Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LUÍS GOMINHO | ||
Descritores: | REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO ACUSAÇÃO ALTERNATIVA REJEIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/04/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | - Nesta fase do processo não está efectivamente arredada a aplicação do princípio in dubio pro reo e como o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de afirmar no seu acórdão n.º 439/2002, publicado no DR II Série, de 29/11/02, pág.ª 19592, tal princípio aplica-se igualmente em sede de instrução; “excluí-lo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa”. - Porém, se os factos alegados no requerimento de abertura de instrução, em termos de acusação alternativa (mesmo que superado o problema da sua indiciação), não são de molde a assegurar, desde logo em abstracto, a condenação do Arguido, pois que para aquela deficiência não há convite ao aperfeiçoamento e o tribunal de julgamento, como acima acabámos de conferir, também não está em condições legais de contornar a referida ausência de alegação então tal requerimento não satisfaz as exigências dos art.ºs 287.º, n.º 2, in fine e 283.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e deveria ter sido rejeitado. - É nulo o requerimento do assistente para abertura da instrução que não faça referência explícita ao elemento subjectivo do crime que imputa, sendo que “uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137.º (actualmente art. 130.º) do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4.º do Código de Processo Penal”. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa: I - Relatório: I - 1.) Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 226 a 231, em que a Mm.ª Magistrada do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa (Juiz 7), na sequência do requerimento para abertura daquela fase apresentado pela Assistente SB , pronunciou o Arguido JM pela prática do crime violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal, que ali lhe imputava, recorreu o Arguido mencionado para esta Relação, deixando consignadas no remate da sua discordância as seguintes conclusões: 1.ª - O presente recurso visa sindicar despacho de pronúncia do ora recorrente, pela alegada prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, nos termos de requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, em sequência de inquérito que findou com despacho de arquivamento. 2.ª - Os indícios recolhidos nas fases de inquérito e instrução são manifestamente insuficientes para sustentar um juízo de prognose positivo acerca da probabilidade de vir a ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança em julgamento. 3.ª - Consequentemente, a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 308.º, n.ºs 1 e 2, e 283.º, n.º 2 (ex vi art. 308.°, n.º 2), todos do Código de Processo Penal, bem como os princípios da legalidade (art. 29.º, n.º 1, da CRP e art. 1.º do CPP), da livre apreciação da prova (art. 127.° do CPP), da fundamentação (205.º, n.º 1, da CRP) e in dubio pro reo (32.º, n.º 2, CRP). 4.ª - A assistente alega que o recorrente lhe dirigiu um conjunto de injúrias e ameaças descritas e plasmadas no requerimento para abertura da instrução, em conjunto configuradas (pela assistente e assim também entendidas pelo Tribunal a quo) como consistindo na prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. 5.ª - Não foram carreados para os autos, quaisquer provas (testemunhal, documental ou outra) que permitam confirmar a ocorrência dos factos tal como descritos pela assistente. 6.ª - O Tribunal a quo baseou a decisão recorrida única e exclusivamente nas declarações inverídicas prestadas (e repetidas) pela assistente, compostas por um reduzido número de factos, não verificáveis, e nem sequer indirectamente corroborados. 7.ª - A repetição das alegações da assistente não pode ser entendida como multiplicação de elementos de prova ou servir para inflacionar a estimativa da probabilidade de condenação do arguido, ora recorrente, na fase de julgamento. 8.ª - A prova existente não permite estabelecer uma probabilidade elevada ou particularmente qualificada de os fatos invocados pela assistente terem ocorrido e terem ocorrido tal como por si descritos. 9.ª - Não se encontra satisfeito, nem sequer remotamente, o índice de suficiência bastante para a pronúncia exigido pela lei - mormente pelos artigos 308.º, n.ºs 1 e 2, e 283.º, n.º 2, do CPP, pelo que se encontram violados estes preceitos legais. 10.ª - Durante as fases de inquérito e de instrução, nenhuma testemunha confirmou a ocorrência dos factos alegados pela assistente. A testemunha que a assistente indica ter assistido aos alegados factos não prestou declarações e não foram chamadas aos autos quaisquer outras testemunhas que pudessem corroborar alguma das dimensões da história contada pela assistente. 11.ª - O próprio Tribunal a quo entendeu não ser útil nem necessário a produção de qualquer prova na fase de instrução, o que, aliado ao resumido teor da decisão de pronúncia ora sindicada, indicia um juízo preconcebido e pouco rigoroso. 12.ª - O arguido, ora recorrente, exerceu o seu direito a não prestar declarações, nos termos do disposto no art. 61.º, n.º 1, al. d), do CPP, o que não justifica a ficção de um qualquer princípio de in dubio contra reo ou a sobrevalorização das declarações da assistente, pela ausência de contraditório. 13.ª - O Tribunal a quo, ao limitar-se a sustentar a decisão recorrida na constatação de que “inexiste qualquer razão para desconsiderar o que a Assistente refere na denúncia e no depoimento que prestou no decurso do inquérito" interpreta mal o padrão legal aferidor da suficiência dos indícios para a pronúncia. 14.ª - As declarações da assistente, sendo consideradas e não tendo o devido sustento probatório complementar confirmatório (testemunho presencial dos factos por terceiro, histórico comprovado de comportamentos semelhantes, contexto ou circunstancialismo identificável e identificado), deverão ser tidas por insuficientes e não ser sobrevalorizadas. 15.ª - Perante estes mesmos indícios, o próprio Ministério Público, terminada a fase de inquérito (fase em que produziu a única prova destes autos), decidiu-se, e bem, pelo arquivamento, fundamentando a decisão, justamente com a escassez dos indícios recolhidos. 16.ª - Posteriormente, no debate instrutório, mudou o MP de posição, sem que nenhum novo indício se tenha recolhido, nivelando por baixo do padrão aferidor das suficiências indiciárias, introduzindo insegurança jurídica e promovendo uma decisão errada e injusta. 17.ª - A decisão recorrida resultou em manifesta violação do princípio in dubio pro reo, ínsito no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que as declarações da assistente são insuficientes para dissipar a dúvida razoável e insuperável sobre a prática dos factos, nos moldes por aquela relatados. 18.ª - Não cabe ao arguido, ora recorrente, desfazer tal dúvida, não impendendo sobre este nenhum dever ou ónus de contribuir para a descoberta da verdade material, cabendo à assistente provar os factos que alega, bem como o preenchimento dos pressupostos do crime em causa. 19.ª - Não existe na lei penal qualquer presunção de autoria, de ilicitude, de culpabilidade ou de punibilidade da qual possa o Tribunal a quo ter-se valido para decidir pronunciar o arguido, ora recorrente. 20.ª - Impõe-se in casu a aplicação do princípio in dubio pro reo e a decisão de não pronúncia. Não se encontra nos autos prova condenatória com uma "certeza ou probabilidade razoável" que permita vencer o ónus da correspondente dúvida razoável", isto porque o exercício do direito ao silêncio por parte do arguido não pode equivaler-se a um juízo desfavorável ou de descrédito. 21.ª - Entender-se que o Tribunal a quo decidiu pronunciar ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127.º do CPP equivale a fazer operar sem limites este princípio ou, alternativamente, considerar o mesmo princípio como método para integrar lacunas da tese de acusação, o que é manifestamente intolerável. 22.ª - As provas que poderão ser livremente apreciadas pelo julgador são apenas as provas que existem na realidade, razão pela qual se encontra in casu extrapolado e violado o art. 127.° do CPP. 23.ª - A decisão recorrida acolhe acriticamente e sem escrutínio, todos os elementos das declarações da assistente, o que não pode aceitar-se. 24.ª - Exemplificando, nada se refere na decisão recorrida acerca: a) das palavras que a assistente alega, em diferentes momentos processuais, terem-lhe sido dirigidos na noite de 13 de junho de 2019, cujo relato não é totalmente coerente; b) da ausência de confirmação do facto de a filha do casal ter presenciado os factos; c) da ausência de confirmação do facto de a assistente ter sido pernoitado na sua viatura ou ter sido acolhida por amigos na noite de 14 de junho de 2019, nos termos em que esta diz tal ter ocorrido. Tal escrutínio era devido e obrigatório para a descoberta da verdade material, mas também para aquilatar do preenchimento dos pressupostos do crime de violência doméstica imputado ao recorrente. 25.ª - A decisão recorrida revela a ausência de um juízo objetivo e completo, parecendo indiciar que o escrutínio realizado pelo Tribunal a quo se cingiu a acompanhar a mudança de posição do Ministério Público, o que subverte a lógica processual e é inaceitável. 26.ª - Inexistindo qualquer outro indício para além da versão da assistente e perante o reduzido escrutínio operado pelo Tribunal a quo, conclui-se que a decisão recorrida viola o princípio da legalidade (arts. 29.º, n.º 1, da CRP e art. 1.º do CPP), da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), da fundamentação (205.º, n.º 1 da CRP) e in dubio pro reo (32.º, n.º 2, CRP). 27.ª - Razão pela qual se impõe a reversão da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere inexistente ou, ao menos, escassa e insuficiente a prova produzida. 28.ª - Resulta evidente também a inexistência de indícios suficientes para sustentar um juízo de prognose positivo quanto à probabilidade de ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança em julgamento, 29.ª - Não se encontrando provado o preenchimento dos pressupostos do crime p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, 30.ª - Pelo que se encontram violados os arts. 308.°, n.ºs 1 e 2, e 283.º, n.º 2 (ex vi art. 308.º, n.º 2), todos do Código de Processo Penal. Termos em que devidamente apreciados os argumentos do presente recurso, deve o mesmo ser declarado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho de pronúncia recorrido e doutamente operada a sua substituição por despacho de não pronúncia, com o que se respeitará a Lei, cumprirão os ditames do Direito e se fará a costumada Justiça. I - 2.1.) Respondendo ao recurso interposto, concluiu a Assistente SB : 1.º - O recurso que ora se contra-alega limita-se a tentar contrariar tudo quanto declarado pela Assistente, apelidando as suas declarações como inverídicas, sem justificar ou argumentar o que quer que seja. 2.º - O douto tribunal a quo, andou e bem, ao ter pronunciado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, alegadamente praticado contra a Assistente. 3.º - Atendendo que as declarações que esta prestou, tanto no inquérito, como os factos que resultam do Requerimento de Abertura de Instrução, são mais que suficientes para o arguido ter sido pronunciado. 4.º - Contrariamente a tudo por este alegado: "I - As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. II - O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.° do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação." 5.º - Atente-se, Venerandos Desembargadores, que após os factos relatados e descritos pela Assistente, nas noites de 13 e 14 de junho de 2019, os quais deram origem ao auto da PSP, aquela nunca mais retornou à residência do casal, tendo passado a residir em casas de acolhimento, Ovar e Castelo Branco, para sua segurança e proteção. 6.º - A conjugação destes factos, com aqueles denunciados no auto da PSP, são mais que suficientes para a formação da convicção da existência de um crime, e, in casu, de quem foi o seu agente. 7.º - E, é o próprio Recorrente que o afirma nas suas motivações de recurso, designadamente, a fls. 6, ao citar o Prof. Germano Marques da Silva, "A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (...)". 8.º - Os factos denunciados pela Assistente, e a sua conjugação com tudo quanto sucedido depois, designadamente, a fuga de casa nas noites de 13 e 14 de junho de 2019, a participação feita na PSP, e, ter-se refugiado em casas de acolhimento deixando a sua filha menor, nunca mais regressando ao lar comum, com medo do arguido, são indícios mais que suficientes, dos quais resultam uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena. 9.º - Ora, tal como na maioria dos crimes de violência doméstica que ocorrem no nosso país, os factos ocorridos foram-nos apenas entre Recorrente e Recorrida, dentro de quatro paredes, sem a presença de terceiros, pelo que, testemunhas não podiam existir. 10.º - Mas, existe sim, e está tudo nos autos, o relatório de avaliação de risco e o auto de participação da PSP. 11.º - Na primeira casa de acolhimento onde ficou, em Castelo Branco, foi elaborado Relatório de Informação, junto a estes autos, a fls. 53, no qual descreve-se com precisão os atos violência a que a Assistente tem sido sujeita ao longo dos anos, pelo Arguido, 12.º - E, em concreto, o episodio ocorrido a 14 de junho, com o frasco de álcool, no qual a vítima voltou a relatar os factos nos precisos termos que o havia feito na participação da PSP, a fls. 2. 13.º - Atente-se que aquando a elaboração do relatório foi-lhe atribuído "um nível de risco severo de continuação dos comportamentos violentos e da perigosidade para a integridade física e emocional da vítima, pelo que o afastamento entre a vítima e agressor será a forma mais eficaz de garantir a segurança da utente". 14.º - Face a tudo quanto supra exposto, andou bem o douto tribunal a quo, ao ter pronunciado o arguido, por existirem efetivamente indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, contra a Assistente. 15.º - Sendo, por isso, aplicável ao despacho de pronúncia os mesmos pressupostos do despacho de Acusação pública, ex vi artigo 283.º, n.ºs 2 a 4 do CPP. 16.º - Ora, estipula o artigo 307.º, n.º 1, do CPP, que o juiz pode fundamentar o despacho de pronúncia (ou não pronúncia), por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas no requerimento de abertura de instrução. 17.º - Tendo o douto tribunal a quo, remetido para o RAI da assistente. 18.ª - O qual, diga-se, cumpre os pressupostos do artigo 283.º, n.ºs 2 a 4 do CPP, designadamente, aqueles referidos nas alíneas a) a g) do n.º 2 daquele normativo. 19.ª - Pelo que, não se entende, nem se aceita, o alegado pela Recorrente, relativamente à violação do disposto no artigo 308.º, n.º 1 e 283.º, n.º (?) do CPP, que igualmente se impugna. 20.º - Mais, alega o Recorrente, no artigo 22.º das suas conclusões, que foi violado o disposto no artigo 127.º, do CPP, ou seja, o princípio da livre apreciação de prova. 21.º - Considerando, o Recorrente, que o mesmo foi extrapolado e feito operar sem limites. 22.º - Contudo, desconhece-se, Venerandos Desembargadores, em que momento foi este princípio violado, ou, sequer, quais os factos concretos que permitam fazer tal interpretação, uma vez que a douta decisão recorrida não valorou prova. 23.º - A Meritíssima juiz a quo não utilizou, sequer, o disposto no artigo 127.º do CPP para proferir despacho de pronúncia, porquanto tal apenas compete ao juiz de julgamento. 24.º - E, veja-se, que na decisão instrutória, nunca é referido que tenha sido aplicado tal princípio. 25.º - Limitou-se, e bem, a verificar a existência, ou não, de indícios suficientes da prática de um ilícito criminal. 26.º - Concluindo e fundamentando a sua existência, no despacho de pronúncia e remissão para os fundamentos de facto e de direito do RAI da Assistente. 27.º - No mesmo sentido, e face ao exposto relativamente aos indícios suficientes, verifica-se a inaplicabilidade do princípio do in dubio pro reo. 28.º - A questão deste princípio, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra "in dúbio pro reo", no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas. 29.º - Evidentemente, e conforme resulta da decisão instrutória ora recorrida, a meritíssima JIC não se encontrou perante uma situação de dúvida inultrapassável. 30.º - Pelo que, entendendo e bem, existirem indícios suficientes da prática de crime, não poderia não pronunciar o arguido, muito menos com base na presunção de inocência. Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente por não provado, e, em consequência manter-se o douto despacho de pronúncia, nos seus precisos termos, seguindo o processo para julgamento, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA. I - 2.2.) Fazendo-o também, a Digna Procuradora-Adjunta no Tribunal a quo, concluiu por seu turno: 1.º - Nos presentes autos foi proferido despacho de pronúncia por se considerar que foram reunidos indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica perpetrado pelo arguido na pessoa da assistente. 2.º - O arguido não concorda com a apreciação da prova realizada em sede de instrução. 3.º - Na verdade, neste tipo de crime as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas. 4.º - A versão dos factos relatada pela ofendida é consistente, coerente e o seu comportamento é consentâneo com as regras de experiência comum, pelo que a sua versão dos factos deve ser considerada credível. 5.º - A decisão de pronúncia está devida está devidamente fundamentada de facto e de direito, não viola o princípio da livre apreciação da prova e não merece qualquer reparo. Nestes termos, a decisão recorrida deverá ser mantida, negando-se provimento ao recurso interposto pelo arguido. II - Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procurador da República emitiu douto parecer propugnando a manutenção da decisão recorrida e a improcedência do recurso apresentado. * No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado. Tendo lugar a conferência. * Cumpre apreciar e decidir: III - 1.) Tal como decorre das conclusões acima deixadas transcritas, que entre nós, de forma consensual, definem o respectivo objecto, com o recurso interposto tem em vista o Arguido JM Martinho colocar à apreciação do presente Tribunal as seguintes questões: - Se os indícios existentes são insuficientes para justificar a sua pronúncia pelo crime imputado; - Se o despacho recorrido viola o disposto nos art.ºs 308.º, n.ºs 1 e 2, e 283.º, n.º 2 (ex vi art. 308.º, n.º 2), todos do Cód. Proc. Penal, bem como os princípios da legalidade (art. 29.º, n.º 1, da CRP e art. 1.º do CPP), da livre apreciação da prova (art. 127.° do CPP), da fundamentação (205.º, n.º 1, da CRP) e in dubio pro reo (32.º, n.º 2, CRP). III - 2.) Importa que comecemos por conhecer o respectivo teor: DECISÃO INSTRUTÓRIA Nos presentes autos o Ministério Público procedeu a inquérito, tendo no fim do inquérito proferido despacho de arquivamento. A Assistente SB, por discordar do despacho de arquivamento veio requerer a abertura da instrução pedindo a pronúncia do arguido JM, identificado a fls. 177 dos autos, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. Procedeu-se à realização do debate instrutório com observância das formalidades legais, tendo o Ministério Público alterado a sua posição e pedido a pronuncia do arguido pela prática dos factos e crime referidos no RAI. CUMPRE DECIDIR: O Tribunal é competente. O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal. Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer. * Conforme resulta do art. 286.º do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento. No caso dos autos, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pela prática dos factos e ilícito que lhe é imputado no requerimento de abertura da instrução. Dispõe o art.° 308.º, n.º1, do CPP que se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o Juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos respetivos factos, caso contrário, profere despacho de não-pronuncia. Resulta por outro lado do art.° 283.º, n.º 2, do CPP, para onde remete o art. 308.°, n.° 2, do mesmo diploma legal, que são de considerar suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança. O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento - v. G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, 205-. Para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infração é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpa do arguido. A Assistente pretende a pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.° 152.°, n.º 1, al. a), do Código Penal. Resulta do mencionado preceito legal que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais... ao cônjuge ou ex-cônjuge é punido". O bem jurídico protegido com a referida norma legal é a dignidade da pessoa humana, ou seja, a pessoa enquanto individuo, enquanto ser humano. Tal norma visa prevenir e evitar todo o tipo de violência em relações familiares. Prevenir atos que assentam em relações de domínio de um familiar sobre o outro, através de força, colocando a vítima numa situação que limita a sua liberdade, bem como a sua capacidade física, sexual, psicológica e que fere e afeta a sua integridade física, mental, moral, a sua segurança pessoal o seu amor-próprio, diminuindo ou afetando as suas capacidades físicas ou intelectuais. Para o preenchimento da tipicidade objetiva e subjetiva do referido ilícito, não basta uma qualquer agressão física ou psicológica. A tipicidade prevista em tal ilícito é preenchida com a prática de factos, únicos ou reiterados que sejam suscetíveis, seja pela sua reiteração ou pela sua gravidade de colocar em causa a dignidade humana da vítima. Serão por conseguintes factos que possam colocar em causa a saúde da vítima, o que abrange a saúde física, psíquica e mental, a qual pode ser afetada com uma série de comportamentos, que afetem a dignidade da vítima, a sua paz, liberdade, autodeterminação, segurança e integridade física, bem como e ainda no caso de se tratar de vítimas que sejam crianças ou adolescentes, condutas que sejam suscetíveis de colocar em causa o normal e saudável desenvolvimento da sua personalidade. Do teor da denúncia feita pela Assistente nos autos, conjugado com o teor das declarações que prestou no decurso do inquérito resulta indiciada a factualidade descrita no requerimento de abertura da instrução. O arguido não prestou declarações. Os factos foram segundo a Assistente presenciados pela filha da Assistente e arguido a qual não prestou depoimento no decurso do inquérito. Atento o local em que os factos ocorreram e atenta a sua natureza é de crer que tais factos não tenham sido presenciados por qualquer outra pessoa, como é comum neste tipo de criminalidade. Não obstante inexiste qualquer razão para desconsiderar o que a Assistente refere na denúncia e no depoimento que prestou no decurso do inquérito. Assim sendo considero tendo em conta o depoimento da Assistente que se indicia a prática pelo arguido dos factos que a Assistente lhe imputa no requerimento de abertura da instrução que nos autos apresentou. Tal factualidade integra a tipicidade objetiva e subjetiva do crime supra-referido que no requerimento de abertura da instrução é imputado ao arguido. Face ao exposto e fazendo um juízo de prognose e sendo de antever que em julgamento a ofendida/assistente prestará depoimento mantendo a mesma versão dos factos é igualmente de antever como mais provável a condenação do arguido em julgamento do que a sua absolvição pela prática dos factos e crime que pela assistente lhe são imputados no requerimento de abertura da instrução. Face ao exposto e tendo em conta os elementos constantes dos autos, considero que existem indícios suficientes e bastantes para pronunciar o arguido pelos factos e ilícito referido no requerimento de abertura da instrução, pelo que será o mesmo pronunciado - cfr. art.° 283.º, n.º 2, ex vi art.° 308.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal. * DECISÃO * Em face do exposto e para ser julgado em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular PRONUNCIO: JM , solteiro, nascido em 18/11/1964, natural da Freguesia de Alvalade, concelho de Lisboa, Advogado, residente na Rua...em Lisboa pelos factos e disposições legais referidos no requerimento de abertura da instrução, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, nos termos do art. 307.º, n.º 1, e 308.º, n.º 2, do CPP, na sua redação atual. PROVA: Declarações da Assistente. (…)” III – 3.1.) Tal como decorre das conclusões apresentadas, a questão central colocada pelo Arguido, convoca a verificação da suficiência de indícios existentes nos autos, em ordem a justificar a sua pronúncia pelo indicado crime de violência doméstica, sendo que, de forma adjuvante, convoca um conjunto de disposições e princípios, tidos por violados, que igualmente militariam no sentido do afastamento da conclusão a que se aportou. O conceito de indícios suficientes, que de harmonia com o preceituado no art. 308.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, justifica a prolação do despacho de pronúncia, não deixa de possuir uma definição legalmente concretizada. Está referida no art. 283.º, n.º 2, do mesmo Diploma (para o qual o n.º2, daquele art. 308.º remete), o que vem de significar que a referida suficiência se verifica, “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”. A tradução Dogmática desta ideia, já tem um conteúdo menos preciso, ainda que se registe um consenso relativamente alargado quanto ao seu entendimento. Na afirmação de Germano Marques da Silva, «a lei não exige (…) a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido» (cfr. Curso de Processo Penal, 2.ª Ed.º, Verbo, Vol. III, pág.ª 179). E tal asserção pode ser encadeada com aquela outra, onde o mencionado Professor refere que «nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido». É que «na pronúncia o juiz não julga a causa», apenas verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação». Numa formulação muito próxima, o Ac. da Rel. de Coimbra de 31/03/93, louvando-se na doutrina de Figueiredo Dias, enuncia que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. No fundo, a ideia que ser transmitir, é da que os indícios são suficientes, quando “a partir deles se crie a convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime de que não o tenha cometido, ou que haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. Porém, na contraposição de tudo o acima indicado, haverá que ter em conta, como o sublinha o Professor em causa, que “o acto de levar alguém a julgamento representa já um ataque ao bom-nome e reputação do acusado. Daí que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.” Também para Germano Marques da Silva, «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido». «A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos». «Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação». Como é habitual neste tipo de situações, as dificuldades não se situam tanto neste plano de abstracção teórica de conceitos, mas no da sua tradução prática. III - 3.2.) Importa que se esclareça desde já, que pese embora esse não seja o seu domínio de eleição, o princípio da livre apreciação da prova não deixa de pontuar nesta fase. Tal como a Exm.ª Desembargadora Dr.ª Ana Brito deixa referido na sua intervenção “Valoração da Prova e Prova Indirecta”, no âmbito da obra colectiva promovida pelo CEJ, a propósito da Criminalidade Económico-Financeira, Vol. III, pág.ª 236, “a livre apreciação é, (…), o princípio máximo, base e transversal de prova, que rege no processo desde o início deste. Ele “vale para todo o decurso do processo penal e para todos os órgãos da justiça penal”. Daí precisamente o art.º 127.º do Cód. Proc. Penal, que o enuncia, referir que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção”, não apenas do juiz, mas sim “da entidade competente”. Incidências diferentes, são já a forma de evidenciar essa violação e as consequências a extrair, na hipótese de se operar tal demostração. No que concerne à decisão final, a primeira processa-se de modo privilegiado pela impugnação de facto, e de forma mais mitigada, pela invocação dos vícios do art. 410.º, n.º2, do Cód. Proc. Penal. Que conduzirão, então, respectivamente, à alteração da matéria de facto ou ao reenvio, se não for possível julgar da causa. Na instrução, passará, no seu essencial, pela alegação contraditória da suficiência probatória, que assim afastará, ou não, o juízo de pronúncia efectuado. Já num outro domínio, importa consignar também, que nesta fase do processo não está efectivamente arredada a aplicação do princípio in dubio pro reo. Como o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de afirmar no seu acórdão n.º 439/2002, publicado no DR II Série, de 29/11/02, pág.ª 19592, tal princípio aplica-se igualmente em sede de instrução; “excluí-lo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa”. III - 3.3.1.) Compulsando a factualidade que a decisão instrutória acolheu, tudo indica que a mesma se circunscreverá (temos algumas dúvidas sobre o exacto sentido do art. 30.º do RAI), basicamente, à ocorrência reportada a 15 de Julho de 2019 (discussão em que terá sido apelidada de “cobra de merda, “ladra de merda” e “estúpida de merda” e à de 14 de Junho de 2020, em que o Arguido terá dito “Ainda aqui estás? Não te disse para ires embora” e depois foi buscar um frasco de álcool etílico e um isqueiro, ameaçando a Assistente que lhe pegaria fogo, o que não terá acontecido por aquele não ter conseguido abrir o frasco e esta última ter fugido de imediato da sua residência. Posto que o RAI em causa nos mereça reticências, como vimos, o enfoque que o recurso privilegia, concentra-se na suficiência probatória dos factos indiciados. Dúvidas não existem que para esse efeito, o esteio principal dessa evidenciação assenta nas declarações da própria Assistente. Circunstância que não se estranha neste tipo de infracção. Por via de regra, este é um crime que se desenvolve na privacidade e intimidade de uma relação conjugal, num espaço físico reservado e confinado, e como tal, preservado da observação alheia, a que tudo acresce o pudor ou a inibição mais ou menos generalizada, mormente em meios de características urbanas, de não interferir na vida e problemas de outrem. Daí que, como se afirma no acórdão da Rel. de Évora de 28/01/2014, no processo n.º 45/11.5GAORQ.E1, “Nada obsta a que a convicção do tribunal se baseie apenas nas declarações do(a) ofendido(a), desde que estas, em face das circunstâncias concretas em que são prestadas, sem olvidar o eventual interesse que tenha no desfecho do processo, lhe mereçam credibilidade (…)”. Aliás, foi essa não percepção directa dos factos, que determinou que a Mm.ª Juíza de Instrução tenha indeferido a inquirição das testemunhas arroladas pela Assistente, ainda que aparentemente, aquelas se destinassem a operar a corroboração externa de aspectos relacionados com os factos alegados, o que assim a colocaria agora numa posição de duplamente prejudicada. III - 3.3.2.) Na situação em presença a não veracidade das declarações prestadas pela Assistente não assume grande espaço para a sua evidenciação intrínseca. Fazendo uso da prorrogativa legal que lhe assistia, o Arguido nunca prestou declarações. Pelo que em rigor, só existe uma versão dos factos: A da Recorrida. Com que outra narrativa deveria então ser escrutinada? Aliás, segundo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, 3.ª Ed, pág.ª 779), “a omissão da discussão dos indícios no despacho instrutório constitui uma irregularidade resultante da violação do disposto no (…) artigo 97.º, n.º5”, que não se nos afigura ter sido tempestivamente suscitada. Sendo que, no contexto indicado, a invocada “repetição” do que afirmou, até pode ser lida como um sinal da sua conformidade intrínseca e coerência. E para ela não faltarão alguns apoios circunstanciais: - O auto de notícia de fls. 3 a 7; - O ter solicitado apoio à APAV e ter sido acolhida no Centro de Acolhimento de Emergência a Vítimas de Violência Doméstica de Castelo Branco que no seu relatório de fls. 53-54, entre o mais, alude ao “nível de risco severo avaliado”, “ao longo historial de violência física e psicológica”, e o propor “a aplicação da medida de coacção de afastamento e proibição de contactos com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância ao alegado agressor”. - Também o exame médico de fls. 60-63 confere credibilidade ao por si reportado. - Que alguma coisa já podia ter acontecido nesta área, decorre também da cópia da queixa e do despacho de arquivamento do processo n.º 610/12.3PTLSB - cfr. fls. 92-98; - A Ofendida, depois, mudou-se para a Casa Abrigo do Grupo de Acção Social de São Vicente Pereira - cfr. fls. 140. - Ainda que não faça parte do elenco dos factos aqui imputados, a fls. 160/1, a testemunha MR , lá confirmará que já a alguns anos atrás, ouviu um grande barulho que pensou vir do andar de cima, que depois a Assistente lhe bateu à porta dizendo que o “JM lhe tinha partido a casa toda”, e que tendo-se deslocada à sua casa viu o LCD partido, loiça no chão, as tomadas da parede arrancadas… Como é óbvio não é uma prova exuberante, mas existe toda uma envolvência circunstancial que manifestamente corrobora o por si declarado nos autos. III - 3.3.3.) Estando nós em fase de instrução, não se poderá exigir naturalmente uma certeza para além de toda a dúvida razoável, como sucede para a condenação em sede de julgamento. O que se requer, é uma probabilidade séria em como o arguido terá cometido o crime superior à de o não ter praticado. Pelo que o princípio in dubio pro reo, terá que ser entendido aqui em termos hábeis. Ora sabemos que o Tribunal a quo não se confrontou com uma dúvida com as características postuladas para o funcionamento do princípio em causa. Da nossa parte, não temos razões para por em crise a credibilidade do sustentado pela Assistente. Pelo que, tendo em conta os condicionalismos probatórios co-naturais ao crime em apreço, nada teríamos a objectar à suficiência de indícios que se mostra propugnada pelo despacho recorrido, e por conseguinte, nessa parte, à pronúncia determinada. III - 3.4.) Em todo o caso, posto que ninguém até ao momento tenha feito alusão a essa circunstância, a verdade é que lendo o RAI apresentado, não vemos em que local se mostre alegado o dolo ou o conhecimento da ilicitude associados ao crime imputado. A omissão deste último poderá não ser decisiva. Já não assim a daquele primeiro. Com efeito, posto que tirado sobre uma questão a jusante (a do seu de suprimento em sede de julgamento) - mas exactamente por causa da mesma -, com a prolação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (cfr. DR. I.ª Série, de 27/01/2015), introduziram-se constrangimentos incontornáveis neste domínio, ao fixar-se como doutrina que: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”. Ou seja, simplificando, acabou-se por dar razão aos que, como no douto acórdão da Relação de Coimbra de 30/09/2009, no processo n.º 910/08.7TAVIS.C1, vinham propugnando, que “os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. Num crime doloso - só esse interessa tratar aqui - da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, queo arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).” Aspectos em que o RAI apresentado é completamente omisso. Logo, os factos que aí foram alegados em termos de acusação alternativa (mesmo que superado o problema da sua indiciação), não são de molde a assegurar, desde logo em abstracto, a condenação do Arguido, pois que para aquela deficiência não há convite ao aperfeiçoamento (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12/05/2005, publicado no DR I.ª Série de 04/11/2005), e o tribunal de julgamento, como acima acabámos de conferir, também não está em condições legais de contornar a referida ausência de alegação. O que significa então, que aquele não satisfaz as exigências dos art.ºs 287.º, n.º 2, in fine e 283.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e deveria ter sido rejeitado. Tal como se refere no acórdão desta Relação de 05/11/2015, no processo n.º 506/13.1PLLRS.L1-9, “é nulo o requerimento do assistente para abertura da instrução que não faça referência explícita ao elemento subjectivo do crime que imputa”. Sendo que “uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137.º (actualmente art. 130.º) do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4.º do Código de Processo Penal”. Nesta conformidade: IV – Decisão: Nos termos e com os fundamentos indicados, ainda que por justificação totalmente diferente, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Arguido JM , razão pela qual se revoga o despacho aqui em apreciação, ficando aquele despronunciado da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal, que lhe era imputado. Sem custas por parte da Assistente, porque isenta (art. 4.º, n.º 1, al. z), do Regulamento das Custas Processuais). Elaborado em computador. Revisto pelo relator, o 1.º signatário. Lisboa, 4 de Maio de 2021 Luís Gominho José Manuel Vieira Lamim |