Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA COELHO | ||
Descritores: | CASAMENTO PROCURAÇÃO ANULAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/22/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. A interpretação restritiva do art. 1620º, nº 1, do CC, no sentido de o casamento por procuração só ser admissível quando os nubentes se encontrem longe um do outro, não tendo facilidade, ou mesmo possibilidade, de se reunirem no mesmo lugar para a realização do acto, traduzir-se-ia na exigência de um novo requisito da procuração ad nuptias, para além dos referidos no nº 2 daquele preceito, que, em lado algum do CC, ou do CRC, encontra sustentação. 2. Modalidades do casamento são o casamento civil e o casamento católico. 3. O casamento urgente não é mais uma modalidade de casamento, como que resulta do disposto no art. 1590º do CC, tendo natureza menos exigente em termos de formalidades, sendo os requisitos formais da cerimónia (art. 156º do CRC) adequados ao facto de não ter intervenção do funcionário do registo. 4. Quando no art. 1640º do CC se estabelece a legitimidade para a acção de anulação fundada na falta de vontade, faz-se uma distinção entre a “anulação por simulação”, caso em que a acção “pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento” (nº 1), e a anulação “nos restantes casos de falta de vontade”, em que a acção “só pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou; mas podem prosseguir nela os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa”. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO Em 14.05.2012, JM…, IM…, e NM… intentaram contra MF…, acção de declaração de inexistência de casamento, sob a forma de processo ordinário, pedindo que: a) seja declarada a inexistência de casamento celebrado entre JMB… e a R., registado sob o assento nº … de 2012, com todos os legais efeitos e, consequentemente, b) se ordene o cancelamento do registo do assento de casamento nº … de 2012, nos termos do art. 91º/1-b) do Código de Registo Civil; e, como pedido subsidiário, c) seja anulado o casamento celebrado entre JMB… e a R., registado sob o assento nº … de 2012, por falta de vontade, nos termos do art.1635º, al. a) do CC, com todos os efeitos legais. A fundamentar o peticionado, alegaram em síntese: Os AA. são filhos de JMB… de Oliveira, falecido no dia ….4.2012, tendo-lhes sido reconhecida a qualidade de herdeiros deste por escritura de habilitação de 13.4.2012. No dia do falecimento do pai, os AA. tomaram conhecimento do casamento contraído entre aquele e a R., o que os deixou, bem como a familiares e amigos que conviviam com o falecido, surpresos por ser contraditório com a vontade que expressava em vida de nunca contrair casamento com a R., afirmando sempre, de forma clara, que os AA. seriam os seus únicos e exclusivos herdeiros e que ficaria a cargo destes a gestão do seu património, constituído, na maior parte, por 2 sociedades, nas quais o falecido detinha participações sociais significativas e exercia cargos de administração. De acordo com o assento de casamento nº … de 2012, o casamento, civil, sob o regime imperativo de separação de bens, foi celebrado no dia 19.3.2012, pelas 16h40, por procuração, tendo o pai dos AA. sido representado pelo Sr. Dr. JF…, sendo que, nesse dia, o pai dos AA. estava hospitalizado, num estado de saúde muito fragilizado e debilitado. Em Agosto de 2011, havia sido diagnosticado ao pai dos AA. um carcinoma na bexiga, o que determinou que fosse operado em Setembro de 2011, piorando o seu estado de saúde em Março de 2012, passando a estar permanentemente sob efeito de sedativos, e embora tivesse alguns períodos de consciência, a verdade é que à data do alegado casamento não estava no pleno gozo das suas faculdades mentais, o que a R. bem sabia. A procuração ad nuptias não observa as formalidades legais, a assinatura aposta não foi presencialmente reconhecida, e existem fundadas dúvidas acerca do momento de aposição daquela, levando a crer que o texto pode ter sido inscrito a posteriori. O casamento foi realizado na CRC de Lisboa, nunca tendo a Conservadora contactado directamente com o pai dos AA. A indicação na procuração ad nuptias de que o casamento a celebrar será um casamento civil urgente invalida o casamento civil comum celebrado com base em tal procuração. Citada, a R. contestou, por impugnação, pugnando pela improcedência da acção. Foi proferido despacho a convidar os AA. a apresentar nova PI aperfeiçoada, o que estes fizeram, respondendo a R. Foi proferido despacho que saneou o processo, identificou os factos provados e elencou os temas da prova. Procedeu-se a julgamento, vindo, em 30.11.2017, a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a R. de todos os pedidos. Não se conformando com a decisão, apelaram os AA., tendo, no final das alegações, formulado as seguintes conclusões, que, em parte [1], se reproduzem: 1. O presente recurso de apelação interposto pelos ora Recorrentes tem por objecto a sentença proferida nos autos a fls. (…) e, bem assim, a reapreciação da prova testemunhal produzida e gravada em audiência de julgamento. São manifestos os vícios de que enferma a sentença recorrida, que julgou a acção instaurada pelos Recorrentes improcedente e absolveu a R., aqui Recorrida, dos pedidos contra si formulados. 2. A prova produzida nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, impunha decisão diferente quanto à matéria de facto, nomeadamente no que concerne às respostas dadas pelo Tribunal a quo ao 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º Temas da Prova. 3. Entendeu o Douto Tribunal a quo julgar como não provado que o Exmo. Senhor JMB… não se encontrava em condições de compreender com clareza o teor dos escritos dos documentos e que as procurações para casamento não haviam sido ditadas nem entregues pelo Exmo. Senhor JMB… nos termos descritos nos respectivos Termos de Autenticação justificando tal decisão, de forma genérica, nos termos que se enunciam: “A matéria de facto julgada não provada em II- 1- 1.2.- 2º) a 6º) dos temas de prova: baseou-se no conjunto da prova produzida, apreciada criticamente e lida de acordo com os critérios da livre apreciação da prova, em face das regras da experiência e da normalidade (art.607º/5 do Código de Processo Civil)”. 4. A prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento impunha uma decisão diversa daquela que foi tomada pelo Douto Tribunal a quo porquanto foi comum a todas as testemunhas os relatos do estado em que encontraram o Exmo. Senhor JMB… nas semanas que antecederam o seu falecimento e durante o período em que esteve internado no hospital da Luz e que coincidiram com o momento em que terão sido subscritas as Procurações para casamento. 5. As testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento relataram, de forma coerente e com conhecimento directo dos factos, o estado de extremo cansaço e desinteresse em que se encontrava o Exmo. Senhor JMB…, sobre quem relataram não ter sequer capacidade para falar muito ou interagir com quem o visitava, estando prostrado e não indo a interacção com as visitas diárias muito além dos cumprimentos à chegada e no momento da despedida. 6. Os relatos das testemunhas são prova cabal da incapacidade e impossibilidade em que o estado em que se encontrava o Exmo. Senhor JMB… o vetava, sendo que, à luz das regras da experiência e da normalidade, outra conclusão não se alcança senão a de que o Exmo. Senhor JMB… não estava na capacidade de ditar, ele próprio, os exactos termos que constam das sucessivas procurações para casamento que terá alegadamente assinado; muito menos para proceder à sua entrega nos exactos termos que constam dos Termos de Autenticação que acompanharam cada uma das procurações; e sobretudo para compreender os termos, consequências e efeitos dos documentos que lhe foram apresentados. 7. A testemunha, Exmo. Senhor CA…, … 8. A testemunha, Exmo. Senhor AG…, … 9. Igualmente o depoimento prestado pela testemunha, Exma. Senhora HI…, … 10. No mesmo sentido, os factos declarados pela testemunha Exmo. Senhor FC…, … 11. Os depoimentos das testemunhas não podiam ser mais claros nem coerentes, tratando-se aqui – ao contrário do que refere a Meritíssima Juiz a quo na sentença recorrida, de depoimentos directos, fundados em factos que as testemunhas presenciaram e vivenciaram e que denotam o estado de degradação crescente em que se encontrava o Exmo. Senhor JMB…, fruto da doença de que padecia e que viria a ditar o seu falecimento, treze dias após a data da celebração do casamento por procuração que se contesta na presente acção. 12. E bastarão as invocadas regras da experiência e o critério da normalidade para facilmente concluir que uma pessoa num estado de doença agravado como aquele em que se encontrava o Exmo. Senhor JMB… jamais estaria em condições de ditar e entregar as Procurações para casamento nos termos que constam dos respectivos Termos de Autenticação. Aliás, se assim fosse tampouco se perceberia o teor dos textos apostos nas denominadas Procurações para casamento! 13. A extraordinária coincidência decorrente da suposta entrega em dias interpolados de sucessivas e corrigidas Procurações para casamento exactamente à mesma hora indiciam, por si só, que a entrega das Procurações não teve lugar nos termos que constam dos respectivos Termos de Autenticação! Nem mesmo as testemunhas arroladas pela Ré – e que, no entender do Julgador a quo traduzem depoimentos directos sobre factos que presenciaram – referiram ter estado presentes nos exactos momentos em que o Exmo. Senhor JMB… terá assinado as supostas Procurações para casamento e muito menos referiram ter estado presentes aquando da entrega, pelo Exmo. Senhor JMB…, das procurações ao signatário dos Termos de Autenticação. 14. A assinatura alegadamente aposta pelo Exmo. Senhor JMB… não foi presencialmente reconhecida, não sendo possível saber quando terá a mesma sido aposta no documento ou se o texto dactilografado naquela procuração nele foi inserido a posteriori, existindo fundadas razões para colocar tal hipótese em discussão em face de toda a prova carreada para os autos. 15. A reapreciação da prova gravada impõe uma alteração da decisão da matéria de facto que julgue como Provados os factos relativos aos 2.º, 3.º e 4.º Temas da Prova, respectivamente. 16. Também quanto à questão de saber se os textos apostos nas procurações para casamento teriam sido acordados e cabalmente compreendidos pelo Exmo. Senhor JMB… respondeu o Tribunal a quo de forma positiva, julgando como não provado o 5.º Tema da Prova – mal! 17. Como pôde o Tribunal considerar que os textos apostos nas procurações para casamento haviam sido acordados e cabalmente compreendidos pelo Exmo. Senhor JMB… quando nenhuma testemunha presenciou a suposta outorga e entrega das procurações??? Sabemos, e sabia-o o Tribunal a quo, que o Exmo. Senhor JMB… não era um jurista experienciado que pudesse, da sua autoria, ditar mas nem mesmo acordar nos termos das procurações. Por outro lado, a ser assim, e sendo as procurações para casamento supostamente outorgadas inválidas, a conclusão não pode ser senão a de que o Exmo. Senhor JMB… não queria efectivamente casar com a Recorrida – o que corresponde, enfim, à verdade. 18. Nenhuma das testemunhas arroladas pela Recorrida prestou depoimento directo dos factos sob julgamento e isso mesmo resulta das declarações por ela prestadas. Nenhuma das testemunhas arroladas pela Ré atestou ter estado presente no momento em que o Exmo. Senhor JMB… ditou, acordou ou mandou escrever os termos das procurações para casamento. Nenhuma das testemunhas arroladas pela Ré atestou ter estado presente no momento em que o Exmo. Senhor JMB… entregou as procurações para casamento e supostamente declarou que o teor das mesmas correspondia inteiramente à sua vontade. 19. O que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo fez foi preterir os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelos Autores e que conheciam o de cuius de uma vida inteira de convivência – sem razão, e porque sim, dado que nenhuma das testemunhas arroladas pelas Partes prestou um depoimento directo sobre os factos em julgamento; foi sobrevalorizar os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Ré e que conheciam o de cuius de um contexto meramente profissional – sem razão, e porque sim, dado que nenhuma dessas testemunhas prestou um depoimento directo sobre os factos em julgamento; foi sobrevalorizar os depoimentos sobre factos instrumentais e indirectos em relação aos factos essenciais em julgamento, com base nos quais, as testemunhas arroladas pela Ré presumiram conclusivamente que o de cuius se quis casar e, como tal, teve condições de compreender as procurações para casamento outorgadas e pôde acordar com as mesmas e tê-las entregue. 20. A prova testemunhal produzida nos autos impunha, como impõe, uma decisão diferente, que julgasse como Provado o 5.º Tema da Prova no sentido de concluir que o Exmo. Senhor JMB… não acordou nem compreendeu cabalmente os textos apostos nas procurações para casamento. 21. A testemunha, Exmo. Senhor CA…, … 22. O próprio Procurador que celebrou o casamento em representação do Exmo. Senhor JMB…, Exmo. Senhor Doutor JF…, …, confessou não ter lido ou tampouco garantido que o texto aposto nas procurações para casamento haviam sido cabalmente compreendidas pelo de cuius, tendo declarado: … 23. A testemunha, Exmo. Senhor Padre AP…, …, é, porventura, a prova última da falta de consciência ou cabal compreensão e acordo dos termos apostos nas procurações para casamento por parte do Exmo. Senhor JMB… – tendo este sido um depoimento directo, coerente e desinteressado do resultado da acção: … 24. O depoimento prestado pela testemunha, Exmo. Senhor Padre AP…, relatando factos ocorridos nas Residências da Luz e, portanto, após a data de celebração do casamento, não podia ser mais claro quanto à falta de consciência do Exmo. Senhor JMB… em relação ao casamento. Também o Procurador que o casou, Exmo. Senhor Doutor JF…, confessou sem margem para dúvidas que não cuidou de falar com o seu Constituinte após a celebração do casamento e nem mesmo antes, tendo referido que não confirmou o acordo ou cabal compreensão dos termos apostos nas procurações para casamento por parte do Exmo. Senhor JM…. Sendo certo que a maior vulnerabilidade do Exmo. Senhor JM… em virtude do detrimento galopante do seu estado de saúde o tornaria indiscutivelmente mais susceptível a uma eventual manipulação da sua vontade. 25. A resposta ao 5.º Tema da Prova dada pelo Douto Tribunal a quo é merecedora de censura, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que julgue como Provado o 5.º Tema da Prova e conclua, consequentemente, que o Exmo. Senhor JMB… não acordou nem compreendeu cabalmente os termos apostos nas procurações para casamento. 26. De forma inexplicável – considerando a prova testemunhal produzida nos presentes autos – veio o Douto Tribunal a quo julgar como não provada a vontade sempre manifestada pelo Exmo. Senhor JMB… de não querer voltar a casar. A resposta dada a este Tema da Prova mal se compreende considerando que as testemunhas arroladas pelos Autores conheciam o de cuius de toda uma vida, partilhando laços familiares e amizades de larguíssimos anos e que, como tal, conheciam de perto a pessoa, o carácter e a vontade manifestada pelo Exmo. Senhor JMB…. Sobretudo quando considerando que a questão aqui em causa respeita à vontade manifestada e expressa pelo de cuiús e que as testemunhas ouvidas em juízo prestaram um depoimento directo sobre os factos em questão. 27. A testemunha, Exmo. Senhor AG…, … 28. Neste sentido também o depoimento prestado pela testemunha, Exma. Senhora MFB…, … 29. O Exmo. Senhor JMB… sempre expressou junto dos seus familiares e amigos, daqueles que bem o conheciam, que nunca casaria com a Ré em segundas núpcias e que os seus únicos herdeiros seriam os seus três filhos, ora Recorrentes. É, no mínimo, estranho que nenhum dos familiares ou amigos do Exmo. Senhor JMB…, muitos deles visitas diárias ou quase diárias no período em que esteve hospitalizado, tenha sido informado sequer de que este havia celebrado casamento com a Ré, ainda que, por absurdo, não tivessem tido conhecimento anterior da eventual pretensão do de cuius nesse sentido. Aliás, tal ocultação – e apelando aqui às regras da experiência e da normalidade que o Douto Tribunal a quo invoca para fundamentar a sua decisão quanto à matéria de facto – seria, ela própria, contrária ao propósito de contrair casamento por parte do Exmo. Senhor JMB… – até mesmo numa óptica de protecção da aqui Recorrida. 30. No que concretamente respeita ao 6.º Tema da Prova, resulta assaz provado – em face da prova carreada aos autos – que a vontade manifestada pelo Exmo. Senhor JMB… foi sempre a de não pretender casar em segundas núpcias, impondo-se assim a revogação da decisão tomada pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que julgue como Provado o facto respeitante ao 6.º Tema da Prova, o que se requer. 31. Também na subsunção dos factos ao Direito aplicável mal andou o Douto Tribunal a quo, ao não considerar verificadas as causas da inexistência do casamento fundadas no uso impróprio do instituto do casamento por procuração e, sobretudo, na invalidade da procuração para casamento com base na qual foi celebrado o casamento sub judice. 32. Conclui o Julgador a quo, a este propósito, que: “os autores não lograram provar a falsidade da procuração para casamento de 16 de Março de 2012, corrigida a 19 de Março de 2012, autenticada por advogado, tendo em conta que não provaram que na procuração foi mencionada uma outorga de mandato para celebração de casamento não declarada pelo mandante falecido” e que “não lograram provar que o falecido não teve consciência de outorga da procuração quando subscreveu o documento com essa declaração”. 33. Considerando a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida nesta sede pelos Recorrentes, é este fundamento bastante para afastar a conclusão do Douto Tribunal a quo quanto à falta da vontade do nubente falecido, causadora de inexistência do casamento nos termos do disposto no artigo 1628º, alínea c) do Código Civil. 34. Da prova carreada aos autos, é por demais evidente a falta de vontade do Exmo. Senhor JMB… em contrair casamento com a Recorrida – falta de vontade essa decorrente das circunstâncias de não terem sido os termos apostos na procuração para casamento ditados, acordados ou cabalmente compreendidos pelo de cuius e, bem assim, de não ter sido a procuração para casamento entregue pelo de cuius nos termos constantes do respectivo Termo de Autenticação. 35. Nos termos do disposto no artigo 1577º do Código Civil, o casamento é definido como o “contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. O núcleo essencial do casamento não é senão a manifestação da vontade dos nubentes em contrair casamento, sem o qual o casamento é juridicamente inexistente. 36. O consentimento deve ser pessoal, devendo ser expresso, em princípio, pessoalmente, pelos nubentes, no acto da celebração. Aliás, em face do disposto no artigo 1619º do Código Civil: “A vontade dos nubentes só é relevante quando manifestada no próprio acto da celebração do casamento”. Em derrogação deste princípio geral do consentimento pessoal expresso no próprio acto da celebração, a lei admite a celebração do casamento por procuração – que constitui, como tal, uma excepção ao princípio ora enunciado. 37. O casamento por procuração encontra-se estabelecido, respectivamente, nos artigos 1620º do Código Civil e 44º do Código de Registo Civil. 38. O casamento foi celebrado por procuração e não presencialmente, quando ambos os nubentes se encontravam em Lisboa, bastando, para tal, solicitar a deslocação da Exma. Senhora Conservadora ao Hospital para celebrar o casamento. 39. A verdade inelutável – que o Douto Tribunal a quo insistiu em ignorar e descurar – é que a celebração do casamento por procuração tem de ser vista como uma excepção, e deve ser avaliada e observada como tal, exigindo do Conservador de Registo Civil especiais deveres de diligência que, in casu, não foram, claramente, observados. 40. É público e notório o facto de a Exma. Senhora Conservadora que lavrou o assento de casamento sub judicio não ter observado a diligência que se lhe exigia para a celebração de um casamento por procuração nas circunstâncias em que o casamento teve lugar, nomeadamente por inexistirem razões válidas e legítimas que justificassem a celebração de um casamento por procuração quando ambos os nubentes se encontravam no mesmo local e não existindo qualquer razão para que o casamento não fosse celebrado presencialmente. 41. A prova carreada aos autos impõe forçosamente concluir que: i) o Exmo. Senhor JMB… não teve consciência da outorga da procuração para casamento quando a subscreveu; ii) que o Exmo. Senhor JMB… não ditou, não acordou nem compreendeu cabalmente o teor das procurações para casamento; iii) que o Exmo. Senhor JMB… não entregou as procurações nos termos constantes dos respectivos Termos de Autenticação; que o Exmo. Senhor JMB… não teve consciência de ter subscrito nem a declaração para casamento nem as sucessivas procurações para casamento, não resultando provado nos autos sequer se o texto das procurações lhe foi aposto em momento posterior a sua assinatura e se do teor das mesmas foi dado conta ao de cuius. 42. Em face da prova produzida e das conclusões a que conduz, deveria o Douto Tribunal a quo julgar verificada a causa de inexistência do casamento prevista na alínea c) do artigo 1628º do Código Civil e, consequentemente, deveria o Douto Tribunal a quo ter declarado a inexistência do casamento e ordenado o consequente cancelamento do registo, com todas as legais consequências, o que ora se requer junto deste Venerando Tribunal mediante a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que, subsumindo os factos ao Direito aplicável conclua, como o impõe a lei, pela inexistência do casamento sub judice, com todas as legais consequências. 43. Refere o Julgador a quo: “importa apreciar se ocorreu uma inadmissibilidade da intervenção de procurador na declaração para casamento de duas pessoas residentes na mesma cidade, em face da interpretação restritiva do art. 1620º do Código Civil, mediante os argumentos histórico, sistemático e teleológico”. Ora, e salvo o devido respeito, a própria premissa de que parte o Tribunal a quo para avaliar esta questão é muito limitada e aquém da alegação e apreciação jurídica levada a cabo pelos Recorrentes. Não se trata apenas – mas também – da avaliação da admissibilidade do recurso ao instituto do casamento por procuração nas circunstâncias concretas apresentadas em juízo mas também, e sobretudo, a avaliação da vontade real e actual do nubente em face dos termos concretos apostos no texto da procuração para casamento e das circunstâncias em que as mesmas foram supostamente subscritas pelo Exmo. Senhor JMB…. 44. De acordo com as declarações prestadas em juízo pelo Procurador que celebrou o casamento em representação do de cuius, o Exmo. Senhor Doutor JF…, este terá estado na presença do Exmo. Senhor JMB… por volta do dia 12 de Março de 2012 (i.e., cerca de uma semana antes da data da celebração do casamento) e desde aí o único contacto que alegadamente teve com o de cuius foi para lhe dizer que não seria ele a conduzir o processo; nada mais. Ante estas declarações choca o sentimento jurídico a apreciação jurídica realizada pelo Douto Tribunal a quo! 45. A lei é claríssima ao referir que a procuração para casamento tem de indicar expressa e indubitavelmente a modalidade de casamento pela qual se pretende celebrar o contrato de casamento, sendo que tal não foi devidamente observado in casu. Sendo a procuração outorgada para a celebração de um casamento civil urgente, não poderia a Exma. Senhora Conservadora ter celebrado um casamento civil comum, porquanto tal não resulta clara e conforme à expressão da alegada vontade do nubente, constante da procuração. 46. Ainda que se entenda que a procuração para casamento não tenha de indicar se o casamento a celebrar é comum ou urgente – hipótese que não se aceita, mas por mero dever de patrocínio se concebe – a verdade inquestionável é que a indicação expressa na procuração ad nuptias de que o casamento é urgente limita, indubitavelmente, os poderes do procurador à celebração de um casamento urgente. Conferindo a procuração alegadamente emitida pelo de cuius somente os poderes necessários para a celebração do casamento civil urgente com a Recorrida, o Procurador não tinha os poderes necessários para celebrar um casamento civil comum. E sobretudo atentos os pressupostos de celebração do casamento civil urgente que são, necessariamente, mais exigentes e distintos daqueles previstos para a celebração de um casamento civil comum – em conformidade, aliás, com o disposto no nº 1 do artigo 1622º do Código Civil. 47. A indicação na procuração ad nuptias de que o casamento a celebrar será um casamento civil urgente invalida o casamento civil comum que foi celebrado com base em tal procuração. Tendo o casamento por procuração sido celebrado por procurador sem poderes para o acto, o casamento é, como tal, ineficaz relativamente ao representado – in casu, o Exmo. Senhor JMB…. 48. “Em Portugal, o casamento por procuração só é permitido quando os nubentes se encontrem longe um do outro, não tendo facilidade, ou mesmo possibilidade, de se reunirem no mesmo lugar para a realização do acto. Impõe-se uma interpretação restritiva do artigo 1620º, nº 1, do Código Civil assente cumulativamente em elementos sistemático, histórico e teleológico. O único modo de evitar um juízo de inconstitucionalidade relativamente às normas civis do casamento por procuração é a admissibilidade deste tão-só quando os nubentes se encontrem longe um do outro, não tendo facilidade, ou mesmo possibilidade, de se reunirem no mesmo lugar para a realização do acto. A admissibilidade do casamento por procuração assim circunscrita é reclamada igualmente pelo alcance dos efeitos da celebração do casamento, pelo sentido dos princípios do carácter pessoal e actual do mútuo consentimento, pelos trabalhos preparatórios e pela visão contemporânea do casamento” – cfr. parecer elaborado pelo Ilustre Professor Jorge Duarte Pinheiro. 49. Não só o Tribunal a quo se limitou à interpretação literal como descurou inteiramente a confissão do Procurador que representou o de cuius no casamento de que não confirmou nem se certificou da real, actual e consciente vontade deste em contrair casamento com a Recorrida. E se a Meritíssima Juiz a quo não tem qualquer pejo – e bem – em admitir que uma pessoa possa mudar de ideias e de vontades num curto espaço temporal, menos se compreende como pôde decidir que o Procurador tinha poderes bastantes para representar uma pretensa vontade expressa oralmente numa cama de hospital, num estado claramente debilitado e fragilizado (“muito doente” como o referiu o Procurador), mais de uma semana antes do casamento, e sem que tenha havido qualquer confirmação ou ratificação à data em que foi efectivamente celebrado o casamento??? 50. A verdade é que o casamento não é um contrato qualquer. Antes implica a assunção de um compromisso recíproco entre duas pessoas que tem reflexos amplíssimos no plano existencial, temporal e patrimonial, traduzindo o compromisso de plena comunhão de vida. E, não tendo o Procurador confirmado a actualidade e consciência da vontade do Exmo. Senhor JMB… em contrair casamento com a Recorrida, com todas as legais consequências daí decorrentes, impor-se-ia até ao Procurador a recusa na celebração do casamento. 51. Não o tendo feito, impunha-se ao Tribunal a quo a reposição da legalidade, alcançada mediante a declaração da inexistência do casamento com base no disposto na alínea c) do artigo 1628º do Código Civil e consequente ordem de cancelamento do registo de casamento – pedido que se deduz ante este Venerando Tribunal mediante a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que julgue nestes termos, julgando a acção procedente, com todas as legais consequências. 52. O instituto do casamento por procuração impõe determinadas limitações e exigências: “*…+ Uma é de carácter formal: a procuração para casamento deve ser outorgada por instrumento público ou por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e da assinatura. As outras duas são, pode dizer-se, de carácter substancial. Por um lado, só um dos nubentes pode fazer-se representar por procurador. Por outro lado, há-de tratar-se de procuração em que se confiram poderes especiais para o acto, se individualize a pessoa do outro nubente e se indique a modalidade do casamento.” – in COELHO, Francisco Pereira, e OLIVEIRA, Guilherme, op. cit. 53. A procuração ad nuptias é conferida para a prática de um ato que produz efeitos amplos e profundos na esfera jurídica do representado, justificando particulares cuidados formais, que se manifestam no próprio Código do Registo Civil. A procuração ad nuptias é a única das procurações para a prática de actos submetidos a registo civil, a par da procuração para concessão do consentimento necessário à celebração do casamento de menores, que beneficia de regulamentação típica e nominada, inscrita no artigo 44º daquele Código. 54. A procuração para casamento alegadamente outorgada pelo Exmo. Senhor JMB… não refere, em lado algum, a concessão de poderes para a celebração de um casamento civil comum – modalidade de casamento esta que viria a ser observada in casu. 55. No casamento sub judicio faltou a declaração de vontade do Exmo. Senhor JMB…, porquanto o procurador que se arrogou agir por sua conta não estava, em face da procuração ora em análise, investido dos poderes necessários à celebração do casamento civil comum. 56. Nos termos da alínea c) do artigo 1628º do Código Civil que é juridicamente inexistente: “O casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração da vontade de um ou ambos os nubentes, ou do procurador de um deles”. A inexistência jurídica é, pois, a sanção correspondente à falta de declaração expressa da vontade de ambos os nubentes, de apenas um dos nubentes ou do procurador de um dos nubentes. 57. Ante a questão: “É admissível, existente e válido o casamento celebrado por procuração ad nuptias que confere poderes para a celebração de casamento civil urgente, vindo a ser celebrado casamento civil comum (não urgente)?”, responde o Ilustre Professor Doutor Jorge Duarte Pinheiro da seguinte forma: “A resposta não implica particular esforço de construção: é inexistente o casamento, em virtude de ter faltado na cerimónia a declaração de vontade do procurador do nubente representado (cf. artigo 1628º, alínea c)). *…+ No entanto, a indicação da modalidade ou forma de casamento na procuração ad nuptias traça as fronteiras da actuação representativa do procurador. Fora de tais fronteiras, em contradição com o teor explícito da procuração, ocorre representação sem poderes”. 58. Salvo o devido respeito, entendem os Recorrentes que mal andou o Tribunal a quo ao não considerar, sequer, a legitimidade activa dos Recorrentes em face do disposto no nº 1 do artigo 1640º do Código Civil onde se prevê que: “A anulação por simulação pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento”. É indubitável, considerando os efeitos patrimoniais decorrentes da celebração do casamento, que os Recorrentes, enquanto únicos herdeiros legítimos do Exmo. Senhor JMB…, foram prejudicados nos seus direitos com o casamento pretensamente celebrado entre o de cuius e a Recorrida. Tanto bastando para concluir pela verificação da sua legitimidade para peticionar, a título subsidiário, a anulação do casamento fundada na falta de vontade do Exmo. Senhor JMB…. 59. O facto de a Recorrida se ter tornado herdeira de um quinhão hereditário avaliado em cerca de cinco milhões de euros foi total e completamente esquecido e desvalorizado! Quando as regras da experiência e normalidade impunham, pelo menos, a consideração deste interesse inequívoco e óbvio por parte do Julgador a quo na avaliação da manipulação da vontade do de cuius que os Recorrentes alegaram e lograram provar através do depoimento das testemunhas que conheciam o de cuius de toda uma vida e que asseguraram, num discurso directo, claro e coerente, que a vontade do de cuius era a de não casar em segundas núpcias e de manter o património e legado familiar com os seus filhos e irmãos. O Julgador a quo entendeu não referir «o elefante no meio da sala» e, ao fazê-lo, descurou porventura o indício mais evidente da manipulação da vontade do de cuius. 60. Da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal apresentada em juízo e cuja reapreciação se requer, resulta de forma clara e inequívoca que o casamento objecto da presente lide sempre seria anulável pelo facto de o Exmo. Senhor JMB… não ter consciência, no momento da alegada outorga da procuração para casamento, do acto que praticava. 61. Na hipótese de a procuração para casamento ora em análise ter sido assinada pelo Exmo. Senhor JMB… – hipótese que legitimamente se repudia dado a assinatura aposta não ter sido presencialmente reconhecida e desconhecer-se se o texto foi aposto somente após a assinatura e mais estando provado que os termos da procuração não foram ditados ou acordados pelo de cuius – a verdade é que o casamento assim celebrado sempre seria anulável face ao disposto no artigo 1635º do Código Civil. 62. À questão de saber se: “É admissível, existente e válido o casamento entre o Exmo. Senhor JMB… e a Exma. Senhora MF…, celebrado por procuração ad nuptias, se esta tiver sido assinada pelo primeiro nubente no momento em que ele não estava consciente de que o documento se destinava a conferir poderes a outrem para contrair casamento em seu nome?” respondeu o Ilustre Professor Doutor Jorge Duarte Pinheiro nos seguintes termos: “À questão cabe a resposta de que não é admissível, nem válido, o casamento civil tout court, laico ou sob a forma não religiosa, contraído em Portugal entre portugueses, por procuração ad nuptias, quando o documento em que esta figurava tiver sido assinado por nubente no momento em que ele não estava consciente de que mediante a sua assinatura conferia poderes a outrem para celebrar casamento em seu nome. *…+ Acrescente-se que, não tendo o nubente representado manifestado a vontade de casar no acto da celebração, é afastada a estatuição do artigo 1634º do Código Civil”. 63. Da prova carreada aos autos resulta o desconhecimento quanto ao momento em que terão sido apostas as assinaturas do Exmo. Senhor JMB… nas procurações e na declaração para casamento dado que as assinaturas não foram presencialmente reconhecidas e nenhuma das testemunhas ouvidas em juízo presenciou tal momento; mais resulta que o Exmo. Senhor JMB… não tinha sequer conhecimentos que lhe permitissem ditar, ou acordar, nos termos apostos no texto das procurações para casamento; que o Exmo. Senhor JMB… estava francamente debilitado, passando grande parte do tempo a dormir em função do estado de grande fragilidade em que se encontrava nas semanas que antecederam o seu falecimento. 64. Resulta igualmente provado pela confissão realizada pelo Procurador, Exmo. Senhor Doutor JF…, que o mesmo não participou na redacção da procuração para casamento, não assistiu à assinatura das procurações ou da declaração para casamento, não explicou o teor das procurações assinadas pelo de cuius ao Exmo. Senhor JMB…, não se certificou nem confirmou, à data do casamento, que era vontade actual e consciente daquele a celebração do casamento com a Recorrida, tampouco o informou que havia celebrado o casamento em seu nome. 65. Por tudo isto, e considerando as demasiado invocadas regras da experiência e da normalidade, mas sobretudo a prova carreada aos autos, impõe-se concluir pela falta de vontade do Exmo. Senhor JMB… em contrair casamento com a Recorrida nos termos do disposto na alínea b) do artigo 1631º por referência à previsão ínsita na alínea a) do artigo 1635º, ambos do Código Civil. Terminam pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que declare a inexistência do casamento celebrado entre o Exmo. Senhor JMB… e a Recorrida e ordene o cancelamento do registo de tal casamento; ou, subsidiariamente, declare anulável o casamento com base na falta de vontade do Exmo. Senhor JMB… à luz do disposto na alínea b) do artigo 1631º do Código Civil, ordenando o consequente cancelamento do registo do casamento celebrado entre o Exmo. Senhor JMB… e a Recorrida. A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e confirmação da sentença recorrida. QUESTÕES A DECIDIR Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) as questões a decidir são: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto; b) da inexistência do casamento; c) subsidiariamente, da anulabilidade do casamento. Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O tribunal deu como provados os seguintes factos: 1º) JMB... subscreveu o documento com a epígrafe “Procuração”, com data de 16 de Março de 2012, constante destes autos a fls.70, com termo de autenticação de fls.69, documentos que se julgam reproduzidos e onde constam, pelo menos, as seguintes declarações: “Termo de Autenticação Aos dezasseis dias do mês de Março de dois mil e doze, pelas onze e quinze minutos, no Hospital da Luz, em Lisboa, a mim, JFL…, casado, advogado (…), o Senhor JMB…, divorciado (…) fez-me entrega do documento anexo, que é uma procuração, conferindo ao Senhor Dr. JF…, advogado, poderes forenses gerais e especiais para o representar no casamento civil urgente, que pretende contrair com D. FF…, declarando-me que a referida procuração corresponde inteiramente à sua vontade.” (documento de fls.69, no qual está aposta uma cruz manuscrita entre o “D.” e o “F…”). “PROCURAÇÃO JMB…, divorciado, residente na Rua …, nº …, Bloco …, …-…º Dto., …-… Lisboa, nascido em … de Junho de 1939 (…) constitui seu bastante procurador o Senhor Dr. JF…, casado, advogado (…), a quem confere poderes forenses gerais e especiais para o representar em casamento civil urgente, que pretende contrair com D. FF…, solteira, residente na mesma morada do aqui mandante, nascida a … de Julho de 1941 (…). Lisboa, 16 de Março de 2012“ (documento no qual está aposta uma cruz manuscrita entre o D. e o F… e um traço da direita para a esquerda sobre a palavra “urgente”). (documentos de fls.6 70 [2]). 2º) JMB… e MF… subscreveram o documento com a epígrafe “Declaração para Casamento”, constante de fls.65 destes autos, documento que se julga reproduzido e no qual constam, pelo menos, as seguintes declarações: “DECLARAÇÃO PARA CASAMENTO O nubente (nome) JMB…, de 72 anos de idade, no estado de divorciado, natural da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa (…). A nubente (nome) FF…, de 70 anos de idade, no estado de solteira, natural da freguesia da Aldeia Galega da Merceana, concelho de Alenquer (…) declaram que pretendem contrair casamento, para o que requerem a instauração do competente processo de publicações. Mais declaram ** (v. verso): Procurador do nubente - Dr. JF…, casado, Advogado (…). Apresentam os seguintes documentos: Fotocópia dos Documentos de identificação; procuração com poderes especiais; declaração médica (…) Data da declaração: Lisboa, 16 de Março de 2012“ (documento de fls.65, onde consta uma cruz manuscrita antes do nome “F…”). 3º) JMB… subscreveu o documento com a epígrafe “Procuração”, com data de 19 de Março de 2012, constante destes autos a fls.77, com termo de autenticação de fls.76, documentos que se julgam reproduzidos, e onde consta pelo menos: “Termo de Autenticação Aos dezanove dias do mês de Março de dois mil e doze, pelas onze e quinze minutos, no Hospital da Luz, em Lisboa, a mim, JFL…, casado, advogado (…), o Senhor JMB…, divorciado (…) fez-me entrega do documento anexo, que é uma procuração, conferindo ao Senhor Dr. JF…, advogado, poderes forenses gerais e especiais para o representar no casamento civil urgente, que pretende contrair com D. MF…, declarando-me que a referida procuração corresponde inteiramente à sua vontade.” (documento de fls.76). “PROCURAÇÃO JMB…, divorciado, residente na Rua …, nº …, Bloco …, …-…º Dto., …-… Lisboa, nascido em … de Junho de 1939 (…) constitui seu bastante procurador o Senhor Dr. JF…, casado, advogado (…), a quem confere poderes forenses gerais e especiais para o representar em casamento civil urgente, que pretende contrair com D. MF…, solteira, residente na mesma morada do aqui mandante, nascida a … de Julho de 1941 (…). Lisboa, 19 de Março de 2012“ (documento de fls.77). 4º) A 19 de Março de 2012 as declarações de casamento civil de JMB… e de MF…, sob o regime imperativo de separação de bens, prestadas perante Conservadora de Registo Civil, foram feitas: por JF…, na qualidade de procurador de JMB…; por MF…, tendo-se lavrado o seguinte assento de casamento: “Conservatória de Registo Civil Lisboa Assento de Casamento nº … do ano de 2012 Nubente:_______________________________________________________ Nome: JMB… *** Idade: 72 anos. Naturalidade: freguesia de S. Sebastião da Pedreira*** concelho de Lisboa*** Residência habitual: Rua …, nº …, Bloco …, …º Dtº, São Sebastião da Pedreira Lisboa Filho de: IS…*** e de: PJ…*** Nubente:_______________________________________________________ Nome: MF…*** Idade: 70 anos. Naturalidade: freguesia da Aldeia da Merceana*** concelho de Alenquer *** Residência habitual: Rua …, nº …, Bloco …, …º Dtº, São Sebastião da Pedreira Lisboa Filho de: CI…*** e de: MR…*** _______________________________________________________ Hora e data: 16 horas e 40 minutos, do dia 19 de Março de 2012 *** Lugar da celebração: nesta Conservatória *** Casamento: Civil, sob o regime Imperativo da Separação de Bens *** Os nubentes declararam celebrar de livre vontade o seu casamento, perante a Conservadora.*** Apelido(s) Adoptado(s): O nubente MF… adoptou o(s) apelido(s) Bento de Oliveira *** _______________________________________________________ Menções especiais: Interveio como procurador do primeiro nubente, JF…. Nome da nubente após o casamento: MF…. Declaração prestada perante oficial público.*** Testemunhas: JG…, com residência habitual na Av. …, nº …, …º esquerdo, Lisboa.*** CAC…, com residência habitual em Av. …, nº …, …º esquerdo. Data do assento: 19 de Março de 2012 *** _______________________________________________________ O/A Conservador, LM…, Por competência própria Processo nº …/2012 ______________________________________________________” (assento de casamento de fls.62). 5º) Desde data anterior à subscrição dos documentos referidos em 1º) e 3º) supra, JMB… estava hospitalizado, debilitado por uma metastização múltipla do carcinoma da bexiga, agravado por uma desnutrição grave (resposta ao facto 1º) dos temas de prova). 6º) JMB… faleceu a … de Abril de 2012, às 10.00 horas (assento de óbito de fls. 58; facto 5º do despacho de condensação). 7º) Por escritura de habilitação de herdeiros de 13 de Abril de 2012, MF… declarou, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de JMB…, que também usou o nome de JMB…: que o falecido não deixou testamento nem disposição de última vontade; que lhe sucederam como únicos herdeiros, a viúva MF…, os seus filhos JM…, IM…, NM… (documento de fls. 59 a 61; facto 6º) do despacho de condensação). O tribunal deu como não provada a seguinte factualidade: 2º) JMB…, no estado referido no art. 5º) supra, estava sem lucidez e sem capacidade de compreender com clareza o teor dos escritos dos documentos referidos em 1º) e 3º) supra. 3º) Os documentos referidos em 1º) e 3º) não foram por ditados por JMB…. 4º) E não foram entregues por JMB…, nos termos dos dois termos de autenticação de fls. 69 e 76. 5º) Os textos apostos nos documentos referidos em 1º) e 3º) não foram acordados, nem compreendidos por JMB…. 6º) E foram contrários à sua vontade, por não querer voltar a casar. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1. Impugnam os apelantes a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, mais concretamente os factos 2º, 3º, 4º, 5º e 6º dados como não provados. Tendo dado cumprimento ao disposto no art. 640º do CPC, cumpre apreciar e decidir. O tribunal recorrido fundamentou a resposta negativa dada aos referidos factos nos seguintes termos: “A matéria de facto julgada não provada em II- 1- 1.2.- 2º) a 6º) dos temas de prova: baseou-se no conjunto da prova produzida, apreciada criticamente e lida de acordo com os critérios da livre apreciação da prova, em face das regras da experiência e da normalidade (art. 607º/5 do Código de Processo Civil); atendeu às regras do ónus da prova, pelo qual cabe aos autores provar os factos que alegam como fundamento dos pedidos (art. 342º/1 do Código Civil), sendo que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (art. 414º do Código de Processo Civil). Nesta apreciação, verifica-se que este Tribunal dispôs de dois graus de conhecimento dos factos em julgamento, entre as testemunhas arroladas pelos autores e as testemunhas arroladas pela ré. Por um lado, as testemunhas arroladas pelos autores apresentaram depoimentos sobre factos instrumentais e indirectos em relação aos factos essenciais em julgamento, com base nos quais, as próprias testemunhas ou os autores, presumiram conclusivamente que o falecido não se quis casar e, como tal, não teve condições de compreender as procurações para casamento outorgadas, nem pôde ter acordado com as mesmas, nem as pôde ter entregue: a) CA…, irmão do falecido, considerou que o casamento não pôde tratar-se de um acto voluntário e que a ré deu uma “golpada” porque: o irmão tinha um sentido de família que não se coadunava com um novo casamento e tinha a convicção que as coisas da família deveriam ficar nesta (onde estavam as duas empresas agrícolas criadas pelo seu pai); o irmão teve uma relação de amantismo com a ré durante o tempo em que esteve casado com a mãe dos filhos, passou a viver com esta depois e não a apresentou publicamente a amigos e família, sendo que quisesse ter casado consigo já o teria feito no tempo da união de facto; desde o dia 15 de Março a doença do irmão foi-se agravando, estava maioritariamente sedado, sem interesse pelos assuntos correntes; não fazia sentido um casamento por procuração de duas pessoas que viviam juntas, quando a ré dormia no Hospital todos os dias, podendo o falecido ter assinado uma procuração para casar, pensando que se trataria de um testamento; b) FC…, amigo do falecido e que o acompanhou na doença e em visitas ao Hospital, depôs: que o amigo nunca lhe disse que se queria casar, apesar de reconhecer ter visitado o casal e ter testemunhado que se davam bem; que viu o acentuar da sua debilitação física e mental, sendo que no final da vida fazia pequenas confusões (disse-lhe no Hospital que se ia arranjar para ir ao futebol consigo; referiu que um amigo lhe telefonou à meia-noite, quando não o tinha feito) e estava num estado de semi-dormência (em que não tinha paciência para ouvir conversas e já não conseguia participar); que encontrou no Hospital uma folha banca com uma assinatura do falecido na diagonal, numa das revistas da mesa de apoio no Hospital; c) MFB…, irmã do falecido e tia dos autores, referiu: que o irmão sempre disse que não se ia casar e nunca teria consentido que a ré ficasse com o mesmo nome que o seu (irmã), através do casamento; que tiveram uma educação em que os bens da família deveriam ficar na família; que esteve com o irmão quando este transitou do Hospital da Luz para a residência, a 22 de Março e num outro dia após, dia em que lhe deu uma carta de representação para assinar, para uma intervenção no Conselho de Administração, assinatura que este fez e com consciência; d) JE…, cunhado do falecido (casado com a sua irmã) referiu: que o falecido no Hospital estava lúcido mas na residência estava perturbado; que, todavia, nunca o viu fora da realidade, tendo–lhe dito “que passaram juntos os melhores anos da via dele”; que era determinado e autoritário à antiga (podendo ter assumido o seu casamento com os filhos); e) HI…, sobrinha do falecido, que o acompanhou nas últimas 3 semanas antes da morte, referiu: que no Hospital da Luz, viu-o baralhado (disse-lhe: que só estava ali no Hospital enquanto durassem as obras, como se estivesse num hotel; que ia lá fora fumar um cigarro); que, na residência da Luz, estava debilitado e mais calado; que acha que, se o tio se tivesse casado, o teria dito a um filho, a um irmão, a um amigo e que, se não o tivesse feito antes, tê-lo-ia feito após o casamento; f) AS…, contabilista e TOC, que conheceu o falecido desde 1969, depôs: que o falecido conheceu a ré numa casa de porta fechada, em que ela trabalhava só para ele e, depois, arranjou-lhe uma casa; que a ré nunca o acompanhou ao escritório ou à herdade; que fazia o IRS ao falecido e como pagava muitos impostos disse-lhe para, pelo menos, o fazer como unido de facto e ele recusava, tendo-lhe dito ainda que só se casou uma vez e que não se casaria mais; que no Hospital da Luz viu-o debilitado, com olhos mortiços, em que encolhia os ombros e quase não falava; que, na residência da Luz, assistiu à assinatura da carta que a irmã lhe levou para assinar (de nomeação do filho N… para o seu lugar), após lhe explicar, tendo ele ensaiado a assinatura e assinado; pediu-lhe para levar o Eng. V… e o ZP… e depois fez uma despedida aos três, que o emocionou; g) AP…, padre que visitou o de cuius a 23 ou 24 de Março de 2012 na residência da Luz, relatou: que o falecido lhe disse que estava divorciado e que estava junto há uns anos, não lhe tendo dito que estava casado; que lhe referiu que poderia ter pensado na nulidade do seu casamento prévio. Por outro lado, as testemunhas arroladas pelo réu depuseram com carácter directo quanto à vontade e consciência do falecido quanto ao casamento, quando outorgou as procurações e fez a entrega das mesmas: a) JÁ…, médico urologista que tratou do falecido, declarou: que este, depois da operação, estava perfeitamente lúcido e com capacidade de determinação; que visitava-o diariamente ao fim da manhã ou à hora do almoço, nomeadamente no período que abrangeu o dia 19 de Março de 2012, alturas em que tinham conversas de 15 a 20 mn e em que pôde atestar a lucidez declarada; que o falecido tomava medicação sem opiáceos; que nunca apanhou ao falecido falhas de memória ou confusão a que tivesse dado relevo; b) JF…, advogado do réu e a quem foi passada a procuração para casamento, que testemunhou ao abrigo da dispensa de sigilo profissional que lhe foi concedida pela Ordem dos Advogados, referiu: que foi ao Hospital, depois de um dos filhos do falecido o ter chamado, a pedido do seu pai; que, neste Hospital, o falecido pediu-lhe para ficar só consigo e disse-lhe que queria celebrar matrimónio; que, depois de lhe dizer que se tinha que ver o que fazer, nomeadamente no Hospital, ele disse-lhe peremptoriamente que não queria que fosse no Hospital para não ter atritos; que o pedido que lhe fez foi claro e peremptório em relação à decisão que tinha tomado; que, como estava como processos urgentes, pediu ao Dr. JA… para promover as diligências de casamento, facto com o que o falecido aceitou, pois este já tinha intervindo num assunto anterior; que, a 19 de Março, interveio no casamento, em representação do falecido; que a 1 de Abril um filho comunicou-lhe que o pai tinha falecido; que não conhecia a vida pessoal do falecido e que só conheceu a ré no Hospital; c) TM…, filha da ré, referiu: que o falecido foi para a residência da Luz porque havia obras no prédio onde estava a sua casa; que, no dia 14 de Março, chamou-a ao quarto, disse-lhe quer queria casar-se e perguntou-lhe se sabia como se fazia; que disse-lhe que não sabia e que tinha que falar com um advogado; que não conhecia o advogado que tratou da acção; que, nessa altura, o falecido estava lúcido e acrescentou que já se deveria ter casado com a sua mãe há 20 anos; que o viu lúcido até ao dia 31 de Março de 2012; d) IC…, médica de medicina interna que acompanhou o falecido, confirmou a subscrição da declaração de 16 de Março de 2012 de fls. 68, e as afirmações por si realizadas na mesma, explicando, com coerência, isenção e credibilidade: que acompanhou o falecido em visitas diárias (tal como aos demais doentes), antes e após a declaração de 16 de Março de 2012; que, nessas visitas diárias, teve sempre conversas com este e fez-lhe testes neurológicos (que não se fazem todos o dias), altura em que pôde atestar que o falecido esteve sempre vigil, consciente e orientado; que emitiu a declaração de 16 de Março de 2012 a pedido do próprio falecido, que lhe disse clara e determinadamente que se queria casar e que precisava da declaração sobre o seu estado de consciência, declaração que fez, em correspondência com a verdade da sua observação, sem necessidade, nesse dia, de realizar mais testes complementares; que os testes sobre a imputabilidade, com que foi confrontada pela parte contrária, não seriam adequados para atestar a consciência e compreensão dos actos pelo requerido, pelo que não foram nem seriam utilizáveis nessa circunstância; que, para a declaração por si emitida, não seria necessária a intervenção de psiquiatra, que lhe foi sugerida pela parte contrária. Na apreciação global destes depoimentos, verifica-se o seguinte. Por um lado: os autores não apresentaram qualquer testemunha directa dos factos sob julgamento; a ré apresentou testemunhas directas sobre os factos em julgamento, que atestaram com credibilidade a vontade do falecido e/ou a sua consciência (sendo que, ainda que filha da ré pudesse ter um interesse indirecto na causa, os depoimentos dos dois médicos e do advogado não têm qualquer interesse na causa). Por outro lado, os factos relatados nos depoimentos das testemunhas dos autores não são passíveis de provar os factos alegados, falta de prova ainda mais acentuada com a contraprova apresentada pela ré: a) As declarações do falecido de não se querer casar novamente e a sua educação de protecção do património familiar não são suficientes para poder presumir judicialmente, nos termos dos arts. 349º e 351º do Código Civil, que ele não pudesse jamais ter tomado qualquer decisão diferente na fase final da sua vida; esta presunção é totalmente impassível de tomar, em face das regras da experiência sobre a liberdade da consciência e da avaliação pessoal, sobretudo perante as realidades últimas da vida; b) As próprias testemunhas dos autores, sobretudo a testemunha SC…, a irmã e o cunhado do falecido, reconheceram-lhe, apesar a debilidade física, consciência de prática de actos, mesmo depois de 22 de Março de 2012; c) As pretensas confusões relatadas por duas testemunhas não são suficientes nem para se perceber se se trataram de efectivas confusões, nem para afastar a credibilidade dos depoimentos directos das testemunhas arroladas pela ré quanto à sua vontade de se casar e consciência sobre esta decisão; d) A falta de revelação do casamento civil, pelo falecido ao Padre com que falou a 23 ou 24 de Março de 2012, não é suficiente, também, para presumir judicialmente, nos termos dos arts. 349º e 351º do Código Civil, qualquer um dos factos sujeitos a julgamento”. Ouvidos todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento, e analisados os documentos juntos aos autos, nenhuma censura nos merece a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, que ao longo de todo o julgamento mostrou uma postura actuante, procurando esclarecer-se dos contornos da situação, sendo certo que é o tribunal recorrido aquele que melhor pode aquilatar da prova perante si produzida, por ter percepção directa da forma como as pessoas depõem [3], vigorando no nosso sistema processual o princípio da livre apreciação da prova – art. 607º, nº 5, do CPC. A formação da convicção do tribunal há-de assentar numa análise ponderada e conjugada de toda a prova produzida, documental, e testemunhal, ponderadas as regras da experiência e a verosimilhança dos depoimentos. Tomé Gomes, em “Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil”, na Revista do CEJ, 2005, Nº 3, págs. 158-159, escreve que: “Quanto ao critério da livre convicção, há que ter presente que o convencimento do julgador se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Para a formação de tal convicção não basta um mero convencimento íntimo do foro subjectivo do juiz, mas tem de ser suportada numa persuasão racional, segundo juízos de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras de experiência comum e atentas as particularidades do caso.”. Não obstante se sufrague a fundamentação do tribunal recorrido, que é clara e retrata a prova produzida, sempre diremos: 1.1. Pretendem os apelantes que os pontos 2º, 3º e 4º, dados como não provados, sejam dados como provados, sustentando a sua pretensão no depoimento de CA… (irmão do falecido), AG… (empregado do falecido há 3 décadas), HI… (sobrinha do falecido), JE… (cunhado do falecido), MFB… (irmã do falecido), e FC… (amigo de longa data do falecido), todos depoimentos directos, fundados em factos que presenciaram e vivenciaram, e que denotam o estado de degradação crescente em que se encontrava o Sr. JB…, do qual se conclui, pelas regras da experiência, que jamais estaria em condições de ditar e entregar as procurações para casamento nos termos que constam dos respectivos termos de autenticação, nem de se aperceber dos textos apostos nas procurações. Mais sustenta que de nenhum dos depoimentos das testemunhas arroladas pela apelada resulta terem estado presentes quando as supostas procurações foram assinadas. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não acompanhamos a análise da prova feita pelos apelantes. Do depoimento de todas as testemunhas ouvidas resulta que nenhuma esteve presente quando as procurações foram outorgadas e entregues – nenhuma das testemunhas arroladas pelos AA., nenhuma das testemunhas arroladas pela R. O que estava, essencialmente, em causa era o estado psíquico, a capacidade psíquica do Sr. JB… quando outorgou as referidas procurações, importando aquilatar se estava lúcido, capaz de compreender com clareza o teor daquelas. Da prova produzida resulta inquestionável que, à data da outorga das referidas procurações (16 e 19 de Março de 2012) o Sr. JB… estava hospitalizado, debilitado por uma metastização múltipla do carcinoma da bexiga, agravado por uma desnutrição grave, vindo a falecer no dia 1 de Abril desse mesmo ano - pontos 5 e 6 da fundamentação de facto. Também é inquestionável que do depoimento de todas as testemunhas ouvidas em julgamento resulta que o Sr. JB… denotava, no hospital, uma sua grande debilidade física, que se foi agravando, e que se deteriorou acentuadamente a partir do momento em que passou para as residências do hospital (o que terá acontecido por volta do dia 20 ou 21 de Março, segundo a testemunha CA…). Mas a sua debilidade física inquestionável não se traduz, necessariamente, em debilidade psíquica, em diminuição da capacidade de entendimento. As testemunhas arroladas pelos apelantes (CA…, AG…, HI…, JE…, MFB…, e FC…) transmitiram ao tribunal a ideia de que o encontraram “baralhado”, a fazer pequenas “confusões”, quando o visitaram no hospital e/ou nas residências, e de que se encontrava quase sempre “dormente”, desinteressado, pouco falava, “mais lá do que cá” atribuindo tal estado à medicação que estaria a tomar. Com base nestas “constatações”, de pessoas que com ele conviveram ao longo da vida e o conheciam bem, pretendem os apelantes que se conclua que o Sr. JB… já não estava lúcido, à data em que outorgou as procurações. Contudo, do depoimento destas testemunhas (e ainda que não se ponderasse a restante prova produzida, como se tem de ponderar) não resulta, de forma segura, aquela alegada falta de lucidez. Todas as testemunhas arroladas pelos apelantes (inclusive o Sr. Padre AP… [4]) referiram que o Sr. JB… as reconheceu sempre. Nenhuma testemunha referiu que, alguma vez, ele não tivesse conseguido identificar a pessoa que o visitava, ou com quem estava a falar. Segundo declarações da testemunha AS…, o Sr. JB… pediu-lhe para levar às residências dois amigos/conhecidos, e despediu-se deles, “falando do passado ao longo da vida” [5], isto em momento posterior a dia 23 de Março, cerca de uma semana antes de morrer. Também segundo aquela testemunha, no dia 23 de Março de 2012, o Sr. JB… estava lúcido, porquanto assinou, a pedido da irmã MFB… (com quem foi visitá-lo) uma carta de nomeação para o filho o representar nas sociedades, o que a referida irmã também confirmou. Por último, a testemunha JP…, que visitou o Sr. JB… no hospital e nas residências, à pergunta sobre qual era o seu estado mental no hospital, respondeu, de forma categórica que “estava lúcido”, e à pergunta sobre qual era esse estado nas residências quando o visitou pela última vez [6], disse que as perguntas e respostas tinham sido coerentes, que lhe tinha dito que tinha passado com ele os melhores anos da vida dele, referindo, numa fase posterior do seu depoimento, que lhe tinha ficado a ideia de que ele já não estava muito coerente, explicando que essa ideia resultou das conversas sincopadas, com interrupções consecutivas, tendo ficado com a sensação de uma fragilidade total, mas acabando por referir que o Sr. JB… não tinha feito qualquer declaração fora da realidade. Estes depoimentos, conjugados e analisados à luz das regras da experiência, não permitem uma conclusão segura sobre a alegada falta de lucidez do Sr. JB… à data do internamento, e mais concretamente à data da outorga das procurações, sendo certo que a ponderação dos restantes depoimentos agrava as dúvidas suscitadas por aqueles. De facto, os depoimentos dos médicos, Dr. JA… e Dra. IC…, revelam-se de primordial importância nesta matéria, quer porque têm conhecimentos médicos que as restantes testemunhas não têm, quer porque acompanharam o Sr. JB…, sabendo que medicação tomava e que efeitos tinha. O Dr. JA…, que fazia visitas diárias ao Sr. JB…, declarou que este estava perfeitamente lúcido e tinha determinação, que, apesar do sofrimento, recusava não estar vigil, ainda trabalhava apesar da situação, ainda o via “tratar de papéis para trás e para a frente”, conversava, respondia, e muitas vezes até tomava ele a iniciativa de abordar assuntos. Relativamente à medicação que tomava, esclareceu que estava medicado com analgésicos, que não lhe causavam prostração, nem sono. E sobre as “confusões/baralhações” que tinham sido relatadas pelas testemunhas dos AA., esclareceu que as perdas de orientação espacial e local são frequentes nas pessoas que têm internamentos prolongados (o que era o caso do Sr. JB…), e não significam necessariamente algum compromisso da lucidez ou da actividade mental, ocorrendo em doentes de qualquer idade. Explicou, ainda, que a doença de que o Sr. JB… padecia não era uma doença que afectasse a lucidez do doente, e que nunca tinha detectado falhas de memória a que atribuísse algum significado. Também a Dra. IR…, que passou a declaração médica que se encontra junta a fls. 68, confirmou que o Sr. JB… tinha perfeita capacidade de compreensão, à data em que elaborou a referida declaração, estava vigil, consciente e orientado, como na mesma escreveu, o que resultou das observações que lhe fez nas visitas que lhe efectuou, e da observação objectiva que lhe fez naquele dia para elaborar a declaração. Mais declarou que acompanhou o Sr. JB… até à morte, e que este se manteve lúcido até ao fim. Como referiu o tribunal recorrido, estas testemunhas nenhum interesse têm na causa, e o seu depoimento não pode deixar de ser ponderado nesta matéria, tornando duvidosos os referidos depoimentos das testemunhas arroladas pelos AA. Porquanto se deixa escrito, conclui-se não proceder a apelação nesta parte, mantendo-se a factualidade impugnada como não provada. 1.2. Pretendem os apelantes que seja dado como provado o ponto 5º dado como não provado, sustentando a sua pretensão no facto de nenhuma das testemunhas arroladas pela R. ter estado presente no momento em que o Sr. JB… acordou ou mandou escrever os termos das procurações e as entregou, sobrevalorizando o tribunal recorrido o depoimento das testemunhas arroladas pela R. “porque sim”, resultando do depoimento das testemunhas CB…, Dr. FR…, e Padre AA… a falta de consciência do Sr. JB… em relação ao casamento. Desde logo se dirá que a factualidade constante deste ponto de facto está, em parte, directamente ligada à dos pontos 2º, 3º e 4º dados como não provados, remetendo-se para o que acima se deixou escrito quanto à capacidade de compreensão dos textos pelo Sr. JB…. E está, noutra parte, directamente ligada à do ponto 6º dado como não provado (que os apelantes pretendem que seja dado como provado), na medida em que o que está em causa é a vontade do Sr. JB… contrair casamento, e de tal ter acordado com a pessoa que nomeou seu procurador, pelo que analisaremos a impugnação dos pontos 5º e 6º em conjunto. A fundamentar a alteração do ponto 6º dado como não provado invocam os apelantes o depoimento das testemunhas AS…, CB…, HO…, MF…, que lidaram com o Sr. JB… ao longo de toda a vida deste. Mais uma vez não perfilhamos a análise da prova feita pelos apelantes. É certo que as testemunhas AS…, CB…, HO…, e MF…, declararam que, ao longo da vida, o Sr. JB…, que era divorciado, sempre disse que não se voltaria a casar, além de que ele não quereria que as sociedades de família ficassem fora da família, porque essa tinha sido a vontade do pai, que as fundara, e a quem muito admirava. Certo é, porém, que as pessoas mudam de opinião, muitas vezes o fazendo perante a iminência da morte, nem sempre resultando claras as razões porque o fazem. E não menos certo é, também, que contrariando o depoimento daquelas testemunhas outras depuseram no sentido de que o Sr. JB… lhes comunicou que queria casar com a R., o que torna duvidosa a prova feita pelas testemunhas arroladas pelos AA., como referiu o tribunal recorrido. Atente-se que, ao contrário do que alegam os apelantes, o tribunal recorrido não considerou provado “que os textos apostos nas procurações para casamento haviam sido acordados e cabalmente compreendidos pelo Exmo. Senhor JMB…”. A resposta negativa a um determinado facto apenas quer dizer que o mesmo não se provou, não significando que se tenha provado o facto inverso [7]. O que resulta provado é que o Sr. JB… subscreveu as procurações referidas em 1º) e 3º) da fundamentação de facto, pelo que o que haveria de indagar era se o fez sem ter acordado os textos das procurações que subscreveu, e se os mesmos foram contrários à sua vontade, por não querer voltar a casar, como os AA. alegaram [8]. Ora, da ponderação de todos os depoimentos prestados não resulta feita, com segurança, a prova desses factos. As testemunhas Dr. JF… (advogado a que o Sr. JB… outorgou poderes para o representar no acto de casamento) e TM… (filha da R.) declararam que o Sr. JB… lhes disse, expressamente e de forma inequívoca, que queria casar com a R. O Dr. JF…, advogado do Sr. JB… há longa data, disse ter sido por aquele chamado ao hospital, onde este lhe transmitiu o desejo de se casar com a R., refutando de forma categórica que o casamento se realizasse no hospital, e pedindo à testemunha que tratasse da realização do casamento, tendo esta encarregue o Sr. Dr. JA… de diligenciar nesse sentido, em virtude de não ter disponibilidade para o fazer no momento e atenta a urgência da situação, por força do contexto, e depois de contactar telefonicamente com o Sr. JB… e obter deste concordância nesse sentido. A testemunha TP…, que referiu ter uma relação muito boa com o Sr. JB…, disse que este a chamou ao quarto do hospital no dia 14 de Março, e lhe disse que queria casar com a mãe [9], perguntando-lhe como se fazia, ao que o aconselhou a chamar um advogado. Mais relevante é, ainda, o depoimento da Dra. IR… que declarou que o Sr. JB… e a R. lhe pediram para ir ao quarto (no hospital) daquele para ela passar a declaração médica que se encontra junta aos autos, dizendo-lhe o Sr. JB… que queria oficializar o casamento com a R. e como estava hospitalizado precisava de um documento a justificar que estava com plena consciência para as decisões que ia tomar e que precisava que a testemunha justificasse a sua capacidade. Na ponderação conjugada de todos estes depoimentos, sendo certo que o da Sra. Dra. IR… é aquele que mais releva por não ter qualquer interesse no desfecho da presente acção [10], não se pode concluir nos termos pretendidos pelos apelantes, improcedendo a apelação, também nesta parte, mantendo-se inalterada a factualidade impugnada. 2. Fixada a matéria de facto, apreciemos de mérito. Na PI, sustentaram os AA. a inexistência do casamento celebrado entre o Sr. JB… e a R., por falta de declaração de vontade em consequência da falta de poderes do procurador para o acto, nos termos do disposto na al. c) do art. 1628º do CC, ou, assim não se entendendo, a sua anulabilidade, por falta de consciência daquele, no momento da outorga da procuração, do acto que praticava, nos termos do disposto no art. 1635º, al. a) do mesmo diploma legal. O tribunal recorrido, apreciando se estavam preenchidas as previsões de inexistência de casamento previstas no art. 1628º do CC, als. c) [11], ou d) [12], face à factualidade provada, concluiu que não estavam, e apreciando o pedido subsidiário de declaração de anulação de casamento, nos termos do art. 1631º, al. b), em referência ao art. 1635º, al. a), ambos do CC, concluiu que, também, não podia proceder tal pretensão, porquanto a acção de anulação apenas pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou (art.1640º, nº 2 do CC), o que não ocorreu, e que, de qualquer forma, os AA. não lograram provar que o falecido não teve consciência da declaração de casamento realizada, nos termos do art. 257º do CC. Insurgem-se os apelantes contra o decidido, repristinando a argumentação jurídica por si defendida na PI, e, em certa medida, sustentada na peticionada alteração da factualidade provada. Concretamente os apelantes sustentam: - que se verifica a falta de declaração de vontade pelo Sr. JB…, quando outorgou a procuração, na medida em que resultou provada a falta de vontade de contrair casamento com a R.; - ser excepcional a admissibilidade do casamento por procuração, não se verificando, no caso, os pressupostos para tal; - o procurador não estava devidamente habilitado para celebrar um casamento civil comum; - a procuração ad nuptias não foi lavrada por instrumento público, nem por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura, ou por documento autenticado; - os apelantes têm legitimidade para pedir a declaração de anulabilidade do casamento; - resultou provada a falta de vontade do Sr. JB… em contrair casamento e a sua falta de consciência do acto que praticava. Apreciemos, pois, sendo certo que o tribunal apenas pode atender à factualidade tida por provada, soçobrando as alegações dos apelantes que assentem sobre factualidade que pretendiam ver dada como provada, mas cuja pretensão improcedeu. O casamento é uma das fontes das relações jurídicas familiares (art. 1576º do CC [13]), sendo definido como “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código” (art. 1577º). No capítulo sobre as modalidades do casamento, o art. 1587º, nº 1estipula que o casamento é católico ou civil, e o art. 1590º estatui que “o casamento urgente [14] que for celebrado sem a presença de ministro da Igreja Católica ou funcionário do registo civil é havido por católico ou civil segundo a intenção das partes, manifestada expressamente ou deduzida das formalidades adoptadas, das crenças dos nubentes ou de quaisquer outros elementos”. No que ao casamento civil respeita, estipula o art. 1615º que o mesmo é público e está sujeito, segundo a vontade dos nubentes, à forma fixada no CC e nas leis de registo (al. a)), ou à forma religiosa, nos termos de legislação especial (al. b). O art. 1616º dispõe que para a celebração do casamento é indispensável a presença dos contraentes, ou de um deles e do procurador do outro (al. a), do funcionário do registo civil, ou, nos casos de casamento civil sob forma religiosa, do ministro do culto, devidamente credenciado (al. b)), e de duas testemunhas, nos casos em que é exigida por lei especial (al. c). A vontade dos nubentes só é relevante quando prestada no próprio acto de celebração do casamento (art. 1617º), e é estritamente pessoal em relação a cada um deles (art. 1619º). Estipula, porém, o art. 1620º que: “1. É lícito a um dos nubentes fazer-se representar por procurador na celebração do casamento. 2. A procuração deve conter poderes especiais para o acto, a designação expressa do outro nubente e a indicação da modalidade do casamento”. Por seu turno, nestas matérias, e no que, ora, importa, dispõe o Código do Registo Civil: - no art. 43º: “1 - A parte pode fazer-se representar por procurador com poderes especiais para o acto. 2 - A procuração pode ser outorgada por documento assinado pelo representado, com reconhecimento presencial da assinatura, por documento autenticado ou por instrumento público. 3 - Se a procuração tiver sido passada a advogado ou solicitador, é suficiente documento assinado pelo representado”; - no art. 44º: “1 - No acto da celebração do casamento só um dos nubentes pode fazer-se representar por procurador. 2 - A procuração para representação de um dos nubentes ou para concessão do consentimento necessário à celebração do casamento de menores deve individualizar o outro nubente e indicar a modalidade do casamento”; - no art. 135º, nº 1: “Aqueles que pretendam contrair casamento devem declará-lo, pessoalmente ou por intermédio de procurador, numa conservatória do registo civil e requerer a instauração do processo de casamento”; - no art. 136º “1 - A declaração para casamento deve constar de documento com aposição do nome do funcionário do registo civil ou de documento assinado pelos nubentes e apresentado pessoalmente, pelo correio ou por via electrónica, nos termos a regulamentar em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. 2 - A declaração deve conter os seguintes elementos: a) O nome completo, idade, estado, naturalidade e residência habitual dos nubentes; … g) A modalidade de casamento que os nubentes pretendem contrair e a conservatória ou paróquia em que deve ser celebrado e, no caso de casamento civil sob forma religiosa, a indicação do ministro do culto credenciado para o acto; …”; - no art. 154º, nº 1: “No acto da celebração do casamento devem estar presentes os nubentes, ou um deles e o procurador do outro, e o conservador”. No que respeita à invalidade do casamento civil, regem os arts. 1627º e ss. Nos termos do art. 1627º “é válido o casamento civil relativamente ao qual não se verifique alguma das causas de inexistência jurídica, ou de anulabilidade, especificadas na lei”. No que, ora, importa, são causas de inexistência do casamento (art. 1628º), o casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração da vontade de um ou ambos os nubentes, ou do procurador de um deles (al. c)), e o casamento contraído por intermédio de procurador, quando seja nula por falta de concessão de poderes especiais para o acto ou de designação expressa do outro contraente (al. d). Nos termos do art. 1631º, “1. O casamento juridicamente inexistente não produz qualquer efeito jurídico e nem sequer é havido como putativo. 2. A inexistência pode ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial”. No que, ora, importa, é causa de anulabilidade do casamento a sua celebração por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade (art. 1631º, al. b), sendo o casamento anulável por falta de vontade, quando o nubente, no momento da celebração, não tinha a consciência do acto que praticava, por incapacidade acidental ou outra causa (art. 1635º, al. a)). Nos termos do nº 2 do art. 1640º, “…a acção de anulação só pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou; mas podem prosseguir nela os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa”, e, nos termos do art. 1644º, a acção de anulação só pode ser instaurada dentro dos três anos subsequentes à celebração do casamento ou, se este era ignorado do requerente, nos seis meses seguintes ao momento em que dele teve conhecimento. Assim definido, em traços gerais, o regime do casamento, apreciemos as questões concretamente colocadas pelos apelantes, desde já se adiantando que, também em matéria de aplicação do direito, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida. Começando pelo pedido subsidiário formulado pelos apelantes, de declaração de anulabilidade do casamento celebrado entre o Sr. JB… e a R., dir-se-á que o mesmo sempre teria de improceder, porquanto, como referiu o tribunal recorrido, os AA. não têm legitimidade para intentar a acção em causa, como resulta do disposto no nº 2 do art. 1640º. O Código elenca como causa de anulabilidade do casamento a falta de vontade por parte de um ou de ambos os nubentes, ou a vontade viciada por erro ou coacção (art. 1631º, al. b)), concretizando, no art. 1635º, que essa falta de vontade se verifica quando o nubente, no momento da celebração do casamento, não tinha a consciência do acto que praticava, por incapacidade acidental ou outra causa (al. a), quando o nubente estava em erro acerca da identidade física do outro contraente (al. b), quando a declaração da vontade tenha sido extorquida por coacção física (al. c), ou quando o casamento tenha sido simulado (al. d). E quando estabelece a legitimidade para a acção de anulação fundada na falta de vontade no art. 1640º, faz uma distinção entre a “anulação por simulação”, caso em que a acção “pode ser requerida pelos próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento” (nº 1), e a anulação “nos restantes casos de falta de vontade”, em que a acção “só pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou; mas podem prosseguir nela os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa”. Não se deixará de referir, ainda, que também não lograram os apelantes demonstrar a alegada falta de vontade do Sr. JB… em contrair casamento, pelo que não se verifica, também, a invocada causa de anulabilidade do casamento. E será o casamento inexistente, como propugnam, sendo certo que têm legitimidade para pedir a respectiva declaração de inexistência? Analisando a factualidade tida por provada, nomeadamente o ponto 4º) da fundamentação de facto, conclui-se que na celebração do casamento entre o Sr. JB…, representado pelo procurador, Sr. Dr. JF…, e a R., não faltou a declaração de vontade daquele, que foi feita pelo referido procurador [15] [16]. Por outro lado, a procuração referida no ponto 3º) da fundamentação de facto mostra-se subscrita pelo Sr. JB…, sendo certo que, tendo improcedido a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não resultou provado que aquele não tenha tido consciência da outorga daquela procuração, não a tenha ditado, nem acordado, nem compreendido cabalmente. Sustentam os apelantes que a admissibilidade do casamento por procuração é excepcional, por aplicação restritiva do art. 1620, nº 1 [17], não se verificando, no caso, os pressupostos para tal, sendo o casamento inexistente por força do art. 1628º, al. c) [18]. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não sufragamos tal entendimento. É certo que a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada – nº 1 do art. 9º. Importa, contudo, não olvidar que o nº 2 do referido artigo estipula que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. O legislador português optou por admitir o casamento por procuração, quando é certo que há legislações europeias que, ou não o admitem (como a alemã), ou só excepcionalmente o permitem [19]. E a tal opção não terá sido alheio o facto de Portugal ser um país de emigração, “com população dispersa por territórios geograficamente bastante afastados” [20]. Mas nada se disse no mencionado artigo quanto à limitação dos casamentos por procuração às situações em que os nubentes se encontrassem geograficamente bastante afastados. E se tivesse sido essa a vontade do legislador, não o teria, certamente, deixado de consagrar (numa matéria em que as normas revestem eminentemente carácter imperativo), como o fez, por exemplo, o legislador italiano [21]. A pretendida interpretação restritiva do art. 1620º, nº 1, traduzir-se-ia na exigência de um novo requisito da procuração ad nuptias, para além dos referidos no nº 2 daquele preceito, que, em lado algum do CC, ou do CRC, encontra sustentação [22]. Não perfilhamos, pois, o entendimento dos apelantes nesta matéria, não se verificando, em consequência, a situação prevista na al. c) do art. 1628º. Os apelantes sustentam, também, a inexistência do casamento, nos termos da al. d) do referido artigo, porquanto a modalidade de casamento observada no casamento entre o Sr. JB… e a R. (casamento civil comum) não corresponde à modalidade de casamento ínsita na procuração (casamento civil urgente), não podendo valer interpretações extensivas, nem argumentos de maioria de razão, usados pelo tribunal recorrido, em face da natureza especialíssima da procuração ad nuptias. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não perfilhamos a argumentação dos apelantes. Afigura-se-nos inquestionável que atento o carácter “pessoal, puro e simples, perfeito e livre” do consentimento matrimonial [23], e o disposto no nº 2 do art. 1620º, “não pode a vontade do constituinte ser uma vontade incompleta, lacunosa e que o procurador integrará” [24]. Tal como se nos afigura inquestionável que a procuração ad nuptias é uma procuração especialíssima, porquanto específica o próprio acto para que outorga poderes representativos [25], para além de exigir que se individualize a pessoa do outro nubente [26] e se indique a modalidade do casamento [27]. Do que já discordamos é de que o casamento civil “urgente” seja uma modalidade de casamento, distinta da modalidade “comum”. Modalidades do casamento são o casamento civil e o casamento católico. No caso em apreço, o Sr. JB… constituiu seu bastante procurador o Sr. Dr. JF…, advogado [28], conferindo-lhe “poderes forenses gerais e especiais para o representar em casamento civil urgente, que pretende contrair com D. MF…”, tendo assinado a declaração para casamento, requerendo a instauração do competente processo de publicações [29]. Tal como se escreve no Parecer junto aos autos, nada obsta a que se cumule na mesma procuração a outorga de poderes forenses gerais, com os poderes especiais para representar no casamento. Não sendo o casamento urgente uma modalidade de casamento, consta da procuração a modalidade de casamento para que foi outorgada, o casamento civil. O casamento urgente, que ocorre na situação prevista no art. 1622º, não é mais uma modalidade de casamento, como que resulta claro do disposto no art. 1590º supra transcrito. E, ao contrário do sustentado pelos apelantes, é um casamento “menos exigente” em termos de formalidades, sem processo preliminar [30] e sem intervenção do funcionário do registo civil [31], para assegurar a legalidade do acto e conferir-lhe reconhecimento público, sendo os requisitos formais da cerimónia (art. 156º do CRC) adequados ao facto de não ter intervenção do funcionário do registo. Assim, sufragamos o entendimento do tribunal recorrido ao escrever que “… a menção de concessão de poderes para a concessão de um casamento civil urgente (arts.1590º, 1622º a 1624º do Código Civil) não limita a procuração a esta forma de celebração de casamento simplificado, tendo em conta: que a concessão essencial de poderes respeita a concessão de poderes para a celebração de casamento civil; que a forma de casamento civil urgente dispensa apenas as formalidades e solenidades no acto (processo preliminar e presença de Conservador de Registo Civil); que, a 16 de Março de 2012, na mesma data da procuração de 16 de Março de 2012, corrigida a 19 de Março de 2012, o nubente falecido subscreveu a declaração preliminar de casamento (arts.1610º ss do Código Civil), dispensada no casamento civil urgente, o que permite interpretar que a menção de urgência não revestiu qualquer condição essencial do mandato (podendo ser usada em sentido comum ou como o limite máximo até ao qual poderia ser usada na celebração do casamento civil); que foi celebrado casamento civil, com todas as formalidades, que não houve necessidade de dispensar (processo preliminar e presença de Conservador de Registo Civil); que, quem outorga poderes para um casamento com menores garantias formais, necessariamente outorga poderes para o acto celebrado com todas as garantias formais e legais”. Porquanto se deixa escrito, conclui-se que improcede a apelação, devendo manter-se a sentença recorrida. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida. Custas pelos apelantes. * Lisboa, 2019.01.22 Cristina Coelho Luís Filipe Pires de Sousa Carla Câmara [1] Como se escreveu no Ac. do STJ de 19.2.2015, P. 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, “… enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”. Optou-se por não convidar os apelantes a apresentar novas conclusões “corrigidas”, por serem perfeitamente perceptíveis, e passíveis de “limitação”. [2] Existe manifesto lapso de escrita, pretendendo o tribunal recorrido fazer referência a fls. 70 dos autos. [3] Com interesse sobre esta matéria, ver Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 233 a 235. [4] Que o Sr. Joaquim Bento de Oliveira não conhecia, mas de quem tinha ouvido falar, e que o visitou cerca de uma semana antes de falecer. [5] Embora, segundo a testemunha, “Às vezes dizia algumas coisas que tinha feito, e tinha sido o Z… que tinha feito”. [6] O que a testemunha situou numa semana antes da morte do Sr. Joaquim Bento de Oliveira. [7] Conforme ilustra Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., 1997, pág. 214, “(…) Se existe controvérsia sobre se o condutor do veículo X passou o cruzamento com o sinal vermelho e é dada resposta negativa sobre esse facto, não significa que se possa concluir, só através dessa resposta, que o condutor transitou com o sinal verde ou amarelo. (…)”. [8] Art. 376º do CC. [9] Mais lhe dizendo que já o deveria ter feito há 20 anos. [10] Tal como justificou o tribunal recorrido, e não “porque sim”. [11] Por falta da declaração do nubente, decorrente de uma das seguintes causas sucessivas invocadas: de falsidade da procuração para casamento, autenticada por advogado (arts.371º e 372º, ex vi do art. 377º do CC); de falta de consciência de outorga da procuração pelo falecido (art. 257º do CC); e de inadmissibilidade de intervenção de procurador na declaração para casamento, em face da interpretação restritiva do art.1620º do CC. [12] Com base na nulidade da procuração, por falta de concessão de poderes especiais para o acto, não ratificado pelo mandante nos termos do art. 268º, nº 1 do CC. [13] Diploma de que serão todos os artigos citados sem menção expressa a outro diploma legal. [14] A que se referem os arts. 1622º a 1624º. [15] Como escrevem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em Curso do Direito da Família, Vol. I, Introdução, Direito Matrimonial, 4ª ed., pág. 226, nota (150), “… o instituto do casamento por procuração não abre excepção ao princípio da actualidade do mútuo consentimento, pois o consentimento do nubente que se fez representar é prestado nesse caso no próprio acto de celebração (através do procurador) e não na data (anterior) em que foi passada a procuração, a qual pode ser livremente revogada até à celebração do casamento”. [16] Quanto à questão de saber se o procurador ad nuptias é um verdadeiro representante ou um simples núncio, sustentam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, na ob. cit., págs. 228/230, que tudo depende dos termos do acordo entre procurador e constituinte, enquanto, Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, 2ª ed. rev. e act., Vol. IV, pág. 136, entendem que é um simples núncio, definindo-o como “um mero transmissor da vontade da parte, é um puro mensageiro ou porta-voz do principal. É um representante na declaração, como alguns dizem (H. Dölle, …), não um representante na vontade”. [17] Sustentados no Parecer do Sr. Dr. Prof. Jorge Duarte Pinheiro que juntaram aos autos. [18] Na medida em que, segundo o Parecer a que se alude na nota anterior, “não se verificava na altura aquela que era uma condição de eficácia da procuração ad nuptias (uso para celebração do casamento quando os nubentes se encontrem longe um do outro, não tendo facilidade, ou mesmo possibilidade, de se reunirem no mesmo lugar para a realização do acto)”, sendo, consequentemente ineficaz qualquer declaração do procurador. [19] Ver Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 133, em anotação ao art. 1620º. [20] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit. [21] Ver págs. 22/23 do Parecer junto aos autos. [22] Atente-se que, na declaração para casamento, estão os nubentes obrigados a indicar a sua residência habitual (art. 136º, nº 2, al. a) do CRC), tendo, no caso, sido indicada a mesma morada para ambos os nubentes (fls. 65), tal como se fez constar, aliás, das procurações, sem que tal suscitasse qualquer reacção do Sr. Conservador. [23] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 226. [24] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 228. [25] Ainda os referidos autores, na ob. cit., pág. 227, e nota (153). [26] Cuja omissão importa a nulidade da procuração e a inexistência do casamento, nos termos da al. d) do art. 1628º. [27] Cuja omissão não importa já a nulidade da procuração. [28] Sendo a procuração passada a advogado “é suficiente documento assinado pelo representado” (nº 3 do art. 43º do CRC), ao contrário do alegado pelos apelantes. [29] E se atentarmos na declaração junta a fls. 65 dos autos, verificamos que no local onde constam os dizeres: “Declaram ainda que o seu casamento é (civil/católico/civil sob forma religiosa) _________, …”, se mostram riscados os dizeres “católico/civil sob forma religiosa”, não obstante nada se tenha escrito no espaço disponível para tal. [30] Com as exigências constantes dos arts. 135º a 137º e 138º do CRC, com publicidade (arts. 140º e 141º), controlado pelo conservador e sujeito a despacho de autorização (arts. 143º e 144º do CRC). [31] Arts. 154º e 155º do CRC. |