Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
246/25.9PBOER-A.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRISÃO PREVENTIVA
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: – Aplicação da prisão preventiva com base nos artigos 202.º e 204.º do Código de Processo Penal, valorizando-se a natureza reiterada e violenta dos factos indiciados no contexto de violência doméstica, e a insuficiência das demais medidas de coacção para acautelar os perigos concretos de continuação da actividade criminosa e perturbação do inquérito.
– Valoração dos antecedentes criminais do arguido enquanto critério prognóstico relevante para aferir a perigosidade actual, sendo enfatizado o padrão reiterado de comportamentos violentos contra diferentes vítimas e a sua insensibilidade às condenações penais anteriores.
– Afastamento da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica com fundamento na imprevisibilidade e impulsividade da conduta do arguido, na ausência de autocontrolo e na ineficácia prática da vigilância passiva em contextos de violência doméstica relacional.
– Interpretação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e subsidiariedade na escolha da medida de coacção, ponderando-se a protecção efectiva da integridade física e psíquica da vítima e o interesse superior dos filhos menores, face à manutenção de vínculos familiares em contexto de violência.
– Fundamentação da suficiência da prova indiciária nos termos do artigo 202.º, n.º 1, do CPP, com base na coerência dos depoimentos, documentos clínicos, vestígios fotográficos e comunicações escritas, consolidando a admissibilidade da prisão preventiva como medida cautelar legítima e proporcional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1.1. No processo de inquérito n° 246/25.9... o arguido/recorrente AA encontra-se sujeito à medida coactiva de prisão preventiva, pela existência de fortes indícios da prática da prática reiterada de factos integradores do crime de violência doméstica (art. 152.º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a), 4 e 5 do CP).
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1.2. O arguido não conformado com o teor do despacho interpôs o presente recurso.
Da motivação do respectivo recurso extraiu-se as seguintes conclusões:
(…)
a. As medidas de coação são meios processuais de limitação da liberdade pessoal do AA que se destinam a fazer face, dentro das condições estabelecidas na lei, às exigências de natureza cautelar que se verifiquem no processo;
b. As medidas de coação não são, nem podem ser entendidas como “penas” propriamente ditas, não se lhes atribuindo, nem reconhecendo valor punitivo ou retributivo, mas tão só formas de acautelar a eficácia e o regular desenvolvimento do processo penal.
c. Quanto maior a limitação dos direitos, liberdades e garantias dos Arguidos que a medida coativa represente, maiores serão as exigências que presidirão à sua aplicação, a medida de coação ínsita no art.º 202.º do CPP, está sujeita não só às condições gerais contidas nos arts. 191.º a 195.º do CPP, em que avultam os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, como também aos requisitos gerais previstos no art.º 204.º e aos requisitos específicos consagrados no já referido art.º 202.º do mesmo diploma legal.
d. A aplicação de qualquer medida de coação, pautando-se pelo princípio constitucional da presunção de inocência, nos termos do qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”, deve respeitar os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade;
e. A medida de coação aplicada ao AA – prisão preventiva – é desproporcionada, devendo ser substituída por outra, menos restritiva dos seus direitos, liberdades e garantias;
f. Impunha-se ao Tribunal ad quo, aquando da determinação da medida de coação aplicável ao AA, ter em consideração todo o rol de medidas coativas previstas na lei, optando pela medida, de entre todas as consideradas necessária e adequada a acautelar os perigos que considerou verificados, que menor restrição à liberdade individual do AA comportasse;
g. Os perigos a que alude o art.º 204.º, devem ser “real(ais) e iminente(s), não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de factores vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar”, – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 19/01/2011, Processo n.º 2221/10.9PBAVR-A.C1.
h. No caso em apreço, não foram mencionados factos suscetíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa ao Recorrente, tendo a mesma assentado apenas em meros juízos abstratos, não concretizados em factos, tal como exige o art.º 204.º do CPP,
i. Não foram indicados quaisquer factos concretos que façam depreender a continuação da atividade criminosa e o perigo de perturbação do inquérito por parte do AA, nos presentes autos, designadamente circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta, que permitam realizar um juízo de prognose de perigosidade social do AA,
j. Sendo que, como já se referiu supra, nenhum dos antecedentes que consta do registo criminal do AA corresponde a um crime de idêntica natureza àquele pelo qual vem indiciado – crime de violência doméstica, correspondendo, na sua franca maioria, a crimes rodoviários e crimes contra o património.
k. O douto Tribunal desconsiderou em absoluto que esta foi a primeira vez em que a vítima apresentou queixa contra o ora AA, sendo igualmente a primeira vez que o AA lhe viu ser aplicada uma medida privativa da liberdade, nenhuma das condutas do AA permitindo concluir, com elevado grau de probabilidade, que o mesmo irá desprezar outra medida de coação que lhe seja aplicada, exceção feita à prisão preventiva.
l. Os perigos aventados pelo Tribunal podem ser acautelados por via de outras medidas de coação menos restritivas da liberdade do AA, uma vez que ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido, a prisão preventiva, que tem caráter excecional e não é a única medida adequada a acautelá-los;
m. Ao ter decidido como decidiu, ao optar pela aplicação da última et extrema ratio, frustrou o fim último da ratio do axioma penal, no que toca às medidas de coação, ignorando os critérios da necessidade e proporcionalidade, constitucionalmente consagrados no art.º 18.º da CRP;
n. A obrigação de permanência na habitação, com o confinamento do AA à sua residência, é suscetível de conter de forma adequada os apontados perigos (de continuação da actividade criminosa, de perturbação da ordem e tranquilidade pública e de perturbação do inquérito);
o. O cumprimento da referida medida de coação pode ser garantido pela vigilância eletrónica – podendo, além do mais, manter-se em todo o caso, a proibição de contactos com a vítima e demais testemunhas do processo, bem como a proibição de contactar, por qualquer meio, com a vítima, mostrando-se dessa forma devidamente acautelado o invocado perigo de continuidade da atividade criminosa, protegendo-se a vida, integridade física e segurança da vítima.
p. Paralelamente, garanta-se que o AA não vê quebrados importantes vínculos sociofamiliares como acontecerá caso de mantenha a presente medida de coação e, ainda, que um presumível inocente não se verá a braços com o forte efeito estigmatizante do meio carcerário.
q. A correta valoração dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação exigida pela lei processual penal, determinariam a aplicação ao AA da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância,
r. Estando a família do AA, com residência própria no distrito de Lisboa, disposta a aceitar esta medida cautelar e a providenciar pelo seu sustento enquanto esta durar.
(…)
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1.3. O MP respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência, defendendo a manutenção do despacho recorrido e, consequentemente, devendo o arguido aguardar o decurso normal do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por verificados em concreto os perigos constantes do artº. 204, nº 1 b) e c) do CPP.
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1.4. Neste Tribunal, a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer sufragando a posição do Ministério Público em primeira instância.
Mais acrescentou: (transcrição)
(…)
Os factos que se encontram fortemente indiciados, a sua natureza e gravidade não permitem concluir por uma mitigação das exigências cautelares quanto ao arguido.
Decorre com forte suficiência, e, até ao momento de aplicação da medida de coacção privativa da liberdade ao arguido, que o mesmo adotou comportamentos gravemente lesivos da integridade física e psicológica da vítima BB.
O facto de o arguido ter procedido da forma descrita, com extrema violência, com frieza de ânimo revelam que o arguido não demonstra insight quanto à gravidade dos seus comportamentos e revela-se incapaz de percecionar o potencial impacto causado na ofendida pela prática dos mesmos, o que aumenta o risco de probabilidade de comportamentos abusivos no futuro, sendo tais factos circunstâncias e modo como foram executados suscetíveis de provocar grande intranquilidade e perturbação na ordem pública.
A conduta do arguido é merecedora da mais acentuada censurabilidade pelo cidadão comum, atentos os bens jurídicos afetados. Por outro lado, estamos perante crimes que pelo especial bem jurídico protegido, levam o cidadão comum a um descrédito nas instâncias formais de controlo, caso estas não respondam eficaz e convenientemente, possibilitando, na ausência de tal resposta, reações emotivas e de choque.
O que permite afirmar que os pressupostos, de facto e de direito, que fundamentaram a aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva continuam a apresentar-se como sendo a única medida de coação adequada e proporcional às exigências cautelares que os presentes autos requerem, capaz de obviar aos perigos que se encontram fortemente indiciados nos autos, mostrando-se a mesma adequada e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas ao arguido, revelando-se todas as outras inadequadas e insuficientes.
(…)
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1.5. Cumprido o artº 417°, n° 2, do CPP não houve resposta.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II – OBJETO DO RECURSO
2.1. De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, já que são nelas que sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
In casu, atentas as conclusões, o recorrente invoca as seguintes matérias:
1. A medida de coacção de prisão preventiva violou os princípios da proporcionalidade, subsidiariedade, adequação e necessidade?
2. A prova indiciária existente não é suficientemente forte para legitimar a medida de prisão preventiva?
3. O passado criminal do arguido não pode justificar a prisão preventiva, face à ausência de condenações por violência doméstica?
4. Seria adequada e suficiente a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica?
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III - A DECISÃO RECORRIDA
3.1. O despacho recorrido tem o seguinte teor: (transcrição)
(…)
DECISÃO SOBRE MEDIDA DE COACÇÃO
I – Pressupostos legais da detenção
O arguido foi detido em flagrante delito, situação de quase flagrante a que se refere o nº do artº 256º, do CPP.
A detenção foi legal porque efectuada nos termos e para os efeitos do disposto no artº 254º, do CPP.
Foi respeitado o prazo de 48 horas para a apresentação do arguido a este JIC, nos termos do disposto no artº 254º, do CPP.
Foram integralmente comunicados e explicados ao arguido os direitos referidos no nº 1, do artº 61º, do CPP, bem como dos factos que concretamente lhe são imputados, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e os elementos do processo que os indiciam.
O arguido foi ainda informado para efeitos do disposto no artº 141º, nº 4, al. b), do CPP.
II – Factos indiciados
Estão fortemente indiciados todos os factos que vêm acima descritos nesta acta1, para onde se remete, e que integralmente foram comunicados ao arguido, nos termos do disposto no artº 141º, nº 4, als. c) e d), do CPP.
III – Factos não indiciados
Não há factos não indiciados.
IV – Enquadramento jurídico das circunstâncias de facto indiciadas
Indiciam fortemente os autos, para além do mais, a prática pelo arguido, em autoria material, de:
- em autoria material consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152º nº1 al. b), nº 2 al. a), nº4 e nº5, do Código Penal.
V – Análise crítica dos indícios que fundamentam a imputação
A prática dos factos pelo arguido resulta fortemente indiciada quer pela descrição feita no auto de notícia pelos elementos policiais chamados ao local e que ali verificaram os ferimentos da vítima, retratados nos autos, quer ainda pelo depoimento da própria vítima, no que se refere aos demais factos de episódios anteriores, os quais são detalhados e compatíveis com os elementos clínicos, nomeadamente relativos ao episódio em que a vítima inicialmente referiu aos serviço do hospital que os ferimento tinham sido originados por uma queda.
O arguido prestou declarações admitindo parcialmente os factos mas procurando sempre conferir aos mesmos uma configuração que lhe fosse desculpabilizante, mesmo quando admite ter agredido ou empurrado com violência.
Para além do acima exposto foram ainda conjugados e considerados os seguintes meios de prova:
- Auto de notícia de fls. 2 a 8,
- Autos de inquirição da vítima, BB, de fls. 9 e 79,
- Fotografias das lesões sofridas pela ofendida no dia ...-...-2025 de fls. 37 a 41,
- Print de mensagens enviadas pelo arguido à vítima de fls. 88 a 91, 169
- Documentação clínica de fls. 94 e 95,
- Relatório de antecedentes criminais do arguido de fls. 96,
- Auto de notícia do processo nº 281/21.5... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 98 a 100,
- Auto de notícia do processo nº 230/14.8... (crime de desobediência) de fls. 101 a 102,
- Auto de notícia do processo nº 184/12.5... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 103 a 105,
- Auto de notícia do processo nº 1549/10.2... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 106 a 108,
- Auto de notícia do processo nº 502/10.0... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 109 a 112,
- Auto de notícia do processo nº 161/10.0... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 113 a 115,
- Auto de notícia nº 309640/2008 (ofensas à integridade física) de fls. 116 a 117,
- Auto de notícia do processo nº 1355/04.3... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 118,
- Auto de notícia do processo nº 1638/05.5... (por crime de violência doméstica do arguido contra outra mulher) de fls. 119 a 122,
- Aditamento de fls. 124,
- Auto de apreensão do anel do arguido (agrafado à contracapa) de fls. 126,
- Auto de exame e avaliação do anel apreendido de fls. 127,
- Auto de notícia por detenção de fls. 161 a 162,
- Certificado de Registo Criminal de fls. 48 a 78 (elemento importante na caracterização da personalidade extremamente violenta do arguido)
VI – Perigos indiciados
- O crime em causa, de violência doméstica suscita cautelas dado que se desenvolve em ambiente de tensão emocional e propício à continuação da actividade criminosa, sendo que em concreto, o arguido apresenta-se movido por um forte sentimento que não se caracteriza por sentimentos de “posse” sobre a vítima sua companheira, como em muitas outras situações aparenta ser a causa de ciúme que despoleta a violência mas sim de profundo desprezo e desrespeito, já que se permite agredi-la, de forma sistemática, ao mesmo tempo que lhe dirige expressões que só encontram suporte nesse referido desprezo…
-… o arguido socorre-se de requintes de malvadez nas agressões que dirige à vítima, atirando-lhe com a cabeça contra a parede ou fazendo questão de a atingir com a mão onde tem um volumoso anel metálico, bem sabendo que assim irá provocar-se maiores danos e dores, o que é exemplificativo do sentimento de desprezo, impunidade e energia criminosa que o move.
- O arguido regista inúmeras condenações anteriores, pela prática de crimes violentos (roubo, ofensas à integridade física…) e da mesma natureza (contra outra mulher, notando-se que nos insultos que dirige à vítima faz questão de fazer comparações entre ambas…) – cfr. CRC de fls. 48 a 78 – revelando que as condenações anteriores não lhe serviram de advertência solene que o compelisse a respeitar as mais básicas regras de convivência em sociedade e de respeito por elementares e fundamentais bens jurídicos que o legislador pretende proteger com a incriminação aqui em causa.
- Tudo revelando que o arguido, não só prosseguirá na senda da agressão gratuita, como escalará a pendente de violência em que enveredou.
- E neste ambiente de forte violência, sobrevivem, para além da vítima, dois menores de tenra idade…
- Por estas razões, o perigo de continuação da actividade criminosa não só é uma realidade alarmante como trará seguramente consequência gravosas que a comunidade em geral não tolerará.
- Existe perigo para a aquisição e conservação da prova, tal como invocado pelo Ministério Público, pois o arguido não deixará de procurar exercer influência sobre aquela que, apesar de tudo, é a mãe dos seus filhos e que, passada a tormenta inicial que a sujeição do arguido a medidas de coação lhe trará, poderá deixar-se comover com argumentos “do pai dos seus filhos”, filhos esses em grave perigo para um desenvolvimento saudável enquanto o arguido perto deles permanecer com os comportamentos aqui fortemente inciiados.
VII – Medida de coacção proposta pelo Ministério Público e posição manifestada pela defesa
Proposta pelo Ministério Público:
Prisão preventiva.
Sem oposição da defesa.
VIII – Medida de coacção adequada
Face ao crime indiciado, perigos e circunstâncias acima enunciadas, nomeadamente de intenso perigo de continuação da actividade criminosa com possíveis consequências letais para a vítima, revela-se legalmente admissível, proporcional, necessária e adequada ao caso concreto, a medida de prisão preventiva.
Uma medida de obrigação de apresentações periódicas no OPC seria, em absoluto ineficaz e inadequado no quadro acima referido, em que o arguido sofreu diversas condenações anteriores, sem o sucesso esperado.
Contrariamente ao disposto no artº 193º, nº 3, do CPP, a medida de OPHVE não se revela adequada nem eficaz contra os perigos acima enunciados, sendo certo que a criminalidade de natureza passional e emotiva como a presente, pelos impulsos que a movem, revela-se pouco sensível a medidas de controlo meramente electrónico ou remoto, sobretudo quando o arguido revela absoluta incapacidade de controlar os seus impulsos e de respeitar os mais elementares mandamentos legais, assim como tem hábitos adictos que agravação o seu descontrolo pessoal.
A medida de prisão preventiva mostra-se, assim, no presente momento, imperiosa, necessária, adequada, proporcional e legalmente admissível.
IX – Medida de coacção concreta
Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva e de proibição de contactos com a vítima, mesmo em estado de reclusão - cfr. artºs. 200º, al. d), 202°, nº 1, al. b) e 1º, al. j); 191.°, 193.° e 204.° alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Notifique, se necessário for dando cumprimento ao disposto no artº 194º, nº 10, do CPP.
Passe mandados de condução do arguido ao estabelecimento prisional.
(…)
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
4.1. DECIDINDO
A medida de coacção de prisão preventiva, prevista no artigo 202.º do Código de Processo Penal (CPP), constitui a resposta mais gravosa do ordenamento jurídico português no que respeita à contenção cautelar de comportamentos penalmente relevantes, sendo esta aplicável em casos de manifesta insuficiência das demais medidas previstas nos artigos 193.º e seguintes do CPP. A sua aplicação exige a verificação de pressupostos objectivos e subjectivos particularmente exigentes, cuja conformação se encontra densamente articulada com os princípios constitucionais da liberdade pessoal, da presunção de inocência e da proporcionalidade (artigos 27.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa – CRP). Contudo, não basta a invocação genérica destes princípios para afastar a prisão preventiva; impõe-se uma avaliação criteriosa das circunstâncias concretas do caso e da personalidade do agente, nomeadamente quando o comportamento revelado é de cariz passional, impulsivo e perigoso, como sucede nos crimes de violência doméstica.
A obrigação de permanência na habitação, prevista no artigo 201.º do CPP, com ou sem vigilância electrónica, é frequentemente considerada uma alternativa adequada à prisão preventiva. Contudo, essa presunção genérica soçobra diante de quadros criminais marcados pela alta intensidade emocional, impulsividade violenta e propensão à reincidência imediata, como sucede tipicamente nos crimes de violência doméstica.
In casu, o arguido demonstrou desprezo reiterado pelas figuras de autoridade, por normas penais e por outras medidas sancionatórias, tendo inclusive antecedentes por crimes violentos contra pessoas, como ofensas à integridade física e roubo, não obstante tenha olvidado estes elementos na sua peça recursória.
A sua conduta evidencia não apenas insensibilidade penal, mas também inadequação estrutural a qualquer regime de coacção meramente supervisionado, sendo previsível, com elevado grau de probabilidade, que violasse a obrigação de permanência na habitação ao mínimo estímulo externo que provocasse nova situação de agressividade.
A violência doméstica constitui uma tipologia criminosa particularmente sensível, regulada de forma agravada no artigo 152.º do Código Penal, precisamente pela constatação de que o agressor mantém com a vítima uma relação pessoal e emocional que multiplica o risco de revitimização. A natureza relacional do crime impede que o mesmo se esgote num só momento, pois tende a ser reiterado, cíclico e regressivo, perpetuando-se no tempo mesmo após a ruptura formal do vínculo afectivo.
Acresce que os estudos criminológicos (v.g. Conselho da Europa, GREVIO Reports; Relatório do Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR) confirmam que o maior risco para a vítima ocorre no momento da denúncia e nos meses seguintes, sendo precisamente nesse período que a coacção severa e directa, como a prisão preventiva, se impõe com maior acuidade. Permitir que o arguido permaneça na habitação, mesmo que sob vigilância electrónica, constitui um factor de instabilidade não negligenciável, pois o impulso de contactar, coagir ou retaliar contra a vítima encontra-se ainda latente e inflamado.
O arguido, conforme fortemente indiciado nos autos, apresenta um padrão habitual de consumo de bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes, o que contribui significativamente para a perda de autocontrolo e para a intensificação das respostas violentas.
O consumo habitual de substâncias psicotrópicas não apenas diminui a imputabilidade moral do agente, mas, mais gravemente para efeitos cautelares, dificulta qualquer prognose positiva de autocontenção em regime de liberdade condicionada.
A eficácia das medidas de coacção como a vigilância electrónica é altamente dependente da autocontenção e do respeito voluntário pelas regras impostas, o que não pode ser presumido em arguidos cuja conduta revela impulsividade e dependência activa. Esta realidade torna a prisão preventiva não só proporcional, mas absolutamente necessária e insubstituível.
Muito argumenta o ora arguido/recorrente que a prisão preventiva deve ser medida de último ratio, e que, sempre que possível, deverá ser preterida em favor de medidas menos gravosas. Contudo, o princípio da subsidiariedade não é absoluto, antes devendo ser ponderado com os valores em causa, os riscos de revitimização e os padrões comportamentais do arguido. No presente caso, os elementos objectivos dos autos – número, intensidade e crueldade das agressões, reiteradas ao longo de anos e praticadas na presença de filhos menores – impõem uma leitura rigorosa da proporcionalidade: a compressão do direito à liberdade é directamente proporcional à necessidade de tutela efectiva da integridade física e psíquica da vítima. Permitir que o arguido aguarde em liberdade condicionada (como a OPHVE) não é uma alternativa juridicamente neutra; é, antes, uma abdicação do dever do Estado de garantir protecção eficaz às vítimas de violência doméstica (Cfr. artigos 3.º e 5.º da Convenção de Istambul).
A medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica encontra respaldo no artigo 201.º do Código de Processo Penal, podendo constituir uma alternativa à prisão preventiva. Porém, como supra-referido, esta medida carece de condições objectivas e subjectivas para a sua efectiva eficácia, sendo absolutamente inadequada em situações em que o comportamento do arguido revela instabilidade emocional crónica, impulsividade reactiva e desrespeito reiterado pelas ordens de autoridade pública. A aplicação mecânica da vigilância electrónica, como mera resposta alternativa menos gravosa, sem considerar o grau de autocontrolo exigido e os antecedentes do arguido, contraria a lógica teleológica do processo penal e enfraquece a protecção das vítimas. É precisamente por isso que, mesmo após a implementação da vigilância electrónica ma OPH, se têm verificado homicídios em contexto de violência doméstica, como alertam relatórios do Conselho Europeu e do Relatório de Segurança Interna português. A vigilância electrónica não imobiliza o agressor, apenas o monitoriza passivamente, sendo incapaz de evitar um impulso súbito de agressão que se concretize em poucos minutos, como sucede tipicamente nos comportamentos afectivos.
Ora, a violência doméstica constitui uma realidade criminosa com necessidade de resposta penal firme e preventiva. Quando se constata um padrão comportamental agressivo, reiterado e insensível à norma penal, como evidencia o comportamento do ora arguido/recorrente, a prisão preventiva é justificada pela manutenção da ordem jurídica e pela necessidade de contenção da impulsividade do agente.
Em suma, o princípio da proporcionalidade não é um imperativo de substituição automática, mas antes um critério de ponderação em que se equacionam os direitos em conflito: a liberdade do arguido e a integridade da vítima. A prevalência desta última justifica a medida mais gravosa quando outras se mostram inadequadas.
A resposta judicial à violência doméstica deve obedecer a uma lógica de protecção efectiva das vítimas, não podendo ser enformada por critérios formais ou excessivamente abstractos.
Ora, a análise do comportamento do arguido em causa nos presentes autos revela um perfil de elevado risco, tendo ele persistido em condutas de agressão mesmo após múltiplas condenações penais, o que o torna particularmente imune a medidas de mera vigilância.
Outro dos argumentos que o ora arguido/recorrente invoca para sustentar a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação prende-se com a manutenção dos vínculos familiares, especialmente com os filhos. Contudo, este raciocínio padece de um equívoco teleológico. Em primeiro lugar, os vínculos familiares não se mostram inibidores da violência, pois os autos indiciam fortemente que foi precisamente no seio da estrutura familiar que os actos agressivos ocorreram – e com particular gravidade, na presença dos filhos menores. Em segundo lugar, o interesse superior das crianças não se compadece com a manutenção de convivência forçada, ou não, com um progenitor agressivo, desrespeitador da mãe e emocionalmente instável, como bem resulta da Convenção dos Direitos da Criança e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Em última análise, a protecção dos laços familiares não pode ser argumento para a mitigação da tutela penal das vítimas, sobretudo quando estes vínculos são instrumentalizados pelo agressor como meio de pressão emocional, chantagem ou coacção.
Face ao exposto, conclui-se que a medida de prisão preventiva aplicada ao arguido no caso concreto não só respeita os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade, como constitui a única resposta cautelar eficaz diante da perigosidade concreta demonstrada. O argumento de que a obrigação de permanência na habitação seria medida suficiente não resiste à análise contextual do padrão de conduta do arguido, da gravidade das agressões, da reincidência e da ausência de indicadores de auto-inibição comportamental. A sua manutenção em liberdade condicionada, ainda que electronicamente monitorizada, representaria um risco intolerável para a segurança da vítima, para os filhos menores, e para a credibilidade do sistema de justiça penal. O princípio da liberdade não pode ser compreendido como escudo para a perpetuação da violência, sob pena de se comprometer a função preventiva, restaurativa e garantística do processo penal. A prisão preventiva, neste caso, é não apenas legítima: é juridicamente imperiosa.
Quanto à questão dos antecedentes criminas do arguido:
A alegação do arguido segundo a qual os seus antecedentes criminais são antigos, irrelevantes ou desconexos do actual contexto de imputação penal merece uma análise jurídica rigorosa.
Vejamos:
No processo penal, os antecedentes criminais não são elementos neutros ou meramente históricos; constituem factores prognósticos determinantes na avaliação da personalidade do agente, da sua perigosidade concreta e da probabilidade de continuação da actividade criminosa, nos termos do artigo 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP). Negar esse valor é descontextualizar a função preventiva das medidas de coacção e comprometer a tutela de bens jurídicos fundamentais.
As medidas de coacção, nomeadamente a prisão preventiva, são instrumentos de garantia do normal desenvolvimento do processo e da prevenção de novos crimes (artigos 191.º a 204.º do CPP). A sua aplicação exige uma análise prospectiva do comportamento do arguido, fundada na realidade do processo e na história de vida penal do mesmo.
O arguido argumenta que os antecedentes do arguido são antigos, muitos com mais de 10 anos, e referem-se essencialmente a crimes rodoviários e patrimoniais, não existindo condenações por violência doméstica. Tal afirmação, embora parcialmente verdadeira, omite intencionalmente a existência de condenações por crimes violentos contra pessoas, como o crime de ofensa à integridade física qualificada e o crime de roubo, que não podem ser desconsiderados na avaliação da sua personalidade. O argumento temporal (crimes antigos) é refutável: a última condenação do arguido foi por factos de 2020 — portanto recente — e inscreve-se num padrão de comportamento que se prolonga por mais de duas décadas, sem demonstração concreta de ressocialização.
A qualidade dos crimes anteriores — mais do que a sua quantidade ou antiguidade — é o factor preponderante na avaliação do perigo de reiteração.
A prática reiterada de crimes violentos, ainda que com alguma distância temporal, revela padrão de comportamento hostil à ordem jurídica e insensível à censura penal. O arguido foi condenado por crimes com bens jurídicos sensíveis — integridade física, propriedade e segurança rodoviária — e nunca se demonstrou que tenha interiorizado os valores normativos protegidos pelo direito penal, o que agrava o risco que representa em liberdade.
Mais:
O arguido argumenta de que, nos últimos anos, constituiu família, tem um emprego fixo e não voltou a delinquir, o que evidenciaria a sua ressocialização. Porém, esta afirmação não encontra respaldo nos factos do processo. O comportamento que fundamenta a actual indiciação — violência reiterada, controlo emocional nulo, desrespeito pela companheira e agressões físicas — demonstra a continuidade da conduta criminosa, mesmo em contexto familiar, destruindo qualquer presunção de reinserção. A ressocialização é um fenómeno que se demonstra com actos concretos de vida em sociedade conforme ao direito, e não com declarações argumentativas que desmentem a realidade probatória/indiciária.
A leitura fragmentada dos antecedentes, como pretende o arguido — isolando crimes antigos ou desvalorizando os recentes — contraria o dever de prognose judicial cautelar imposto pelo artigo 204.º do CPP.
A prisão preventiva exige que a personalidade do arguido revele insensibilidade à sanção penal e propensão a persistir na actividade criminosa. O arguido foi condenado por diversos crimes ao longo dos anos, com pena de prisão efectiva em alguns casos, tendo demonstrado incapacidade de adaptação social e legal mesmo após cumprimento de penas. A sua actuação recente, fortemente indiciada, marcada por agressões físicas, ameaças e coacções à companheira, revela consistência e continuidade da actividade criminal, e não evolução para uma postura socialmente adequada. O passado criminal do arguido, longe de ser irrelevante, é chave na construção da sua actual perigosidade penal e social.
A argumentação segundo a qual os antecedentes dizem respeito a crimes contra o património ou infracções rodoviárias é juridicamente irrelevante quando o tribunal avalia a personalidade e o grau de desrespeito do arguido pelas normas penais. Mesmo crimes patrimoniais e rodoviários revelam padrões de impulsividade, indiferença pela ordem jurídica e desconsideração pelas consequências sociais dos actos, que são traços compatíveis com a conduta actual imputada. A exigência de identidade tipológica para justificar prisão preventiva não tem acolhimento legal ou doutrinário, bastando a demonstração de padrão reiterado de ilícitos com violação de bens jurídicos relevantes.
O artigo 152.º do Código Penal reconhece expressamente o especial dever de protecção do Estado relativamente às vítimas de violência doméstica. Esse dever impõe uma leitura das medidas de coacção à luz da necessidade de prevenir novas agressões, mesmo que não tenham ainda ocorrido, bastando o risco fundado de que o agressor, em liberdade, venha a reincidir. Os antecedentes criminais alimentam essa avaliação ex ante, permitindo-nos ponderar se a liberdade do arguido constitui risco real. Recusar tal valoração é desproteger a vítima e esvaziar a eficácia preventiva do processo penal.
Em suma, a análise técnico-jurídica do perfil do arguido, com base nos seus antecedentes, confirma que a decisão do tribunal a quo ao aplicar a prisão preventiva se encontra solidamente fundamentada. Os crimes anteriores, longe de serem irrelevantes, demonstram continuidade criminal, insensibilidade à norma penal e perigosidade concreta, elementos previstos expressamente na alínea c) do artigo 204.º do CPP. O argumento de que são antigos ou desprovidos de relevância tipológica não resiste a uma leitura coerente da dogmática penal. A prisão preventiva impõe-se, pois, como única medida capaz de garantir a segurança da vítima, prevenir a continuidade criminosa e assegurar a dignidade do processo penal. A tese do arguido, ao pretender esvaziar o conteúdo valorativo dos antecedentes, ignora a própria lógica da justiça cautelar.
Uma última palavra quanto à argumentação de que a prova indiciária existente não é suficientemente forte para legitimar a medida de prisão preventiva.
Tal alegação não resiste à análise objectiva do acervo probatório reunido até ao momento da aplicação da medida de coacção, designadamente os elementos constantes do auto de interrogatório judicial, os depoimentos da vítima, os meios documentais e a própria postura processual do arguido.
Nos termos do artigo 202.º, n.º 1 do CPP, a prisão preventiva exige a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punido com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
No caso concreto, a prova indiciária revela-se sólida, coerente e plúrima quanto às fontes.
Vejamos:
i. As declarações prestadas pela vítima BB, constantes dos autos (fls. 9 e 79), são internamente consistentes, reiteradas ao longo do tempo e corroboradas por elementos objectivos.
ii. As fotografias das lesões físicas sofridas pela ofendida, juntas aos autos (fls. 37 a 41), confirmam visivelmente os ferimentos compatíveis com agressões físicas intensas e recentes.
iii. A documentação clínica hospitalar (fls. 94 e 95) descreve os mesmos ferimentos, com identificação do mecanismo provável de lesão (golpes e impactos na região facial e cervical).
iv. Os prints de mensagens enviadas pelo arguido, de conteúdo intimidatório e degradante (fls. 88 a 91), corroboram o padrão de violência psicológica relatado.
v. O próprio arguido, em sede de interrogatório judicial, admitiu parcialmente os factos, reconhecendo a existência de discussões intensas, ofensas verbais e tensão emocional com a companheira, o que, conjugado com a restante prova, reforça a verosimilhança dos factos alegados.
A tentativa do arguido de descredibilizar a prova fortemente indiciária, invocando alegações de simulação de ferimentos por parte da vítima ou a ausência de vestígios hemáticos no anel alegadamente utilizado na agressão, é inteiramente desconstruída pelo tempo decorrido entre a agressão e a apreensão do objecto, bem como pela incompatibilidade lógica de auto-agressões de tal natureza em contexto de violência familiar continuada.
Conclui-se, portanto, que a prova indiciária existente é não só suficiente, mas robusta e estruturalmente adequada à imposição da medida de coacção mais gravosa, nos termos do artigo 204.º do CPP. A alegação de falta de indícios carece de fundamento factual e jurídico, e traduz-se numa tentativa de deslocar a apreciação do juízo de probabilidade exigido à fase de julgamento, distorcendo a fase probatória própria da fase de inquérito.
Neste quadro, a medida de prisão preventiva encontra respaldo não apenas na verificação das exigências cautelares, mas também na existência de indícios fortes, plurais e corroborados, suficientes para justificar a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva.
Pelo exposto, improcede in totum o recurso do arguido.
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V-DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 (quatro) Ucs..
Dê imediato conhecimento do teor deste acórdão ao tribunal a quo, com indicação de que se não mostra ainda transitado em julgado.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 21-05-2025
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).
Ortografia conforme pré-acordo
Alfredo Costa
Francisco Henriques
Cristina Isabel Henriques
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1. 1- AA e BB iniciaram um relacionamento amoroso há 5 anos, no dia ...-...-2020, começando a viver juntos em meados de ... como marido e mulher na residência do arguido na ....
  2- Desse relacionamento amoroso nasceram dois filhos, CC, nascido em ...-...-2022, actualmente com 2 anos, e DD, nascida em ...-...-2023, actualmente com 1 ano de idade.
  3- O arguido é consumidor de bebidas alcoólicas e de haxixe (pólen e erva), que consome todos os dias, alterando o seu comportamento, tornando-se agressivo com a companheira dentro de casa e em frente aos filhos.
  4- Assim, desde meados de 2022, no decurso de discussões motivadas por ciúmes, o arguido insulta frequentemente BB com as expressões “filha da puta, porca, vaca, puta, és má mãe, falsa mentira, és igual à mãe da minha outra filha, nojenta”, proferidas tanto presencialmente, dentro de casa, com por telefonema ou mensagem telefónica, constantemente rebaixando a companheira.
  5- Durante a relação o arguido não permitia que BB tivesse relações de amizade com outras pessoas, insultando-a se a mesma falava com alguém amigo ou da família, dizendo-lhe “porca, és uma puta, vaca”, acabando a vítima por isolar-se socialmente para evitar os maus tratos do companheiro.
  6- Para além disso, frequentemente o arguido, sob o efeito do álcool ou revoltado por estar com falta dos estupefacientes que consome diariamente, começa a discutir com a vítima e parte mobiliário doméstico aos murros e pontapés em ataques de fúria, tendo já quebrado todas as portas da residência ao pontapé.
  7- A partir de meados de 2024, no decurso de discussões cada vez mais acesas e frequentes, o arguido passou também a ameaçar BB, dizendo-lhe dentro de casa e em frente aos filhos “vou-te rebentar toda, se fizeres queixa estás tramada comigo, vou atrás de ti, se continuares dentro desta casa vou-te fazer a vida num inferno, vou-te fazer a vida negra”, causando muito medo na vítima.
  8- Em algumas ocasiões, para pressionar a vítima o arguido ameaçava suicidar-se, dizendo “qualquer dia vou-me mandar pela janela”, efectivamente constrangendo BB a manter-se nesta relação em que era maltratada.
  9- Desde inícios de 2022 que o arguido passou também a agredir a vítima no decurso de discussões mais intensas dentro de casa, com murros na cara e com empurrões, provocando-lhe lesões e ferimentos, o que ocorreu pelo menos em seis ocasiões.
  10- A primeira agressão ocorreu em Fevereiro de 2022, ocasião em que o arguido, embriagado e sob o efeito de estupefacientes que estivera a consumir, começou a discutir com BB, foi atrás dela para o quarto e a empurrou várias vezes com as mãos contra o peito, fazendo-a cair no chão.
  11- Nesse momento, quando BB se tenta levantar do chão, o arguido agarrou a cabeça da vítima com uma das mãos e projectou-a contra a parede, desferindo-lhe de seguida uma chapada na cara, causando-lhe dores.
  12- Noutra ocasião, em meados de ..., após terem ido jantar ao restaurante Marginalíssimo em ..., em que o arguido ingeriu muitas bebidas alcoólicas, ao chegarem a casa, o arguido embriagado começou a insultar a vítima tentando tirar-lhe das mãos o filho EE que a ofendida tinha ao colo.
  13- Nessa ocasião, o arguido disse a BB “és uma grandessíssima puta”, a qual continuava com o filho bebé ao colo, não o entregando ao arguido dado o estado de embriaguez e agressividade em que se encontrava.
  14- Então, o arguido disse à vítima “estás a dizer que não sei cuidar do meu filho?”, agarrou no bebé e sentou-o numa cadeirinha, partindo de imediato para a agressão, agarrou a cabeça de BB com uma das mãos e projectou-a contra uma parede, provocando-lhe um edema na parte lateral direita da cabeça.
  15- No dia 11-11-2023, pouco tempo após o nascimento da filha mais nova do casal, o arguido embriagado e sob o efeito dos estupefacientes que estivera a consumir, começou a implicar com BB por causa de uma publicação que a mesma fizera na rede social Instagram e por causa das amizades dela nas redes sociais, chamando-a de “puta”, exigindo-lhe que apagasse essas amizades.
  16- Quando BB respondeu que o arguido não era seu pai e não a podia exigir excluir amigos das suas redes sociais, o arguido exaltou-se ainda mais e, momentos depois, quando a vítima estava a dar de mamar à filha recém nascida, sentada numa cadeira do quarto, o arguido dirigiu-se à vítima, agarrou-lhe o pescoço com força com a mão direita e empurrou-lhe a cabeça para trás, fazendo-a embater com a nuca contra a parede, causando-lhe muitas dores.
  17- De seguida, prevendo que o arguido a iria a continuar a agredir, BB colocou a filha bebé no berço, tendo o arguido nesse momento agarrado a vítima pelos cabelos, puxando-os com força, fazendo-a cair para trás, de costas, no chão.
  18- A vítima levantou-se, mas o arguido voltou a empurrá-la, com ambas as mãos contra os ombros, fazendo-a cair novamente desamparada no chão, batendo com o braço direito numa prateleira, sofrendo um corte no braço, batendo com a anca nos pés da cama e com a cabeça no chão, sofrendo dores e hematomas com essa queda.
  19- Como o parto da sua filha havia sido há poucas semanas, e como começou a verter um líquido da vagina, BB deslocou-se à casa de banho preocupada.
  20- Enquanto a vítima estava na casa de banho a verificar o que se passava consigo, o arguido agrediu-a novamente, desferindo-lhe um soco na cara com tal força que lhe deixou o nariz imediatamente a sangrar profusamente.
  21- Nesse momento, BB pôs uma toalha na cara para estancar a hemorragia e pediu ao arguido para telefonar aos bombeiros a pedir ajuda, tendo este recusado, com receio de ter problemas com as autoridades.
  22- Nesse dia 11-11-2023, o arguido deixou a ofendida no ..., onde foram tratadas as lesões sofridas, tendo a vítima dito no hospital que tais lesões resultaram de uma queda, para não incriminar o arguido.
  23- Numa manhã, em Outubro de 2024, em que a vítima tinha de sair de casa para ir trabalhar (no hipermercado Continente no ...), BB acordou o arguido e pediu-lhe para a levar a ela e aos filhos a casa da mãe da vítima, que ficaria a cuidar das crianças, seguindo depois a vítima para o trabalho.
  24- Nesse momento, irritado por ter sido acordado pela vítima, o arguido recusou-se a levar a vítima e as crianças de carro, como lhe era pedido e começou a discutir com a companheira e a insultá-la, dizendo-lhe “tu não tens nada que me acordar, tu não vais trabalhar, tu vais é ter com os teus amantes, sua porca, sua puta”.
  25- Preocupada em não chegar atrasada ao trabalho, BB chamou um táxi para a levar a ela e aos filhos aos locais pretendidos, todavia o arguido não a deixou sair de casa, trancou as portas e guardou as chaves, impedindo a vítima de sair e de ir trabalhar nesse dia, prendendo-a dentro da habitação.
  26- De seguida o arguido apoderou-se do telemóvel da vítima que reteve consigo, impedindo-a avisar no trabalho que teria de faltar e de pedir ajuda, altura em que BB, desesperada, e presa foi chamar por socorro à janela do prédio.
  27- Nesse dia de Outubro de 2024, BB só conseguiu sair de casa horas depois, quando o arguido se dignou a abrir a porta e sair, faltando ao trabalho.
  28- Numa ocasião, em Janeiro de 2025, em que a vítima saturada dos maus tratos do arguido disse que ia chamar a polícia, o arguido ameaçou-a com as expressões “se chamas a polícia eu rebento-te a boca toda”, inibindo-a de o fazer.
  29- No dia 12-02-2025, pelas 22:00, BB telefonou ao arguido, que estava na rua com o filho EE, pedindo-lhe para vir para casa pois era muito tarde para estar com o menino na rua, tendo o arguido retorquido em tom agressivo “não tens nada que me chamar enquanto eu estou a tratar de negócios”.
  30- Momentos depois o arguido entrou em casa embriagado e começou a discutir com a vítima na sala de estar, com os dois filhos menores presentes, insultando-a repetidamente aos gritos com as expressões “és uma criança, não sabes ser mulher, não sabes tomar conta dos nossos filhos, tens de ir para casa da tua mãe para cuidar dos teus filhos, filha da puta, porca”.
  31- Saturada da discussão, a vítima disse ao arguido que não queria mais conversar e virou-lhe as costas, dirigindo-se para o quarto para não estar a pé dele.
  32- Nesse instante o arguido atacou a vítima pelas costas, agarrou-a com força pela parte de trás do pescoço e empurrou a cabeça dela contra a parede do quarto.
  33- De seguida, o arguido agarrou com a mão direita a face de BB, arranhando-a na cara, e deu-lhe um golpe na cara com essa mão, que tinha num dedo um anel grande de metal dourado, atingindo-a com esse anel metálico na face, por cima do lábio superior, provocando-lhe um corte que começou a sangrar.
  34- Após esta agressão, a vítima pediu a arguido embriagado para sair de casa e que se não saísse ela iria chamar a polícia, tendo o arguido retorquido agressivo “é melhor saíres tu, senão faço a tua vida num inferno”.
  35- Então a vítima telefonou à sua irmã, que alertou as autoridades para o local, e o arguido telefonou à sua mãe, dizendo em voz alta para a vítima ouvir, que BB “não vai para a cama comigo, é uma porca”, saindo de casa.
  36- Ao praticar os factos supra descritos, agredindo BB em várias ocasiões, com socos na cara, pancadas com a cabeça contra as paredes, empurrões para o chão e contra os móveis, provocando-lhe ferimentos com sangramento, ao insultar e ameaçar constantemente a vítima com as expressões enunciadas, no interior da habitação em frente aos dois filhos menores, ao destruir mobiliário doméstico com murros e pontapés, ao retê-la presa em casa por várias horas, o arguido agiu com o propósito concretizado de ofender, intimidar, atormentar e molestar a saúde física e mental da sua companheira, mãe dos seus filhos, pessoa por quem tinha um dever especial de respeito, causando-lhe lesões corporais, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu realizar.
  37- Em toda a actuação supra descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.