e tu fizeste. Tu preferiste aquela puta de merda a mim e ficar em casa comigo e com os teus filhos. Tu preferiste a puta, isso para mim é igual tu teres ido antes ou depois, é igual, entendes?” tendo o arguido voltado a tapar-lhe a boca e a dizer para falar baixo, continuando de seguida ambos a discutir se o arguido tinha ido para a cama com outra, tendo o arguido dito a certa altura: “Vamos parar com isto LL___, vais-me ouvir? Ou tenho de te apertar outra vez a boca para poder falar?”, continuando os dois a discussão.»
Perante isto, entendeu o MP, de forma que consideramos correcta porque de acordo com a indiciação contida nos autos apreciada segundo as regras da experiência comum, que « De facto, toda a prova remete para que, embora tais ameaças tenham sido proferidas pelo arguido, as mesmas, como este refere, e como foi entendido pela ofendida no email que enviou ao arguido, uma semana após o referido episódio, foram resultado de “um descontrolo único” e como o arguido refere tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção, o que aliás foi interpretado pela própria ofendida, que conhecendo bem o arguido lhe disse: “Pensei fazer queixa, mas decidi não o fazer nesta fase uma vez que considero que o aconteceu e o teu comportamento comigo foram um descontrolo único a que após a nossa história de mais de 18 anos, resolvi dar o beneficio da duvida”.
De facto, 18 anos de convivência com o arguido permitiram à ofendida conhecer a personalidade do arguido, e, tendo em conta as circunstâncias em que as expressões foram proferidas, a ofendida duvidou da seriedade das mesmas, o que, aliás, se encontra espelhado em toda a comunicação escrita trocada entre a ofendida e o arguido logo após a referida discussão, dela não resultando que a ofendida tivesse levado a sério tais ameaças, ou que ficasse com medo que o arguido as cumprisse, ou mesmo, que se sentisse prejudicada na sua liberdade de determinação em resultado das expressões proferidas pelo arguido, não podendo deixar-se de acompanhar aqui a admiração do arguido, de que o receio do mesmo pela ofendida se fosse intensificando à medida que foi crescendo o desentendimento relativo à guarda dos menores, filhos de ambos, quando as conversas trocadas com o arguido em que este pede para não ligar “ao que foi dito por raiva” (a fls. 447), pede desculpas pelo sofrimento que causou á ofendida, que foi sem intenção de a magoar e o próprio decurso do tempo, em que o arguido nada fez para concretizar as ameaças, deveriam, de acordo com a experiência comum, dissipar e não aumentar qualquer receio inicial.
Assim sendo, a tipicidade do crime em análise não se pode considerar preenchida».
 «O crime de ameaça é, assim, um crime de mera ação e de perigo, não é exigido que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do transcrito no artº. 153º, basta que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
E, como ensina Taipa de Carvalho, em anotação ao art. 153º, o critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual:
Objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do "homem comum");
Individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das "sub-capacidades" do ameaçado).
Podemos, então, concluir que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).
No caso dos autos, quanto às expressões utilizadas pelo arguido, o mesmo refere que no calor da discussão ocorrida em 15.07.19, são proferidas frases que serviram o mero propósito de magoar emocionalmente os envolvidos não tendo qualquer objetivo intencional que não o referido. Tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção e a ofendida nunca se sentiu verdadeiramente ameaçada, tendo apenas utilizado a referida gravação nas vésperas da conferência de pais com vista a evitar que o Tribunal fixasse a residência alternada dos menores.»
Acresce que esta análise das circunstâncias relativas ao momento em que as palavras foram proferidas tem que ser enquadrada no âmbito do conhecimento que se tem sobre a forma como se desenvolvia a relação entre arguido e assistente. Não é irrelevante para essa circunstanciação o facto de terem sido um casal, que se encontrava separado e desavindo e cujo relacionamento o MP descreve nos seguintes factos que considerou indiciados:
«- Em meados de 2018 e início de 2019, ocorreram desentendimentos entre a ofendida e o arguido devido ao facto de a ofendida “descobrir uma relação extraconjugal” do arguido com a sua atual companheira.
- Em fevereiro de 2019, a ofendida e o arguido separaram-se.
- Após a separação, em virtude da dificuldade de ambos em lidarem com os acontecimentos que levaram ao desfecho da relação e com a partilha da guarda dos filhos, foram vários os desentendimentos entre ambos, nomeadamente por o arguido estar a sentir que a ofendida estava a afastá-lo dos filhos, pelo que lhes dizia, e por combinar uma coisa relativamente aos filhos e fazer outra.
- Na sequência dos desentendimentos, a ofendida e o arguido decidiram encontrar-se no dia 15.07.2019, para discutir o exercício das responsabilidades parentais dos filhos de ambos.
- Nesse dia 15.07.2019, a ofendida encontrou-se com o arguido, num apartamento pertencente a ambos, sito em Lisboa, local onde o arguido passou a residir após a separação, para falarem sobre a partilha das responsabilidades parentais.
- Durante essa discussão que a ofendida gravou, em parte, e que acima se transcreveu, percebe-se que o arguido segurou a ofendida para que não se fosse embora sem o escutar e tapou-lhe a boca, dizendo para falar mais baixo e para ouvir o que tinha para lhe dizer, tendo proferido ameaças de morte à ofendida e à sua família.
- Que no mesmo dia 15-07-2019, antes de a ofendida ir ter ao apartamento do arguido, ambos encontraram-se para jantar no restaurante Adega Solar Minhoto, em Lisboa, e quando a ofendida saiu da mesa do restaurante, disse ao arguido em voz alta: “TU NÃO PRESTAS”.
- Que no primeiro semestre de 2019 o arguido encontrou-se com a ofendida na pastelaria Mexicana e que, após os dois se dirigirem ao carro da ofendida e já junto ao veículo desta, a ofendida deu uma estalada na face do arguido, que se manteve impávido e sereno.
- Que no primeiro semestre de 2019 a ofendida passou a circular ou a parar em frente ao edifício da Polícia Judiciária.
- Que no primeiro semestre de 2019 o arguido tinha uns arranhões no pescoço e que a ofendida gritava ao telefone para o arguido: «Que lhe ia fazer a vida negra e num inferno, que lhe ia tirar os filhos, que lhe ia tirar o emprego. Vou-te desgraçar. Se não deixas essa puta vais ver o que vai acontecer».»
Do exposto resulta que as palavras foram proferidas num momento de profunda exaltação, antes do qual a assistente se permitiu dar um estalo ao arguido, na via pública e dizer-lhe num restaurante em que eram conhecidos, de forma audível por terceiros, que “não prestava”, sem que este tenha sequer reagido. Esta actuação funcionou como provocação, ou pelo menos, co-provocação da exaltação em que ambos se encontravam quando foram proferidas as referidas palavras que, afinal, não causaram temor algum na assistente, como se demonstrou. Até porque ela sabia bem as circunstâncias desbragadas em que também tinha agido.
Mas resulta mais:  que, demonstrando a assistente um profundo desgosto com o facto de o arguido ter uma outra relação afectiva, passou a rondar o seu local de trabalho e a ameaçá-lo de lhe retirar os filhos e o emprego.
Sabe a assistente que um processo de violência doméstica é relevante na atribuição da guarda dos filhos e do direito a visitas pelo pressuposto prevaricador, em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais. E, se bem percebemos a sua actuação, é precisamente esse o ponto a que quis chegar com a instauração dos presentes autos, meses depois da gravação em causa, feita precisamente para ser mostrada  (porque de outro modo não tem sentido) e que, afinal, produz a única prova de um acto inadequado da parte do visado.
Em face da ambiência estabelecida pelo casal, que incluía bofetada no meio da rua e gritaria no restaurante, não se crê que num dia de especial desacerto e provocação (pelo menos) também, por parte da assistente, as expressões produzidas pelo arguido possam ser consideradas efectivamente prenúncios de males futuros, a quem quer que fosse, quando a própria assistente assim as não entendeu. A assistente demonstrou claramente que confiava na ausência de retaliação do arguido, ao agir como agiu. Se tivesse algum receio físico dele não lhe daria um estalo no meio da rua, o que é uma provocação muitíssimo relevante para qualquer pessoa. E depois, apressou-se a dizer ao arguido que não dava crédito às ameaças, anunciando-lhe que não se queixaria porque isso não tinha cabimento no âmbito da relação - o que afinal, veio a fazer. Não considerando a própria os factos como efectivamente denotadores de qualquer intenção ou vontade de causar mal a alguém não será o direito penal que tem carácter subsidiário, que punirá tal conduta. Como o MP refere «O direito penal destina-se a salvaguardar os bens jurídicos fundamentais e essenciais à vida do homem em sociedade, só devendo intervir sempre que o dano causado possua dignidade penal, onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana e, enfim, quando os outros meios de intervenção de bens jurídicos menos gravosos, se mostrem insuficientes (princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade).
Compete ao legislador decidir os factos que devem ser considerados crime, através de lei. Contudo «O legislador não é completamente livre nas suas decisões de criminalização e de descriminalização. Tais decisões seguem sempre muito de perto a evolução histórica da sociedade para a qual são tomadas, revelam-se estritamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substractos directamente políticos, pelos interesses de grupos sociais e pelas representações axiológicas neles prevalecentes em certo momento histórico.» Figueiredo Dias, in «Lei criminal e controlo da Criminalidade», p 72.
A este propósito determina o artigo 1º do Código Penal e o artigo 290º da Constituição da República Portuguesa, que consagram os princípios da tipicidade e da legalidade, que para haver infração penal é necessário que o comportamento humano coincida formalmente com a descrição objetiva e subjetiva feita na norma incriminadora. Daí que antes de o facto voluntário ser punível e imputável a título de culpa deve a ação corresponder a um dos esquemas ou delitos tipo objetivamente descritos na lei penal. O que não se ajusta ao tipo não é crime.
Em suma, o crime é uma conduta humana, voluntária e culposa que preencha um tipo descrito na lei e que tenha sido lesivo de algum interesse juridicamente protegido.
«Assim pouco importa que alguém haja cometido um facto anti-social, excitante de reprovação pública, francamente lesivo do minimum de moral prática que o direito penal tem por função assegurar, com as suas reforçadas sanções, no interesse da ordem, da paz, da disciplina social: se esse facto escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde, precisamente, a parte objecti e a parte subjecti, a uma das figuras delituosas anteriormente recortadas in abstracto pela lei, o agente não deve contas à justiça repressiva, por isso mesmo que não ultrapassou a esfera da licitude jurídico-penal.» (Cfr. Nélson Hungria - Comentários ao Código Penal Brasileiro, I, 15. citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2002, I volume, 3ª Edição, p. 90.
Em face do exposto, resta declarar a procedência da questão colocada pelo arguido, que implica necessariamente a não pronúncia do mesmo, e a desnecessidade de discutir a questão da nulidade da prova produzida pela gravação.     
***
VII- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida na parte em que pronunciou o arguido pelo crime de ameaça agravada, decretando a sua não pronúncia por tal crime.
Custas pelo assistente, com taxa de justiça de 4 ucs.
***
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 02 / 12/2021
Maria da Graça dos Santos Silva
A. Augusto Lourenço
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[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.