Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARLENE FORTUNA | ||
Descritores: | REGISTO DE VOZ E IMAGEM PROVA PROIBIDA PROCESSO EQUITATIVO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | I - Para que o registo de imagens e voz, por qualquer meio e sem o consentimento do visado, relativo ao catálogo [de crimes] previsto nos arts. 1.º e 6.º da Lei n.º 5/2002, seja considerado prova legalmente admissível e passível de valoração após a sua ulterior junção aos autos, a mesma depende de prévia autorização judicial. II - É nula a prova recolhida sem esta autorização judicial prévia e, consequentemente, proibida a sua valoração. III - Este procedimento não é irrelevante; ao invés, é fundamental para garantir um processo justo e equitativo e assegurar todas as garantias de defesa ao arguido, de acordo com o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa e com o art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO Nos autos de inquérito com o NUPIC 279/24.2JELSB-A do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 8, em que são arguidos AA, BB, CC e DD, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução considerou que os fotogramas constantes de fls. 69, 70, 71, 72, 73, 77 e 77 constituem prova proibida, nos termos do art.º 126.º n.º 3 do Código de Processo Penal (doravante CPP) por falta de autorização judicial para a sua produção. ** Inconformado com esta última decisão, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO interpor recurso, formulando as seguintes conclusões [transcritas]: «a) O despacho sob censura violou por erro de interpretação e subsunção dos factos ao direito, o disposto nos artigos 187.º, n.º 1, alínea b) , 189.º e 269.º n.º 1, alínea e) , todos do Código de Processo Penal, bem como o artigo 79.º n.º 2 do Código Civil e os artigos 18.º n.º 2 e 26.º da Constituição da República Portuguesa; b) Está em causa a investigação da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e um crime de associação criminosa, respectivamente previstos e punidos pelo disposto nos artigos 21.º n.º 1, agravado pela disposição do artigo 24.º alíneas c) e j) e artigo 28.º, todos do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, com referência à Tabela I-B, anexa ao referido diploma legal, estando identificados da prática de tais ilícitos, quatro arguidos naturais da ..., sem ligações a Portugal; c) Foram apreendidos, na fase em que os arguidos foram presentes ao Meritíssimo Juiz de Instrução, em sede 1.º Interrogatório Judicial, cerca de 251, 769 quilogramas de cocaína, transportada no interior de contentores, por via marítima, dissimulada entre vários kgs de ananases, desde a ... até ao ..., em Portugal; d) Os arguidos eram os destinários da carga ilicita de cocaína, e desde o momento em que os contentores chegaram a Portugal, até à fase de descarga numa armazém sito na zona industrial de ..., a Polícia Judiciária efectou um contínuo seguimento, elaborando relatos de diligências externas; e) A Polícia Judiciária procedeu à junção de fotogramas, que tirou aos arguidos, matrículas dos carros por eles tripulados, ao exterior do armazém onde a cocaína foi descarregada e dentro do Estabelecimento commercial ... existente nas proximidades; f) Não existia à data (julga-se que tal terá sucedido por mero lapso) autorização judicial para recolha de fotos, pese embora tal tivesse sido promovido junto da Meritissima Juiz afecta ao Juiz 8 do Tribunal Central de Instrução Criminal, a quem os autos foram distribuidos; g) Em tais fotos são visiveis os rostos dos arguidos; h) A Polícia Judiciária, em cumprimento dos seus deveres especiais em investigação criminal (regulados pelo Decreto Lei n.º 138/2019, de 13.09.), no âmbito da prevenção e deteção, agiu em ordem a assegurar a correcta custódia da prova, processando-a para determinação das causas, circunstâncias e autoria, recolhendo assim todos os sinais do cometimento dos ilícitos penais em apreço; i)O Meritissimo Juiz de Turno (Juiz 3), considerou que os fotogramas referidos em e) e que se traduzem nos fotogramas de fls. 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77, constituem prova proibida, por serem visieevis os rostos dos arguidos e não existir autorização judicial para a sua produção; j) Porém, não tem que ser feito um juízo de censura jurídico-penal a esta prova, considerando-a nula, por não se estar face a uma compressão inadmissível do direito à imagem ou mesmo a uma intromissão abusiva na vida privada; k) Esta prova deve ser tida em consideração, pois permite uma imediata identificação dos autores dos factos ilícitos, dos carros que conduziam durante todo o percurso de seguimento da saída do ..., dos contentores que transportavam a cocaína, até á fase de chegada ao local de destino, no norte do País, e todas as manobras de vigilâncias que os arguidos estavam a fazer no local de armazenamento da droga que foi apreendida l) As imagens foram captadas na via pública, abrangendo matrículas de veículos automóveis que os arguidos estavam a utilizar e no caso do fotograma n.º 77, no interior de um estabelecimento comercial-...- o qual tem também apostas no seu espaço interior e no espaço exterior afecto à sua utilização, câmaras de videovigilância; m) Todos os fotogramas em apreço, foram captados num espaço público, nunca no interior de uma residência particular, ou em qualquer outro espaço reservado de acesso privado; n) No que que concerne ao fotograma n.º 77, em que é visível o rosto do arguido, essa foto foi tirada dentro de um estabelecimento comercial- ... e qualquer cidadão que frequente este tipo de espaços, sabe que a sua imagem está a ser captada nas câmaras desses estabelecimentos comerciais, e aceita essa circunstância; o) Estes fotogramas devem ser considerados elementos relevantes, são elementos fulcrais de prova, que conduzem à descoberta da verdade material dos factos e permitem atingir a solução justa; p) A prova tem por função a demonstração da realidade dos factos, tal como dispõe o artigo 341.º do Código Civil, integrando o seu objecto, todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis; q) As proibições de prova, ou mesmo, se formos à sua génese a proibição de produção de prova, são verdadeiras limitações à descoberta da verdade material, e como tal, estão elencadas no Código de Processo Penal, em moldes taxativos; r) De acordo com o artigo 26.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe "Outros direitos pessoais", é referido que "a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação."; s) Assim no direito à imagem está implícito, o direito de cada um a não ser fotografado ou filmado sem o seu consentimento; t) Todavia, a própria lei fundamental, no seu artigo 18.º, nº 2, admite uma restrição dos "direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."; u) O que significa que, pese embora os princípios gerais acima referidos, a própria lei fundamental admite excepções, e precisamente uma delas é a que está prevista no artigo 167º, do Código de Processo Penal; v) Afigura-se que será entendimento jurisprudencial que não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, ou autorização judicial para ta lacto, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente; w) Assim sendo, será considerada criminalmente atípica, a obtenção de fotografias ou de filmagens nessas condições; x) O próprio artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima; y) Consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade; z) Quer isto dizer que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil; aa) A justa causa apenas poderá ser afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente, a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada; bb) Por maioria de razão se deverá estender ao direito penal o preceituado neste último segmento normativo, face à natureza fragmentária daquele ou ao seu correspondente princípio de intervenção mínima, resultante do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental; cc) A obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço não constitui qualquer devassa da vida privada; dd) O núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, nunca é atingido no caso em apreço; ee) As imagens dos arguidos não foram registadas no contexto da esfera privada e íntima destes, mas sempre em espaços exteriores e públicos, de livre acesso; ff) Bem jurídico que é constitucionalmente protegido, é a esfera da vida privada e íntima do indivíduo, e por isso, os fotogramas não contendem com o núcleo fundamental que respeita à reserva da vida íntima dos arguidos, pois foram recolhidos em espaço público, sendo que alguns respeitam a matrículas e identificação dos veículos automóveis conduzidos por aqueles; gg) Era imperioso agir rapidamente, garantindo a custódia da prova e permitir a melhor compreensão de tudo o que sucedeu, evitando o escoamento rápido da cocaína, evitando-se o risco de perda do seu rasto, razão pela qual a recolha dos fotogramas nos moldes em que ocorreu é legitima; hh) Note-se que os dois contentores carregados com a cocaína saíram do ... no dia ….2024 e a apreensão do estupefaciente e subsequente detenção dos quatro arguidos, ocorreu na madrugada (pelas 00h30m) do dia ….2024. Nestes termos, o despacho judicial deve ser revogado na parte que se procedeu à rejeição da validade dos fotogramas de fls. 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77, uma vez que não integram prova proibida». ** O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 22.08.2024, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo. ** O arguido EE apresentou resposta ao recurso, tendo formulado as seguintes conclusões: «DA FALTA DE INTERESSE EM AGIR 1. Por despacho de 28 de junho de 2024, o Tribunal a quo considerou como prova proibida os fotogramas de folhas 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77, por terem sido produzidos sem autorização judicial. 2. O Ministério Público, no recurso interposto do referido despacho, sustentou que não era necessária autorização judicial para a produção dos fotogramas, assumindo uma posição diferente da que sustentara na promoção de folhas 40. 3. Ao mudar substancialmente de posição, o Ministério Público faltou ao princípio da lealdade processual, carecendo de interesse em agir. 4. Consequentemente, o recurso do Ministério Público deve ser rejeitado, nos termos dos artigos 401.º, n.º 2 e 414.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. DA INVALIDADE DOS FOTOGRAMAS ENQUANTO MEIO DE PROVA 5. Caso o Tribunal ad quem entenda que o recurso é admissível, deve ainda assim manter o despacho recorrido. 6. Os fotogramas de folhas 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77 só poderiam valer como meio de prova se tivessem sido obtidos de acordo com o artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro. 7. O artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro impõe autorização judicial para a obtenção de fotogramas, autorização essa que não foi dada nos autos. 8. Assim, não tendo a produção dos fotogramas de folhas 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77 sido precedida de autorização judicial, a sua captura foi ilícita, não podendo tais fotogramas valer como prova, nos termos conjugados dos artigos 6.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, 199.º, n.º 2 do Código Penal e 167.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. 9. É inconstitucional, por violação do direito fundamental à imagem, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e por violação da necessidade de instrução judicial do processo penal em matéria de direitos fundamentais, prevista no artigo 32.º, n.º 4, ambos da Constituição, a norma constante, separada ou conjugadamente, do artigo 167.º,n.º 1 do Código de Processo Penal, do artigo 199.º, n.º 2 do Código Penal e do artigo 79.º, n.º 2 do Código Civil, no sentido segundo o qual não carece de autorização judicial a captação específica de imagem de pessoa por órgão de polícia criminal, mesmo em espaço público ou aberto ao público, para efeitos de junção e valoração como meio de prova em processo penal.» ** Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de aderir aos fundamentos aduzidos no recurso interposto pelo Ministério Público de 1.ª instância. ** Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2 do CPP. ** Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre apreciar e decidir. ** II. OBJECTO DO RECURSO Questão prévia: Da alegada falta de interesse em agir do Ministério Público Veio o arguido EE invocar a falta de interesse em agir do recorrente. Relembremos os argumentos apresentados: «1. Por despacho de 28 de junho de 2024, o Tribunal a quo considerou como prova proibida os fotogramas de folhas 69, 70, 71, 72, 73, 75 e 77, por terem sido produzidos sem autorização judicial. 2. O Ministério Público, no recurso interposto do referido despacho, sustentou que não era necessária autorização judicial para a produção dos fotogramas, assumindo uma posição diferente da que sustentara na promoção de folhas 40. 3. Ao mudar substancialmente de posição, o Ministério Público faltou ao princípio da lealdade processual, carecendo de interesse em agir. 4. Consequentemente, o recurso do Ministério Público deve ser rejeitado, nos termos dos artigos 401.º, n.º 2 e 414.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.» Vejamos, pois, se assiste razão ao recorrido. Analisados os autos, verifica-se que, por despacho de 25.06.2024, o Ministério Público promoveu, além do mais: «revelando-se crucial para o desenrolar das investigações e recolha de prova, a captação de imagens e som do suspeito, em ordem a identificar terceiros que com este contactem, possibilitando as suas inquirições, recolhendo elementos que permitam a consolidação da prova, de acordo com o estatuído nos artigos 187.º, nº 1, alínea b), 190.º e 269.º, nº 1, alínea e), todos do Código de Processo Penal, artigos 1.º n.º 1, alínea a) e 6.º n.º 1 e 2 da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro que, pelo período de 30 dias. se autorize a Polícia Judiciária a proceder à recolha de som e imagens (fotos e vídeo), com captura de dados de telecomunicações que se encontrem em uso gelos suspeitos» - cfr. fls. 40 da certidão. Por despacho proferido a 25.06.2024, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução não se pronunciou, de todo, sobre esta parte da promoção – cfr. fls. 36 e 37. O recorrente está convicto que tal se deveu a manifesto lapso. E analisados os autos cremos que tal poderá, de facto, ter ocorrido, dada a dimensão dos pedidos efectuados pelo Ministério Público (na promoção), da complexidade dos autos e, sobretudo, da urgência que, então, se verificava dado o tipo de criminalidade em causa (tráfico de substâncias estupefacientes internacional) – cfr. fls. 36-41. Vejamos, no entanto, quais as consequências daí advenientes para a questão colocada pelo recorrido. O STJ tinha fixado a jurisprudência no sentido de que “O Ministério Público tem legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões, mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a posição por si anteriormente assumida no processo”(1). Entretanto, mais recentemente, fixou jurisprudência em sentido oposto – que se mantém na actualidade -, ou seja “O Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de quaisquer decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”(2). Isto significa que a mais recente jurisprudência passou a defender que o Ministério Público carece de legitimidade e, consequentemente, de interesse em agir em recorrer de decisões em que intenta colocar em crise decisão inteiramente concordante com a posição que anteriormente assumiu(3). Aqui chegados, há que dizer que a aplicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2011 não tem aqui qualquer aplicação, dado que não recaiu sobre o supra citado requerimento do Ministério Público qualquer decisão judicial, razão por que, desde logo, não se verifica um dos pressupostos para a sua utilização no caso, pois que o mesmo depende, em primeira-mão, de uma concordância pelo juiz, situação que, aí sim, impediria o Ministério Público de recorrer da decisão. Todavia, inexistindo, como vimos, qualquer pronúncia positiva ou negativa a esse respeito, não nos resta senão que concluir que a posição agora assumida pelo recorrente se traduz, ao fim ao cabo, na primeira que adopta nos autos e que agora será, necessariamente, decidida. Obviamente que o Ministério Público poderia, e deveria, ter visto logo aquela omissão, aquando da devolução dos autos; porém, dada a urgência verificada (promoção de 25.06.2024, despacho judicial a 26.06.2024 e detenção em flagrante delito a 27.06.2024), estamos em crer que, à semelhança do Exmo. Sr. JIC, também não se apercebeu de tal falta de pronúncia, e diligenciou logo junto da PJ no sentido de actuar em conformidade com aquilo que havia solicitado, pese embora não existisse qualquer despacho judicial a autorizar tais diligências. Em conclusão, entendemos que o Ministério Público tem interesse em agir, razão por que este Tribunal apreciará, em seguida, o recurso por si interposto. * O âmbito do recurso é definido, como é sobejamente sabido, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso(4). Assim, no caso vertente, a questão que constitui objecto do recurso consiste em saber se deve ser revogado o despacho recorrido que declarou nulos os fotogramas juntos aos autos, por constituírem, ao invés do decidido, prova admissível, nos termos do art.º 125.º do CPP. ** III. FUNDAMENTAÇÃO É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição): «O Ministério Público indicou como prova as reportagens fotográficas, para o que agora releva, de fls. 68 a 77. Contudo. os fotogramas de fls. 69, 70, 71, 72. 73. 75 e 77 nos quais são visíveis indivíduos constituem prova proibida (art.º 126.º, nº 3, do Código de Processo Penal), por falta de autorização judicial para a sua produção (cf. fls. 37/41, 44/45). De resto, ainda que tivesse havido tal autorização judicial. sempre teria de ter sido dado cumprimento ao disposto no art.º 188.º, nº 7 do Código de Processo Penal, conjugado com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão n.º 13/2009, de 01.10.2009. ex vi art.º 6.º. nº 3, da Lei nº 5/2002, de 11.01. Tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.10.2018: Ao registo de voz e imagem previstos no artigo 6.º, nº 3, da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, aplicam-se as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal, na interpretação efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de Fixação Jurisprudência n.º 13/2009, de 1 de Outubro; Assim, nos termos do artigo 188.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, no registo de voz deve ser junta a transcrição, tal como nas escutas telefônicas e no registo de imagem deve ser junta ao processo por cópia ou fotografia as imagens (fotogramas) que o Ministério Público julga relevantes do conjunto das imagens obtidas, indicando, em simultâneo, qual a futura medida de coacção que pretende vir a promover (ECLI:PT:TRL:2018:5932.17.4T9AMD.A.L1.9.F4).» *** APRECIAÇÃO DO RECURSO Entrando, assim, no cerne da questão, vejamos se assiste razão ao recorrente ou se, ao invés, os fotogramas apresentados constituem, de facto, prova proibida, nos termos do art.º 126.º do CPP. Desde já se avança que, pelas razões que adiante se dirão, não assiste qualquer razão ao recorrente. Senão vejamos. No nosso ordenamento jurídico, a validade da prova obtida por imagens ou registo de voz em investigação criminal, incluindo no contexto de um inquérito por tráfico de substâncias estupefacientes, depende de vários factores, incluindo o respeito pelos direitos fundamentais dos suspeitos/arguidos e o cumprimento das normas processuais penais, nomeadamente quanto à necessidade de autorização judicial. Dito por outras palavras, a recolha de provas que possa interferir com direitos fundamentais, como a privacidade e a protecção de dados pessoais, está sujeita a um rigoroso controlo judicial. E, de modo a compreendermos melhor o que aqui está em causa, contemplemos qual o enquadramento jurídico português sobre esta matéria. De acordo com o disposto no art.º 125.º do CPP “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”(5). Isto significa que haverá sempre um limite inultrapassável «de não serem admitidos os que ela, a lei, facialmente, considere proibidos, como sucede paradigmaticamente com os descritos no art.º 126.º»(6). Prosseguindo, estabelece o n.º 3 deste último normativo [art.º 126.º], que as provas obtidas por meios que resultem de intromissões ilegítimas na vida privada, são nulas. Nos termos do art.º 187.º do CPP exige-se autorização judicial para usar meios que invadam a privacidade, como escutas telefónicas. E pese embora este normativo se refira a comunicações, a verdade é que, como se verá infra, também se aplica a outros meios de recolha de prova que afectem direitos fundamentais. Assim, nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, aplicável que no caso que nos ocupa, temos que: - de acordo com o art.º 1.º, n.º 1, al. a) “A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova (…), relativa aos crimes de: a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro”; [de entre outros crimes catálogo] e, - nos termos do art.º 6.º desse mesmo diploma legal: “1 - É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado. 2 - A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos. 3 - São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.” (sublinhado nosso). Donde se conclui, pela conjugação de tais normas legais, que a captação de imagens e voz, num determinado catálogo [de crimes] se aplicam as formalidades do disposto no art.º 188.º do CPP. E diz-nos tal normativo, no seu n.º 7 que “Durante o inquérito, o juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência.” Como se diz no Ac. do TRL de 18.10.2018(7), aliás citado no despacho em crise, “o legislador não distingue o registo de voz do registo de imagem mas, apenas, em relação a ambos, entende que o procedimento do artigo 188º, nº 7 se aplica com as “necessárias adaptações”, sendo que a “expressão “necessárias adaptações”, nada mais quer significar que, no registo de voz se junta a transcrição, tal como nas escutas telefónicas e no registo de imagem se junta ao processo por cópia ou fotografia as imagens (fotogramas) que o Ministério Público julga relevantes do conjunto das imagens obtidas, indicando em simultâneo qual a futura medida de coacção que pretende vir a promover. (…). O que se pretende com a norma, no que respeita à recolha de imagens, é que sejam juntas, sob solicitação do detentor da acção penal e conjugadas com a indicação da futura medida de coacção que pretende promover, as fotografias (fotogramas) retiradas do acervo de imagens recolhidas, as relevantes para o processo em termos de prova e futura aplicação de medida de coacção. Este procedimento não é de todo irrelevante ou de menor importância. O mesmo é, pelo contrário, essencial para garantir um processo justo e equitativo e assegurar todas as garantias de defesa ao arguido.” (sublinhados nossos). Mas para que tal ocorra, mostra-se imperioso que, no momento anterior à sua recolha e junção aos autos tenha havido, forçosamente, uma autorização judicial expressa nesse sentido, nos termos conjugados do art.º 6.º, n.º 3 da referida Lei n.º 5/2002 e art.º 188.º, n.º 7 do CPP, o que, como já vimos na análise da questão prévia, inexiste no caso vertente. Dito de outra forma e de um modo translúcido e assertivo, «este cerne irrenunciável de condições de admissibilidade que se encontra em outras leis» é a autorização judicial que pondere os requisitos dos arts. 1.º e 6.º da Lei n.º 5/2002 e art.º 188.º do CPP. E, assim, a verificação «do catálogo fechado de crimes e pessoas»(8). Trata-se, pois, de «conditio sine qua non para a produção ou valoração da prova»(9). Desta feita, não podemos olvidar que o arguido tem o direito, ao momento do 1.º interrogatório judicial para aplicação de uma medida de coacção, a conhecer as provas indiciárias em que o Ministério Público se baseia para a imputação dos factos e aplicação da respectiva medida (cfr. arts. 141.º e 194.º do CPP). Este direito apenas poderá ser exercido se o processo contiver em si todos os elementos relevantes e válidos (ou seja, legais), só assim se garantindo um processo justo e equitativo, de acordo com o art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa e com o art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos). Antes de concluirmos, há que dizer, ainda, que o argumento do recorrente no sentido de que as imagens foram recolhidas em espaços públicos, inclusive dentro de estabelecimentos onde estão instaladas sistemas de videovigilância, o que implica uma restrição, legal e constitucionalmente, admitida, à intromissão da vida privada e, no fundo, a uma restrição aos direitos fundamentais do cidadão, está ciente este Tribunal que, em determinados casos, tal não constituiu, de facto, uma violação da lei. Porém, neste catálogo crime e de acordo com seu regime específico, uma eventual admissão constituiria um claro esvaziamento da norma; ou, por outras palvaras, seria deixar “entrar pela janela aquilo que não entrou pela porta”. Finalmente, relembre-se que, como bem assinalou, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução existem muitos outros elementos de prova nos autos, podendo, obviamente, os Srs. Inspectores da PJ serem ouvidos na qualidade de testemunhas - se assim o entender o titular da acção penal -, de modo a poderem vir relatar o que viram e presenciaram nos momentos que antecederam a detenção dos arguidos em flagrante delito. Concluindo, e por serem absolutamente desnecessários outros considerandos, improcede o recurso do Ministério Público, confirmando-se o despacho recorrido. ** IV. DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso do Ministério Público, confirmando-se o despacho recorrido. Sem custas por não serem devidas (cfr. art.º 522.º n.º 1 do CPP). ** Comunique de imediato à 1.ª instância enviando cópia. *** Lisboa, 7 de Novembro de 2024 Os Juízes Desembargadores, Marlene Fortuna Jorge Rosas de Castro Ana Marisa Arnêdo ______________________________________________________ 1. Cfr. Ac. Uniformizador do STJ n.º 5/94, publicado no DR, Série I-A, de 16-12-1994. 2. Cfr. Ac. Uniformizador n.º 2/2011, publicado no DR, Série I-A, de 27-01-2011. 3. Cfr. FF e GG In “Recursos Penais”, 9.ª Edição, Agosto 2020, págs. 62-63, no qual dizem que “o primeiro [aresto], além de citar as normas do CPP em causa (comuns ao segundo aresto) invoca igualmente a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional do M.º P.º, o que, de todo, não faz a segunda decisão. E essa perspectiva é fundamental para a compreensão da questão, que nos leva à segunda razão invocada: o interesse em agir (…) o Ministério Público, não tem qualquer interesse directo ou pessoal na sorte da contenda, não tem qualquer necessidade de tutela jurisdicional, tem ou não o dever funcional de agir no interesse da lei e da justiça. Esse é sempre o seu interesse em agir, não se colocando, a nosso ver, em relação a ele, pelo menos, em termos absolutos, a questão do interesse em agir.”. 4. Cfr. Acórdão do STJ, de 15-04-2010, acessível em www.dgsi.pt/jstj. 5. Como refere Pedro Soares in “Comentários Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, 4.ª Ed., págs. 38-42, «a liberdade da prova tem assim um claro de abertura do sistema, ciente que esteve o legislador da própria incapacidade de antecipar os desenvolvimentos técnico-científicos aplicáveis à tarefa de busca da verdade e por isso não abrindo mão de uma “válvula de escape” (…) sendo que «a abertura a novos métodos de aquisição de prova não significa a aceitação de quaisquer que eles sejam (…)». Na verdade, o que «importa colocar a ênfase na ideia que animou o legislador e que foi a de favorecer a descoberta da verdade material, em termos tais que implicam a admissão de todos os meios de prova e meios de obtenção dela, ainda que não previsto na lei.» 6. Ob., loc. cit.. 7. Cfr. https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2018:5932.17.4T9AMD.A.L1.9.F4/ 8. Tiago Caiado Milheiro in ob. cit. pág. 926 a propósito da nulidade prevista no art.º 190.º do CPP (referentes aos arts. 187.º, 188.º e 189.º do mesmo diploma legal). 9. Aut., ob. Loc. cit.. |