Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
608/22.3T8VFX-A.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROCESSO ESPECIAL APENSO A INVENTÁRIO
INDEFERIMENTO LIMINAR
PRETERIÇÃO DO CONTRADITÓRIO
CONVITE DE APERFEIÇOAMENTO DA PETIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Não é nula, nem por excesso, nem por omissão de pronúncia, a decisão de indeferimento liminar, proferida logo após a distribuição dos autos, assente sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com a qual a parte podia razoavelmente contar, fundada na suposta impropriedade da forma e na manifesta inexistência do direito afirmado pela autora.

2. O prazo de um ano compreendido no n.º 1 do art. 2093.º do Cód. Civil deve ser contado desde o momento em que, na pessoa do devedor da prestação de contas, se reúnem os pressupostos imediatamente previstos na lei substantiva para o exercício do cargo de cabeça-de-casal.

3. A dedução de pedido visando a prestação de contas pelo cabeça de casal, por apenso ao processo de inventário, respeitante à sua administração da herança em período anterior à nomeação judicial para o cargo, conjuntamente com idêntico pedido respeitante à administração realizada após esta nomeação, traduz uma cumulação inicial de pedidos (arts. 549.º, n.º 1, e 555.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

4. O caso descrito no ponto anterior resolve-se nos quadros do disposto no n.º 1 do art. 37.º e no n.º 1 do art. 555.º, ambos do Cód. Proc. Civil, sendo de concluir que inexiste obstáculo processual à referida cumulação inicial de pedidos.

5. A instauração da ação (de processo especial) de prestação de contas por apenso ao processo de inventário (art. 947.º do Cód. Proc. Civil), quando não é deste dependente, não se resolve num problema de impropriedade da forma ou do meio processual, mas sim de falta de distribuição (art. 205.º do Cód. Proc. Civil).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório


Por apenso ao processo de inventário aberto por óbito de seu pai, DM instaurou a presente ação com processo especial de prestação de contas contra MR, co-herdeira e cabeça de casal nomeada, e contra AM, co-herdeiro.

Conclui pedindo, além do mais adiante descrito, “a citação dos réus para apresentar no prazo de 30 dias as referidas contas ou contestação à ação sob pena de não apresentando contas ou contestando não poder deduzir oposição às contas que a autora apresentar que serão julgadas (…) nos termos do n.º 2 do artigo 943.º do CPC (…)”.

Para tanto, alega que a ré foi nomeada cabeça-de-casal da herança partilhada nos autos principais, por ser a herdeira mais velha, tendo o réu, herdeiro e interessado, administrado de facto este património, desde a data da abertura da herança, até à data da instauração do processo de inventário.

O tribunal a quo indeferiu liminarmente a petição inicial, nos seguintes termos:
DM vem intentar a presente ação de prestação de contas contra MR, nomeada cabeça-de-casal nos autos de inventário apensos por despacho de 02.03.2022, e contra AM, co-herdeiro, o qual referiu ter sido quem exerceu de facto o cargo de cabeça-de-casal, ou seja, de administração dos bens da herança, até à propositura da ação de inventário, a qual ocorreu em 17.02.2022.
No que concerne à cabeça-de-casal nomeada no inventário não decorreu ainda o prazo para a mesma vir apresentar contas dado que, como a requerente bem refere, nos termos do artº 2093º, nº 1 do Código Civil, a cabeça-de-casal apenas deve prestar contas anualmente.
Quanto a AM, tendo o mesmo exercido de fato as funções de cabeça-de-casal desde a morte do de cujus em 28.05.2020 até à propositura da ação de inventário, como a requerente alega, então o dever de prestar contas deverá ser exercido no âmbito de ação a intentar pela requerente e demais herdeiros, ou por algum deles com o pedido de intervenção provocada dos demais, sob pena de ilegitimidade face ao disposto no artº 2091º, nº 1 do Código Civil.
Em qualquer caso tal ação de prestação de contas será alheia ao cabecelato exercido no âmbito do processo de inventário, pelo que não deverá correr por apenso ao mesmo – cfr. artº 947º do C.P. Civil.
Termos em que, face ao exposto, ao abrigo dos artºs 590º, nº 1 do C.P. Civil indefiro liminarmente a petição inicial.

Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
7.– A presente ação é (…) tempestiva, pois decorreu bem mais de 1 ano após o início da abertura da sucessão,
8.–[A presente ação deve] correr por apenso ao inventário, não sendo alheia ao mesmo, nos termos do artigo 947.º do Código Processo Civil.
9.–Eventualmente, somente será o requerido AM, parte ilegítima no referido incidente, o que por mera hipótese se configura, mas ainda assim a jurisprudência dominante entende que a sua responsabilidade não depende da nomeação do cabeça de casal em sede de processo judicial de inventário. (…)
15.– [O]s autos ainda não se encontravam em fase de prolação de sentença, sendo necessária, legal e útil a citação dos requeridos, ou pelo menos da cabeça de casal, e o prosseguimento do presente incidente de prestação de contas, apenso à ação de inventário a correr no mesmo tribunal.
Termos em que entendemos que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser anulada a sentença proferida, devendo julgar-se que o Juízo Local Cível de Vila Franca de Xira como o competente para apreciar a presente ação de prestação de contas, por apenso à a ação de inventário, ordenando-se a citação dos réus e o prosseguimento dos autos, tudo como se pediu.

A apelada declarou nos autos acompanhar a decisão do tribunal a quo.

Foi admitida a apelação, sem que tenha sido proferido o despacho previsto no art. 617.º, n.os 1 e 5, do Cód. Proc. Civil.
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Não há questões de facto a decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1–Em 28 de maio de 2020, faleceu LM, deixando cinco herdeiros, entre os quais a autora e os réus.
2–Em 17 de fevereiro de 2022, DM instaurou processo especial de inventário judicial para partilha da herança por LM, correndo termos com o n.º 608/22.3T8VFX.
3–Em 2 de março de 2022, MR, sendo a herdeira mais velha, foi nomeada cabeça-de-casal no processo de inventário.
4–Em 19 de setembro de 2022, DM, por apenso ao processo de inventário referido, instaurou a presente ação com processo especial de prestação de contas contra MR e contra AM, co-herdeiro e interessado naquele processo.

5–Nesta ação com processo especial de prestação de contas, a autora, afirmando que AM administrou a herança como “cabeça de casal de facto, cargo que exerceu até à interposição da ação de inventário principal”, alegou, no que releva para o objeto do recurso:
4.- LM faleceu em 28 de maio de 2020, deixando os cinco herdeiros que constam na ação principal, entre os quais a agora autora.
5.- Por óbito do referido somente se procedeu a inventário judicial, por vontade da aqui autora, em fevereiro de 2022, sendo que a herança pelo de cujusdeixada não está ainda partilhada, aguardando os referidos autos os demais trâmites.
6.- O cargo de cabeça de casal compete à ré, visto ser a herdeira mais velha, que o aceitou nos autos principais.
7.- Sucede, porém, que apesar da abertura da herança mais recente ter ocorrido há mais de 2 anos, e apesar de estar pendente ação de inventário judicial, a ré nunca ofereceu nem prestou até hoje quaisquer contas cabais da sua administração.

6–A autora concluiu pedindo:
Para tanto requer a citação dos réus para apresentar no prazo de 30 dias as referidas contas ou contestação à ação sob pena de não apresentando contas ou contestando não poder deduzir oposição às contas que a autora apresentar que serão julgadas segundo o prudente arbítrio de V. Ex.a, nos termos do número 2 do artigo 943.º do CPC sendo em qualquer caso afinal condenado a pagar à autora pelo menos 1/4 do saldo que se vier a apurar nos termos do artigo 941.º do CPC e 2093.º/3 do CC. // Ou, se assim não se entender, se apurem que os alegados créditos da herança em relação à autora, sendo o réu condenado a devolvê-los à massa hereditária, através do instituto do enriquecimento sem causa, nos termos últimos do artigo 2092.º do CC. // Todas as quantias nas quais o réu for condenado deverão ser acrescidas de juros à taxa legal civil, vencidos e vincendos até seu integral pagamento. // Acrescendo ainda que todas as despesas e custas com o presente apenso deverão ser suportadas por quem as causou, no caso, o réu, assim como condigna procuradoria e demais encargos legais.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Deficiências ostensivas da petição inicial
2. Nulidade da decisão impugnada
2.1.- Alegado excesso de pronúncia da decisão impugnada
2.1.1.-Inexistência de excesso de pronúncia das decisões-surpresa
2.1.2.- Ato processual imediatamente ilegal: a decisão-surpresa
2.1.3.- Ilegalidade presente nas decisões-surpresa
2.1.4.- Tipo de ilegalidade direta da decisão impugnada
2.2.- Inexistência de preterição do contraditório
3. Pluralidade subjetiva passiva da instância
4. Demanda da ré MR
4.1.- Período relevante a considerar
4.2.- Possibilidade de cumulação de pedidos
5. Demanda do réu AM
5.1.- Indevida demanda como dependência de outra causa
5.2.- Propriedade da forma processual empregue
6. Conclusão
Deficiências ostensivas da petição inicial

Começamos por notar que a decisão impugnada, no que ao réu AM diz respeito, não se funda na inexistência da obrigação de prestar contas por parte do administrador de facto da herança (nem na inexistência do correspondente direito de as exigir, por parte do contitular do património administrado) – sobre a existência deste direito, cfr. o Ac. do TRL de 18-04-2023 (27214/20.4T8LSB-B.L1-7). Funda-se, sim, na circunstância de, nos dizeres da decisão impugnada, “tal ação de prestação de contas [ser] alheia ao cabecelato exercido no âmbito do processo de inventário, pelo que não deverá correr por apenso ao mesmo – cfr. art. 947.º do Cód. Proc. Civil”. Ou seja, não estamos perante um indeferimento liminar assente numa decisão de mérito – que seria de manifesta improcedência, por eventual inexistência do direito (substantivo) à prestação de contas –, mas sim perante uma decisão de forma, assente na inadmissibilidade legal do processamento da ação de prestação de contas (instaurada contra AM) por apenso ao processo de inventário (no qual não foi nomeado cabeça de casal).
No que toca à demanda da ré MR, nomeada cabeça de casal em 2 de março de 2022, estamos já perante um julgamento de mérito: (afirmada) inexistência do dever de prestar contas e do correspondente direito de as exigir (no primeiro ano subsequente à nomeação). Reza a decisão impugnada, além do mais: “no que concerne à cabeça-de-casal nomeada no inventário não decorreu ainda o prazo para a mesma vir apresentar contas dado que, como a requerente bem refere, nos termos do art. 2093.º, n.º 1, do Código Civil, a cabeça-de-casal apenas deve prestar contas anualmente”.

Da análise da petição inicial, podemos concluir, como adiante melhor se desenvolverá, que o articulado inicial padece de graves insuficiências e imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada, designadamente, na identificação do património (de que se afirma contitular) alegadamente administrado ou coadministrado por cada um dos réus – podendo ser todo ou apenas parte do acervo hereditário –, na concretização do período ao qual se refere a administração da ré MR objeto do seu pedido e no esclarecimento (ou sua falta) da existência de uma atuação conjunta dos réus (coautoria). Também o pedido é pouco claro, na descrição daquilo que se pretende de cada um dos réus. (Em matéria que não desenvolveremos por já extravasar o objeto do recurso, são, ainda, identificáveis diversos pedidos e questões suscitadas absolutamente impertinentes a uma ação de prestação de contas).

No entanto, o tribunal a quo, em vez de, ao abrigo dos arts. 6.º, 547.º e 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, convidar a autora ao suprimento das insuficiências e imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada, e à clarificação do pedido (fixando logo prazo para a apresentação de articulado em que se completasse e corrigisse o inicialmente produzido), julgou imediatamente a causa nos termos acima descritos – antes mesmo de a instância se encontrar estabilizada (art. 260.º do Cód. Proc. Civil). Vejamos se acertadamente.

1. Nulidade da decisão impugnada
Do teor das alegações e das respetivas conclusões, depreende-se que a apelante pretende a revogação da decisão impugnada, assente na alegada errada interpretação e aplicação da lei por parte do tribunal a quo, e a sua anulação, por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil) – embora se tenha referido aos dois efeitos (invalidade e revogação) designando-os de anulação. Neste sentido, sustenta que “[O]s autos ainda não se encontravam em fase de prolação de sentença, sendo necessária, legal e útil a citação dos requeridos”, o que “configura a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, ‘(…) porque conheceu de questões (…), quando ainda não estava habilitado a fazê-lo (excesso de pronúncia)’”.

Começaremos, pois, por verificar se a decisão impugnada é nula, em especial, por excesso de pronúncia.
1.1. Alegado excesso de pronúncia da decisão impugnada
1.1.1.Inexistência de excesso de pronúncia das decisões-surpresa
A afirmação de que a sentença é contaminada por toda e qualquer irregularidade não sanada que lhe seja anterior – máxime, relacionada com o exercício do direito de contraditório – assenta na ideia de que a prática regular de todos os atos processuais impostos por lei é necessária para que o tribunal (poder jurisdicional) e a sua decisão obtenham uma “legitimação pelo processo”. Neste sentido, toda a irregularidade processual não sanada privaria o tribunal, por assim dizer, do poder-dever de pronúncia sobre as questões suscitadas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente. Redundaria essa irregularidade, a montante, assim, num excesso de pronúncia na sentença, a jusante. Por esta via, a arguição de nulidade da sentença serviria para discutir serodiamente as irregularidades processuais pretéritas, há muito ocorridas –, com ofensa dos princípios da certeza e da segurança jurídicas.
Não desconhecendo a estimulante querela doutrinária e jurisprudencial em torno do tema, entendemos que o vício apontado – conhecimento prematuro de questões que ao tribunal cabe efetivamente conhecer – não representa um caso de nulidade por excesso de pronúnciasobre a questão, cfr. os Acs. do STJ de 22-02-2017 (5384/15.3T8GMR.G1.S1), de 23-06-2016 (1937/15.8T8BCL.S1), de 16-10-2018 (2033/16.6T8CTB.C1.S1), de 16-12-2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) e de 19-10-2022 (13358/20.6T8LSB.S1), do TRL de 10-01-2023 (11273/20.2T8LSB.L1-7), de 30-05-2019 (4952/17.3T8LSB.L1-8), de 10-10-2019 (1970/15.0T8CSC-A.L1-2) e de 28-04-2022 (801/21.6T8OER-B.L1-2), do TRE de 25-05-2023 (2153/21.5T8ENT-A.E1), de 10-05-2018 (2239/15.5T8ENT-A.E1), de 28-03-2019 (1122/18.7T8OLH-D.E1) e de 04-06-2020 (2359/19.7T8FAR.E1), do TRP de 09-12-2020 (4585/11.8TBSTS.P2), de 21-02-2022 (5748/20.0T8MTS.P1), de 15-12-2021 (2577/20.5T88AGD-A.P1) e de 15-12-2021 (427/17.9T8PVZ.P1), do TRG de 19-11-2020 (3439/09.2TBBRG-A.G1) e de 28-10-2021 (1066/19.5T8VRL.G1), do TRC de 03-12-2019 (6254/16.3T8CBR-B.C1) e do TCAN de 28-01-2022 (00821/20.8BEPNF).

O excesso de pronúncia ocorre quando é decidida questão diferente das suscitadas pelas partes (ou de conhecimento oficioso), e não quando não foram praticados os atos necessários à (regular) decisão das questões suscitadas – esta última irregularidade constituirá uma violação do princípio do contraditório (entendendo-se este como a garantia dada à parte de participação efetiva na evolução da instância, de acordo com a forma legal aplicável, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa). O mesmo é dizer que o excesso de pronúncia se relaciona com a violação do princípio dispositivo ou do pedido (arts. 608.º, n.º 2, e 609.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), e não com a violação do princípio do contraditório – cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão de 1984, p. 143 e segs..

Os casos de efetiva ofensa do princípio do contraditório, designadamente em resultado da prolação de uma “decisão surpresa” ou de uma decisão conflituante com a anterior atuação do tribunal, devem merecer um tratamento diferenciado e não generalizável. Na verdade, nestes casos não se poderá mesmo falar da existência de uma irregularidade processual pretérita.

1.1.2. Ato processual imediatamente ilegal: a decisão-surpresa
Devemos aqui expor um raciocínio que tem inquinado esta discussão. Não existe nenhuma irregularidade processual prévia à prolação da decisão-surpresa. Isto é, não ocorre uma inexistência processual (isto é, uma omissão) prévia à decisão. Obviamente, se a decisão não existe, ou enquanto não existe (e pode nunca a vir a existir), não há nenhuma omissão prévia à (inexistente) decisão. É a decisão-surpresa que, por assim dizer, gera a irregularidade processual; é ela que faz surgir uma realidade processual irregular, que sem ela não inexistiria.
No processo civil, não existem “irregularidades retroativas”, designadamente, omissões retroativas. A regularidade da forma dos atos ou da sequência de atos em dado momento deve ser aferida à luz da realidade processual existente nesse momento. Não podemos subverter esta proposição apodítica, aceitando que a apreciação (retrospetiva) da regularidade processual pretérita seja condicionada pela ocorrência, ou não, de um determinado desenvolvimento ulterior.

Em suma, a irregularidade processual que nos ocupa consubstancia-se na prolação de uma decisão sem contraditório, e não (abstraindo-nos da ulterior prolação da decisão-surpresa) na omissão de um ato processual em fase anterior. Inexiste omissão de contraditório prévio à decisão; o que existe é uma decisão sem o contraditório prévio devido. O mesmo é dizer que o vício processual se refere imediatamente à decisão-surpresa, e não à tramitação que lhe é anterior.

Do exposto se extrai que a parte negativamente afetada não deve reagir contra uma (inexiste) precedente omissão processual, mas sim contra a decisão do juiz. Esta conclusão tem sido largamente aceite pela jurisprudência e pela doutrina, aceitando, ainda, que o meio processual apropriado é o recurso da decisão, precisamente por estar em causa a impugnação de uma sentença – com a ressalva consentida pela norma enunciada no n.º 4 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil. A divergência surge, sobretudo, na construção jurídica que sustenta tal resultado, podendo aqui configurar-se um mero erro de julgamento – note-se que resulta da ressalva prevista no art. 630.º, n.º 2, que a lei admite que a prolação da decisão-surpresa seja simplesmente impugnável por via de recurso –, uma nulidade enquadrável no art. 615.º do Cód. Proc. Civil, ou uma diferente nulidade, mas que segue o regime previsto no n.º 4 deste artigo, por identidade de razão.

1.1.3. Ilegalidade presente nas decisões-surpresa
No enquadramento desta ilegalidade no art. 615.º do Cód. Proc. Civil, sustentam uns ocorrer uma omissão de pronúncia – foi esta a solução apontada por António Abrantes Geraldes, logo na primeira edição do seu Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 23, não expressamente mantida em Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, p. 29 –, enquanto outros apontam para um excesso de pronúncia – cfr., por exemplo, o Ac. do TRL de 08-02-2018 (3054/17.7T8LSB-A.L1-6), na esteira de Miguel Teixeira de Sousa. Pode, ainda, a ilegalidade configurar um vício de congruência (art. 615.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil), por não ser o tribunal consequente com o seu próprio juízo, designadamente, quando está em causa a inexistência de um convite ao aperfeiçoamento do articulado: sendo coerente com a sua constatação de ocorrência de uma insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, o tribunal deve proferir uma determinada decisão – o convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil) –, sendo ilógico que profira decisão sobre o mérito da causa determinada pela (detetada) insuficiência ou imprecisão.
Esta última construção aproxima-nos do error in judicando sobre a solução jurídico-processual a adotar, em face de uma situação de facto (processual) devidamente identificada – a insuficiência ou imprecisão da alegação –, e, como tal, da impugnação da decisão por meio de recurso, com vista à sua revogação. De todo o modo, só deveremos avançar na deteção do tipo de ilegalidade presente se, efetivamente, viermos a concluir pela efetiva existência de uma decisão-surpresa (ou equivalente) no caso dos autos.

1.1.4. Tipo de ilegalidade direta da decisão impugnada
Recorde-se que o error in procedendo se traduz na violação de uma disposição reguladora da forma (em sentido amplo) do ato processual: o ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto. Aqui não se discute se a questão foi bem julgada, refletindo a decisão este julgamento acertado – por exemplo, é irrelevante que a sentença (à qual falte a fundamentação) reconheça a cada parte o que lhe pertence (suum cuique tribuere).
Já o error in judicando é um vício de julgamento do thema decidindo. O juiz falha na escolha da norma pertinente ou na sua interpretação, não aplicando apropriadamente o direito – dito de outro modo, não subsume corretamente os factos (materiais ou processuais) fundamento da decisão à realidade normativa vigente (questão de direito). Não está aqui em causa a regularidade formal do ato decisório, isto é, se este satisfaz ou não as disposições da lei processual que regulam a forma dos atos. A questão não foi bem julgada, embora a decisão – isto é, o ato processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada.
A decisão (ato decisório) que exteriorize um error in judicando não é, com este fundamento, inválida. O meio adequado à sua impugnação é o recurso, sendo o objeto deste o julgamento em que assenta a pronúncia. Confirmando-se o julgamento, a decisão é mantida; no caso oposto, é, por consequência, em regra, revogada.
Devemos aqui sublinhar que o error in judicando pode dizer respeito à decisão de uma questão processual, incidindo, quando se refere ao direito, sobre a escolha da solução a adotar na resolução da questão adjetiva, em conformidade com o disposto na lei de processo. Sobre a nulidade do ato processual, em geral, escreve Artur Anselmo de Castro: “Importa ter ainda presente que os vícios do ato processual que a lei versa sob a epígrafe de nulidade, se referem apenas aos vícios formais; os vícios substanciais, como por ex., os cometidos na apreciação da matéria de fundo, ou na tramitação do processo, são objeto de recurso, não se inserindo na previsão normativa das nulidades” – Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, Vol. I, 1981 Vol. III, 1982, pp. 102; sublinhado nosso. Devemos, finalmente, ter presente que ao error in judicando se pode somar o error in procedendo – assim, cfr. Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, tradução (de Paolo Capitanio) da 2.ª edição de Istituzioni di Diritto Processuale Civile, de 1960, Campinas, Bookseller, 2009, p. 1173, e Piero Calamandrei, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. III, tradução (de Dias Ferreira) de Istituzioni di Diritto Processuale Civile, Campinas, Bookseller, 2003, p. 268

O ato decisório final que se sustenta numa alegação manifestamente insuficiente e imprecisa – no sentido destes adjetivos adotado no n.º 4 do art. 590.º do Cód. Proc. Civil – leva consigo um julgamento no sentido de não existir nenhuma deficiência na alegação ou no sentido de tal deficiência não impedir o julgamento da causa. No primeiro caso e, por regra, no segundo caso, este julgamento traduz um error in judicando sobre uma questão adjetiva: perante a concreta (deficiente) alegação produzida, o tribunal identifica mal a solução legal, decidindo logo a causa, em vez de promover a superação do vício da articulação. Em casos como o dos autos, a escolha da solução preconizada pela lei processual é, pois, inerente ao julgamento efetuado, assim ficando abertas as portas à sua impugnação por via da apelação, sem necessidade da afirmação de qualquer tipo de nulidade do ato decisório.

Exemplificando a partir do caso dos autos: não tendo o tribunal a quo convidado a demandante a aperfeiçoar o seu articulado – podendo mesmo dar-se o caso de não permitir expressamente tal aperfeiçoamento –, mas, por hipótese, oferecendo à parte a oportunidade para se pronunciar sobre a admissibilidade de prolação de uma decisão sustentada em factos deficientemente alegados, nem por isso deixaria a concreta decisão proferida de ser impugnável – por error in judicando na questão de direito respeitante à solução imposta pela lei processual –, apesar de ter sido permitido o exercício do contraditório, isto é, de não se poder falar da ocorrência de uma nulidade processual antecedente ao despacho. O tribunal a quo deveria ter escolhido aplicar o regime previsto no n.º 4 do art. 590.º do Cód. Proc. Civil (articulado com o disposto no art. 6.º e 547.º do mesmo código), e não aplicar, como aplicou, o regime previsto no n.º 1 do art. 590.º do Cód. Proc. Civil. Errou, pois, na escolha da norma adjetiva aplicável à realidade de facto processual.
Em suma, no caso dos autos, não se verifica uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia; ocorreu, sim, um error in judicando sobre uma questão adjetiva, regularmente atacado por meio do recurso vertente.

1.2. Inexistência de preterição do contraditório
Do que acima se escreveu, não se pode extrair que, estando em causa a prolação de uma decisão sustentada numa alegação deficitária, nunca existirá (ainda) uma distinta (antecedente e autonomizável) violação de uma norma legal que impõe, expressamente, a prática de um ato típico de oferecimento de contraditório. Pode, pois, a decisão ser nula também por arrastamento ou contágio. Por assim ser, devemos enfrentar o mérito da reclamação de nulidade contida na alegação de recurso.
Desde já adiantamos que, no caso dos autos, as concretas questões decididas pelo tribunal a quo – como a propriedade da forma ou do meio processual e a afirmada manifesta inexistência do direito exercido – podem e devem, em abstrato, ser pelo mesmo enfrentadas liminarmente, sem necessidade de outro contraditório. A este respeito, o legislador deixou bem claro que o juiz pode conhecer dos vícios dos elementos estruturais da demanda – ao nível da falência dos pressupostos processuais e da manifesta improcedência do pedido ou de uma exceção perentória –, sem segundas audições, bastando-se com a petição inicial ou, por maioria de razão, com os dois articulados (art. 590.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

Considerando a natureza dos vícios da lide em questão, entendeu o legislador que as partes, nos articulados,já tiveram oportunidade de, agindo com a diligência devida, participarem na discussão das questões abordadas pelo tribunal. Concretizando o que acima se sustentou, o conhecimento imediato das questões referidas no n.º 1 do art. 590.º ou no n.º 1 do art. 595.º do Cód. Proc. Civil não é de qualificar como decisão-surpresa – se a pronúncia do tribunal assentar sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com que a parte podia razoavelmente contar –, uma vez que os litigantes, conhecedores deste dever do juiz, têm a possibilidade e o ónus de se pronunciarem sobre estas questões nos articulados. Assim se explica que, na al. a) do art. 597º, o legislador apenas preveja expressamente a necessidade de discussão do fundo da causa, antes de o juiz decidir imediatamente de mérito (arts. 595º, nº 1, al. b), e 597º, al. c)), relativamente às exceções perentórias – deste modo admitindo que, sobre a matéria articulada pelo autor, já ambas as partes tiveram “possibilidade de (…) se pronunciarem” de facto e de direito, sendo irrelevante que tenham aproveitado ou não essa oportunidade.

Se o tribunal, debruçando-se sobre uma determinada realidade processual, está em condições de a perspetivar juridicamente, a parte obreira dessa realidade processual ou que dela foi notificada teve igual possibilidade de sobre a mesma se pronunciar. O patrocínio forense obrigatório não visa a tutela de interesses corporativos, mas sim garantir, além do mais, esta possibilidade. Não faz sentido exigir para o advogado uma posição que peça meças à do juiz no diálogo jurídico, para, no passo seguinte, defender que seja tratado como um leigo, incapaz de lançar um olhar jurídico elementar sobre a relação processual, se para tanto não for convocado por uma espécie de projeto de decisão.

Decorre do exposto que a abertura de uma fase de contraditório, para debate de questões jurídicas, não se justifica se a parte vencida, displicentemente e ignorando os seus deveres e ónus (arts. 7.º, 552.º, n.º 1, al. d), e 572.º, al. b), do Cód. Proc. Civil), não tiver apresentado as suas razões de direito, não sendo a abordagem jurídica do caso feita pelo juiz forçada ou implausível. O mesmo se diga quando a parte afeiçoa as razões de direito que apresenta para determinada resolução do caso que lhe convém, omitindo qualquer referência a outras soluções plausíveis da questão de direito. A pronúncia do tribunal, assentando sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com que a parte podia razoavelmente contar, não é de qualificar como decisão-surpresa.

A autora, logo na petição inicial, já teve oportunidade de, ativamente, influenciar o sentido da decisão proferida, dada a natureza das questões enfrentadas. A decisão proferida não traz novidade ao já alegado pela parte, mantendo o enquadramento jurídico geral do caso, apenas tendo recusado o entendimento sobre as questões suscitadas adotado pela autora. Questão diferente desta é a de apurar se o fez em conformidade com a lei aplicável – isto é, se encerra um error in judicando sobre uma questão adjetiva.
Conclui-se, pois, que a decisão impugnada não é nula, nem intrinsecamente, nem por contágio.

2. Pluralidade subjetiva passiva da instância
No desenho da causa de pedir que apresenta, a autora não é particularmente clara na caracterização da modalidade de pluralidade subjetiva passiva de que se socorre – se do litisconsórcio (voluntário ou necessário); se da coligação. A distinção não é irrelevante, já que apenas em caso de litisconsórcio necessário estaremos perante uma única ação (art. 35.º do Cód. Proc. Civil).

Podemos admitir que estamos perante o exercício de um direito contra o réu AM, a que corresponde um pedido de prestação de contas respeitante ao período que decorreu entre a abertura da herança e a instauração do processo de inventário; o exercício de um direito distinto contra a ré MR, a que corresponde um pedido de prestação de contas respeitante ao período que decorreu após a sua nomeação como cabeça de casal; e, eventualmente, o exercício de um outro direito contra a ré MR, a que corresponde um pedido de prestação de contas respeitante ao período que decorreu entre a abertura da herança e a sua nomeação como cabeça de casal. Sendo diferentes os direitos, isto é, as relações materiais controvertidas, poder-se-á concluir que estamos perante uma coligação, a qual deverá passar no crivo do art. 37.º do Cód. Proc. Civil.

O petitório não nos ajuda na tarefa da qualificação da pluralidade subjetiva passiva. O pedido formulado, na parte que ora importa, é sincrético e gerador de equívoco: “(…) requer a citação dos réus para apresentar no prazo de 30 dias as referidas contas (…)”. Não é claro se a autora pretende que cada um dos réus apresente uma conta-corrente respeitante à sua gestão (art. 944.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) ou, diferentemente, pretende que os dois apresentem uma única conta-corrente conjunta. Também não é claro se a autora, por exemplo, indevidamente, pretende que o réu AM também subscreva a conta-corrente abrangendo a atividade exclusivamente desenvolvida pela ré MR (porventura, até mesmo no decurso do processo de inventário) nem se entende que os dois réus atuaram em coautoria, pretendendo que apresentem uma única conta-corrente (conjunta) respeitante ao período anterior à nomeação da cabeça de casal, apenas esta devendo apresentar uma conta-corrente respeitante ao período subsequente à sua nomeação.
Esta falta de clareza na articulação inicial torna desnecessariamente espinhosa a tarefa do juiz da causa. A deficiência da articulação (e dificuldade na interpretação do pedido) não permite que ação prossiga sem a sua sanação, mas também não permite, com segurança, indeferir liminarmente a petição inicial, como se verá.

3. Demanda da ré MR
3.1. Período relevante a considerar
A ré MR foi nomeada cabeça de casal em 2 de março de 2022. A ação vertente deu entrada em 19 de setembro de 2022. No despacho de indeferimento liminar é apresentada a seguinte fundamentação: “no que concerne à cabeça-de-casal nomeada no inventário não decorreu ainda o prazo para a mesma vir apresentar contas dado que, como a requerente bem refere, nos termos do art. 2093.º, n.º 1, do Código Civil, a cabeça-de-casal apenas deve prestar contas anualmente”. No entanto, não é explicado por que razão se entende que o prazo previsto no n.º 1 do art. 2093.º do Cód. Civil deve ser contado desde a nomeação da cabeça de casal no processo de inventário, e não desde a data da abertura da herança – por exemplo, não é dito que a cabeça de casal não é a pessoa a quem incumbiria o cabecelato (desde a abertura da herança), na ausência de nomeação judicial.

Recorrendo-se à lei substantiva para delimitar o dever (e o correspondente direito) de prestação de contas, dever-se-á, coerente e consequentemente, recorrer à mesma lei para fixar o termo inicial da contagem do período de um ano nela previsto. Ora, o cabecelato da ré, por corresponder ao previsto no art. 2080.º, n.os 1, al. c), e 4, do Cód. Civil teve o seu início com a abertura da herança, desde então se devendo contar o prazo de um ano referido no art. 2093.º, n.º 1, do Cód. Civil. Com efeito, decorre do disposto nos arts. 2079.º, 2083.º e 2084.º do Cód. Civil que o cabecelato existe independentemente da instauração de um processo de inventário – que pode nunca ocorrer. O mesmo é dizer que existe independentemente da nomeação judicial do cabeça de casal – cfr., na jurisprudência, o Ac. do TRL de 736/21.2T8PDL.L1-7 (12-10-2021) e, na doutrina, Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra, Almedina, p. 128..

No Cód. Proc. Civil de 1939, porque esta norma substantiva se encontrava deslocada na lei adjetiva, o legislador teve necessidade de esclarecer que, na contagem deste prazo, vale a realidade substantiva – rezava o § único do art. 1018.º do Cód. Proc. Civil de 1939 que “[o] cabeça de casal é obrigado a prestar contas anualmente, a partir da data da abertura da herança (…)”. Encontrando-se atualmente esta norma no seu devido lugar (art. 2093.º, n.º 1, do Cód. Civil), é desnecessário qualquer esclarecimento – no sentido de valer a realidade substantiva (data da abertura da herança), e não a realidade processual (data da nomeação judicial) –, pelo que o prazo se conta desde o momento em que, na pessoa do devedor da prestação de contas, se reúnem os pressupostos imediatamente previstos na lei para o exercício do cargo de cabeça-de-casal.

Cabendo à ré o cabecelato desde a abertura da herança, é desde este momento que deve ser contado o prazo de um ano referido no art. 2093.º, n.º 1, do Cód. Civil – a posição contrária só se pode sustentar numa petição de princípio. E aqui convém notar que as condutas omissivas e de tolerância de uma gestão por terceiro podem constituir uma forma de administração do património – não cabendo aqui discutir se representam, ou não, uma prudente e judiciosa administração. Questão diferente desta é a de saber se o período anterior à nomeação no processo de inventário pode ser considerado no mesmo processo especial de prestação de contas, a correr por apenso ao processo de inventário – questão adiante enfrentada.

3.2. Possibilidade de cumulação de pedidos
Conforme já se sublinhou acima, a decisão impugnada, no que diz respeito à ré MR, nomeada cabeça-de-casal no inventário, fundou-se na inexistência do dever de prestar contas e do correspondente direito de as exigir, no primeiro ano subsequente à nomeação. Independentemente de qualquer juízo sobre a bondade desta posição, assentou ela sobre uma causa de pedir insuficientemente densificada.
Não obstante se depreender que, na decisão impugnada, foi considerado que o período da administração do património hereditário por parte de MR se reporta, unicamente, ao período que decorreu desde a sua nomeação como cabeça de casal no processo de inventário, verifica-se que, na petição inicial, a autora nunca é particularmente clara na delimitação de tal período. É certo que, logo no cabeçalho da petição inicial, a autora afirma que AM atuou como “cabeça de casal de facto (…) até à interposição da ação de inventário principal”, mas nunca alega que o fez com exclusividade, isto é, que apenas este administrou a herança (ou parte dela) até tal data. Já nos arts. 7.º a 9.º e 20.º da petição inicial a autora sugere que a administração da herança pela ré MR (ou também) já se verifica (em concurso ou em coautoria com o réu, eventualmente), desde a data da abertura da herança – há mais de dois anos, portanto.
Em face do teor da petição inicial, é abusivo concluir que a autora pretende que a ré MR preste contas da sua administração apenas a partir da sua nomeação judicial, e não também a partir do momento em que reuniu os requisitos legais para exercer o cargo – a data da abertura da sucessão. Pelo contrário, deve entender-se que é a administração de todo o período de cabecelato que é questionada. Isto significa que apenas nos resta verificar se pode ser pedida a prestação de contas relativamente ao período anterior à nomeação da cabeça do casal, já no processo de inventário, conjuntamente com as contas respeitantes ao período subsequente, por apenso ao processo de inventário – em sentido afirmativo, cfr. o Ac. do TRL de 18-04-2023 (27214/20.4T8LSB-B.L1-7).

A este respeito, dever-se-á ter presente que “[p]ode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação” (art. 555.º do Cód. Proc. Civil). Significa isto que a autora pode, no mesmo processo, cumular o pedido de prestação de contas respeitante ao período anterior à nomeação da cabeça de casal com o pedido de prestação de contas respeitante à administração ulterior à nomeação. Não se verificando nem tendo sido invocada nenhuma ofensa às “regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia” (art. 37.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) – sendo certo que a forma correspondente aos dois pedidos é a mesma (processo especial de prestação de contas) –, resta concluir que nada obsta à apreciação conjunta dos dois pedidos, sendo certo que a homogeneidade das relações materiais controvertidas afasta a aplicação da norma vertida no art. 37.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil.
E se nada obsta à apreciação conjunta dos dois pedidos, também nada obsta a que essa apreciação seja feita por apenso ao processo de inventário. A causa que, obrigatoriamente, deve ser instaurada por apenso exerce uma força centrípeta sobre as demais – cfr. o art. 82.º, n.º 2, segunda parte, do Cód. Proc. Civil, do qual se extrai que, sendo a apensação necessária de conhecimento oficioso, é o pedido a essa apensação sujeito (de prestação de contas respeitante ao período subsequente à nomeação) que determina o tribunal competente para toda a ação (aquele perante o qual pende o processo de inventário).
Em suma, a dedução de um pedido visando a prestação de contas pela cabeça de casal, por apenso ao processo de inventário, respeitante à sua administração da herança em período anterior à nomeação judicial para o cargo, conjuntamente com idêntico pedido respeitante à administração realizada após esta nomeação, traduz uma regular cumulação inicial de pedidos (arts. 549.º, n.º 1, e 555.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil). Esta conclusão vale, quer os pedidos se encontrem formulados em enunciados diferentes, quer se encontrem condensados num único enunciado, no qual se pede a prestação de contas respeitante à administração durante todo o período de cabecelato – antes e depois da nomeação judicial.

4. Demanda do réu AM
4.1. Indevida demanda como dependência de outra causa
Como vimos, a decisão impugnada, no que ao réu AM diz respeito, funda-se na circunstância de “tal ação de prestação de contas [ser] alheia ao cabecelato exercido no âmbito do processo de inventário, pelo que não deverá correr por apenso ao mesmo – cfr. art. 947.º do Cód. Proc. Civil”. O tribunal a quo identificou, muito certeiramente, uma anomalia adjetiva da ação, mais precisamente, na demanda do réu AM.

Estabelece o art. 941.º do Cód. Proc. Civil que “[a] ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”. Tratando-se de uma obrigação do cabeça de casal, são as contas “prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita” – art. 947.º do Cód. Proc. Civil. O mesmo é dizer que, por força do disposto no art. 206.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a ação para prestação de contas por parte do cabeça de casal deve correr por apenso ao processo de inventário “em que a nomeação haja sido feita”.

Nunca tendo o réu sido nomeado cabeça de casal, falece a conexão processual que justifica e impõe a dispensa de distribuição da ação de prestação de contas. Tal não significa, porém, que, tendo a ação sido instaurada por apenso, a sanção para a falta de distribuição seja o indeferimento liminar da petição inicial. A este respeito, determina o art. 205.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que, no que aqui releva “[a] falta (…) da distribuição não produz nulidade de nenhum ato do processo, mas pode ser (…) suprida oficiosamente até à decisão final”.

Em suma, em geral – vista isoladamente a ação instaurada contra AM –, não deve a petição inicial ser liminarmente indeferida, se for constatado o seu irregular processamento por apenso, devendo, sim, ser remetida à distribuição (dando-se baixa do apenso indevidamente criado, por culpa do autor), com eventual tributação em custas, pela atividade anómala gerada – não ficando prejudicado o conhecimento da competência territorial, designadamente, por parte do juiz a quem viesse a ser distribuída a ação, caso seja excecionada a incompetência do tribunal.

No entanto, em concreto, a ação instaurada contra AM não pode ser vista isoladamente, já que a autora o demandou conjuntamente com a ré MR. Assim, se a demanda conjunta não for admissível, não restará outra solução que não seja a absolvição do réu da instância, sem necessidade da indicação prevista no n.º 1 do art. 38.º do Cód. Proc. Civil, já que o mais pedido (a contra a ré) pode ser apreciado na ação a correr por apenso, sendo impossível a cisão da petição (para remessa de uma sua secção à distribuição). O mesmo se diga, caso se conclua – em face da factualidade trazida pela autora em resposta ao convite ao aperfeiçoamento da petição que lhe deve ser dirigido – que a demanda conjunta é, em abstrato possível, nos quadros da coligação, relativamente à indicação prevista no n.º 4 do art. 37.º do Cód. Proc. Civil.

Como vimos, pode estar em discussão uma administração conjunta (em coautoria) por parte dos dois réus, a qual pode justificar (ou impor) a instauração de uma única causa, correndo os termos necessários aplicáveis à demanda da cabeça de casal. Esta incerteza só poderá ser ultrapassada em face da resposta que a autora der ao convite ao aperfeiçoamento da petição que lhe deve ser dirigido.

4.2. Propriedade da forma processual empregue
Não vale continuar a invocar a lição de Alberto dos Reis, em defesa da existência de uma diferente forma de processo em razão apenas da dependência processual (processamento por apenso). É ilegítima esta invocação, não porque, quanto este último processualista escreveu a sua lição no seu Processos Especiais, vigorava o Cód. Proc. Civil de 1939, no qual constavam algumas normas apendiculares respeitantes à prestação de contas por parte do cabeça de casal, o que poderia permitir a ideia de que se estaria perante um “micro regime” especialíssimo – o que não sucede no código atual (circunstância, por si só, obsta a que se acolha acriticamente tal putativa lição). Não vale invocar a doutrina de Alberto dos Reis, sim, porque, nas páginas dos Processos Especiais, ela tem um sentido diferente – cfr. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I, reimpressão de 1982, p. 302 e segs. e 328 e segs.. Com efeito, ao elencar os processos especialíssimos de prestação de contas, o professor da academia coimbrã deixa de fora o art. 1018.º do Cód. Proc. Civil de 1939, no qual se previa a prestação de contas por dependência de outro processo. Conforme decorre do que este autor escreve na página 328 já referida, a norma vertida no proémio do art. o art. 1018.º do Cód. Proc. Civil de 1939 – no essencial, hoje prevista no art. 947.º do atual Cód. Proc. Civil – apenas versava sobre a adjudicação do processo a um determinado juiz, estando, pois, diretamente relacionada com a competência relativa do tribunal (competência por conexão processual) – não contemplando um rito processual (especialíssimo) diferente.

Sustentar que a norma contida no art. 947.º do atual Cód. Proc. Civil consagra uma forma processual diferente da forma (que seria geral) de processo especial de prestação de contas não é diferente de sustentar que uma ação de processo comum que deva correr por apenso a um processo de insolvência passa, apenas por força desta dependência, a ser uma ação de processo especial (art. 89.º, n.º 2, do CIRE), assim como não é diferente de sustentar que uma ação (de processo comum) de honorários é uma ação de processo especial, nos casos em que deva correr por apenso (art. 73.º do Cód. Proc. Civil). Trata-se de um entendimento insustentável – aliás, não chocaria se a norma prevista no art. 947.º do atual Cód. Proc. Civil figurasse, sistematicamente, num artigo inserido imediatamente após o art. 73.º do Cód. Proc. Civil.
A indevida instauração por apenso de uma ação de prestação de contas não configura, pois, um caso impropriedade da forma processual – isto é, de erro na forma do processo –, correndo, em qualquer caso, a ação sempre sob a mesma forma de processo especial de prestação de contas. A irregularidade cometida resolve-se pela via acima referida – remessa à distribuição. É útil notar que, ainda que assim não se entendesse, a idêntico resultado se poderia, eventualmente, chegar por via da aplicação do art. 193.º do Cód. Proc. Civil – conforme se sustentou no Ac. do TRG de 17-12-2013 (473/10.3TBFLG-A.G1).

Em suma, se não for necessário demandar conjuntamente os dois réus – o que se apurará em face da resposta que a autora der ao convite que lhe deve ser dirigido –, deve o réu ser absolvido da instância, não por, quanto ao mesmo, se verificar um erro na forma do processo, mas sim, designadamente, por coligação ilegal e por não ser possível cindir a petição inicial, e realizar a necessária distribuição da ação que lhe diz respeito.

Como vimos, pode estar em discussão uma administração conjunta (em coautoria) por parte dos dois réus, a qual pode justificar (ou impor) a instauração de uma única causa, correndo os termos necessários aplicáveis à demanda da cabeça de casal. Esta incerteza só poderá ser ultrapassada em face da resposta que a autora der ao convite ao aperfeiçoamento da petição que lhe deve ser dirigido.

5. Conclusão
Antes de concluirmos, chamamos a atenção para o facto de o processo especial de prestação de contas não ser um processo de inquérito destinado à descoberta de patrimónios. A autora deve identificar claramente o património (de que se afirma contitular) administrado ou coadministrado por cada um dos réus – podendo ser todo ou apenas parte do acervo hereditário. Impõe-se, pois, que a autora seja convidada não apenas a proceder a tal identificação – para além de esclarecer qual o período a que se refere a administração da ré MR.

Do raciocínio expendido extrai-se que não pode ser confirmada a decisão impugnada, devendo a autora ser convidada a:
1–identificar claramente o património (de que se afirma contitular) administrado ou coadministrado por cada um dos réus – podendo ser todo ou apenas parte (a identificar) do acervo hereditário;
2–esclarecer qual o período a que se refere a administração da ré MR objeto do seu pedido;
3–esclarecer se ocorreu uma administração conjunta (coautoria) por parte dos réus (identificando o período correspondente e concretizando-a em factos);
4–clarificar o pedido formulado contra cada um dos réus.
Este desenvolvimento processual não obsta a que, desde já ou ulteriormente, se enfrentem outras questões, como a legitimidade processual passiva – cfr. o Ac. do TRC de 24-06-2014 (373-A/2001.C1) –, que envolve a “representação da herança indivisa”(sic)afirmada pela autora, ou a eventual inadmissibilidade da cumulação de outros pedidos deduzidos – cfr. os Acs. do STJ de 03-04-2003 (03A073) e do TRC de 25-05-2010 (14-A/1998.C2).

Também não obsta, pelo contrário, a que, em face dos esclarecimentos prestados, se conclua pela inadmissibilidade da demanda do réu AM – que, autonomamente, nunca poderia correr por apenso –, por não estarem preenchidos os pressupostos das normas (máxime, vertidas no art. 33.º do Cód. Proc. Civil) que, excecionalmente, podem caucionar a demanda conjunta dos réus (por apenso ao processo de inventário), designadamente, se tiverem atuado em coautoria – sendo certo que a autora não poderá afeiçoar artificialmente a sua alegação, de modo a garantir a permanência do réu na ação, sob pena de responder nos quadros da litigância de má-fé.

Dispositivo
Em face do exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar o despacho recorrido e determina-se que, pelo tribunal a quo, seja a autora convidada a aperfeiçoar o seu articulado inicial nos termos acima concretizados.
Sem custas, por não terem sido apresentadas contra-alegações.
Notifique.


LISBOA, 26-09-2023


Paulo Ramos de Faria
José Capacete
Carlos Oliveira