Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MICAELA SOUSA | ||
Descritores: | INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA CONTRATO DE FORNECIMENTO DE SERVIÇOS INFORMÁTICOS AUTARQUIA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/15/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1 I – Além do conceito de relação jurídica administrativa, enquanto critério para determinar a competência material dos tribunais administrativos, o artigo 4º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais enuncia as matérias que, em concreto, são identificadas como sendo da competência dos tribunais administrativos, o que abrange, designadamente, questões atinentes à interpretação, validade e execução de contratos administrativos e de quaisquer outros contratos, administrativos ou não, celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. II – No âmbito do Código dos Contratos Públicos, a noção de contratos públicos é mais abrangente do que a noção de contrato administrativo, abrangendo não só os contratos que tenham natureza administrativa, mas também contratos privados celebrados por entidades públicas e ainda alguns contratos privados celebrados entre sujeitos privados. III – Um litígio decorrente de um contrato de prestação de serviços, celebrado por uma autarquia local, a que é temporalmente aplicável o Código dos Contratos Públicos, está sujeito à jurisdição administrativa por ser um contrato administrativo, conforme decorre da conjugação do disposto nos artigos 1º, n.º 2, 2º, n.º 1, c), 3º, n.º 1, a). 16º, n.º 2, a), 280º, n.º 1, a) e 450º do referido diploma legal. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO FRESOFT - SOLUÇÕES INFORMÁTICAS, LDA.2 deduziu em 18 de Março de 2024 requerimento de injunção3 pedindo a notificação de FREGUESIA DE SÃO LUÍS4 para proceder ao pagamento da quantia de 9 508,97 €, sendo 7 909,43 € relativos a capital e 1 247,54 € a título de juros de mora e outras quantias referindo que a requerida celebrou consigo, em 7 de Março de 2018, contrato de fornecimento de serviços informáticos, na sequência do que lhe prestou serviços e foram emitidas diversas facturas, que, remetidas à requerida trimestralmente, por esta não foram pagas. Notificada a requerida, esta deduziu oposição5 invocando a excepção de incompetência absoluta do tribunal e pedindo a sua absolvição da instância, com fundamento no facto de o contrato de prestação de serviços em causa ser um contrato administrativo, conforme decorre do estatuído no art.º 280º, n.º 1, a) do Código dos Contratos Públicos6, tendo assumido perante a Junta de Freguesia de São Luís, outorgante e contraente público, que tem como missão a satisfação de necessidades colectivas (i.e., de interesse público), o dever de prestar o serviço de manutenção de software aplicacional, sujeito a um regime substantivo de direito público, pelo que são os tribunais administrativos os competentes para a apreciação da causa, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.7 Mais suscitou a verificação de erro na forma de processo e impugnou os factos alegados referindo que a requerente deixou de cumprir as obrigações contratuais desde 2020 e, apesar de comunicado o incumprimento, nada fez, pelo que a requerida considerou o contrato resolvido e nada há a pagar porque os serviços não foram prestados. Em 8 de Julho de 2024 foi proferido despacho8 a convidar a autora a aperfeiçoar o seu requerimento inicial e a se pronunciar sobre as excepções deduzidas, o que esta veio fazer, por requerimentos de 21 de Agosto de 20249, explicitando, no primeiro que: • O contrato celebrado era uma prestação de serviços em regime de avença, que envolvia a prestação de forma continuada, tendo-se obrigado a instalar na ré versões actualizadas das aplicações, bem como a solucionar os problemas decorrentes da sua utilização; • Nesse âmbito, disponibilizou actualizações dos seguintes serviços: a) Contabilidade Autárquica Local a. Reconciliação Bancária b) Facturação – Emissão de Guias; c) Gestão de Pessoal – Vencimentos; d) Gestão Património – Inventário: a. Estatísticas e) SIADAP – Sistema de Avaliação a. Objectivos f) Licenciamento de Canídeos; g) Gestão de cemitérios: a. Estatísticas h) Gestão de Correspondência: a. Digitalização de documentos; • O serviço era prestado, por meios electrónicos, à distância e em horário que não afectasse a prestação laboral da ré e prestou ainda serviços através de comunicações telefónicas e de correcção de problemas; • Foi acordado que as facturas seriam pagas até 30 dias contados a partir da data da sua emissão, sendo que a facturação incluía três meses de prestação de serviço; • O contrato renovou-se automaticamente em 7 de Março de 2020 e a 7 de Março de 2022 e em 25 de Fevereiro a ré enviou ofício a solicitar a oposição à renovação do contrato, incumprindo a antecedência prevista, pelo que permaneceu válido até 7 de Março de 2024, tendo sido prestados os serviços e sendo devida a contrapartida acordada. E quanto às excepções deduzidas referiu que a ré se encontra numa posição em que está desprovida de poderes públicos, actuando como se de particular se tratasse, sendo o contrato regulado pelo Direito civil, não tendo sido submetido às regras da contratação pública, pelo que a competência, em razão da matéria, cabe ao tribunal judicial, concluindo pela não verificação da excepção de incompetência e tão-pouco de erro na forma de processo. Em 21 de Novembro de 2024 foi proferida sentença que julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e absolveu a ré da instância.10 É desta decisão que a autora interpõe o presente recurso, cujas alegações concluiu do seguinte modo11: 1 – A Recorrente vem interpor Recurso da Sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Lisboa, que em suma, declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria. 2 – Para tal, sustentou que a relação contratual entre as partes consubstanciava uma relação jurídico-administrativa e que, por esse facto, a competência material para julgar a causa pertencia aos tribunais administrativos. 3 – O presente Recurso versa sobre matéria de direito, conforme dispõe o artigo 639.º n.º 2 do CPC. 4 – A Recorrente entende que foi violada a norma prevista no artigo 4.º n.º 1 al. e) do ETAF. 5 – Tendo em conta que embora o legislador tenha submetido a aquisição de serviços por pessoas coletivas de direito público a procedimentos específicos de contratação pública, a verdade é que nos presentes autos o mesmo não sucedeu, pelo que não se pode aplicar esta norma. 6 – O contrato celebrado pelas partes não foi submetido a qualquer procedimento pré-contratual de direito público, nem menciona qualquer norma de direito público. 7 – O contrato foi celebrado de acordo com a autonomia privada, estabelecendo-se nele cláusulas, que à luz do direito público seriam ilegais. 8 – Como exemplo veja-se a cláusula 9.ª do contrato que estabelecia a vigência por 24 meses, estando sujeita a renovações automáticas. 9 – Sendo notório o afastamento do regime de direito público. 10 – Mais se refira, que é entendimento uniforme da doutrina e jurisprudência que é em face do pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos, causa de pedir, em que o mesmo se apoie, e tal como a relação jurídica é pelo Autor delineada na petição, que cabe determinar a competência. 11 – Neste sentido veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 11 de janeiro de 2018, processo n.º 778/17.2T8FAR.E1, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09 de novembro de 2017, processo 8214/13.7TBVNG-A.P1.S1, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 02 de março de 2010, processo n.º 736/04.7TBCTB-A.C1, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11 de dezembro de 2014, processo n.º 816/13.8TVLSB.L1-2, disponíveis em: www.dgsi.pt 12 – A Recorrida em sede de oposição à injunção alegou a existência de uma relação de cariz administrativo, regulada por normas de direito administrativo. 13 – E o Tribunal a quo, erradamente, aderiu aos argumentos invocados em sede de oposição, descurando, por completo a causa de pedir que havia sido invocada pela Recorrente. 14 – Neste sentido veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 02 de março de 2010, processo n.º 736/04.7TBCTB-A.C1 […] 15 – Tendo em conta que, no requerimento injuntivo a Recorrente invocou a celebração do contrato de prestação de serviços, com a Recorrida, não se mencionando quaisquer normas de direito público reguladoras da relação material controvertida, só podia concluir-se pela competência dos tribunais judiciais. 16 – Até porque o Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, já se havia julgado competente para conhecer do mérito da causa em processos em tudo semelhantes aos dos presentes autos. 17 – Nomeadamente no processo n.º 108275/23.4YIPRT, por despacho datado de 18 de janeiro de 2024, processo n.º 108283/23.5YIPRT, por despacho datado de 23 de janeiro de 2024, no processo n.º 108380/23.7YIPRT, por despacho datado de 01 de março de 2024, no processo n.º 87641/23.2YIPRT, por despacho datado de 06 de março de 2024, no processo n.º 111502/23.4YIPRT, por despacho datado de 06 de março de 2024 e no processo n.º 111568/23.7YIPRT, por despacho datado de 14 de março de 2024. 18 – Processos em que se discutia um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e diversas Freguesias. 19 – E que por isso, era em tudo semelhante ao caso dos presentes autos. 20 – Também os Tribunais superiores já se pronunciaram […] 21 – Tudo conjugado, o Tribunal a quo deveria ter-se declarado competente, na medida em que foi intenção do legislador subtrair aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação de litígios que não sejam resultantes de execução de contratos administrativos ou contratos celebrados nos termos da legislação da contratação pública. 22 – O que ocorre nos presentes autos. 23 – Pelo que, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue o tribunal competente em razão da matéria. Não foram apresentadas contra-alegações. * II – OBJECTO DO RECURSO Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil12, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação.13 Analisadas as conclusões do recurso a questão a apreciar é a competência absoluta do tribunal, em razão da matéria, para conhecimento do objecto da causa. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * III – FUNDAMENTAÇÃO 3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra. * 3.2 APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Da Competência Absoluta em razão da Matéria O Tribunal de 1ª instância, após tecer considerações sobre o critério para a aferição da competência do tribunal, apreciou a questão da competência em razão da matéria nos seguintes termos: “As competências dos Tribunais administrativos estão definidas no artigo 4.º do ETAF, nomeadamente: 1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: […] e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; - destacado nosso. […] A questão diz respeito à interpretação da alínea e) do n.º1, que estabelece a competência dos tribunais para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas à Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Uma pessoa coletiva de direito público é aquela que prossegue o interesse público de forma imediata, necessária e originária, que exerce poderes públicos e está sujeita a deveres públicos em nome próprio. A freguesia é a pessoa coletiva de direito público territorial, dotada de órgãos representativos, que visa a prossecução de interesses próprios da população na respetiva circunscrição - Lei n.º 79/77, de 25 de outubro. Coloca-se o problema da interpretação da noção de contratos administrativos e outros celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública. O artigo 1.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pela D.L. 18/2008, de 29 de janeiro, introduz o diploma do seguinte modo: 1- O presente Código estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo. 2 - O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação. Já o artigo 16.º daquele diploma, inserido na parte ii do mesmo, denominada Contratação Pública, estabelece o seguinte: 1 - Para a formação de contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adotar um dos seguintes tipos de procedimentos: a) Ajuste direto; b) Consulta prévia; c) Concurso público; d) Concurso limitado por prévia qualificação; e) Procedimento de negociação; f) Diálogo concorrencial; g) Parceria para a inovação. (…) Nos termos do artigo 2.º, n.º1 daquele diploma são entidades adjudicantes, além do mais, c) As autarquias locais; Assim, salvos os contratos excluídos no artigo 4.º e a contratação excluída no artigo 5.º, os contratos celebrados pelas autarquias locais estão sujeitos ao regime da contratação pública estabelecida na parte ii do Código da Contratação Pública. O artigo 20.º, além do mais, rege o procedimento para aquisição de serviços. […] 1 - Para a celebração de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, pode adotar-se um dos seguintes procedimentos: Na parte III daquele Código, com a epígrafe Regime substantivo dos contratos administrativo, o artigo 280.º estabelece que 1 - A parte iii aplica-se aos contratos administrativos, entendendo-se como tal aqueles em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que se integrem em qualquer uma das seguintes categorias: a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público; b) Contratos com objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos; c) Contratos que confiram ao cocontratante direitos especiais sobre coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público; d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do cocontratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. Não obstante a natureza administrativa do contrato, o n.º4 salvaguarda a aplicação subsidiária do direito civil a estes litígios: 4 - Em tudo quanto não estiver regulado no presente Código ou em lei especial, ou não resultar da aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, é subsidiariamente aplicável à execução dos contratos administrativos, com as necessárias adaptações, o direito civil. O artigo 450.º daquele Código define como aquisição de serviços o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço. Parece ser de concluir pela aplicação da parte III do referido diploma se uma das partes for contraente público e se estivermos perante um contrato administrativo. Analisado o caso sub iudice e as normas supra elencadas, consideramos que o pedido e a causa de pedir formulados pela autora colocam o litígio no âmbito das relações jurídico-administrativas, nomeadamente pelo facto de o litígio se situar no âmbito da Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. No caso concreto, a freguesia de São Luís é uma autarquia local, sendo uma entidade adjudicante e, consequentemente, um contraente público. Por outro lado, o contrato de prestação de serviços de prestação de serviços informáticos parece ser de qualificar como um contrato administrativo, uma vez que não está excluído pelo disposto nos artigos 4.º e 5.º do Código de Contratação Pública. Ainda que assim não fosse, o legislador submeteu a aquisição de serviços por pessoas coletivas de direito público a procedimentos específicos de contratação pública. Ainda que recorrendo a figuras contratuais de direito privado, a legislação impõe a sujeição da entidade administrativa a procedimentos relativos à contratação pública. E o que está em causa é a interpretação, validade ou execução de um contrato, das suas renovações, mas também de uma decisão de cessação do mesmo. Temos, assim, de concluir que, sendo um contrato administrativo, é competente a jurisdição administrativa e não os tribunais judiciais. […]” Insurge-se a recorrente contra o assim decidido argumentando nos seguintes termos: i. O contrato celebrado entre as partes não foi submetido a qualquer procedimento pré-contratual regido por normas de direito público; ii. A ré figura no contrato numa posição desprovida de poderes públicos; iii. A cláusula que sujeita o contrato a renovações automáticas seria ilegal se se estivesse perante um contrato administrativo, que não pode ter duração superior a três anos; iv. As partes não sujeitaram o contrato a normas de direito público. Adiante-se, desde já, que não assiste razão à apelante. Tendo em conta que, nos termos do disposto no art. 38º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26-0814, a competência se fixa no momento em que a acção é proposta, importa identificar a causa de pedir e o pedido vertidos na petição inicial. Há, pois, que atender à relação jurídica controvertida e ao pedido formulado, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante. A questão da competência material do Tribunal será resolvida de acordo com a identidade das partes em juízo e em função dos termos da pretensão do autor e seus fundamentos, sem que interesse averiguar quais deveriam ser as partes e os termos da pretensão. Significa isto que é a estrutura da causa tal como é delineada pelas partes que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, sendo irrelevante para tanto qualquer ponderação sobre o mérito do pedido. A autora pretende obter o pagamento da quantia de 9 508,97 €, atinente aos serviços que terá prestado à ré, Freguesia de São Luís, conforme o contrato de fornecimento de serviços informáticos que com esta celebrou, em 7 de Março de 2018, ao abrigo da autonomia privada de ambas, tendo emitido diversas facturas, que, remetidas à requerida trimestralmente, por esta não foram pagas. Sendo estes os termos do litígio, impõe-se avaliar qual o tribunal competente para o dirimir. Face ao estatuído no art.º 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, no art.º 64º do CPC e no art.º 40º, n.º 1 da LOSJ, à jurisdição comum compete apreciar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional. A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Em função do primeiro, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial; por força do segundo - o critério da competência residual -, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial. À luz de tal critério residual, haverá que apurar se alguma lei estabelece jurisdição especial para a acção que vai propor-se. Se assim suceder, a acção deverá ser intentada perante essa jurisdição; no caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum. O pedido formulado na acção estriba-se na celebração de um contrato de prestação de serviços informáticos em que é parte a Freguesia de São Luís, aqui demandada/recorrida, que, como autarquia local, é uma pessoa colectiva territorial dotada de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (cf. art.ºs 235º, n.º 2 e 236º da Constituição da República Portuguesa), que se rege pelo Regime Jurídico das Autarquias Locais aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, pelo que importa determinar se para a preparação e julgamento da presente acção serão ou não competentes os tribunais administrativos. Nos termos do art. 212º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. Na senda deste normativo constitucional o art. 1º, n.º 1 do ETAF estipula que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.” Decorre desta norma uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos Tribunais administrativos para os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou seja, constitui esta a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos no confronto com os demais tribunais, sem prejuízo dos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição (como sucede, desde logo, com os casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 4º do ETAF). No entanto, o critério substantivo assente no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais” não deve ser entendido como absoluto, pois, como tem entendido o Tribunal Constitucional, “o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alterar o perímetro natural da jurisdição, quer atribuindo-lhe algumas competências em matérias de direito comum, quer atribuindo aos tribunais comuns algumas competências em matérias administrativas”15, daí que não constitua impedimento à atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa (como é o caso, por exemplo, das expropriações), ou, em sentido contrário, de atribuição à jurisdição administrativa de competências em matérias de direito comum. Poder-se-á também afirmar que este tipo de relação jurídica pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público. O conceito de relação jurídica administrativa assume-se como decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conceito que a doutrina tem procurado densificar e que maioritariamente tem reconduzido ao sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, regulada por normas de Direito Administrativo, e que serão aquelas em que “pelo menos um dos sujeitos seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8-10-2015, 77842/14.0YIPRT.G1.16 Relação jurídica administrativa é, por regra, aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração, de modo que nela pelo menos um dos sujeitos tem de actuar sob as vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público. Um dos modos mais frequentes de se estabelecerem relações jurídicas é através de contrato, que será administrativo quando se possa afirmar que através dele é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo, isto é, aquela que “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.”17 Como se discorre no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2019, 13312/17.5T8LSB.L1-6: “[…] como bem se chama à atenção em Acórdão do Tribunal de Conflitos, é “tendo sempre presente o conceito de relação jurídica administrativa que devem ser lidas e interpretadas as várias alíneas do art.º 4.º do ETAF”, sendo hoje pacífico que a “ lei passou, agora, a incluir na competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apenas a matéria derivada de contratos administrativos ou dos contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública. Isto dito, recorda-se que, por relação jurídico-administrativa deve considerar-se, no entender de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, toda “a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, inter-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.” Ainda que o conceito de relação jurídica administrativa seja decisivo para determinar a competência material dos tribunais administrativos, conforme cláusula geral positiva de atribuição que emerge do art.º 1º do ETAF, este diploma contém ainda no n.º 1 do seu art.º 4º uma enunciação de matérias que, em concreto, são identificadas como sendo da competência dos tribunais administrativos. Assim, quando o litígio não encontre acolhimento no elenco do n.º 1 do art.º 4º do ETAF, haverá que determinar o que define uma relação jurídica como sendo de natureza administrativa. Questões concretas que têm sido colocadas à jurisprudência quanto à delimitação de competências dos tribunais para acções relativas a contratos, têm vindo a ser resolvidas com recurso, sobremaneira à previsão das alíneas b), d), e) do n.º 1 do art. 4º do ETAF (e, na redacção anterior ao DL 214-G/2015, de 2 de Outubro, das alíneas b), e) e f) desse normativo legal). A este propósito refere Maria Helena Barbosa Canelas18: “Na verdade, é na área dos litígios relativos a contratos (e através daquelas normas) que sobretudo se operam os maiores desvios ao enunciado critério material (geral) de delimitação da competência dos Tribunais Administrativos […]. É que se bem que na exposição de motivos da Proposta de Lei de onde emergiu o actual ETAF se tenha referido que a atribuição de causas não administrativas à jurisdição administrativa na necessidade de superar «as maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns» que tradicionalmente se colocavam, quer pela dificuldade de distinguir o direito administrativo do direito privado quer pela confluência e interpenetração de ambos na regulação de uma mesma regulação jurídica, com as alterações entretanto introduzidas o ETAF acabou por ficar recheado de casos em que se exige essa distinção. […] Estas dificuldades de distinção não impediram o legislador de considerar administrativos aqueles contratos que sejam regulados, em aspectos substantivos do seu regime, por normas de direito público, exigindo, portanto, que se distinga entre contratos administrativa e civilisticamente regulados exactamente para estes mesmos efeitos.” Ora, como decorre da alínea e) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, e em sintonia com o critério geral material, os tribunais administrativos têm competência para as causas em que se aprecie a invalidade consequente dos contratos, fundada na invalidade do acto administrativo ou no procedimento que o precedeu e no qual se baseou, o que se justifica porque no contrato se projectam os vínculos administrativos do acto ou procedimento administrativo pré-contratual. Mas esta alínea e) do n.º 1 do art. 4º do ETAF estende ainda a competência dos tribunais administrativos a questões atinentes à interpretação, validade e execução não só de contratos administrativos mas também de quaisquer outros contratos, administrativos ou não, celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Daí que se entenda, tal como se dá conta no acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 8-10-2015, 77842/14.0YIPRT.G1 já acima mencionado: “[…] que a reforma do contencioso administrativo procedeu a um alargamento do âmbito da jurisdição da Administração em matéria contratual, passando os tribunais administrativos a ter competência para apreciar os litígios emergentes de todos os contratos públicos, ultrapassando a tradicional dicotomia entre contrato administrativo e contrato de direito privado da Administração Pública. Daí que não falta quem, enfatizando que toda a atividade contratual da Administração está sujeita às vinculações da prossecução do interesse público (art. 266º, nº 1 da Constituição da República) e aos princípios gerais da atividade administrativa (art. 266º, nº 2 da Constituição), sufrague o entendimento de deixar de fazer sentido a aludida dicotomia no contexto da relevância para definir o âmbito da jurisdição, na decorrência do que advogam que todos os contratos da Administração passaram a estar sujeitos aos tribunais administrativos Cfr., neste sentido, MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Reforma de 2002 e o âmbito de jurisdição administrativa, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 35 e PEREIRA DA SILVA, Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2009, pág. 492. Aliás, a este respeito, não será despiciendo trazer à colação a exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem ao ETAF […] onde se afirmava que “a jurisdição administrativa passa, também, a ser competente para a apreciação de todas as questões relativas a contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais contratos se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (…)”.” Importará, pois, saber, se o contrato cujo cumprimento está em discussão nos autos é passível de estar integrado no tipo de relações jurídicas abrangidas pelas alíneas do n.º 1 do art.º 4º do ETAF, designadamente, da alínea e). Estando em causa um contrato de aquisição de serviços informáticos, prestado por uma empresa comercial de natureza privada, que abrangia o tratamento informático da contabilidade da Freguesia, em sede de facturação, vencimentos, património, entre outros, parece ser claro que com ele não se visou a concretização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico-administrativo, quando prosseguido por ente público. Dispõe art.º 200º do Código de Procedimento Administrativo19 aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro: “1 -Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado. 2 - São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial. 3 - Na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer.” Em face do estatuído no CCP, a noção de contratos públicos é mais abrangente do que a noção de contrato administrativo, pois que aqueles abrangem não só os contratos que tenham natureza administrativa, mas também contratos privados celebrados por entidades públicas, quer ainda alguns contratos privados celebrados entre sujeitos privados (cf. art.ºs 1º e 3º do CCP). Como se refere no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 3-12-2015, 026/15: “[…] a designação de contratos públicos no âmbito do CCP não pretende delimitar a natureza jurídica pública e/ou administrativa de um contrato, não sendo incompatível com a aplicabilidade do Código de Contratos Públicos o facto de estar em causa uma relação jurídica de direito privado. E que, no âmbito do CCP, e independentemente de ser aqui aplicável, não é óbice à possibilidade de contratos de direito privado da administração serem regulados segundo princípios gerais de direito público ainda que não se trate de contrato administrativo.” Não há dúvida que a outorgante Freguesia de São Luís, porque autarquia local, é uma entidade ou contraente público. Contudo, como se referiu, tal não é bastante para qualificar a relação material em litígio, tal como configurada pela autora, como uma relação jurídica administrativa, a solucionar de acordo com normas substantivas de direito público, podendo assumir tão-só natureza essencialmente civil. Em consonância com o acima explanado, a competência dos tribunais administrativos depende da existência de uma relação jurídica administrativa abrangida pelo âmbito de jurisdição do art.º 4º do ETAF, sendo que para a delimitação deste âmbito contribui o CCP, no seu art.º 1º (que define o âmbito de aplicação do regime nele instituído), ao tornar claro que se encontram na esfera dos tribunais administrativos litígios atinentes a matéria contratual reportada a certo tipo de contratos. Neste sentido, como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-02-2019, 13312/17.5T8LSB.L1-6 já acima referido: “[…] como o chamam à atenção Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, vem o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro [maxime o respectivo artº 1º, na Redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de Julho] a tornar mais claro que a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF […] sujeita à apreciação dos tribunais administrativos os litígios em matéria contratual respeitantes a dois tipos/grupos: I)– Os contratos administrativos, cujas relações jurídicas emergentes são submetidas a um regime substantivo de direito administrativo, sendo que, devem como tal ser qualificados (em face dos artigos 1.º, 3.º e 8.º do CCP) e, por conseguinte, submetidos à jurisdição administrativa: (a)- os contratos que a própria lei directamente submete a um regime substantivo de direito público, sendo que integram este grupo: (i) os contratos administrativamente típicos previstos no Título II da Parte III do CCP; (ii) os demais contratos administrativos típicos previstos em legislação avulsa; e (iii) os contratos qualificados como administrativos pelas alíneas b) e c) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP [actualmente, art.º 280º, n.º 1, b) e c) do CCP, na redacção do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto, com início de vigência em 1 de Janeiro de 2018]; e (b)- os contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que, em conformidade com o disposto nos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), 1.º e 8.º do CCP, são administrativos quando uma das partes seja um contraente público e as partes expressamente submetam a um regime substantivo de direito público [actualmente, art.º 280º, n.º 1, a) do CCP, na redacção do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto]; II)– Os contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público, esteja ele previsto no CCP ou resulte de legislação avulsa: esta categoria compreende os contratos administrativos previstos na alínea d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP [alínea d) do n.º 1 do art. 280º], mas não se esgota nela, porque se estende a todos os contratos submetidos a regras pré-contratuais públicas, independentemente da natureza das prestações que eles possam ter por objecto.” Reitere-se que a actual alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, na redacção introduzida pelo DL N.º 214-G/2015, de 2 de Outubro substituiu o que na versão anterior se desenvolvia ao longo das alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, na sua versão original, de modo que para efeitos da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria relativa à validade, interpretação e execução dos contratos e bem assim à validade dos actos que precedem a sua celebração, o critério a atender é o do contrato administrativo, e para lá dele, o de estar em causa “quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Em face desta alínea e) do n.º 1 do art.º 4º do ETAF, a jurisdição administrativa, em matéria de contratos, não se circunscreve, pois, aos contratos administrativos, estendendo o âmbito da jurisdição administrativa a «quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas de direito público ou outras entidades adjudicantes», ou seja, o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotados pelo art. 4.º/1 do ETAF, mas não é o único critério do qual ele faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos, pois há outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação pública. Estão, assim, sujeitos à jurisdição administrativa, em matéria de litígios sobre contratos, quer os contratos administrativos – ou seja, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade constantes das alíneas do art.º 280.º, n.º 1 do CCP20 -, quer os contratos, independentemente da sua qualificação ou não como contratos administrativos, submetidos a regras de contratação pública. De acordo com o art.º 280.º, n.º 1 do CCP são qualificáveis como contrato administrativo: a) Os contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de direito administrativo em razão da natureza pública do seu objecto ou do seu fim, integrando este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d); b) Os contratos administrativos por determinação da lei, que abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cf. alínea a)) - são os contratos administrativos típicos previstos no título II da parte III do CCP e os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos na legislação avulsa; e c) Os contratos administrativos por qualificação das partes, que abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado, mas são contratos administrativos apenas porque assim as partes o querem e determinam (cf. alínea a) e art.ºs 3.º, n.º 1, b) e 8.º do CCP). Além do critério do contrato administrativo, o critério do contrato submetido a regras de contratação pública continua a atribuir competência à jurisdição administrativa – cf. art.º 4º, n.º 1, e), segunda parte do ETAF. Daqui se retira que a competência da jurisdição administrativa, em matéria de contratos, não se afere exclusivamente pela natureza administrativa das relações jurídicas em litígio e o CCP, ao qualificar um contrato como contrato administrativo, estabelece a natureza administrativa da respectiva relação jurídica, daí que um litígio decorrente de um contrato de prestação de serviços, celebrado por uma pessoa colectiva pública, a que é temporalmente aplicável o CCP (como é o caso), está sujeito à jurisdição administrativa por ser um contrato administrativo (ou seja, não há sequer necessidade de se recorrer ao critério de um contrato submetido a regras de contratação pública). Com efeito, as autarquias locais são «Entidades adjudicantes» e contraente público, para efeitos do disposto no CCP – cf. art.ºs 2º, n.º 1, c) e 3º, n.º 1, a) -, pelo que, com excepção dos contratos excluídos (art.º 4.º do CCP) e da contratação excluída (art.º 5.º do CCP), todos os contratos por si celebrados estão sujeitos ao regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP – cf. art.º 1º, n.º 2 do CCP. O contrato de prestação de serviços não é um dos contratos excluídos pelo art.º 4.º do CCP, não podendo a sua contratação considerar-se excluída pelo art. 5.º21 do CCP, desde logo porque o art.º 16.º, n.º 2, e) deste diploma legal considera «submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objeto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza: [...] e) Aquisição de serviços.» Daí que, tendo sido celebrado por uma autarquia local, é-lhe aplicável o regime da contratação pública e é um contrato administrativo, atento o disposto no art.º 280º, n.º 1, a) do CCP, pois que tem a natureza de contrato administrativo todo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que assim seja qualificado, como contrato administrativo, no título II da parte III do CCP, como é o caso (o art.º 450.º do CCP define contrato de aquisição de serviços como “o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço»”). A este contrato são aplicáveis, em tudo quanto não estiver regulado no CCP ou em lei especial e não for suficientemente disciplinado por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, subsidiariamente, as regras do direito civil, o que significa que o facto de o seu conteúdo substantivo ser essencialmente regulado pelo direito privado não significa que não possa configurar uma relação jurídica de natureza administrativa – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2022, de 21 de Junho22, parcialmente transcrito na decisão recorrida, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “Compete à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público.” Assim, contrariamente ao sustentado pela recorrente, está em apreciação neste processo a execução de um contrato qualificado, de acordo com o estabelecido no CCP, como contrato administrativo, ainda que não tenha sido submetido a um procedimento pré-contratual regido por normas de direito público e o seu conteúdo não seja regulado por normas de direito administrativo. Deste modo, mostrando-se preenchida a fattispecie do citado art.º 4º, n.º 1, alínea e) do ETAF, há que concluir que materialmente competentes para a preparação e julgamento do presente litígio são os tribunais administrativos, tal como se concluiu na decisão recorrida. Improcede, assim, a apelação, devendo manter-se inalterado o decidido. * Das Custas De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria. Uma vez que a apelante decaiu na pretensão recursória que trouxe a juízo, as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida. As custas ficam a cargo da apelante. * Lisboa, 15 de Julho de 202523 Micaela Sousa João Bernardo Peral Novais Diogo Ravara _______________________________________________________ 1. Da responsabilidade exclusiva da relatora – cf. art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil. 2. NIF .... 3. Ref. Elect. 25457275. 4. NIF .... 5. Ref. Elect. 150491672. 6. Aprovado pelo DL 18/2008, de 29 de Janeiro, adiante designado pela sigla CCP. 7. Adiante designado pelo acrónimo ETAF. 8. Ref. Elect. 152042134. 9. Ref. Elect. 26195982 e 26195982. 10. Ref. Elect. 154054832. 11. Suprimiram-se transcrições de acórdãos que não se traduzem em indicação dos fundamentos por que pede a alteração da decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 639º, n.º 1 do CPC. 12. Adiante designado pela sigla CPC. 13. Cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135. 14. Lei da Organização do Sistema Judiciário, adiante designada pela sigla LOSJ. 15. In Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27-11-2008, Processo n.º 19/08 apud Maria Helena Barbosa Canelas, A amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual, Revista Julgar, n.º 15, pág. 107. 16. Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem. 17. Cf. Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo (vol. III), Lisboa, 1989, pp. 439-440. 18. Op. cit., pp. 110-111. 19. Adiante designado pela sigla CPA. 20. Correspondente ao anterior art.º 1.º, n.º do CCP. 21. Cujo n.º 1 estatui: “A parte ii não é aplicável à formação de contratos cujo objeto abranja prestações que não estão nem sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação.” 22. DR n.º 118/2022, Série I, de 21-06-2022. 23. Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página. |