Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
501/23.2JAPDL.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: TOXICODEPENDÊNCIA
ALFA-PHP
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INTEGRAL
Sumário: I–O cérebro do toxicodependente sofre de graves e permanentes consequências quanto à vontade e ao controlo da impulsividade. Deste modo, não são meses sem consumir que desabitua o corpo, em particular o cérebro. A dependência ainda se pode manter por muito mais tempo.

II–“Alfa – PHP” é uma droga sintética, do grupo da catinona (consultável em https://www.unodc.org/LSS/Substance/Details/dad53ec7-df79-4139-bbe7-57680308db28), incluída na tabela II-A anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

III–Por ser uma droga relativamente recente, não está incluída no mapa a que se refere o art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03.

IV–A única referência legislativa e científica que temos, foi publicada como Anexo II ao Decreto Legislativo Regional n.º 7/2017/M, DRE 1.ª Série, de 03.07: uma tabela que pretende ser uma adaptação das novas substâncias psicoativas aos valores do mapa que se refere o n.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de março, de acordo com os mecanismos de ação das novas substâncias psicoativas e ou dados de utilização humana referidos na literatura científica, elaborada por Félix Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Farmácia do Porto.

V–Não sabemos se a droga apreendida se destinava ao tráfico, daí que se deva decidir pro reo.


(Sumário da responsabilidade do relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRelatório


No Juiz 3 do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi proferido acórdão com a seguinte parte decisória:

1.Absolver AA e BB pela prática de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º, nº2, alínea b) do Código Penal.
2.Absolver BB pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº1, alínea d) da Lei nº5/2006, de 23 de fevereiro.
3.Absolver BB pela prática de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º e 155º, nº1, alínea a) do Código Penal.
4.Condenar BB pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, agravado, previsto nos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão.
5.Declararam-se perdidas a favor do Estado as substâncias estupefacientes apreendidas e subsequente destruição (artigos 35º, nº1 e 2 e 62º, nº6 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro).
6.Declarar a catana perdida a favor do Estado, a ficar depositada à guarda da Polícia de Segurança Pública, a qual lhe dará o respetivo destino (artigo 78º, nº1 do Regime Jurídico das Armas e Munições).
7.Determinar a recolha de amostra de ADN ao arguido e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro.
8.Condenar o arguido BB no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 8º, nº5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III Anexa) e honorários nos termos legais.
*

Inconformado, o arguido BB interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
1- Conforme decorre da motivação da matéria de facto, o Tribunal a quo formou a sua convicção, quanto aos factos que julgou provados, com base nas declarações prestadas pelo arguido BB, pelas testemunhas CC e DD (guardas prisionais), e a prova documental de fls. 35-38, fls. 39 e fls. 46.
2- Concordando, em parte, serem estes os elementos de prova relevantes para a apreciação da responsabilidade jurídico-penal do arguido, ora recorrente, com o devido respeito, discorda-se da matéria de facto dada por assente nos pontos 1 (parte final) a 3, da matéria de facto provada, por se entender que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação dos elementos da prova que entendeu relevantes, incorrendo em erro de julgamento.
3- O Tribunal a quo deu como provado, na parte final do ponto 1 “(…) que o arguido destinava ao tráfico dentro do mesmo estabelecimento”, somente porque não acreditou na versão do arguido, quando referiu que o produto que tinha na sua posse se destinava ao seu consumo.
4- Porém, a verdade é que não foi feita qualquer prova – pela positiva e afirmativa - que o arguido destinava aquele produto para o tráfico no interior do estabelecimento.
5- O arguido/recorrente, nas suas declarações, além de dizer que não estava a fazer tratamento, disse também que teve uma recaída, razão pela qual tinha aquele produto na sua posse, para seu consumo.
6- Pese embora o Tribunal a quo tenha escrito na sua fundamentação que não achava credível que tal quantidade se destinasse ao seu consumo (pese embora tal quantidade se contenha dentro dos limites do consumo médio diário), pela simples razão de ter passado diversos meses sem consumir, a verdade é que, no ponto 14 da matéria de facto provada, o Tribunal a quo deu por assente que o arguido/recorrente, pese embora estivesse integrado no programa de tratamento de opiácea com cloridrato de metadona, não tinha sido submetido a testes de despiste toxicológicos.
7- O arguido foi peremptório em afirmar que tal produto se destinava ao seu consumo, por ter tido uma recaída.
8- Com o devido respeito, o facto de se acreditar, ou não, na versão do arguido, na parte em que afirmou que terá encontrado o produto na escada, por si só, não serve para descredibilizar o depoimento do arguido, quanto ao facto de destiná-lo no seu consumo, isto porque, como é bom de ver, também haverá a hipótese, e é a que fará mais sentido, cremos, de o arguido não querer incriminar a visita ou a pessoa (outro preso) que lhe entregou o produto para seu consumo.
9- O Tribunal a quo, ao decidir, como fez, violou o princípio do in dúbio pró reo, no que tange à fixação da matéria de facto, violou o disposto no artigo 2.º da Lei 30/2000, na sua versão actual.
10- Por outro lado, e facto de maior importância, nenhuma das testemunhas referiu, ou sequer sugeriu, que o arguido era conotado no interior do estabelecimento prisional como traficante – antes pelo contrário –, não foi identificado qualquer negócio, comprador, venda ou cedência, e não lhe foi apreendido qualquer outro elemento que sustentasse a tese de que o arguido se dedicasse ao tráfico no interior do estabelecimento e, como tal, que o produto que lhe foi apreendido se destinava ao tráfico dentro do estabelecimento.
11- A testemunha CC (guarda prisional) referiu que a sua intervenção se limitou a levar o expediente à P.J, conforme melhor resulta das suas declarações supra devidamente identificadas, que aqui se dão por reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.
12- A testemunha DD (guarda prisional) limitou-se a dizer, somente, que fez a apreensão em causa, na sequência de uma revista, conforme melhor resulta das suas declarações supra devidamente identificadas e aqui dadas por reproduzidas.
13- Como resulta claro desses depoimentos, e da demais prova produzida, é por demais evidente a falta de prova que sustente a decisão do Tribunal a quo - apreensões, ou outros elementos indiciadores de tráfico, entre outros, ser o arguido/recorrente conotado no interior do estabelecimento como traficante, identificação de vendas e ou compradores.
14- Assim, deve ser dado como não provado que o arguido destinava o produto que lhe foi apreendido ao tráfico no interior do estabelecimento.
15- Nesta conformidade, deve ser dado por provado no ponto 1 da matéria de facto, o seguinte:
No dia 30 de abril de 2023, pelas 10:30 horas, o arguido BB, que estava recluso no Estabelecimento Prisional Regional de ..., e a sair da zona das visitas do estabelecimento, foi alvo de revista, sendo encontrado, dentro de um sapato que tinha calçado, um embrulho contendo “Alfa – PHP”, com o peso de 0.762 gramas, que o arguido destinava ao seu consumo,
16- Procedendo a impugnação da matéria de facto do ponto 1 constante do douto Acórdão recorrido, terá de ser alterada, em conformidade, a matéria de facto constante dos pontos 2 e 3, isto porque, não destinando o arguido/recorrente o produto estupefaciente ao tráfico, mas sim, ao seu consumo, facilmente se conclui pela não verificação da matéria dada por assente naqueles 2 pontos (2 e 3), devendo a mesma ser dada por não provada, mais não seja no que toca quer ao conhecimento de que prejudicava o processo de integração dos reclusos, quer à actuação voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
17- Assim devem tal factos, dos pontos 2 e 3, ser dados por não provados, nos termos supra expostos.
18- Nesta conformidade, ao fixar a matéria de facto provada dos pontos 1, 2 e 3, nos termos em que o fez, o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, incorrendo em erro de julgamento e violou o disposto no artigo 127.º do C. P. Penal e o artigo 2.º da Lei 30/2000, na sua versão actual e o princípio in dúbio pró reo.
19- No caso de a impugnação da matéria de facto ser procedente, como cremos, o arguido jamais poderá ser condenado pelo crime de tráfico estupefaciente agravado, ou qualquer outro.
20- Caso assim não se venha a entender, o que, salvo o devido respeito não se concede, sempre terá de se concluir que da matéria de facto provada não resulta que o arguido tenha praticado o crime pelo qual foi condenado, ou qualquer outro.
21- Na verdade, para que haja crime é necessário que estejamos perante um facto típico, ilícito, culposo e punível.
22- Ora, se bem atentarmos nos factos nos factos provados, em lado algum consta que a conduta do arguido/recorrente era punida por lei penal ou que o arguido soubesse que a sua conduta (de posse daquele produto e naquela quantidade) era punida por lei penal (consciência da ilicitude).
23- Também por esta razão, deve o arguido ser absolvido do crime pelo qual foi condenado em 1.ª instância.
24- Meramente à cautela, sempre se dirá que é entendimento Jurisprudencial consolidado, que a qualificação do tipo de crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada, prevista na al. h), do artigo 24.º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, não se basta com a condição de recluso em estabelecimento prisional.
25- Como supra se deixou exposto, não foi produzida qualquer prova na audiência de discussão e julgamento que pudesse levar o Tribunal a quo a concluir que o produto apreendido fosse para venda ou cedência a qualquer recluso, em particular ou à comunidade reclusa, na sua generalidade. De tal forma assim é, que não foi dado como provado que o arguido/recorrente era conotado no interior do estabelecimento prisional como traficante, não foi identificado um único negócio de compra e venda, um único negócio de cedência, ou um único recluso a quem o arguido tivesse vendido ou cedido tal produto.
26- Desta forma, sempre se imporia ao Tribunal a quo o afastamento da agravante.
27- Ao assim não decidir, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e violou, pelo menos, o disposto no artigo 24.º, al. h), do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro.”

O Ministério Público respondeu, oferecendo as seguintes conclusões:
“ Quanto à impugnação da matéria de fasto, em concreto quanto aos factos n.º 1.º parte final, 2.º e 3.º, afigura-se-nos que a recorrente não cumpriu o ónus que sobre si recai, no que toca à impugnação da matéria de facto.
2.- Na verdade, limitou-se o recorrente, no que se refere à indicação da prova que impõe decisão diversa da recorrida, ao fazer uma alusão de que não consegue entender como estes factos referidos nos pontos factos foram considerados como provados pelo Tribunal a quo quando a prova relativamente aos mesmos foi nula ou insuficiente. Não podíamos estar mais em desacordo com o recorrente, na verdade, limitou-se o recorrente a fazer alusões genéricas, e a demostrar a forma como o próprio recorrente visionou a matéria de facto, que no seu ponto de vista não foram valoradas pelo Tribunal, o que não ocorreu basta ler o douto acórdão para chegar à conclusão que a convicção do Tribunal quanto à factualidade provada baseou na prova produzida em audiência, valorada de acordo com a regras de experiência comum e foram indicados quais, e de que modo foram valoradas, a saber:
- As próprias declarações prestadas pelo próprio arguido, conjugadas com o depoimento prestado pela testemunha DD, guarda prisional e - com a prova documental, a saber, o auto de notícia (fls. 24-30), a fotografia (fls. 33/4), o auto de pesagem e despistagem e respetivo exames (fls. 35-38) e o auto de apreensão do produto estupefaciente (fls. 39). Já a qualidade e quantidade da substância apreendida está documentada no relatório do exame do Laboratório de Polícia Científica de fls. 46.
3.- Quanto à prova testemunhal que o recorrente alega ter sido insuficiente, alegando que a droga era para seu consumo, tinha tido uma recaída. Cumpre dizer o seguinte, como bem refere o Tribunal a quo: “conforme nos disse, já se encontrava preso há cerca de um ano, já tinha passado por diversos meses sem consumir, estando o seu corpo desabituado, não sendo credível que possuísse uma quantidade tão elevada de ALHPA PHP apenas para consumo”, pelo que apenas podemos concluir que o produto apreendido se destinava à venda.
4.- E, como sabemos as revistas no interior do estabelecimento são apertadas e sendo assim o mesmo não iria conseguir guardar o produto para seu consumo exclusivo durante muito tempo. Logo, aquele produto destinar-se-ia à venda a terceiros. Assim, com segurança ficou o Tribunal totalmente convencido da conduta do recorrente como o autor dos factos dados como provados.
5.- Ora, conjugando esta prova, não restam dúvidas que o recorrente praticou os factos descritos na acusação.
6.- Na verdade, o recurso é uma amálgama de ideias numa tentativa de conseguir um enquadramento que o sujeite a uma pena mais baixa.
7.- Quanto à errada qualificação jurídica, a nosso ver, as alegações do recorrente não podem colher aplauso quando diz que o Tribunal a quo fez errada qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes, pois no acórdão recorrido, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na prova documental e pericial junta aos autos, nomeadamente - relatórios do exame pericial realizado ao produto estupefaciente, c.r.c. e relatório social.- conjugados com o depoimento da testemunha inquirida DD, tudo analisado de forma crítica e em conjugação com regras de experiência comum.
8.- Assim, o Tribunal explicou como e porquê que entendeu que o recorrente era o proprietário produto estupefaciente – dada a sua quantidade – não apenas consumindo, mas também vendendo.
9.- E, como já referimos as revistas no interior do estabelecimento são apertadas e sendo assim o mesmo não iria conseguir guardar o produto para seu consumo exclusivo durante muito tempo. Logo, aquele produto destinar-se-ia à venda a terceiros.
10.- Pelo que não existem dúvidas de que o recorrente praticou o crime de trafico estupefacientes no interior do estabelecimento prisional.
11.- Ora, o crime de tráfico de estupefacientes configura-se como um crime de perigo comum e abstrato, na medida em que visa antecipar a proteção legal de diversos bens jurídicos com dignidade penal, como por exemplo a vida, a integridade física e a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes (em suma, visa-se a proteção da saúde pública), ainda que em concreto não se tenha verificado o perigo de violação desses bens jurídicos.
12.- Entendemos que o recorrente não tem razão o recorrente quando defende que deve ser absolvido do crime de tráfico de estupefacientes pois defende que a produto estupefaciente apreendido era para o seu consumo.
13.- Não lhe assiste razão, por um lado, já que, como vimos, a simples circunstância de estar na posse de tais substâncias, sem que tivesse ficado demonstrado que por ele eram destinadas ao seu exclusivo consumo aliás é próprio recorrente que disse que já estava à diversos meses sem consumir, portanto estando o seu corpo desabituado, não sendo credível que possuísse uma quantidade tão elevada de ALHPA PHP apenas para consumo, tal conduta bastava para preencher o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes.
14.- Especificamente no caso dos estabelecimentos prisionais, que é o que agora interessa, a agravação dos factos derivará não da infração à disciplina da instituição, mas da adequação do facto à disseminação das drogas entre os reclusos. Por isso, o crime pode ser cometido por reclusos ou não reclusos. O que importa é apurar se a ação era idónea para fazer chegar o estupefaciente à população prisional. No caso afirmativo, a ação deve em princípio ser integrada na citada al. h) do artigo 24.ºdo referido diploma legal.
15.- Difícil já será defender que, em situações excecionais, o facto ocorrido em estabelecimento prisional possa ser integrado no crime de consumo. É que o tipo de tráfico privilegiado pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes – que, por regra, não se verificará nas situações de tráfico de estupefacientes no interior de estabelecimentos prisionais.
16.- Sendo assim, e não se afigurando sensivelmente diminuída a ilicitude do facto, em atenção à quantidade de produto estupefaciente detido pelo recorrente, principalmente por ter declarado que já não consumia à bastantes meses e por isso seria para venda a recluso e consequente potencial de disseminação por outros reclusos (com os inerentes prejuízos para a sua saúde e para o seu processo de ressocialização, a que se acrescenta o grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta, como justamente salienta o STJ, no acórdão de 7/7/2009), consideramos correta a integração do seu comportamento no tipo matricial de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º do DL nº 15/93, de 22/1.
17.- Em conclusão, o comportamento retratado na matéria de facto não deixa dúvidas que o arguido praticou, em autoria material, na forma consumada, em concurso efetivo de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.
18.- Concluindo, deve improceder, assim, a totalidade da pretensão do recorrente.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Sr.º Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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IIA)- Factos Provados

1.No dia 30 de abril de 2023, pelas 10:30 horas, o arguido BB, que estava recluso no Estabelecimento Prisional Regional de..., e a sair da zona das visitas do estabelecimento, foi alvo de revista, sendo encontrado, dentro de um sapato que tinha calçado, um embrulho contendo “Alfa – PHP”, com o peso de 0.762 gramas, que o arguido destinava ao tráfico dentro do mesmo estabelecimento.
2.O arguido tinha conhecimento que o produto que detinha era estupefaciente e que se encontrava recluso em estabelecimento prisional, e que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal, e ainda prejudicava o processo de integração dos reclusos.
3.Atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
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Das condições pessoais do arguido BB:

4.À data da alegada prática dos factos (30.04.2023), BB encontrava-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ..., à ordem do Processo nº 267/22.3PGPDL, situação que se mantinha desde 13.12.2022. No âmbito do processo supra, primeiramente foi aplicado ao arguido, entre outras, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação sujeita a meios técnicos de controlo à distância, cuja instalação dos equipamentos ocorreu em 20.09.2022, tendo sido os mesmos desinstalados em 13.12.2022, em virtude do agravamento do estatuto coativo para prisão preventiva.
5.Aquando da presente prisão, BB integrava o agregado nuclear, composto pelos progenitores, pelo irmão EE (condenado no Processo nº 267/22.3PGPDL e toxicodependente) e pelo agregado constituído do irmão FF, composto por este, pela namorada, um enteado e um filho deste. O agregado habita em moradia de herdeiros, descrita como dispondo de adequadas condições de habitabilidade.
6.Segundo a progenitora, não obstante a problemática aditiva do arguido (toxicodependência), este, em contexto familiar, mantinha uma relação adequada com os demais familiares, ainda que se denote uma postura protecionista da progenitora perante comportamentos desajustados do arguido no seio do agregado.
7.BB tem um descendente, GG de 14 anos de idade, fruto de anterior relacionamento afetivo, aos cuidados dos avós maternos, com quem mantém contactos pontuais, segundo informação partilhada pela progenitora do arguido.
8.O arguido frequentou a escola até ao 5º ano de escolaridade, desistindo do percurso escolar com cerca de 16 anos de idade, a pretexto da desmotivação e desinteresse pelas atividades escolares. Já em idade adulta concluiu um curso profissional de dupla certificação, nomeadamente de geriatria, o que lhe conferiu equivalência ao 6º ano de escolaridade.
9.BB integrou o mercado de trabalho por volta dos 17 anos de idade, tendo desempenhado atividades em várias áreas profissionais, nomeadamente …, … e …, contudo em situações laborais de curta duração e sem garantia de estabilidade. Desde há cerca de dez anos que se mantém desempregado, realizando biscates, essencialmente, na área da ..., na … e na …, para consumo doméstico e para venda.
10.Em meio livre, normalmente fazia-se acompanhar de pares desviantes, também associados ao consumo de substâncias psicoativas, gerindo o quotidiano em função dos consumos.
11.O agregado subsiste do vencimento da progenitora, enquanto colaboradora num restaurante e do subsídio de desemprego atribuído ao progenitor, não sendo referidas carências na satisfação das necessidades básicas.
12.BB iniciou o consumo de estupefacientes, nomeadamente de heroína, com cerca de 19 anos de idade. Já realizou tentativas de tratamento em ambulatório, em consultório privado com toma de suboxone, integrado em programa de tratamento opiácea com cloridrato de metadona na ..., inclusive no hiato em que se manteve em regime de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
13.Em 2017, sofreu um acidente de viação, que culminou na colocação de prótese de …, condição que, segundo a progenitora, o limita em determinados movimentos.
14.Em contexto prisional, regista três infrações disciplinares. Encontra-se integrado no programa de tratamento opiácea com cloridrato de metadona, e ainda não foi submetido a testes de despiste toxicológicos. Está ocupado laboralmente desde agosto último e beneficia de visitas regulares de familiares, sobretudo da progenitora.

15.Já foi julgado e condenado:
a)-a 24/06/2019, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade e de um crime de detenção de arma proibida a 23/10/2018, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 360 dias de multa, e na pena de 220 dias de multa;
b)-a 17/06/2021, pela prática de um crime de detenção de arma proibida a 30/11/2020, na pena de 300 dias de multa;
c)-a 06/07/2023, pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, um crime de detenção de arma proibida, um crime de ameaça agravada e um crime de ofensa à integridade física, tudo nos anos de 2021 e 2022, na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão.
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Das condições pessoais do arguido AA:

16.À data da alegada prática dos factos (13.12.2021 e 14.12.2021), AA residia com a irmã, HH (de … anos de idade, cuidadora de idosos, atualmente a residir nos ...) e três sobrinhos (com idades compreendidas entre os … e … anos de idade), em habitação pertença de herdeiros, sito na Rua ..., a qual foi descrita como dispondo de boas condições de habitabilidade.
17.A dinâmica familiar era positiva e de adequado relacionamento entre todos os elementos do agregado.
18. Enquanto em liberdade, e até 06.12.2022, data em que iniciou o cumprimento de pena de prisão no âmbito do Processo nº 2186/22.4PBPDL (nessa altura encontrava-se a residir sozinho na mesma habitação), a satisfação das necessidades básicas ia sendo assegurada, de forma precária, através dos rendimentos que auferia quando trabalhava.
19.À data, e como principais encargos foram referidas as despesas fixas mensais de consumo doméstico no valor de cerca de 135€ (cento e trinta e cinco euros) e de cerca de 150€ (cento e cinquenta euros) para apoio aos filhos.
20.AA é o mais novo de uma fratria de nove elementos, nascido no seio de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica e cultural, cuja infância e adolescência decorreram junto dos progenitores e irmãos. O pai, falecido há cerca de 26 anos era ... de profissão (dedicava-se, igualmente, ao ramo da …, nomeadamente, a um café) e a mãe, igualmente falecida (em 2007), por razões de saúde, nunca integrou o mercado de trabalho, pelo que se dedicava às tarefas domésticas e à organização e gestão do quotidiano dos filhos.
21.O processo de crescimento e desenvolvimento foi envolto numa dinâmica familiar descrita pelo arguido e pelo irmão II como equilibrada e coesa, cuja satisfação das necessidades básicas do núcleo familiar se encontrava assegurada, tendo AA referido uma infância feliz, vindo, contudo, aquela dinâmica a ser afetada, aquando do início dos consumos de produtos estupefacientes, tinha o arguido tinha cerca de 15 anos de idade.
22.Apurou-se junto de II que os familiares demonstram uma saturação sobre o comportamento do irmão, não sendo previsível um novo apoio daqueles para com o arguido. Contudo, II referiu estar disposto a apoiar o irmão, nomeadamente, ao nível da integração laboral, na área da construção civil, quando aquele terminar o cumprimento da pena de prisão.
23.Detentor de baixa literacia, AA integrou o sistema de ensino em idade própria, contudo, desde cedo começou por evidenciar dificuldades de aprendizagem e de adaptação ao espaço escolar.
24.Chegou a frequentar o 2º ciclo, no entanto, as reprovações, as fugas da escola, associadas a outras problemáticas comportamentais, como o consumo de substâncias psicoativas, determinaram a sua expulsão do sistema de ensino, quando contava apenas 15 anos de idade, habilitado com o 4º ano de escolaridade.
25.AA iniciou o consumo de canabinóides com cerca de 13 anos de idade, consumos estes que vieram a agravar-se e, aos cerca de 15 anos de idade, o de heroína na forma injetável. Durante cerca de 8 anos esteve integrado no Programa de Tratamento com Agonista Opiáceo com Cloridrato de Metadona e posteriormente com Suboxone, com algumas recaídas. Conseguiu manter-se abstinente durante cerca de 15 anos, no entanto, assumiu recaída que culminou na alegada prática dos factos que deram origem ao presente processo. Ainda, segundo AA, desde 2010 que não é sujeito a qualquer tipo de tratamento à sua problemática aditiva.
26.A nível laboral, após ter abandonado o sistema de ensino, exerceu atividade na área da agropecuária e posteriormente na área da construção civil, como ... e ... de cofragem, já tendo trabalhado para o irmão II. Contudo, por questões relacionadas com a sua problemática aditiva, nunca conseguiu consolidar o seu percurso profissional, permanecendo curtos períodos em cada entidade patronal e vivenciando frequentes e elevados períodos de desemprego/inatividade.
27.AA é pai de 2 filhos, JJ e KK, de 22 e 21 anos de idade, respetivamente, frutos de um relacionamento encetado em 1999 com LL, com quem viveu em união de facto. O casal residiu com os progenitores do arguido, posteriormente em casa dos sogros e por um período, conseguiu autonomizar-se. No entanto, o relacionamento foi-se deteriorando devido à problemática aditiva, culminando na separação de ambos em 2007, quando AA cumpria pena de prisão, ficando os filhos, na altura, a cargo dos avós maternos.
28.Há cerca de um ano que os descendentes encontram-se com a mãe biológica a residir no ..., na ... na residência de familiares maternos.
29.AA encetou novo relacionamento afetivo, há cerca de 15 anos, com MM (com 51 anos de idade, empregada doméstica, habilitada com o 6º ano de escolaridade), cuja relação tem sido pautada por alguma instabilidade e separações, sendo que a última discussão de ambos culminou na saída de AA da casa da companheira, indo residir sozinho para a habitação pertença de herdeiros, contexto, que ao que referiu, o levou a um desequilíbrio ao nível emocional e à recaída nos consumos de Novas Substâncias Psicoativas (NSP).
30.MM pretende prosseguir com a relação afetiva e dar mais uma oportunidade ao relacionamento entre ambos.
31.A motivação do arguido para modificar o seu comportamento é essencialmente extrínseca, assente na ajuda que os outros lhe vão ou deverão disponibilizar, o que se afigura como prognose negativa. AA é um indivíduo com défice de competências pessoais e sociais, designadamente ao nível da autocrítica e descentração, tendendo a justificar os comportamentos adotados por influência de terceiros, logo desculpabilizáveis. Revela, ainda, acentuada imaturidade na organização do seu percurso vivencial, dificuldade ao nível da resolução de problemas, agindo sem prever as consequências e em função da satisfação imediata das suas necessidades.
32.Antes de ter iniciado o cumprimento de pena de prisão, AA não tinha uma ocupação estruturada do seu quotidiano, referindo que ocupava os tempos livres nas idas ao ginásio e a jogar futebol com o grupo de pares.

33.Já foi julgado e condenado:
a)-por acórdão (cumulatório) de 11.5.2011, o arguido foi condenado na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, de um crime tráfico de estupefacientes, recetação, evasão, uso de documento falsificado, por factos praticados entre 29.11.2003 e 16.5.2006, em razão do que cumpriu pena de prisão ininterruptamente desde o dia 28.7.2008 até 9.5.2013;
b)-por decisão de 7.12.1998, pela prática em 7.12.1998 de um crime de condução ilegal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 500$00;
c)-por decisão de 7.3.2001, pela prática em 13.2.2001 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 45 dias de prisão suspensa na sua execução por um ano;
d)-por decisão de 14.3.2001, pela prática em 1.3.2001 de um crime de condução ilegal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 500$00;
e)-por decisão de 13.7.2004, pela prática em 8.2.2003 de um crime de recetação, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €4,00;
f)-por decisão de 7.6.2005, pela prática em 18.5.2005 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 18 períodos de prisão por dias livres;
g)- por decisão de 9.1., pela prática em 17.11.2003 de um crime de recetação, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00;
h)-por decisão de 6.4.2006, pela prática em 31.7.2004 de um crime de evasão e de um crime de furto qualificado, na pena única de 16 meses de prisão;
i)-por decisão de 26.5.2006, pela prática em. 2005 de um crime de furto simples, na pena de 4 meses de prisão;
j)-por decisão de 5.7.2006, pela prática em 7.10.2005 de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos;
k)-por decisão de 13.7.2006, pela prática em 18.7.2004 de um crime de furto qualificado, na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano;
l)-por decisão de 25.7.2006, pela prática em 4.2.2004 de um crime de recetação, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias à taxa diária de €5,00;
m)-por decisão de 9.3.2007, pela prática em 7.2005 de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla simples, na pena única de 8 meses de prisão;
n)-por decisão de 10.5.2007, pela prática em 25.7.2006 de um crime de evasão, na pena de 7 meses de prisão;
o)-por decisão de 7.3.2008, pela prática em 11.7.2005 de um crime de furto qualificado, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão;
p)-por decisão de 14.7.2008, pela prática em 4.2.2006 de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão;
q)-por decisão de 3.3.2009, pela prática em 8.7.2005 de um crime de falsificação ou contrafação de documento e de um crime de furto qualificado, e pela prática em 17.3.2006 de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena única de 2 ano e 7 meses de prisão;
r)-por decisão de 21.4.2009, pela prática em 15.5.2006 de um crime de falsificação ou contrafação de documento, de um crime de furto qualificado e de um crime de burla simples, na pena única de 3 anos de prisão;
s)-por decisão de 4.6.2009, pela prática em 29.11.2003 de um crime de furto qualificado, na pena de 9 meses de prisão;
t)-por decisão de 11.12.2009, pela prática em 25.7.2006 de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos de prisão;
u)-por decisão de 21.4.2009, pela prática em 15.5.2006 de um crime de falsificação ou contrafação de documento, de um crime de furto qualificado e de um crime de burla simples, na pena única de 3 anos de prisão;
v)-por acórdão de 04.06.2009, pela prática de um crime de furto qualificado a 29/11/2003, na pena de 9 meses de prisão;
w)-por sentença de 11/12/2009, pela prática de um crime de furto qualificado a 25/07/2006, na pena de 3 anos de prisão;
x)-por acórdão cumulatório de 11/05/2011, foi condenado na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão;
y)-por sentença de 03.11.2014, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal a 14/10/2013, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão;
z)-por acórdão de 07/07/2014, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes a 31/10/2013, na pena de 5 anos e 8 meses de prisão;
aa)-por acórdão cumulatório de 24.04.2015, foi condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão;
bb)-por acórdão de 25/10/2023, pela prática de um crime de roubo a 03/12/2022 e de um crime de dano com violência a 05/12/2022, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
*

II– B)- Factos Não Provados

a)-No dia 13 de dezembro de 2021, cerca das 23h, na garagem pertencente a NN sita no ..., o arguido AA viu que OO tinha na sua carteira uma nota de cinquenta euros do banco central europeu, tendo nesse instante decidido apoderar-se da mesma.
b)-Após OO e a companheira PP abandonarem o local(garagem) e, em execução de tal propósito AA propôs a BB dirigirem-se ambos ao local onde aqueles residiam para se apoderarem do dinheiro que encontrassem e dividirem-no entre si.
c)-Assim, no dia 14.12.2021 pelas 04h, os arguidos AA e BB com um gorro denominado passa montanhas (com abertura nos olhos e boca) e munidos respetivamente, de uma faca de características não apurada e de uma catana (com comprimento total de 64cm, cabo em plástico e lâmina curva de 51cm) em execução do plano previamente elaborado por ambos dirigiram-se á garagem que serve de residência de OO sita na ... e com uma pancada, partiram o vidro da porta abrindo-a por ali entraram.
d)-No seu interior o arguido AA encostou a faca ao pescoço de OO ao mesmo tempo que dizia: “dá cá o dinheiro”, o que aquele fez entregando a nota de cinquenta euros do banco central europeu, com receio que aquele atentasse contra a sua vida.
e)-Enquanto isso, o arguido BB empunhando a catana disse: “o que fazes com a minha mulher, vais pagar, vou te matar a ti e a ela”
f)-Em virtude da conduta do arguido BB, os ofendidos OO e PP receiam de que aquele possa vir a atentar contra a sua vida.
g)-OO agarra numa cadeira e atira-a na direção do BB fazendo com que deixasse cair a catana.
h)-De seguida, ambos os arguidos abandonaram o local, na posse dos cinquentas euros, os quais fizeram seus, dividiram-nos, integrando no seu património.
i)-Agiram os arguidos de comum acordo nas circunstâncias de modo, tempo e lugar, determinados a introduzir-se na residência do ofendido para li retirar a nota de cinquenta euros, bem sabendo que para o efeito teria que forçar a sua entrada, o que fizeram mediante a destruição da porta e o uso da faca e catana o que quiseram e fizeram.
j)-O arguido BB sabia nas referidas circunstâncias de tempo e lugar que não tinha permissão para deter a catana, sem qualquer justificação, tendo sido usada como arma de agressão.
k)-O arguido BB atuou de forma livre e voluntária com intenção de deter, a catana, arma branca.
l)-Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, em conjugação de esforços e intentos com o propósito concretizado de se apoderar pela força, com emprego de violência, se necessário do dinheiro de OO, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
m)-O arguido BB agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de causar medo, inquietação e prejudicar a liberdade de determinação dos ofendidos, o que conseguiu.
n)-O arguido BB sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
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III–Objecto do recurso

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Fundamentos do recurso: (i) impugnação da decisão sobre a matéria de facto; (ii) qualificação jurídica.
*

IV–Fundamentação

(da impugnação da decisão sobre a matéria de facto)

O Tribunal a quo motivou a sua convicção do seguinte modo:
“ O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Foram assim valoradas as declarações prestadas pelo arguido BB e pelas testemunhas CC e DD (guardas prisionais), OO e PP (ofendidos) e NN (cunhado do arguido AA).
Quanto à prova documental o Tribunal teve em consideração, o auto de apreensão da catana (fls. 4 do apenso A), o auto de notícia (fls. 24-30), a fotografia (fls. 33/4), o auto de pesagem e despistagem e respetivo exames (fls. 35-38) e o auto de apreensão do produto estupefaciente (fls. 39). Já a qualidade e quantidade da substância apreendida está documentada no relatório do exame do Laboratório de Polícia Científica de fls. 46.
Concretizando, o arguido BB confessou a posse da droga (o que seria difícil não fazer, uma vez que lhe foi apreendida após revista, o que foi confirmado pelo guarda DD), mas disse que era exclusivamente para o seu consumo, tendo-a encontrado caída nas escadas. Ora, tal versão não colhe, pois aquele, conforme nos disse, já se encontrava preso há cerca de um ano, já tinha passado por diversos meses sem consumir, estando o seu corpo desabituado, não sendo credível que possuísse uma quantidade tão elevada de ALHPA PHP apenas para consumo. Acresce que, se realmente fosse verdade que tivesse encontrado a droga nas escadas, não se entende o motivo pelo qual se arriscou ainda a levá-la para a ala das visitas, como o fez, sendo certo que o arguido, bem conhecedor das penas dos crimes de tráfico (pelo qual já foi condenado duas vezes) não se arriscaria a uma pena tão elevada apenas para consumo.
Relativamente ao elemento subjetivo estando demonstrados os factos supra descritos, valorou igualmente o Tribunal as regras da normalidade e da experiência comum, conjugadamente com todos os meios de prova produzidos, ficando assim convencido que o arguido, enquanto “Homem médio” (nenhuma prova foi feita no sentido de que o mesmo não se insere nesta categoria de homens – tal como decorre do relatório social, acrescendo que compreendeu bem todas as perguntas que lhe foram feitas), sabe perfeitamente que não pode adquirir, deter, guardar, transportar, vender, ceder produto estupefaciente e que fazendo-o está a praticar um crime. Mais sabe que adotar o comportamento descrito, com a sua atuação perturbava o processo de ressocialização dos reclusos, uma vez que facilitava o acesso a substâncias estupefacientes e contribuía para o transtorno da ordem e organização do Estabelecimento Prisional de ..., o que quis. E sabendo disso o Homem médio, disso sabe o arguido. Por conseguinte, se o Homem médio decide, sabendo do exposto, adquirir, deter, guardar, transportar, ceder e vender produto estupefaciente, fá-lo porque quer, o que ocorreu também com o arguido, que não demonstrou não estar incluído na categoria da generalidade dos homens. Acresce que em situações como a dos autos, dizem-nos as regras da experiência comum e da normalidade, que o agente age de forma livre, voluntária e consciente, sendo certo que nenhuma prova se fez no sentido de que o arguido não agiu, nos termos descritos, livre, deliberada e voluntariamente.
No que se refere aos factos não provados, nenhuma prova se fez em como foram os arguidos a praticar tais factos, já que ambas as testemunhas, em depoimentos marcadamente contraditórios um com o outro, negaram ter reconhecido qualquer um dos arguidos, sendo que a testemunha OO disse que a discussão foi com a testemunha PP e esta disse que nada viu, já que se fechou num quarto e que a discussão foi com a testemunha OO. Deste modo, e na ausência de qualquer outro meio de prova, apenas poderíamos considerar os factos como não provados.
Para a situação pessoal e económica dos arguidos, o Tribunal relevou os relatórios elaborados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e, por fim, atendeu-se aos certificados de registo criminal juntos aos autos.”
*

O recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes factos considerados provados:

1.(…), que o arguido destinava ao tráfico dentro do mesmo estabelecimento.
2.O arguido tinha conhecimento que o produto que detinha era estupefaciente e que se encontrava recluso em estabelecimento prisional, e que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal, e ainda prejudicava o processo de integração dos reclusos.
3.Atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
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Apreciemos.

O tribunal considerou provado que o estupefaciente apreendido ao recorrente se destinava ao tráfico dizendo tão só o seguinte:
Concretizando, o arguido BB confessou a posse da droga (o que seria difícil não fazer, uma vez que lhe foi apreendida após revista, o que foi confirmado pelo guarda DD), mas disse que era exclusivamente para o seu consumo, tendo-a encontrado caída nas escadas. Ora, tal versão não colhe, pois aquele, conforme nos disse, já se encontrava preso há cerca de um ano, já tinha passado por diversos meses sem consumir, estando o seu corpo desabituado, não sendo credível que possuísse uma quantidade tão elevada de ALHPA PHP apenas para consumo. Acresce que, se realmente fosse verdade que tivesse encontrado a droga nas escadas, não se entende o motivo pelo qual se arriscou ainda a levá-la para a ala das visitas, como o fez, sendo certo que o arguido, bem conhecedor das penas dos crimes de tráfico (pelo qual já foi condenado duas vezes) não se arriscaria a uma pena tão elevada apenas para consumo.”

Uma insuficiente e conclusiva fundamentação.

Em primeiro lugar, não se pode sustentar que a droga não se destinava ao consumo só porque “o recorrente se encontrava preso há cerca de um ano, já tinha passado diversos meses sem consumir, estando o seu corpo desabituado”.
O cérebro do toxicodependente sofre de graves e permanentes consequências quanto à vontade e ao controlo da impulsividade.
Como refere Grazina, Manuela 1 2., “ se pudesse definir a toxicodependência de uma forma extremamente simples, diria que é uma doença em que a vontade está “avariada”; o mecanismo do controlo das decisões avariou; é a avaria da vontade versus impulsividade; o cérebro de alguém que já experimentou, que sofreu a ação química das drogas, já teve alteração dos circuitos, é dependente e já não está a funcionar da mesma forma; o mecanismo que permite gerir a impulsão e ativar o “travão” do córtex pré-frontal, sofreu a tal “avaria” e a partir desse ponto, já não deixa de ser dependente quem quer, sem ter algum tipo de apoio e ajuda; as substâncias psicoativas são tradicionalmente conhecidas pelo impacto profundo que têm nos sistemas monoaminérgicos e glutamatérgico (neurotransmissores do sistema nervoso), levando a alterações comportamentais persistentes e disfunção prolongada do tecido cerebral; porque a droga, quando entra no cérebro, altera os circuitos cerebrais, o funcionamento não só energético – sim, sabe-se que as drogas de abuso impedem uma produção normal de energia -, mata os neurónios e a capacidade de integrar informação para tomar decisões; matam as células que conseguem fazer essa integração; por isso é que deixa de ser uma escolha; efetivamente, as drogas matam o cérebro e, portanto, a toxicodependência é, mais do que uma doença neuropsiquiátrica, uma doença neuro degenerativa grave; e estão demonstradas nos indivíduos toxicodependentes, em análises pós-mortem do cérebro, lesões cerebrais compatíveis com doença neuro degenerativa; na vida do indivíduo, por exposição à droga, quando fica dependente, também existem alterações neurológicas graves, desde as que afectam a capacidade cognitiva, de memória, etc., que são compatíveis com os mecanismos de interação das drogas com os circuitos cerebrais, que vão comprometer todo o seu funcionamento; quando as drogas entram no organismo e chegam ao cérebro vão ativar, de uma forma exacerbada a via da recompensa mas, com a continuidade, causam a morte dos neurónios, alterações na forma como o nosso genoma é traduzido e a própria capacidade de sentir prazer vai acabar por ficar também comprometida porque os neurónios vão morrendo; portanto, o cérebro vai ficando “oco”; actualmente, com recurso a imagiologia funcional do cérebro, é possível demonstrar isso mesmo; a irreversibilidade depende do tempo de exposição, da quantidade de droga e da forma como cada organismo responde a essa exposição; haverá uma altura a partir da qual será irreversível; haverá outra em que ainda é reversível, daí a grande esperança no tratamento; o que assusta nas novas substâncias é o facto de as pessoas que as produzem e colocam no mercado serem autênticos assassinos em série porque têm que saber muito de bioquímica, de neuroquímica e de neurociências; algumas destas moléculas que tenho estudado para perceber o seu efeito têm um potencial nefasto terrível e, pelo menos uma delas, é constituída por grupos químicos que conseguem fazer de conta que é, ao mesmo tempo, LSD, ecstasy, cocaína e metanfetaminas; vai estimular múltiplos sistemas neuroquímicos no cérebro, com um risco muito grande associado; mas não só nestes casos das novas substâncias porque está mais do que demonstrado cientificamente que a exposição a qualquer droga mata as células do cérebro que são capazes de exercer funções fundamentais na vida do indivíduo, nomeadamente na capacidade cognitiva, nas memórias, no processamento das emoções e, sobretudo, na capacidade de decisão; se tivéssemos de escolher um alvo de morte celular no cérebro aliado à toxicodependência seriam as células da tomada de decisão; essa é a razão principal para se ficar toxicodependente.”
Deste modo, não são meses sem consumir que desabitua o corpo, em particular o cérebro. A dependência ainda se pode manter por muito mais tempo.
E recorde-se que ficou demonstrado que o recorrente encontra-se integrado no programa de tratamento opiácea com cloridrato de metadona, e ainda não foi submetido a testes de despiste toxicológicos”. A metadona é utilizada no tratamento de desintoxicação de heroína e drogas similares à morfina, do que decorre que o arguido não estará já curado da toxicodependência. Acresce dizer que o recorrente não foi submetido a qualquer teste de despiste toxicológico, pelo que é difícil saber se, apesar de recluso. continua ou não a consumir.
Em segundo lugar, a conclusão do tribunal recorrido que a droga apreendida ao arguido era “tão elevada”, não sendo, por isso, para consumo, é totalmente destituída de fundamento.
Estamos a falar de 0.762 gramas de Alfa – PHP”. Uma droga sintética, do grupo da catinona (consultável em https://www.unodc.org/LSS/Substance/Details/dad53ec7-df79-4139-bbe7-57680308db28), incluída na tabela II-A anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Por ser uma droga relativamente recente, não está incluída no mapa a que se refere o art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03. Não obstante, e é a única referência legislativa e científica que temos, foi publicado como Anexo II ao Decreto Legislativo Regional n.º 7/2017/M, DRE 1.ª Série, de 03.07, uma tabela que pretende ser uma adaptação das novas substâncias psicoativas aos valores do mapa que se refere o n.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26 de março, de acordo com os mecanismos de ação das novas substâncias psicoativas e ou dados de utilização humana referidos na literatura científica, elaborada por Félix Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Farmácia do Porto.
Nesta tabela, a dose máxima diária de derivados da canitona é de 0,1 grama, daí que seja defensável cogitar que a droga apreendida ao recorrente não chegue para o período de dez dias, assim se afastando o indício que o propósito pode não ser o de consumo (cfr. as actuais redacções dos art.º 40.º, n.º 3, da Lei n.º 15/93, de 22.01, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, de 29.11, introduzidas pela Lei n.º 55/2023, de 08.09).
O que importa daqui retirar é que o tribunal a quo não podia concluir que a droga apreendida ao recorrente seria para tráfico por ser “tão elevada”. Não era elevada. Tendo como lógico o nosso raciocínio, nem o legislador considera 0,7 g de ALFA-PHP como indício de propósito para além do consumo.
E, finalmente, não foi produzida qualquer prova pessoal ou real que demonstre que o recorrente se dedicasse ao tráfico no estabelecimento prisional. Nem é possível extrair das condenações anteriores em tráfico que a droga apreendida seria para desenvolver tal ilícita activdade.
Aqui chegados, importa dizer que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base no princípio in dubio pro reo. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio – Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265, citado no Ac. do TRC de 09.03.2016, processo n.º 436/14.0GBFND.
Como refere esta Relação, no acórdão de 01.02.2011, processo n.º 153/08.0PEALM.L1-5, dgsi.pt, “ o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica, traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, é um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, pois em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui”.

Trata-se, assim, de uma questão relativa à matéria de facto.

Tudo visto, é nosso entendimento que caímos numa dúvida positiva, uma dúvida racional que ilide a decisão contrária, por outras palavras ainda, uma dúvida que impede a convicção do tribunal - Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, p. 166.

Não sabemos se a droga apreendida se destinava ao tráfico.
Daí que se deva decidir pro reo.

Com isto, não se pode dar como assente que a droga apreendida se destinava ao tráfico, o que, por consequência, faz decair parte dos factos provados 1, 2 e 3.

Nesta medida, altera-se a matéria de facto do seguinte modo:

Factos provados:
1.No dia 30 de abril de 2023, pelas 10:30 horas, o arguido BB, que estava recluso no Estabelecimento Prisional Regional de Ponta Delgada, e a sair da zona das visitas do estabelecimento, foi alvo de revista, sendo encontrado, dentro de um sapato que tinha calçado, um embrulho contendo “Alfa – PHP”, com o peso de 0.762 gramas.
2.O arguido tinha conhecimento que o produto que detinha era estupefaciente, que se encontrava recluso em estabelecimento prisional e que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada.
3.Atuou voluntária, livre e conscientemente.

E passam a incluir os demais factos não provados que:
- O arguido destinava a droga, que lhe foi apreendida, ao tráfico dentro do mesmo estabelecimento.
- O arguido sabia que era proibido por lei penal deter o estupefaciente que lhe foi apreendido e que prejudicava o processo de integração dos reclusos.
- O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei penal.
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Resta, em consonância, absolver o recorrente do crime de tráfico de estupefacientes agravado que foi condenado em primeira instância.

Deve o tribunal a quo comunicar a presente decisão à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência.

Decai, por inutilidade, a apreciação dos restantes fundamentos do recurso do arguido.
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V–Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso e, em sequência, em absolver o arguido BB do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, agravado, previsto nos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.
Sem custas.



Lisboa, 04 de Junho de 2024



Paulo Barreto
Luísa Oliveira Alvoeiro
Maria José Machado, com a seguinte declaração de voto: “Votei a decisão por considerar que, ainda que com algumas deficiências, o recorrente impugnou a matéria de facto e resultar da reapreciação das provas por ele indicadas uma dúvida muito para além do razoável relativamente à finalidade que o arguido pretendia dar ao estupefaciente que foi encontrado na sua posse, que não pode deixar de ser valorada a seu favor em obediência ao in dubio pro reo.”



1.GRAZINA, Manuela, Revista Dependências, Março 2021,Editor: News-Coop - Informação e Comunicação, CRL, pp. 12-14, disponível em dependencias.pt
2.GRAZINA, Manuela, Revista Dependências, Abril 2015, Editor: News-Coop - Informação e Comunicação, CRL, pp. 6-11, disponível em dependencias.pt