Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | ROQUE NOGUEIRA | ||
| Descritores: | INQUÉRITO JUDICIAL SOCIEDADE COMERCIAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/23/2004 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | Apesar de o requerente ser um dos sócios-gerentes da sociedade por quotas constituída por dois únicos sócios, pode o mesmo requerer que se proceda a inquérito judicial, nos termos do art. 67º do CSC, em virtude de o outro sócio, igualmente gerente, não apresentar, há vários anos, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, alegando ser o requerido quem, na prática, sempre geriu a sociedade e, ainda, a existência de desentendimentos entre ambos. Se a lei manda ouvir os gerentes (art. 67º, nº 2, do CSC) é porque considera serem eles os interessados directos em contradizer, que o mesmo é dizer, serem eles partes legítimas, nos termos do art. 26º do CPC, sendo que, não é a sociedade comercial que está obrigada a prestar contas aos seus sócios, mas sim, no caso, os respectivos gerentes, nos termos do art. 65º, nº 1, do CSC. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – Relatório. No Tribunal de Comércio de Lisboa, D. Sousa propôs acção de inquérito judicial, nos termos do art. 67º, do CSC, contra J. S., alegando que são os únicos sócios-gerentes da Tejoma – Consultoria e Implementação de Projectos, Ld.ª, que tem o capital social de 5 000 000$00, igualmente repartido pelos dois únicos sócios. Mais alega que, embora formalmente a gerência tenha sido atribuída a ambos os sócios, na prática, a gestão global da sociedade sempre pertenceu, exclusivamente, ao réu J.S. Alega, ainda, que se incompatibilizaram em 1998, tendo o réu impedido o autor de trabalhar, de frequentar as instalações sociais e de compulsar quaisquer elementos da escrita ou do património da sociedade, sendo que, desde 1997, nunca foram apresentadas as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, apesar de a sociedade se manter em actividade. Requer, assim, que se proceda a inquérito, nos termos do art. 67º, nº 1, do CSC, e, também, que, nos termos do nº 2, do mesmo artigo, seja o autor nomeado como gerente encarregue de elaborar o relatório de gestão, contas dos exercícios e demais documentos de prestação de contas de 1997 (inclusive) em diante. O requerimento inicial foi liminarmente indeferido, ao abrigo do disposto no art. 234º-A, nº 1, do C.P.C., por se ter entendido ser manifesta a improcedência da pretensão do requerente. Este, inconformado, interpôs recurso de agravo daquele despacho. Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2 – Fundamentos. 2.2. A questão fulcral que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, sendo o requerente um dos sócios gerentes de sociedade por quotas constituída por dois únicos sócios, pode o mesmo requerer ao tribunal que se proceda a inquérito, nos termos do art. 67º, do CSC, em virtude de o outro sócio, igualmente gerente, não apresentar, há vários anos, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, alegando ser o requerido quem, na prática, sempre geriu a sociedade e, ainda, a existência de desentendimentos entre ambos. No despacho recorrido considerou-se que o direito de requerer o inquérito judicial, pelos motivos atrás referidos, é um direito que não assiste aos sócios que são simultaneamente gerentes, porque, também lhes competindo a apresentação das contas e, por isso, devendo ser também ouvidos sobre a razão da não prestação das contas, nos termos do disposto no art. 67º, nº 2, do CSC, não podem figurar na acção como requerentes. Razão pela qual, se entendeu ser manifesta a improcedência da pretensão do requerente e se indeferiu liminarmente o requerimento inicial. É certo que também se considerou, naquele despacho, que o requerido é parte ilegítima e que a legitimidade passiva, no caso, pertence à sociedade e não aos seus gerentes. Todavia, entendeu-se aí que, nesta parte, se trata de excepção dilatória suprível, pelo que, se justificaria o convite a dirigir ao requerente no sentido do aperfeiçoamento do requerimento inicial. Só não se tendo feito tal convite ao requerente em virtude de se ter concluído que, não podendo o mesmo requerer inquérito, era manifesta a improcedência da sua pretensão. Daí que tenhamos referido que a questão fulcral a decidir é a atrás mencionada. Mas vejamos. Os arts.1479º a 1483º do C.P.C., prevêem o inquérito judicial a sociedade como processo de jurisdição voluntária. Porém, é o Código das Sociedades Comerciais que define, quer a legitimidade para requerer inquérito, quer as funções por este desempenhadas, incumbindo, pois, ao interessado a que a lei comercial outorga legitimidade alegar os factos em que fundamenta o requerimento de inquérito e formular a pretensão, requerendo as providências que, segundo o referido Código, podem incluir-se no seu âmbito, designadamente, o suprimento da falta de apresentação das contas (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, pág.768). Nos termos do nº 3, do citado art. 1479º, «Quando o inquérito tiver como fundamento a não apresentação pontual do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, seguir-se-ão os termos previstos no art. 67º do Código das Sociedades Comerciais». Por conseguinte, a tramitação do processo de inquérito exclusivamente destinado a suprir a falta de apresentação das contas está regulada naquele art. 67º que, como norma especial, prevalece sobre a tramitação-tipo genericamente estabelecida no Código de Processo Civil (cfr. Lopes do Rego, ob. cit., pág.769 e os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 17/12/92, CJ, Ano XVII, tomo V, 148 e de 27/10/94, CJ, Ano XIX, tomo IV, 132). Ora, no que respeita à falta de apresentação das contas e atento o caso dos autos, estabelece o referido art. 67º que se dentro do prazo de 3 meses a contar da data do encerramento do exercício anual, a gerência da sociedade não apresentar as contas do exercício, nem o fizer nos 2 meses seguintes ao termo daquele prazo, pode qualquer sócio requerer ao tribunal que se proceda a inquérito (art. 67º, nº 1). Recebida a petição, o juiz procederá à audição dos gerentes e, caso considere procedentes as razões invocadas por estes para a falta de apresentação das contas, fixará um prazo que em seu prudente arbítrio considere adequado, segundo as circunstâncias, para que eles as apresentem (1ª parte, do nº 2, do art. 67º). Se, ao invés, considerar infundadas as razões aduzidas para aquela falta de apresentação, o juiz nomeará um gerente ao qual incumbirá, em exclusivo, no prazo que lhe for fixado, elaborar as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, previstos na lei, e submetê-los à apreciação do órgão competente da sociedade. Se este órgão for a assembleia geral, pode a pessoa judicialmente nomeada convocá-la (2ª parte, do nº 2, do art. 67º). Elaborados estes documentos dentro do prazo fixado pelo tribunal e submetidos ao órgão competente da sociedade para a sua apreciação, se este órgão os não aprovar, pode, então, o gerente nomeado pelo tribunal submeter, nos próprios autos de inquérito em curso, a divergência ao juiz, para decisão final – de aprovação ou rejeição (nº 3, do art. 67º). Verifica-se, pois, que, nos termos da lei (art. 67º, nº 1), qualquer sócio pode requerer ao tribunal que se proceda a inquérito, no caso de falta de apresentação das contas. Note-se que a lei alude a «qualquer sócio», não restringindo o direito aos sócios não gerentes. Por outro lado, como é sabido, a obrigação de prestar contas impende sobre quem trate de negócios alheios ou de negócios próprios e alheios, seja qual for a fonte da administração. Assim sendo, parece-nos, tal como se defendeu no Acórdão do STJ, de 5/7/90, JST00003764/ITIJ/NET, que não há razões para excluir essa obrigação do gerente que exerce efectivamente a gerência, quando as contas são exigidas por outro gerente afastado do respectivo exercício, desde que sócio da sociedade, uma vez que não perdeu, por aquele motivo, os inerentes direitos e o seu consequente interesse directo em demandar (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/10/2000, JTRL00028719/ITIJ/NET). É certo que, sendo o sócio simultaneamente gerente da sociedade, também lhe compete a apresentação das contas, nos termos dos arts. 65º, nº 1, e 252º, nº 1, do CSC. Todavia, consideramos que, se for invocado o desconhecimento dos negócios sociais, por se tratar de gerente que só o é de nome ou que é impedido pelo outro ou outros gerentes do acesso aos livros e documentos necessários para apresentação das contas, nada impede que requeira ao tribunal que se proceda a inquérito, nos termos do art. 67º, designadamente, para que haja lugar à nomeação judicial prevista na 2ª parte, do nº 2, daquele artigo. Discordamos, assim, do entendimento seguido no Acórdão da Relação do Porto, de 13/5/99, JTRP00026040/ITIJ/NET, segundo o qual não tem sentido que um sócio gerente requeira o inquérito previsto no citado art. 67º, por este se destinar, no essencial, a finalidades que competem (também) àquele sócio gerente. Na verdade, parece-nos, salvo o devido respeito, tratar-se de um raciocínio excessivamente formalista, já que, não leva em linha de conta a circunstância de os desentendimentos dos sócios gerentes poderem criar um impasse no que respeita à apresentação das contas anuais, sendo certo que, tendo estas por função, além do mais, informar os sócios, credores e público em geral da situação patrimonial e financeira da sociedade, são de importância fundamental para a compreensão daquela situação. Haverá, deste modo, que concluir que, apesar de o requerente ser um dos sócios gerentes de sociedade por quotas constituída por dois únicos sócios, pode o mesmo requerer ao tribunal que se proceda a inquérito, nos termos do art. 67º, do CSC, em virtude de o outro sócio, igualmente gerente, não apresentar, há vários anos, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, alegando ser o requerido quem, na prática, sempre geriu a sociedade e, ainda, a existência de desentendimentos entre ambos. Como atrás já se fez notar, no despacho recorrido concluiu-se que a legitimidade passiva, no caso, pertence à sociedade e não aos seus gerentes, pelo que, tendo a acção sido intentada, apenas, contra um dos gerentes, o requerido é parte ilegítima. Mais se referiu, naquele despacho, que, tratando-se de excepção dilatória suprível, se justificaria o convite a dirigir ao requerente no sentido do aperfeiçoamento do requerimento inicial. Porém, tal convite não chegou a ser feito, por se ter entendido ser manifesta a improcedência da pretensão do requerente e de, por isso, se ter indeferido liminarmente o requerimento inicial. Mas como agora se concluiu, em sede de recurso, que não é caso de indeferimento liminar, poder-se-ia entender que, baixando os autos à 1ª instância, competiria ao Sr. Juiz formular o aludido convite e ao requerente tomar posição quanto a ele. No entanto, uma vez que o recorrente, nas suas alegações de recurso, defende o entendimento de que a acção foi bem proposta apenas contra o administrador e não contra a sociedade, isto é, estende o objecto do recurso à questão da ilegitimidade passiva, parece-nos que haverá que decidir, também, esta questão no presente recurso. Tem razão, de novo, o recorrente, a nosso ver. Assim, o dever de apresentar contas compete, no caso, aos gerentes, nos termos do art. 65º, nº 1, do CSC. Ou seja, não é a sociedade comercial que está obrigada a prestar contas aos seus sócios. Por isso que, o nº 2, do art. 67º, manda ouvir os gerentes. Consequentemente, o pedido para apresentação das contas é de intentar contra o gerente ou gerentes, por ser manifesto que têm interesse directo em contradizer (art. 26º, nºs 1 e 3, do C.P.C.). Tanto quanto apurámos, tem sido essa a orientação dominante na jurisprudência, quer antes, quer depois do CSC (ver os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 14/6/78, CJ, 1978-3º-1023, da Relação de Lisboa, de 24/4/81, CJ, 1981-2º-207, de 4/4/95, JTRL00018621/ITI/NET e de 8/5/2001, JTRL00033252/ITI/NET, da Relação do Porto, de 4/12/90, CJ, 1990-5º-210, da Relação de Évora, de 6/4/95, CJ, 1995-2º-261 e do STJ, de 22/11/95, CJ, 1995-3º-113). No sentido de que a acção a requerer a realização de inquérito, nos termos do art.67º, do CSC, haverá sempre que ser proposta contra a sociedade, podem ver-se os Acórdãos da Relação de Évora, de 25/6/92, BMJ, 418º-891 e da Relação do Porto, de 2/2/99, JTRP00024981/ITIJ/NET. Note-se que, conforme já referimos, a tramitação do processo de inquérito, no caso, está regulada naquele art. 67º, prevalecendo sobre a tramitação-tipo estabelecida no art. 1479º do C.P.C.. Sendo que, neste último artigo (nº 2), é que está previsto que a sociedade seja sempre citada, limitando-se o art. 67º (nº 2) a prever a audição dos gerentes. Isto é, se a lei os manda ouvir é porque considera serem eles os interessados directos em contradizer. Que o mesmo é dizer, serem eles partes legítimas, nos termos do citado art. 26º do CPC. Não se retire, pois, do art. 67º, nº 2, um argumento a favor da tese da legitimidade exclusiva da sociedade, como se faz no despacho recorrido. Nem se argumente que se a sociedade não fosse parte, qualquer decisão que viesse a ser tomada no processo não a vincularia, até porque, nos termos do nº 3, do art. 67º, como já vimos, se as contas não forem aprovadas pelo órgão competente da sociedade, a divergência pode ser submetida ao juiz, nos próprios autos de inquérito, para decisão final. Haverá, pois, que concluir que o requerido é parte legítima. Procedem, deste modo, as conclusões da alegação do recorrente, não podendo, assim, manter-se o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial. 3 – Decisão. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho agravado, devendo o processo prosseguir, com audição do requerido, nos termos do art. 67º, nº 2, do CSC. Sem custas (art. 2º, nº 1, al. o), do C.C.J.). Lisboa, 23-3-04 Roque Nogueira Santos Martins Pimentel Marcos |