Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | TELO LUCAS | ||
Descritores: | PROCESSO ABREVIADO ACUSAÇÃO NULIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/28/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. São pressupostos ou requisitos do processo abreviado: - Crime punível com pena de multa ou com pena de prisão até 5 anos; - Existência de provas simples e evidentes – das quais resultem, em face do auto de notícia ou do inquérito sumário, indícios suficientes da prática do crime e de quem foi o seu agente; e; - Observância do prazo – que não pode exceder 90 dias – entre a prática do crime e a dedução da acusação. 2. Prova simples será aquela que não envolve qualquer complexidade quer quanto ao seu conteúdo quer quanto ao seu objecto. 3. Prova evidente - «sólida e inequívoca» – será aquela cuja força persuasiva, sobre os indícios da prática do crime e de quem foi o seu agente, é de tal forma ostensiva que não é infirmada por qualquer outra. 4.É irrelevante para a verificação dos requisitos do processo abreviado que a arguida não tenha sido ouvida, como o é o facto de não terem sido tomadas declarações aos agentes que levaram a cabo a fiscalização em causa e elaboraram o respectivo auto de notícia, não exigindo a lei nem uma coisa nem outra, bastando-se com o teor desse auto ou com a realização de inquérito [sumário]. 5. Não sendo obrigatória a realização de inquérito, como claramente decorre dos termos do art. 391.º-A do Código do de Processo Penal, não faz qualquer sentido falar na sua falta e, consequentemente, falar na nulidade prevista no art. 119.º, al. d) do mesmo diploma adjectivo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO 1. No Processo Comum n.º 112/04.1PEAMD, do 1.º Juízo (3.ª secção) da Pequena Instância Criminal de Lisboa, o Ministério Público acusou, «para julgamento sob a forma de processo abreviado» (sic), a arguida L… , ali devidamente identificada, à qual imputa a prática, em autoria material, de um crime p. p. pelos arts. 1.º, 3.º, 4.º, n.º 1, al. g), 108.º, n.º 1, e 113.º, todos do Dec.-Lei n.º 422/89, de 02-12. 2. Remetidos os autos à distribuição para julgamento, a Sra. Juíza proferiu um despacho pelo qual declarou nula a acusação, determinando, em consequência, «a remessa dos (...) autos para o D.I.A.P. para tramitação sob outra forma processual.» (sic). 3. É desse despacho que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso1, concluindo assim na motivação (transcrevendo): «1. O processo Abreviado é uma forma de processo especial introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, através dos artigos 391°-A a 391-E, pelo qual foram introduzidos e reforçados mecanismos de simplificação, aceleração e consenso relativamente à pequena e média criminalidade. 2. Da leitura e interpretação do artigo 391°-A do CPP resulta que o Ministério Público pode deduzir acusação apenas com base no auto de notícia, sem necessidade de proceder a inquérito, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente. 3. Tal como resulta do disposto no – artigo 262°, n.º 2 do C.P.P. " Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito". 4. Assim, não se pode concluir que estamos perante falta de inquérito em processo abreviado uma vez que a lei não o impõe como fase obrigatória, sendo uma das excepções previstas, tal como resulta dos artigos 391°-A e 262º, n.º 2 do C.P.P. 5. Se o M. P. entendeu que no caso concreto, face ao auto de notícia, havia prova simples e evidente de que resultam indícios suficientes de se ter verificado o crime de jogo ilícito, p. e p. pelos artigos 1°, 3°, 4°, n.º 1, al. g), 108° e 113° do DL n.º 422/89, de 2.12., o qual é punido com pena de prisão inferior a cinco anos, não pode a acusação que deduziu sob a forma especial de Processo Abreviado ser rejeitada por falta de inquérito, uma vez que a lei prevê a possibilidade de não realização do mesmo. 6. Essa valoração sobre a necessidade ou não de proceder a inquérito sumário, cabe ao Ministério Público, nos termos legais, não podendo ser alvo de censura no despacho judicial que recebe a acusação por manifestamente não caber nas situações a que alude o artigo 311° do C.P.P., para o qual remete o artigo 391°-D. 7. No caso dos autos, a factualidade plasmada no auto de notícia foi presenciada e verificada em flagrante por dois agentes da PSP, ou seja, por dois elementos de entidade policial, que procederam à apreensão da máquina de jogo utilizada no cometimento do crime de jogo ilícito e identificaram o autor do crime, não se tratando, por exemplo, de uma queixa realizada por particulares. 8. O facto de a arguida não ter sido ouvida em inquérito, não significa que não se possa afirmar que a mesma actuou deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, contrariamente ao que refere o douto despacho recorrido. 9. Esta situação também se verifica, no caso do requerimento pelo M.P. de julgamento de arguidos sob a forma especial de Processo Sumário, tal como resulta do artigo 381° do C.P.P. 10. Também nesta situação, o Ministério Público, em regra, não ouve o arguido, apesar de a lei prever tal possibilidade no caso de o arguido se apresentar detido, nos termos do artigo 382°, n.º 2 do C.P.P., e requer o seu julgamento indicando no requerimento respectivo que o arguido agiu com dolo. 11. Os Processos Sumário e Abreviado são formas de Processo Especiais consagradas no Livro VIII do C.P.P., aliás, tal como o processo Sumaríssimo, com especificidades legais próprias. 12. Tal como resulta da Lei n.º 59/98, que introduz na lei processual penal o Processo Abreviado, o mesmo caracteriza-se por uma maior rapidez nas fases preliminares ao julgamento – inquérito e debate instrutório – , face à existência de prova simples e evidentes de que houve crime e de quem foi o seu autor em face do auto de notícia ou de inquérito sumário, concentrando-se o essencial do processo na sua fase crucial que é a fase do julgamento. 13. Isto sem prejuízo de serem legalmente salvaguardadas as garantias de defesa do arguido com a possibilidade de o arguido requerer, se não se conformar com a acusação, a realização de debate instrutório, nos termos e moldes previstos no artigo 391°-C do C.P.P. 14.No caso dos autos não houve falta de inquérito, pelo facto de não se ouvir a arguida e de a acusação se basear no auto de notícia, uma vez que a lei a tal não obriga na forma especial de Processo Abreviado desde que verificados os demais requisitos consagrados no artigo 391°-A do C.P.P., e consequentemente, não se verificou a nulidade insanável a que alude o artigo 119°, al. d) do C.P.P. 15. Ao declarar a nulidade da acusação e determinar a remessa dos autos para o DIAP para tramitação sobre outra forma processual, o douto despacho recorrido incorreu em violação do disposto nos artigos 391°-D, 311º, n.º 1 e 119°, al. d) do C.P.P., pelo que deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação do M°. P°. e designe data para julgamento. Contudo, V. Exas. melhor farão JUSTIÇA!». 4. A arguida, se bem que notificada para o efeito (fls. 149-150), não respondeu. 5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanha a motivação de recurso apresentada pela Digna recorrente. 6. Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO 7. Cumpre, pois, apreciar e decidir. 7.1. Fazendo-o, comecemos por transcrever o essencial do despacho recorrido: «Nos presentes autos, a arguida L…, encontra-se acusada, em processo abreviado, pela prática, em autoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelos artigos 1°, 3°, 4°, n.º 1, g), 108°, n.º 1, e 113° do D.L. n°422/89, 02.12. São requisitos do processo abreviado, nos termos do art. 391°-A, do C.P.P.: - Que o crime ou crimes por que o arguido venha acusado sejam puníveis apenas com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos; - Que a prova se revista de simplicidade e aponte com evidencia para a prática do crime pelo arguido; e - Que seja deduzida acusação para julgamento em processo abreviado no prazo máximo de 90 dias após a data em que se refere terem os factos sido praticados. Nos presentes autos não se verifica o segundo dos requisitos supra referidos. Ou, pelo menos, ignora-se se assim será. A arguida nem sequer foi ouvida na fase de inquérito; aliás, a ninguém foram tomadas declarações. Como afirmar, então que aquela agiu livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei?! Como afirmar o dolo no seu comportamento?! Recorde-se que, no âmbito do processo criminal, vigora o Princípio da Culpa, não havendo lugar a qualquer tipo de responsabilidade objectiva. Não pode, assim, o presente processo prosseguir na forma abreviada, pois a acusação está ferida de nulidade. A falta de inquérito constitui a nulidade insanável prevista no artigo 119°, alínea d), do C.P.P. (sendo certo que não é causa de rejeição da acusação por manifestamente infundada, inexistindo regime específico para estes casos, como sucede com o artigo 390°, alínea a), do C.P.P., para o processo sumário). Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 391°-D, por referência ao artigo 311°, n.º 1, ambos do C.P.P., declaro o despacho e acusação de fls. 17 e 18 nulos, por virtude do disposto no artigo 119°, alínea d), do C.P.P. e, consequentemente, determino a remessa dos presentes autos para o D.I.A.P. para tramitação sob outra forma processual». 7.2. Como se vê, a Digna recorrente entendeu que estavam reunidos no caso os pressupostos de que a lei faz depender a utilização do processo abreviado, por isso deduzindo acusação e requerendo o respectivo julgamento sob essa forma de processo; a Sra. Juíza, porém, e com os fundamentos de que nos dá conta o despacho acabado de transcrever, declarou nula a acusação, remetendo os autos ao acusador público para tramitação sob outra forma de processo. «Quid juris?» Apercebendo-se que um dos vectores fundamentais que haviam inspirado a reforma do sistema consagrado no Código de 1987 – qual seja a distinção do tratamento processual entre a pequena e média criminalidade, por um lado, e a criminalidade grave, por outro – não estava, na prática diária, a ser conseguido com a dimensão pretendida, procurou o legislador novos caminhos que permitissem aprofundar e desenvolver aquele aspecto da reforma processual penal. Com efeito, e como ele próprio o reconhece na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, aquela distinção «não assume visibilidade significativa, assistindo-se a um tratamento tendencialmente uniforme das diversas formas de criminalidade.». Daí que tenha introduzido e reforçado «mecanismos de simplificação, aceleração e consenso relativamente à pequena e média criminalidade, no sentido das recomendações da ONU e do Conselho da Europa», conferindo destaque, em primeiro lugar, à criação do processo abreviado – ou, como preferimos dizer, do processo especial sob a forma abreviada -, o que se verificou, acrescente-se, com a Lei n.º 59/98, de 25-08, cuja génese reside precisamente na referida Proposta de Lei. Ora, reportando-se precisamente ao processo abreviado, diz-se a dado passo (ponto 8.) da mencionada exposição de motivos: «Trata-se de um procedimento caracterizado por uma substancial aceleração nas fases preliminares, mas em que se garante o formalismo próprio do julgamento em processo comum com ligeiras alterações de natureza formal justificadas pela pequena gravidade do crime e pelos pressupostos que o fundamentam. Estabelecem-se, porém, particulares exigências ao nível dos pressupostos. São eles o juízo sobre a existência de prova evidente do crime – como sucederá, por exemplo, nos casos de flagrante delito não julgados em processo sumário, de prova documental ou de outro tipo, que permita concluir inequivocamente sobre a verificação do crime e sobre quem foi o seu agente – e a frescura da prova – traduzida na proximidade do facto, não superior a 60 dias2 -, pressupostos que, na sua essência, igualmente enformam o processo sumário, característico do nosso sistema.». E continuando: «Tratar-se-á, em síntese, de casos de prova indiciária sólida e inequívoca que fundamenta, face ao auto de notícia ou perante um inquérito rápido, a imediata sujeição do facto ao juiz, concentrando-se, desta forma, o essencial do processo na sua fase crucial, que é o julgamento. O procedimento é, porém, envolvido de particulares cautelas no que se refere às formalidades preliminares, em homenagem ao direito de defesa e ao princípio de igualdade de armas na fase preparatória. Estabelece-se, assim, a possibilidade de o arguido submeter o caso a comprovação judicial e de, em debate instrutório, contrariar a decisão de acusação do Ministério Público. (...).». O excerto acabado de transcrever permite, sem margem para dúvida, apreender quer os objectivos pretendidos pelo legislador com a criação do processo abreviado quer os requisitos ou pressupostos necessários para que o mesmo possa ser lugar. Assim, e tendo agora também presente a norma do art. 391.º - A do Código de Processo Penal3 , podemos afirmar que aqueles pressupostos ou requisitos são os seguintes: - Crime punível com pena de multa ou com pena de prisão até 5 anos; - Existência de provas simples e evidentes – das quais resultem, em face do auto de notícia ou do inquérito sumário, indícios suficientes da prática do crime e de quem foi o seu agente; e; - Observância do prazo – que não pode exceder 90 dias – entre a prática do crime e a dedução da acusação. Destes pressupostos o único que poderá necessitar de alguma explicitação será aquele que se prende com o conceito de “provas simples e evidentes”. Ora, por contraposição, a prova simples será aquela que não envolve qualquer complexidade quer quanto ao seu conteúdo quer quanto ao seu objecto. Por sua vez, a prova evidente - «sólida e inequívoca» , afirma-se, como vimos, na exposição de motivos que mais acima, na parte que aqui releva, deixámos transcrita – será aquela cuja força persuasiva, sobre os indícios da prática do crime e de quem foi o seu agente, é de tal forma ostensiva que não é infirmada por qualquer outra4. Pois bem. Aqui chegados, é altura de voltarmos ao caso concreto. O auto de notícia, elaborado pela PSP, começa por nos dizer que foi efectuada uma acção de fiscalização ao estabelecimento de mercearia de que na altura era responsável a arguida. Seguidamente, dá-nos conta do preciso local do estabelecimento onde se encontrava uma máquina automática e eléctrica. Depois, descrevem-se as características da máquina, o seu modo de funcionamento, os jogos que permite desenvolver e o respectivo enquadramento legal. Por fim, são relatadas outras diligências efectuadas (como seja o diálogo havido entre o agente fiscalizador e a arguida sobre o distribuidor e proprietário dos jogos). Mostra-se junto o auto de apreensão da máquina, bem como o relativo à sua abertura, e ilustra-se o noticiado com várias fotografias, coloridas, da máquina em questão. Ora, perante todos estes elementos não se compreende, salvo melhor opinião, como é possível afirmar, como faz o despacho recorrido, que não se verifica o segundo requisito, que enuncia, para que possa ter lugar o processo abreviado, ou seja, “Que a prova se revista de simplicidade e aponte com evidência para a prática do crime pelo arguido”. Manifestamente, pelo que já se deixou dito, verificam-se todos os requisitos ou pressupostos legais para que possa ter lugar o processo abreviado. E é irrelevante para o caso que a arguida não tenha sido ouvida, como o é o facto de não terem sido tomadas declarações aos agentes que levaram a cabo a fiscalização em causa e elaboraram o respectivo auto de notícia. É que a lei não exige nem uma coisa nem outra, bastando-se com o teor desse auto ou com a realização de inquérito [sumário]. Simplesmente, não sendo obrigatória a realização de inquérito5, como claramente decorre dos termos do art. 391.º-A do Código do de Processo Penal, não faz qualquer sentido falar na sua falta e, consequentemente, falar na nulidade prevista no art. 119.º, al. d) do mesmo diploma adjectivo. Uma nota final para focar o seguinte aspecto: independentemente do que se acaba de expor, o despacho recorrido, ao questionar a vertente subjectiva da acusação (“como afirmar que a arguida agiu livre e conscientemente?”; “Sabendo que a sua conduta era proibida por lei?” e “Como afirmar o dolo?) enveredou por um caminho que afronta quer a estrutura acusatória do processo criminal, constitucionalmente consagrada (art. 32.º, n.º 5, da Lei Fundamental), quer os poderes funcionais do Ministério Público, a quem compete, em exclusivo, o exercício da acção penal (art. 219.º, n.º 1, também do diploma básico. III - DECISÃO A – Concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, aceitando a tramitação dos autos sob a forma de processo abreviado, receba a acusação deduzida. B – Sem tributação. Lisboa, 28 de Maio de 2008 (Telo Lucas) (Pedro Mourão) (Domingos Duarte) _______________________________________________________ - 1Recurso que, num primeiro momento, não foi admitido, vindo a sê-lo posteriormente, na sequência de reclamação deferida pelo, então, Exmo. Vice-Presidente deste Tribunal. 2Como adiante, no texto, se verá este prazo “não superior a 60 dias” não veio a ter consagração legal, tendo o legislador optado pelo prazo “não superior a 90 dias”. 3 Temos aqui presente a versão anterior à que ao Código foi introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08. 4 É de propósito que no texto não lançámos mão do actual n.º 3 do art. 391.º-A, o qual, resultante das alterações introduzidas pela Lei referida na nota precedente, define - não taxativamente, note-se -, para efeitos do n.º 1 do preceito, o conceito de “provas simples e evidentes”. 5 Cuja obrigatoriedade geral a própria lei excepciona nos casos previstos no Código (art. 262.º, n.º 2). |