Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
478/24.7TXEVR-E.L1-9
Relator: ANA MARISA ARNÊDO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
DESCONTO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário:
(da responsabilidade da Relatora)
I. Tem sido sufragado pela jurisprudência que a matéria de facto fixada no âmbito da decisão revidenda só pode ser impugnada por referência a algum dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P.
II. Como resulta da motivação e das conclusões recursivas, a imputada contradição e o invocado erro na apreciação da prova, não respeitam propriamente à matéria de facto, mas antes a matéria de direito.
III. O recorrente, fundadamente, não questiona a decisão do Sr. Juiz do Tribunal de Execução de Penas quanto aos factos provados, antes se insurge quanto à ponderação efectuada a partir da materialidade dada como assente e às conclusões de direito da mesma retiradas.
IV. Pese embora seja indiscutível que o tráfico de estupefacientes reclama veementes razões de prevenção geral, não tendo o legislador excluído a possibilidade de concessão da liberdade condicional no marco do meio da pena a concretos tipos criminais, designadamente aos crimes de tráfico de estupefacientes, afigura-se que, sob pena de violação do princípio da legalidade, ao julgador não assiste a faculdade de automaticamente, sem avaliação do concreto circunstancialismo, excluir tal possibilidade.
V. A actividade criminosa do ora recorrente, assumindo contornos de indiscutível gravidade - reflectida, desde logo, na moldura legal correspondente ao tipo criminal em apreço e, depois, na real pena aplicada - não está inserida no denominado tráfico internacional de estupefacientes, cingiu-se a um único acto e o estupefaciente em causa foi logo apreendido, sem qualquer disseminação.
VI. A formulação do juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes deverá assentar numa ponderação conjunta de factores, designadamente, na personalidade do condenado e evolução desta durante a execução da pena, nas competências adquiridas no período de reclusão, no comportamento prisional, na capacidade crítica perante o crime cometido e nas necessidades de reinserção social, maxime as atinentes ao enquadramento familiar, social e profissional.
VII. A minimização e relativização do período temporal de cumprimento efectivo da pena, resultante da ponderação de que o período que corresponde à sujeição à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação representa menor sacrifício do que a reclusão em estabelecimento prisional e que, abertamente, legitima distinção, redundará, desde logo, numa praxis incompatível, ou, pelo menos, muito dificilmente compaginável com o regime legal em vigor.
VIII. Não deve - para qualquer efeito e nomeadamente para aferição dos pressupostos materiais da liberdade condicional - ser efectuada qualquer discriminação pela circunstância de uma parte significativa do cumprimento da pena corresponder à que resulta do desconto efectuado, em virtude da sujeição do recorrente à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
IX. Caso contrário, concomitantemente, estar-se-ia a defraudar o regime legal em vigor (art. 80º do C.P.) e a efectuar uma interpretação da norma (art. 61º do C.P.) potencialmente violadora do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado.
X. Atentas as circunstâncias do caso e a materialidade em ponderação, é de condescender que o recorrente irá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, foi proferida decisão, em ... de ... de 2025, que não concedeu a liberdade condicional a AA.
2. AA interpôs recurso desta decisão. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«Com o devido respeito, a douta Sentença recorrida incorreu em erro de interpretação dos pressupostos da liberdade condicional ao sobrevalorizar as exigências de prevenção geral e ignorando elementos concretos que sustentam um juízo de prognose favorável ao recorrente, sendo que a finalidade primária da liberdade condicional é a reinserção social progressiva e não a imposição de um cumprimento mecânico da pena sem qualquer análise individualizada da evolução do recluso, o que a nosso ver não foi devidamente efetuada.
O douto Tribunal “a quo” desconsiderou injustificadamente o percurso prisional exemplar do recorrente, que demonstrou comportamento irrepreensível, sem registo de infrações disciplinares, participação ativa em atividades de ressocialização e integração ocupacional, escolhendo, em detrimento, focar-se no facto de não ter beneficiado de licenças de saída, circunstância que não pode ser invocada contra si, quando tal decorreu de circunstâncias alheias à sua conduta e não de qualquer falta de mérito pessoal.
A fundamentação da decisão recorrida assenta numa interpretação demasiado rígida e abstrata da prevenção geral, violando a lógica do artigo 61.º do Código Penal e o equilíbrio necessário entre prevenção geral e especial. A nosso ver, a gravidade do crime não pode ser usada indefinidamente como único critério para a recusa da liberdade condicional, sob pena de inviabilizar a própria razão de ser do instituto.
O recorrente dispõe de um sólido suporte familiar e de uma oferta de trabalho formal, fatores que são essenciais para um juízo de prognose positivo e que garantem a sua capacidade de reinserção social. Ignorar esses elementos significa rejeitar a aplicação concreta dos princípios de ressocialização e ressarcimento social que regem o sistema penal moderno.
A decisão recorrida ignora a progressão individual do recorrente e os esforços claros que realizou para reverter o impacto da sua conduta criminal. A assunção de culpa e o reconhecimento das consequências dos crimes cometidos foram manifestamente expressos pelo recorrente, não podendo a decisão judicial basear-se numa avaliação subjetiva da sua “interiorização crítica” sem suporte probatório adequado.
O pedido de transferência para outro estabelecimento prisional não pode ser interpretado como um elemento neutro ou negativo, mas sim como uma iniciativa proativa do recorrente para melhorar o seu processo de reinserção. A decisão recorrida falha ao desconsiderar essa iniciativa, tratando-a como um fator irrelevante, quando deveria ser vista como um sinal claro da sua capacidade de adaptação e intenção de reintegração social.
O douto Tribunal “a quo” falhou ao ignorar a realidade concreta do contexto do recorrente, especialmente no que toca às suas responsabilidades familiares. O facto de o recorrente desempenhar o papel de cuidador informal dos seus progenitores durante o período em que esteve sujeito a medida de obrigação de permanência na habitação demonstra um compromisso com valores familiares e sociais que reforçam a sua aptidão para a vida em liberdade.
A douta Decisão recorrida apresenta um desfasamento entre os fundamentos jurídicos e a realidade do caso concreto, ao aplicar de forma excessivamente abstrata conceitos de prevenção geral, sem ponderar as circunstâncias individuais do recorrente. Tal raciocínio desvirtua a própria lógica do instituto da liberdade condicional e perpetua uma abordagem excessivamente punitiva, que contraria os princípios da execução penal moderna. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.02.2024 confirma que a prevenção geral não pode ser utilizada como critério absoluto para negar a liberdade condicional, especialmente quando o recluso demonstra progressão social e não há elementos concretos que sustentem um risco significativo de reincidência de prática de crimes. Aplicando essa lógica ao presente caso, a decisão recorrida deve ser revista.
A jurisprudência dominante enfatiza que a liberdade condicional não é um prémio pelo bom comportamento prisional, mas sim um mecanismo de reinserção social. O Tribunal “a quo” ignorou esse princípio fundamental ao interpretar o instituto da liberdade condicional de forma restritiva, violando o espírito da lei e criando um entrave desproporcional à reintegração do recorrente. A decisão de não conceder a liberdade condicional cria um efeito dissuasor contrário aos objetivos do sistema prisional, desincentivando os reclusos a investirem na sua ressocialização se, independentemente do seu esforço, a concessão da liberdade condicional for sistematicamente negada com base em argumentos vagos e abstratos.
O impacto social da libertação do recorrente já foi considerado e absorvido no momento da condenação, não podendo ser constantemente reavaliado como se fosse um fator imutável. A pena aplicada já refletiu a gravidade do crime, sendo injustificável negar a liberdade condicional apenas com base nessa consideração quando todos os demais fatores apontam para um desfecho diverso do verificado.
A aplicação desproporcional das exigências de prevenção geral e especial resulta na criação de uma barreira injustificada ao direito do recorrente à ressocialização, violando o princípio da proporcionalidade e o direito a uma avaliação individualizada da pena. A recusa da liberdade condicional não se justifica à luz da doutrina e da jurisprudência nacional, que apontam para uma aplicação equilibrada do instituto da ressocialização, garantindo que o sistema prisional cumpra a sua função social e não se torne um mero mecanismo de retribuição punitiva.
Assim, impõe-se a revogação da douta Sentença ora recorrida e a concessão da liberdade condicional ao ora recorrente, em conformidade com os princípios fundamentais do direito penal e da execução das penas, sob pena de se perpetuar uma decisão desproporcional, infundada e contrária aos objetivos da política criminal moderna».
3. O recurso foi admitido, por despacho de ... 2025.
4. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público na primeira instância apresentou resposta ao recurso interposto. Aparta da minuta as seguintes conclusões:
«O recorrente impugnou os pontos 7,8,13,16,18 e 21 da decisão recorrida, mas da leitura atenta da peça processual a que se responde que este apenas evidencia tais factos, com os quais aliás concorda, para deles extrair que a subsunção jurídica feita pelo Mmo Juiz “a quo” é que errada.
Em bom rigor, não há qualquer impugnação da matéria de facto.
O recorrente atingiu o meio da pena em 2 de agosto de 2024, os 2/3 ocorrerão em 22 de julho de 2025 e o termo da pena ocorrerá em 2 de julho de 2027.
Não estão verificados os pressupostos materiais para a apreciação da liberdade condicional.
Pese embora estejam reunidos os pressupostos formais, o recorrente ainda evidencia algum défice de consciência crítica sobre os seus comportamentos ilícitos, pese embora refira que reconhece a gravidade dos factos, desculpabiliza-se com fatores externos, centra os efeitos negativos da reclusão na sua esfera pessoal, indiferente aos danos causados a terceiros, revela com as suas lacunas ao nível da consciência crítica e interiorização do desvalor da sua conduta e do sentido da pena, que carece de maior consolidação do seu percurso prisional, agora em avaliação do EP ..., para lograr não reincidir na prática de crimes quando, de forma legítima, regressar ao meio livre, - até porque só está em cumprimento de pena de prisão efectiva desde 26-9-2024, data a partir da qual começou o tratamento penitenciário, sendo que o demais período de reclusão contabilizado ocorreu por conta da obrigação de permanência na habitação em sede de medida de coação e nos termos do art. 80º do Cod. Penal.
Em reclusão ainda não assumiu uma atitude que permita concluir que deseja a sua ressocialização no EP de onde veio transferido por forma a serem introduzidas medidas de flexibilização da pena, pese embora não tenha averbadas sanções disciplinares.
A sua transferência prisional posterior à apreciação da decisão recorrida, não o pode naturalmente prejudicar, mas também não permite, em meio prisional recente, fazer uma avaliação segura sobre o mesmo e que permita concluir de forma diversa, o que naturalmente não poderia ser de considerar para efeitos da decisão recorrida, por se referir a circunstâncias posteriores à sua prolacção.
O seu percurso prisional tem sido adequado, mas tal é o que se impõe ao cidadão comum, dele não se pode extrair que tenha havido desde já uma correção comportamental e um reconhecimento por parte do recluso de pretender conduzir a sua vida em conformidade com direito, até por ser prematuro em face da extensão da pena e o período de reclusão em meio prisional efectivamente sofrido.
O seu percurso prisional tem sido regular, e não foi ainda suficientemente consolidado para designadamente a serem introduzidas medidas de flexibilização da pena, como colocação em RAI ou beneficiar de licenças jurisdicionais, pese embora o Recorrente disponha de sólido apoio familiar e já possui oferta de emprego.
Por outro lado, as exigências de prevenção geral que subsistem na situação em apreço.
Deve manter-se a decisão recorrida».
5. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, pugna, também, pela improcedência do recurso. Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos:
«Considerando o recurso interposto pelo arguido, quer na sua motivação quer nas suas conclusões, constata-se que este pretende através da sindicância da matéria de facto, sindicar a valoração jurídica efectuada no seu todo.
A impugnação da matéria de facto está ao alcance do recorrente através de dois mecanismos processuais: ou através da arguição dos vícios previstos no artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artº 412º, nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal.
Na primeira situação – art.º 410 n.º 2 do CPP - a denominada impugnação em sentido restrito, resultado do chamado error in procedendo, o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com a as regras da experiência e tem por fundamento: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”
Na segunda situação, - prevista no artigo 412 n.º 3 do CPP - a denominada impugnação ampla da matéria de facto, resultado do error in judiciando, impõe que o recorrente especifique a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõe decisão diversa; c) As provas que devem ser renovadas. As especificações impostas na al. a) e b) do n.º 3 do artigo 412º (quando as provas hajam sido gravadas) efectuam-se através da indicação concreta das passagens da gravação em que se funda a impugnação.
No caso concreto, o recorrente não concretiza processualmente o sentido do seu recurso – isto é não torna explícito se entende ocorrer error in procedendo ou in Judicando.
No entanto tomando o sentido do recurso tomaremos como viável que pretende impugnar amplamente aquela fixação.
No recurso o recorrente diverge da sentença, apresentando uma leitura própria do que deveria ser a decisão, precisaria, contudo, de demonstrar que a decisão proferida não encontra lógica interna e que as provas em que assentou a decisão imporiam uma decisão diversa daquela que foi proferida.
No fundo. impor-se-ia a demonstração de que a formação da conviccção do decisor carece de lógica interna, em virtude de não assentar numa ponderação de acordo com as regras da valoração da prova. Como se escreve no acórdão proferido no processo 645/21.5PHAMD.L1-9 a 12-09-2024 “No cumprimento da imposição de impugnação especificada, a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção.”
O recorrente apresenta uma leitura diferente dos meios de prova constantes dos autos, sem demonstrar que estes imporiam uma decisão diversa, no sentido que se acaba de expôr.
No mais, entendemos irrepreensível a decisão a qual apresentando dogmaticamente os pressupostos legais de concessão da liberdade condicional, quer de prevenção geral, quer de muito modo apurado de prevenção especial, máxime quanto à “expectativa que o condenado, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes” fundamenta a decisão nas circunstâncias concretas do caso, vida anterior do recluso, personalidade do recluso e evolução desta durante a execução da prisão, como aliás se refere na resposta apresentada pelo Ministério Publico que se acompanha».
6. Notificado nos termos e para os efeitos do art. 417º, n.º 2 do C.P.P., veio o recorrente aduzir, ainda, que:
«Em primeiro lugar, é alegado no Douto Parecer que o recorrente “não concretiza processualmente o sentido no seu recurso – isto é não torna explícito se entende ocorrer in erro procedendo ou in judiciando”, o que, no entender da Exma. Sra. Procuradora Geral Adjunta do Ministério Público, revela uma ausência de demonstração acerca das decisões que impunham a prolação de uma Douta Sentença contrária aquela que foi efetivamente proferida.
O que, no nosso modesto entendimento, foi efetuado;
Por um lado, está por demais evidente e clarificado no recurso apresentado as diversas contradições entre a decisão tomada e a fundamentação adotada (art. 410.º n.º 2 do CPP), senão vejamos, por exemplo, a “impugnação dos factos dados como provados nos pontos 7 e 8”, que evidencia a existência dessa contradição de forma clara, em consonância com o restante texto do recurso apresentado.
Por outro lado, e nos termos dos artigos 412.º n.º 3 do CPP, foram também identificados os concretos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados (al. a) do mesmo artigo) e as concretas provas que impunham decisão diversa (al. b) do mesmo artigo), fazendo clara alusão à realidade circunstancial da vida de AA.
Nesse sentido, salientamos novamente que não foram tidos em consideração os relatórios dos Serviços de Reinserção Social durante o período em que AA se encontrou sujeito a medida de obrigação de permanência na habitação de março de 2022 a setembro de 2024, que impunham decisão diversa daquela tomada e que revelam contradição através de tal valoração jurídica.
Não houve uma decisão competente do tribunal a quo relativamente à circunstância em concreto, existindo sim uma contradição entre a vida de AA e os factos provados, sendo urgente, premente e inadiável a libertação do recluso como forma de impedir o agravamento do seu estado emocional e considerando a responsabilidade que lhe impende enquanto cuidador dos seus pais, já idosos e necessitados de cuidados permanentes, isto sem prejuízo de todos os outros argumentos invocados que sustentam a sua capacidade em poder ser reinserido na sociedade civil».
7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta às questões (alinhadas segundo um critério de lógica e de cronologia) de saber se a decisão revidenda padece dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P. e se o Sr. Juiz incorreu em erro de jure na verificação dos pressupostos materiais da concessão da liberdade condicional.
2. A decisão trazida da instância (excluído o relatório) é do seguinte teor:
« II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se PROVADOS os seguintes factos:
Quanto às circunstâncias do caso
1) O recluso cumpre, à ordem do processo nº 168/21.2... do ..., uma pena de 5 anos e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, com referência à Tabela I-B a ele anexa (consistente numa operação de tráfico de cocaína, de forma organizada e com alguma complexidade, em conjugação de esforços com outros co-arguidos).
2) A pena referida em 1) foi liquidada nos seguintes termos: A metade da pena já ocorreu no dia 2 de Agosto de 2024, Os dois terços da pena ocorrerão no dia 22 de Julho de 2025, e O termo da pena ocorrerá em 2 de Julho de 2027.
Quanto à vida anterior do recluso
3) O recluso não tem antecedentes criminais além do referido em 1).
4) À data da sua reclusão ocorrida em Agosto de 2024, AA vivia com o agregado familiar, no apartamento pertença de um amigo, situada numa zona isenta de problemáticas sociais, onde cumpriu a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.
5) O recluso foi inicialmente afecto ao Estabelecimento Prisional ...em 04-09-2021, sujeito à medida de prisão preventiva, e transitou para a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica em 12-03-2022, que manteve até 26-09-2024, data em que reingressou no Estabelecimento Prisional para cumprimento da pena em execução.
6) O agregado era constituído pelo próprio, o cônjuge e duas filhas, ambas adultas, com 22 e 28 anos de idade.
7) AA revelou capacidade pessoal para cumprir com as regras da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e manteve uma relação cordial com os técnicos da Equipa de Vigilância Electrónica. A nível da dinâmica familiar verificou-se um ambiente de proximidade e coesão familiar. Contou ainda com o apoio da família alargada que reside próximo.
8) Em Abril de 2023 foi autorizado judicialmente a sair da sua residência por cerca de 3 horas, para prestar apoio à progenitora, que é pessoa doente e reformada por invalidez.
9) AA revelou, ao longo do percurso escolar, uma orientação reduzida para o prosseguimento de estudos. Aos 17 anos, após concluir o 9º ano de escolaridade, abandonou o sistema de ensino, face ao desejo de enveredar pela vida laboral.
10) Desempenhou inicialmente funções de fiel de armazém e mais tarde passou a comercial sendo vendedor de máquinas de construção civil na empresa “...”, onde se manteve por cerca de 20 anos.
11) Enveredou, então, por actividade por conta própria trabalhando como empresário no mesmo ramo de actividade, onde assumiu funções de gestão e comercial.
12) Atendendo aos problemas financeiros que teve com a sua empresa, e que segundo o próprio foi o motivo principal para a prática criminal, solicitou a insolvência da mesma.
Quanto à personalidade do recluso e à evolução desta durante a execução da pena
13) AA assume a prática dos factos criminosos pelos quais foi punido e que esperava ganhar, por essa via, 40.000 Euros de forma fácil, mas demarca-se da imagem de traficante e do mundo do tráfico de drogas, referindo que se tratou de um episódio isolado na sua vida.
14) Afirma que a motivação para a prática do crime de tráfico de estupefacientes decorreu das dificuldades financeiras que a sua empresa atravessava, decorrente de decisões suas que se revelaram prejudiciais.
15)Reconhece a gravidade do crime praticado, e das consequências nefastas do tráfico de drogas para a vida em sociedade.
16) No Estabelecimento Prisional encontra-se em regime comum e ainda não beneficiou de licenças de saída.
17) Em meio prisional tem ocupado o seu tempo através da prática desportiva e da leitura.
18) Tem mantido comportamento conforme as regras e não se identifica com a população do estabelecimento prisional de ..., onde se encontra, tendo solicitado a sua transferência para o Estabelecimento Prisional....
19) Se restituído à liberdade, o recluso conta com apoio da sua família, cujos rendimentos decorrem presentemente apenas dos rendimentos da esposa, que é técnica administrativa na empresa “...”.
20) O cônjuge do recluso reporta uma situação financeira com alguns constrangimentos, ainda assim não muito relevantes, dado não ter encargos com a renda.
21) O recluso pretende retomar a actividade de comercial que sempre desenvolveu por conta da empresa “...”, a qual já lhe dirigiu proposta de trabalho. Em paralelo, pretende cuidar dos progenitores, dos quais se diz cuidador.
Motivação da Decisão sobre a Matéria de Facto
Na sua decisão sobre a matéria de facto, procedendo a uma valoração global e concatenada, à luz das regras de direito probatório e, quando possível a livre apreciação, à luz das regras da experiência comum, com a concorrência de critérios lógicos e objectivos, o Tribunal considerou:
a. Certidão da(s) decisão(ões) condenatória(s) e do despacho da liquidação da pena;
b. Relatórios das equipas técnicas de tratamento prisional e reinserção social;
c. Ficha biográfica do recluso actualizada;
d. Certificado do registo criminal do recluso; e. Documentos juntos pelo recluso aquando da sua audição em ...-...-2025: proposta de trabalho dirigida ao recluso e comprovativos médicos da situação de saúde da sua mãe e da sua situação de reformada por invalidez.
f. Declarações do recluso, colhidas em sede de audição realizada nos termos e para efeitos do artigo 176º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Todos estes elementos de prova convergem no sentido dos factos provados, não se detectando neles contradições, inexactidões ou inverosimilhanças carecidas de maior explicação.
Em particular, quanto aos factos das alíneas 13) a 15), o Tribunal privilegiou as declarações prestadas pelo recluso, na medida em que surgem corroboradas, ou pelo relatório da equipa técnica de tratamento prisional, ou pelo relatório da equipa de reinserção social.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A liberdade condicional tem como escopo «o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recuperar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
Com tal medida […] espera o Código fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do interessado, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade» [cf. Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código Penal”, Rei dos Livros, 1.º vol., 2.ª ed., pág. 504].
Assim, a finalidade primária da liberdade condicional «é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que, até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade» [cf. Anabela Rodrigues, in “A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português”, BMJ, 380, pág. 26].
Efectivamente, verificados que estejam, como estão no presente caso, os requisitos de ordem formal – quais sejam o cumprimento de metade da pena com um mínimo absoluto de seis meses (período de tempo a partir do qual, na perspectiva do legislador, a pena tem potencialidade de já ter cumprido as suas finalidades) e o consentimento do recluso (artigo 61º do Cód. Penal) –, o legislador exige, ainda, que a libertação se revele compatível com a defesa da ordem e paz social (artigo 61º, nº 2, al. b) do Cód. Penal). Pretende-se, pois, dar ênfase à prevenção geral, traduzida na protecção dos bens jurídicos e na expectativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal. Não estando assegurado este requisito, não poderá ser concedida a liberdade condicional, ainda que o condenado revele bom prognóstico de recuperação.
Contudo, alcançados os dois terços da pena, com um mínimo absoluto de seis meses (artigo 61º, nº 3 do Cód. Penal), e obtido o consentimento do recluso, como é o caso, o legislador abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito da prevenção geral, considerando que o condenado já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas. Donde, aos dois terços da pena, é único requisito material a expectativa de que o condenado, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja, importa que se atente na prevenção especial na perspectiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa).
Pelo que, no que respeita aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração (ressocialização) e na prevenção de cometimento de novos crimes. Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo de prognose sobre a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e o seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, vida anterior do recluso, personalidade do recluso e evolução desta durante a execução da pena de prisão. Este prognóstico de recuperação consubstancia o último dos pressupostos materiais: o legislador apenas permite a libertação condicional caso haja fundada expectativa de que, em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida responsavelmente, sem cometer crimes (artigo 61º, nº 2 al. a) do Cód. Penal).
Vertendo ao caso destes autos.
Aprecia-se a concessão da liberdade condicional por referência ao marco de ½ da pena, pelo que ainda há ponderar as necessidades de prevenção geral.
A este nível, há que sublinhar que são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral. O crime objecto de punição é o de tráfico de estupefacientes e este assume números assustadores em Portugal e no mundo, o que faz com que venha sendo objecto de grande atenção por parte do legislador, apostado em criar formas de combate efectivo a este tipo de criminalidade. Com efeito, este tipo de crime visa proteger a saúde pública, bem como a própria ordem pública – atendendo às consequências que provêm da prática deste crime, a nível da saúde dos utilizadores, e bem assim, da prática de outros crimes para sustentar o vício –, bens jurídicos da maior importância e mesmo com dignidade constitucional. As drogas são um inegável flagelo na sociedade contemporânea, destruindo a saúde mental dos consumidores e a paz das famílias, estando na origem de actividades criminosas intensas, gerando uma economia paralela, desafiando os regimes democráticos, além de tudo o mais. A libertação do recluso, nesta altura, não salvaguardaria o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática do crime, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e a protecção, além do mais, de bem jurídico relevante no nosso sistema penal.
Acresce que as necessidades de prevenção especial que in casu se fazem sentir ainda não permitem a libertação condicional do recluso. Em primeiro lugar, sobressai que o recluso não está preparado para a liberdade condicional ao nível da sua consciência crítica e interiorização do desvalor dos crimes praticados. Embora assuma a prática dos factos, e reconheça as consequências nefastas do tráfico de drogas para a vida em sociedade, é preciso atender à gravidade dos contornos específicos do crime praticado – conjugação de esforços com outros, tráfico de cocaína, de forma organizada e com alguma complexidade. Acresce que, o tempo de reclusão em meio prisional após o trânsito em julgado da decisão que o condenou – ocasião em que o condenado adquire consciência da definitividade da sua condenação – é muito escasso, ainda não tendo sequer atingido 4 meses e não podemos escamotear que o sacrifício de uma obrigação de permanência na habitação não é semelhante ao de uma reclusão em meio prisional.
Ora, o sacrífico inerente à punição é essencial para o condenado compreender razoavelmente o mal feito, as consequências dos seus actos e, em suma, interiorizar o desvalor da sua conduta. Afigura-se que para o sucesso efectivo da sua ressocialização o recluso ainda precisa de amadurecer a sua reflexão crítica sobre o caminho que escolheu e as alternativas de que dispunha, sobre o crime que praticou e os danos que causou (quer às vítimas, quer à paz social).
Por ora, suscitam-se muitas dúvidas, atento o escasso tempo de reclusão em meio prisional, sobre se o recluso já interiorizou em plenitude a dimensão da gravidade dos seus actos e das suas consequências para o próximo. A reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno. Quem não logrou ainda percepcionar em plenitude o mal cometido, dificilmente possui mecanismos passíveis de evitar a repetição da sua conduta. Como explicitam João Luís de Moraes Rocha e Sónia Maria Silva Constantino (in “Reclusão e Mudança” - “Entre a Reclusão e a Liberdade”, Vol. II, Pensar a Reclusão, Almedina, pág. 171), «sem interiorização da responsabilidade dificilmente será possível alterar comportamentos».
Acresce que, o recluso ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena, de modo a que possa testar-se a sua capacidade contentora no exterior, bem como firmar-se uma convicção sobre se logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional. No que diz respeito ao comportamento prisional, o seu comportamento afigura-se ajustado, sem registo de infracções disciplinares, o que deverá manter-se em ordem a permitir a elaboração de futuros prognósticos favoráveis à sua libertação. Ainda assim, acompanha-se o que a este respeito se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/01/2015, proferido no processo n.º 7164/10.3TXLSB: «o bom comportamento prisional não é nada que não seja exigível a um recluso - que conhece as consequências dos incumprimentos ao nível disciplinar - e não é suficiente para que seja concedida uma liberdade condicional».
Em sentido favorável ao recluso regista-se, também, as circunstâncias de dispor de apoio familiar sustentado no exterior e de enquadramento laboral consistente, além, claro está, da circunstância de ser primário.
Todos estes factores vindos de referir, globalmente ponderados, não permitem para já criar uma fundada expectativa de que o recluso dispõe dos factores externos e internos necessários a assegurar que, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente, sem cometer crimes.
Por tudo isto, as exigências de prevenção especial situam-se num patamar ainda não compatível com a libertação antecipada do recluso.
Em consequência lógica, impõe-se concluir que o recluso AA tem um percurso a fazer para que possa ser restituído à liberdade.
Neste momento, quer por razões de prevenção geral, quer por razões de prevenção especial, impõe-se que se acompanhe o parecer unânime do Conselho Técnico e do Ministério Público, no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedida ao recluso a liberdade condicional.
A não concessão da liberdade condicional, nesta fase, não deverá ser entendida pelo recluso como razão para a sua desmotivação em termos de consolidação do seu percurso prisional, mas como o reconhecimento de que o recluso tem ainda um caminho a consolidar, no qual deve investir, para que, um dia, a sua reintegração em meio livre possa ser um êxito».
3. Do recurso interposto
3.1. Dos vícios de procedimento do art. 410º, n.º 2 do C.P.P.
Preliminarmente, urge clarificar que, como tem sido sufragado pela jurisprudência, a matéria de facto fixada no âmbito da decisão revidenda só pode ser impugnada por referência a algum dos vícios a que alude o art. 410º, n.º 2 do C.P.P. 1
Feito este esclarecimento, vejamos, então.
«Os vícios da decisão – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos, por esta ordem, nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, constituem fundamento para recurso da matéria de facto [e isto, independentemente de a lei o restringir à matéria de direito] e são de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Estamos perante defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. No âmbito da revista alargada – comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, antes limita a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto]. Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direitoadoptada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria de facto contida no objecto do processo e relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].
Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valora a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, Editorial Verbo, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74)»2
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt., «(…) o invocado vício de erro notório reporta a um defeito in procedendo, resultante, à evidência, da própria decisão, que subscreve, designadamente, uma falha grosseira na análise da prova (…).
(…) Assim, o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
Nos termos expressamente prevenidos no artigo 127.º, do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas.
Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal.
Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso.
A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica»
No caso, é de consignar, desde já, que, do texto da decisão recorrida não resulta qualquer dos vícios a que alude o art. 410.º n.º 2, do C.P.P.
Com efeito, não se vislumbra que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão, que exista qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos dados como assentes ou entre estes e a motivação e a decisão, e, igualmente, não sobressai da decisão, por si só e/ou com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha evidente na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário. Por último, não se vê que o Sr. Juiz se tenha debatido com qualquer estado de dúvida e que o tenha resolvido violentando o princípio in dubio pro reo.
Acresce que, como resulta da motivação e das conclusões recursivas, a imputada contradição e o invocado erro na apreciação da prova, não respeitam propriamente à matéria de facto, mas antes a matéria de direito.
Tanto assim é que, do passo que invoca os aludidos vícios, o recorrente reclama, nomeadamente, que: «O douto Tribunal “a quo” desconsiderou injustificadamente o percurso prisional exemplar do recorrente, que demonstrou comportamento irrepreensível, sem registo de infrações disciplinares, participação ativa em atividades de ressocialização e integração ocupacional, escolhendo, em detrimento, focar-se no facto de não ter beneficiado de licenças de saída, circunstância que não pode ser invocada contra si, quando tal decorreu de circunstâncias alheias à sua conduta e não de qualquer falta de mérito pessoal;
O douto Tribunal “a quo” falhou ao ignorar a realidade concreta do contexto do recorrente, especialmente no que toca às suas responsabilidades familiares.
A douta Decisão recorrida apresenta um desfasamento entre os fundamentos jurídicos e a realidade do caso concreto».
Vale por dizer que, o recorrente, fundadamente, não questiona a decisão do Sr. Juiz do Tribunal de Execução de Penas quanto aos factos provados, antes se insurge quanto à ponderação efectuada a partir da materialidade dada como assente e às conclusões de direito da mesma retiradas.
Assim, impõe-se que, nesta parte o recurso seja julgado improcedente, sem prejuízo de, naturalmente e de seguida, se aquilatar do invocado erro de jure na verificação dos pressupostos materiais da concessão da liberdade condicional.
3.2. Do preenchimento dos requisitos de que depende a concessão da liberdade condicional.
Em abreviada síntese, foi aplicada ao ora recorrente uma pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão, pela prática, no dia 2 de Setembro de 2021, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do D.L. n.º 15/93, de 22/1 e está em causa a concessão ou não ao meio da pena da liberdade condicional.
Dispõe o n.º 2 do artigo 61º, do C.P. que «O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social»
«(…) a liberdade condicional constitui «uma modificação substancial da forma de execução da reação detentiva», assumindo «não um caráter gracioso, mas a natureza de um incidente da execução da prisão dirigido à ressocialização dos condenados», o que impõe que também o período de liberdade condicional seja computado na pena a cumprir.
A liberdade condicional, última fase de execução da pena, visa promover a «ressocialização social dos delinquentes condenados a penas de prisão de média ou de longa duração através da sua libertação antecipada — uma vez cumprida, naturalmente, uma parte substancial daquelas — e, deste modo, de uma sua gradual preparação para o reingresso na vida livre»3
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 528, «(…) foi uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento», ademais ressaltando que, no juízo de prognose a levar para efeitos de concessão da liberdade condicional «decisivo deveria ser, na verdade, não o bom comportamento prisional em si – no sentido da obediência aos (e do conformismo com) os regulamentos prisionais – mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re) socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade».

Não oferecendo controvérsia a verificação,
in casu, do pressuposto formal de que se mostra cumprida metade da pena de prisão aplicada ao recorrente, cumpre, então, indagar se estão ou não verificados, também, os supostos materiais para a concessão da reclamada liberdade condicional.
E, assim sendo, relembremos, antes de mais, as razões aduzidas pelo Sr. Juiz para a não concessão, in casu, da liberdade condicional:
«A este nível, há que sublinhar que são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral. O crime objecto de punição é o de tráfico de estupefacientes e este assume números assustadores em Portugal e no mundo, o que faz com que venha sendo objecto de grande atenção por parte do legislador, apostado em criar formas de combate efectivo a este tipo de criminalidade. Com efeito, este tipo de crime visa proteger a saúde pública, bem como a própria ordem pública – atendendo às consequências que provêm da prática deste crime, a nível da saúde dos utilizadores, e bem assim, da prática de outros crimes para sustentar o vício –, bens jurídicos da maior importância e mesmo com dignidade constitucional. As drogas são um inegável flagelo na sociedade contemporânea, destruindo a saúde mental dos consumidores e a paz das famílias, estando na origem de actividades criminosas intensas, gerando uma economia paralela, desafiando os regimes democráticos, além de tudo o mais. A libertação do recluso, nesta altura, não salvaguardaria o sentimento geral de vigência das normas penais violadas com a prática do crime, banalizaria tal prática, atacaria a paz jurídica entre o cidadão e o seu sentimento de que as normas em questão foram suficientemente defendidas através da pena já cumprida, transmitiria um enfraquecimento da ordem jurídica potenciador de delitos desta natureza, defraudaria, em suma, a confiança da comunidade no funcionamento do sistema penal e a protecção, além do mais, de bem jurídico relevante no nosso sistema penal.
Acresce que as necessidades de prevenção especial que in casu se fazem sentir ainda não permitem a libertação condicional do recluso. Em primeiro lugar, sobressai que o recluso não está preparado para a liberdade condicional ao nível da sua consciência crítica e interiorização do desvalor dos crimes praticados. Embora assuma a prática dos factos, e reconheça as consequências nefastas do tráfico de drogas para a vida em sociedade, é preciso atender à gravidade dos contornos específicos do crime praticado – conjugação de esforços com outros, tráfico de cocaína, de forma organizada e com alguma complexidade. Acresce que, o tempo de reclusão em meio prisional após o trânsito em julgado da decisão que o condenou – ocasião em que o condenado adquire consciência da definitividade da sua condenação – é muito escasso, ainda não tendo sequer atingido 4 meses e não podemos escamotear que o sacrifício de uma obrigação de permanência na habitação não é semelhante ao de uma reclusão em meio prisional.
Ora, o sacrífico inerente à punição é essencial para o condenado compreender razoavelmente o mal feito, as consequências dos seus actos e, em suma, interiorizar o desvalor da sua conduta. Afigura-se que para o sucesso efectivo da sua ressocialização o recluso ainda precisa de amadurecer a sua reflexão crítica sobre o caminho que escolheu e as alternativas de que dispunha, sobre o crime que praticou e os danos que causou (quer às vítimas, quer à paz social).
Por ora, suscitam-se muitas dúvidas, atento o escasso tempo de reclusão em meio prisional, sobre se o recluso já interiorizou em plenitude a dimensão da gravidade dos seus actos e das suas consequências para o próximo. A reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno.
(…) Acresce que, o recluso ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena, de modo a que possa testar-se a sua capacidade contentora no exterior, bem como firmar-se uma convicção sobre se logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional.
(…) Todos estes factores vindos de referir, globalmente ponderados, não permitem para já criar uma fundada expectativa de que o recluso dispõe dos factores externos e internos necessários a assegurar que, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente, sem cometer crimes.
Por tudo isto, as exigências de prevenção especial situam-se num patamar ainda não compatível com a libertação antecipada do recluso».
Como resulta dos trechos transcritos, a decisão revidenda, conclui, por um lado, que as razões de prevenção geral obstam à concessão da liberdade condicional e, por outro, que, por referência às de prevenção especial, sempre se figuraria, ainda, prematura.
Porém, as circunstâncias concretas do caso (com referência ao acórdão condenatório) e a factualidade dada por assente na decisão recorrida, figura-se que impelem desfecho diverso.
Antes de mais, pese embora seja indiscutível que o tráfico de estupefacientes reclama veementes razões de prevenção geral, não tendo o legislador excluído a possibilidade de concessão da liberdade condicional no marco do meio da pena a concretos tipos criminais, designadamente aos crimes de tráfico de estupefacientes, afigura-se que, sob pena de violação do princípio da legalidade, ao julgador não assiste a faculdade de automaticamente, sem avaliação do concreto circunstancialismo, excluir tal possibilidade4.
Ora, na situação em crise, constata-se que o Sr. Juiz do Tribunal a quo, ante a objectiva circunstância de estar em crise um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do D.L. n.º 15/93, de 22/1, arredou, desde logo e mecanicamente, a possibilidade de libertação do recorrente, a meio da pena. Ou seja, do primeiro trecho transcrito, pode deduzir-se que, na óptica da decisão recorrida, sempre que esteja em causa um crime de tráfico de estupefacientes, por razões de prevenção geral, será de negar a liberdade condicional ao meio da pena, o que, de todo em todo, não se pode corroborar.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019, processo n.º 30/16.0PEGMR.G1. S1, in www.dgsi.pt.: «(…) no tráfico, o que existe de eticamente muito censurável não é tanto o facto de ele ser um elo de uma cadeia de riscos, tal como também a venda de álcool pode ser encarada – isso não seria bastante para tão grave censura -, mas antes o facto de revelar uma específica relação de exploração de outros seres humanos (a utilização da sua saúde física e psíquica para fins económicos). É essa ideia que torna a imagem do traficante diferente da do agente que meramente viola a ordenação social. Todavia, tal relação não é devidamente valorizada pelos modos concretos de proibição legal do tráfico na maioria das legislações”.
É, porém, de adotar as precauções necessárias para que desse juízo crítico se não parta, como adverte Maia Costa, para uma retórica celebratória, hiperbólica e apocalíptica, colada a uma perspectiva conservadora e autoritária. É que, enfatizando a questão ética em detrimento do significado do tráfico como elo da cadeia de riscos, corremos o risco de falhar naquilo que a pena tem de finalidade primária, que é a protecção dos bens jurídicos.
(…) o paradigma do tráfico de estupefacientes no nosso país alterou-se profundamente a partir de meados dos anos 90, com a disseminação do tráfico pelas rotas atlânticas, o surgimento de narcoestados na costa ocidental africana e depois com o envolvimento progressivo dos países da Europa de Leste e do Norte de África no comércio de opiáceos. Já mais recentemente associou-se a este incremento da oferta o comércio electrónico, principalmente através da chamada darknet, tendo primariamente por objecto opiáceos sintéticos, havendo ainda a acrescentar o impressionante volume de tráfego aéreo entre Portugal e muitos dos países exportadores de produtos estupefacientes. Sobre esta evolução são bem elucidativos os relatórios do OEDT e do SICAD bem como os relatórios anuais de segurança interna. No contexto desta evolução Portugal transformou-se nos últimos 20 anos num importante entreposto de trânsito, principalmente de cocaína e haxixe, tornando-se também destino de uma maior oferta de opiáceos.
Significa isto que no novo contexto do comércio de estupefacientes é necessário considerar a alteração de paradigma, que em boa verdade a legislação existente não tem ainda na devida atenção, sob pena de se gerar uma satisfação anestesiante baseada na aparência de combate às verdadeiras redes de tráfico e de ser quebrada a proporcionalidade (…), pela vastíssima amplitude do tipo e da gravidade dos comportamentos puníveis ao abrigo da lei da droga5»
É que, no concreto, a actividade criminosa do ora recorrente, assumindo contornos de indiscutível gravidade - reflectida, desde logo, na moldura legal correspondente ao tipo criminal em apreço e, depois, na real pena aplicada - não está inserida no denominado tráfico internacional de estupefacientes, cingiu-se a um único acto e o estupefaciente em causa - cerca de um quilo e meio de cocaína - foi logo apreendido, sem qualquer disseminação6.
No que concerne às razões de prevenção especial cumpre realçar o seguinte:
Consabidamente, a formulação do juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes deverá assentar numa ponderação conjunta de factores, designadamente, na personalidade do condenado e evolução desta durante a execução da pena, nas competências adquiridas no período de reclusão, no comportamento prisional, na capacidade crítica perante o crime cometido e nas necessidades de reinserção social, maxime as atinentes ao enquadramento familiar, social e profissional7.
Como é pacífico, o condenado (que conta já 56 anos de idade) não tem outros antecedentes criminais e:
«À data da sua reclusão ocorrida em Agosto de 2024 vivia com o agregado familiar, no apartamento pertença de um amigo, situada numa zona isenta de problemáticas sociais, onde cumpriu a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica;
Foi inicialmente afecto ao Estabelecimento Prisional de … em 04-09-2021, sujeito à medida de prisão preventiva, e transitou para a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica em 12-03-2022, que manteve até 26-09-2024, data em que reingressou no Estabelecimento Prisional para cumprimento da pena em execução.
O agregado era constituído pelo próprio, o cônjuge e duas filhas, ambas adultas, com 22 e 28 anos de idade.
Revelou capacidade pessoal para cumprir com as regras da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e manteve uma relação cordial com os técnicos da Equipa de Vigilância Electrónica. A nível da dinâmica familiar verificou-se um ambiente de proximidade e coesão familiar. Contou ainda com o apoio da família alargada que reside próximo.
Em Abril de 2023 foi autorizado judicialmente a sair da sua residência por cerca de 3 horas, para prestar apoio à progenitora, que é pessoa doente e reformada por invalidez»
Acresce que:
«Assume a prática dos factos criminosos pelos quais foi punido e que esperava ganhar, por essa via, 40.000 Euros de forma fácil, mas demarca-se da imagem de traficante e do mundo do tráfico de drogas, referindo que se tratou de um episódio isolado na sua vida.
Afirma que a motivação para a prática do crime de tráfico de estupefacientes decorreu das dificuldades financeiras que a sua empresa atravessava, decorrente de decisões suas que se revelaram prejudiciais.
Reconhece a gravidade do crime praticado, e das consequências nefastas do tráfico de drogas para a vida em sociedade.
Em meio prisional tem ocupado o seu tempo através da prática desportiva e da leitura.
Tem mantido comportamento conforme as regras e não se identifica com a população do estabelecimento prisional de ..., onde se encontra, tendo solicitado a sua transferência para o Estabelecimento Prisional ....
Se restituído à liberdade, o recluso conta com apoio da sua família, cujos rendimentos decorrem presentemente apenas dos rendimentos da esposa, que é técnica administrativa na empresa “...”.
Pretende retomar a actividade de comercial que sempre desenvolveu por conta da empresa “...”, a qual já lhe dirigiu proposta de trabalho. Em paralelo, pretende cuidar dos progenitores, dos quais se diz cuidador».
Não obstante, o Sr. Juiz do Tribunal a quo afirma, em desabono, que «é preciso atender à gravidade dos contornos específicos do crime praticado (…). Acresce que, o tempo de reclusão em meio prisional após o trânsito em julgado da decisão que o condenou – ocasião em que o condenado adquire consciência da definitividade da sua condenação – é muito escasso, ainda não tendo sequer atingido 4 meses e não podemos escamotear que o sacrifício de uma obrigação de permanência na habitação não é semelhante ao de uma reclusão em meio prisional.
Ora, o sacrífico inerente à punição é essencial para o condenado compreender razoavelmente o mal feito, as consequências dos seus actos e, em suma, interiorizar o desvalor da sua conduta. Afigura-se que para o sucesso efectivo da sua ressocialização o recluso ainda precisa de amadurecer a sua reflexão crítica sobre o caminho que escolheu e as alternativas de que dispunha, sobre o crime que praticou e os danos que causou (quer às vítimas, quer à paz social).
Por ora, suscitam-se muitas dúvidas, atento o escasso tempo de reclusão em meio prisional, sobre se o recluso já interiorizou em plenitude a dimensão da gravidade dos seus actos e das suas consequências para o próximo. A reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências é indispensável para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno».
Ou seja, rigorosamente, o que se constata é que o Sr. Juiz, muito embora condescenda que o recorrente assume a prática dos factos e reconhece as consequências nefastas do tráfico de drogas para a vida em sociedade, para efeitos das razões de prevenção especial, por um lado, volta a chamar à colação a gravidade dos factos e, por outro, menoriza o sacrifício e, assim, a significância do tempo de cumprimento da pena correspondente ao da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, a que o condenado esteve sujeito.
No que concerne à gravidade dos factos, para além do já acima consignado e a impor necessariamente um juízo de relatividade, não se nos afigura adequado que com vista à ponderação das razões de prevenção especial seja de novo e duplamente8 trazida à liça.
Outrossim, a minimização e relativização do período temporal de cumprimento efectivo da pena, resultante da ponderação de que o período que corresponde à sujeição à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação representa menor sacrifício do que a reclusão em estabelecimento prisional e que, abertamente, legitima distinção, redundará, desde logo, numa praxis incompatível, ou, pelo menos, muito dificilmente compaginável com o regime legal em vigor.
«O instituto do desconto assenta na consideração, radicada em imperativos de justiça material, de que todas as privações de liberdade sofridas pelo agente, em razão do(s) facto(s) que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal, devem ser imputadas na pena que, a final, vier a ser cominada. Colocado perante a tensão entre considerações de justiça e exigências preventivas, mormente de prevenção especial de socialização, o legislador fez prevalecer o valor da justiça, impondo, com base numa ideia de compensação de sacrifícios, o desconto sem excepções.
(...) Com efeito, não basta, para garantir a pretendida compensação integral de sacrifícios, que a privação da liberdade sofrida seja computada para efeitos de determinação da sanção a cumprir agora pelo agente, é necessário que seja considerada, para todos os efeitos, como pena efectivamente expiada. Deste modo, pode suceder que no momento da condenação estejam já preenchidos os pressupostos formais de que depende a aplicação da liberdade condicional, por o condenado ter já sido privado da liberdade por um período equivalente a metade (ou dois terços) da pena, desde que superior a seis meses»9.
Ou seja, não deve - para qualquer efeito e nomeadamente para aferição dos pressupostos materiais da liberdade condicional - ser efectuada qualquer discriminação pela circunstância de uma parte significativa do cumprimento da pena corresponder à que resulta do desconto efectuado, em virtude da sujeição do recorrente à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
Caso contrário, concomitantemente, estar-se-ia a defraudar o regime legal em vigor (art. 80º do C.P.) e a efectuar uma interpretação da norma (art. 61º do C.P.) potencialmente violadora do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado.
Na verdade, reitera-se «O artº 80º, nº 1 do Código Penal manda que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão (…).
Cumprindo-se estes descontos, isso vai, necessariamente, ter repercussões na contagem da pena para os efeitos do artº 61º do mesmo Código Penal (…).
Sendo o desconto estabelecido um benefício para os condenados, também eles devem beneficiar, no cumprimento das penas de prisão onde os descontos são efectuados, de um regime de contagens que leve em conta esses mesmos descontos como cumprimento de pena.
Desta forma, (…), sem qualquer ficção, ajusta-se tal tratamento à letra da lei, quando manda que os períodos de privação de liberdade sejam descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão»10.
Com efeito, «O instituto do desconto, regulado nos artigos 80º a 82º do C. Penal, assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objeto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado».11
Da factualidade assente resulta abreviadamente que: o recluso (actualmente com 56 anos de idade) não tem outras condenações registadas; adoptou sempre um comportamento adequado e colaborante no decurso da execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação; vem mantendo um comportamento prisional isento de processos disciplinares; beneficia de apoio familiar sólido e alargado; mantém relação afectiva consistente e tem firme expectativa de emprego no exterior.
Acresce que, sabendo-se que, para aferição das exigências de prevenção especial, o sentido crítico do agente quanto à própria conduta é factor relevante (embora não constitua pressuposto legal e/ou condição necessária), no caso, o recorrente manifesta consciência crítica e arrependimento seguros, tal qual, também, resulta da fundamentação de facto.
Bastará atentar que, em ordem à motivação do comportamento delituoso, de permeio às dificuldades económicas, o recluso alude expressamente a decisões suas que se revelaram prejudiciais.
Ou seja, em consonância com a denominada teoria da atribuição12 estamos perante alguém que regista capacidade de atribuição interna13, a par das capacidades de auto critica, análise e compreensão da sua própria conduta.
Assim, ante a materialidade fáctica assente, prefigura-se um contexto atenuativo relativamente aos riscos de recidiva e ao debilitamento das exigências de prevenção especial14.
Vale por dizer que, atentas as circunstâncias do caso e a materialidade em ponderação, é de condescender que o recorrente irá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Sem embargo, «Toda a prognose é uma probabilidade, uma previsão da evolução futura de uma situação, fundada no conhecimento da evolução de situações semelhantes, sendo aplicáveis as mesmas condições, ou seja, fundada nas regras da experiência. Por isso que, na análise da concessão da liberdade condicional não seja nunca possível a formulação de um juízo de certeza. Na verdade, nenhuma decisão pode assegurar que não mais o condenado, uma vez em liberdade, voltará a delinquir.
Significa isto que, feita a conjugação e ponderação dos factores supra enunciados, a liberdade condicional deverá ser concedida quando o julgador conclua que o condenado reúne condições que, razoavelmente, fundam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, assumirá uma conduta conforme às regras da comunidade».15
No sentido sufragado, em situação idêntica16, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2018, processo n.º 678/14.8TXPRT-K.P1, in www.dgsi.pt., decidiu-se assim: «(…) sem deixarmos de concordar que o crime de tráfico de droga é em abstracto muito grave, frequente e gerador de sentimentos sociais negativos, também não podemos ignorar que no caso em apreço o crime cometido não tem esse sinal de gravidade extrema que parece ter sido considerada na decisão recorrida.
A gravidade do crime é um elemento de ponderação relevante para a concessão de liberdade condicional, por razões que têm a ver com os fins de prevenção especial e geral. Actos criminosos mais ilícitos e praticados com maior grau de culpa exigem maiores cuidados na fase de execução da pena para garantir que o seu agente não incorrerá em novo acto criminoso e também para garantir que outras pessoas, através desse exemplo, serão positivamente influenciadas a respeitarem esses bens jurídicos. Quanto mais grave é o crime mais intensa é a necessidade de garantir o êxito das finalidades da prevenção geral e especial, precisamente porque o que está em causa nestes casos é a protecção de bens jurídicos mais valiosos.
As razões de prevenção geral que devem ser ponderadas no momento da decisão de conceder ou não a liberdade condicional têm a ver sobretudo com a preservação da ordem e paz social. A libertação só pode ocorrer num momento em que já se tenham esbatido na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade da execução da pena. A validade das normas jurídicas, essencial para o sistema de protecção dos valores comunitários garantidos pela tutela penal, assenta numa relação de confiança. A imperatividade da norma é garantida pela confiança social na efectividade da consequência prevista para a sua violação.
O que está em causa é, portanto, saber se num crime de tráfico como este, que não se pode considerar de extrema ilicitude, a libertação é socialmente sustentável. Se a ordem e paz social são adequadamente defendidas, com a libertação a meio da pena de um condenado que, como vimos, interiorizou de forma suficiente a responsabilidade pelo ilícito e já operou uma mudança de personalidade e modo de vida compatível com o respeito pelos bens jurídicos ofendidos e em relação ao qual, em consequência, se pode razoavelmente afastar uma previsão de reincidência.
A nossa resposta é positiva.

O tribunal recorrido referiu em abstracto factores de prevenção geral associados à punição dos crimes de tráfico de estupefacientes, sem referência decisiva às circunstâncias do crime cometido. Mas, como vimos, o juízo sobre a garantia da prevenção geral, muito embora deva ter em conta a gravidade do tipo de crime, não pode deixar de assentar em factos individualizados. De outro modo o legislador teria criado um catálogo de crimes insusceptíveis de concessão de liberdade condicional ou com requisitos acrescidos. Não o fez e por isso o crime de tráfico não se distingue neste plano de qualquer outro. Obviamente que aceitamos a gravidade do crime de tráfico, o impacto das suas consequências na saúde pública e na segurança e a representação social muito negativa que sobre ele impende. Contudo, essa censura social não é unívoca. Não podemos comparar, neste plano, o tráfico de larga escala, em que o criminoso obtém lucros elevados e dissemina a droga por um conjunto vasto de pessoas, com um tráfico como aquele pelo qual o recorrente foi condenado, em que toda a droga foi apreendida imediatamente. A ilicitude expressa na lei, que nos dá a medida da gravidade do crime, é muito diferente numa e noutra situação. A censura social e as necessidades de prevenção geral também»17.
Por último, em jeito de amparo e de nota lateral, realça-se que in casu por vicissitudes não imputáveis ao recorrente:
- A legal apreciação da concessão da liberdade condicional por referência ao marco de ½ da pena, que foi atingido em Agosto de 2024, só ocorreu em ...;
- Tendo sido interposto (o presente) recurso da decisão proferida em ... de ... de 2025 que não concedeu a liberdade condicional, o mesmo só foi admitido em ... de ... de 2025;
- O marco dos dois terços da pena será atingido no próximo dia 22 de Julho de 2025, o que significa que, neste momento, as exigências de prevenção geral se mostram muitíssimo esbatidas, rigorosamente quase prescindidas pelo próprio legislador18.
Merece, pois, provimento o recurso interposto, neste conspecto.

III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Julgar procedente o recurso interposto por AA e, em consequência, revogar a decisão recorrida e conceder-lhe a liberdade condicional a partir desta data e pelo tempo de prisão que lhe faltaria cumprir, ou seja, até 2 de Julho de 2027;
b) Determinar que AA fique vinculado, nos termos dos art. 64º e 52º do C.P. e 177º, n.º 2, alínea c) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, sob pena de eventual revogação da liberdade condicional, ao cumprimento das seguintes obrigações e regras de conduta:
- Residir em morada certa a fixar pelo Tribunal de Execução de Penas;
- Aceitar a tutela da competente equipa da D.G.R.S.;
- Dedicar-se ao trabalho com regularidade;
- Manter boa conduta, com observância dos padrões normativos vigentes.
C) Determinar que sejam emitidos mandados de libertação de AA, caso não interesse a sua prisão à ordem de outro/s processo/s;
Notifique e comunique de imediato.

Lisboa, 10 de Julho de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Paula Cristina Bizarro
André Alves (vencido, conforme declaração que segue)

Voto vencido o acórdão pelo seguinte:
Cumprida a metade da pena e no mínimo seis meses da pena de prisão, a liberdade condicional é concedida se tiver sido alcançada, em juízo de prognose, a finalidade da pena de evitar a futura prática de novos crimes, num contexto de uma vida socialmente responsável (art. 61º, nº1, al. a) do C. Penal); e se “a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.” (art. 61º, nº2, al. b) do C. Penal).
Neste marco do cumprimento da pena, não basta que a execução da pena tenha atingido a sua finalidade principal de prevenção da reincidência, importa também que se encontre satisfeita a finalidade que consiste na reafirmação da validade da norma violada pelo crime, ou seja, e para o caso concreto, fazer saber à comunidade que à prática de um crime de tráfico de droga nas condições em que este foi praticado corresponde uma pena executada em medida suficiente para tranquilizar a consciência jurídica coletiva que, em última análise, determinou a incriminação desse comportamento. De certa forma, trata-se de “prestar contas” à comunidade.
Ora, do meu ponto de vista a decisão recorrida fundamenta, sem erros que possam ou devam ser conhecidos nesta instância, a decisão de não conceder a liberdade condicional neste marco do cumprimento da pena de prisão.
Confirmaria, por isso, a decisão recorrida

1. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14/1/2015, proc. n.º 1855/10.6TXPRT-T.P1 e de 8/2/2017, proc. n.º 749/14.0TXPRT-E.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa, 14/4/2016, proc. n.º 1 290/11.9TXLSB-L.L1-9, do Tribunal da Relação de Évora de 24/1/2023, proc. n.º 357/16.1TXEVR-J.E1, todos in www.dgsi.pt.
2. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/5/2016, processo n.º 1/14.1GBMDA.C1, in www.dgsi.pt.
3. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/1/2023, processo n.º 357/16.1TXEVR-J.E1, in www.dgsi.pt.
4. À semelhança do que se verifica quanto à suspensão ou não da execução da pena relativamente aos crimes de tráfico de estupefacientes. A este respeito, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/3/2023, processo n.º 244/21.1PQLSB.L1-9, in www.dgsi.pt.
5. Sublinhado nosso.
6. Conforme resulta do acórdão condenatório, AA transportou consigo, de Lisboa para ser transaccionado na ..., cerca de um quilo e meio de cocaína que ia entregar a outros indivíduos.
7. Art. 173º, n.º 1 do C.E.P.M.P.L.
8. Já anteriormente valorada para fins de prevenção geral.
9. Sandra Oliveira e Silva, A Liberdade Condicional no Direito Português: Breves Notas, com negritos nossos.
10. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6/2/2012, processo n.º 296/06.4JABRG-B, in www.dgsi.pt.
11. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/9/2024, processo n.º 30/22.1GBLRA-H.C, in www.dgsi.pt
12. «A teoria da atribuição deve-se a Fritz Heider, que a desenvolveu na década dos anos 50. Segundo Welner (1972) o seu trabalho consistiu em procurar conhecer o que o homem comum pensa em matéria de causalidade. Parte do pressuposto de que ninguém se satisfaz apenas em registar os factos que ocorrem à sua volta. Mais do que isso, procura sempre achar as causas dos diversos acontecimentos. Estas dão um significado ao que experimenta que, uma vez percebido, levam o indivíduo a reagir perante o ambiente onde se encontra», Atribuição e Auto-Conceito, Adriano Vaz Serra, disponível em https://www.uc.pt/site/assets/files/701244/atribuicao_e_auto-conceito_-_adriano_vaz_serra.pdf.
13. Quando alguém atribui a si próprio um resultado está a efectuar uma atribuição interna, do passo que se esse resultado for atribuído a outras pessoas ou circunstâncias a atribuição é externa.
14. A circunstância de objectivamente à data da prolação da decisão recorrida, não terem sido, ainda, concedidas ao recorrente medidas de flexibilização da pena, no concreto contexto deste recluso (primário e inteiramente integrado, quer do ponto de vista familiar, quer profissional, que esteve sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação desde 11 de Março de 2022 até 23 de Setembro de 2024 sem registo de quaisquer incidente) não induz particulares dúvidas quanto à «sua capacidade contentora no exterior» e/ou «convicção sobre se logra manter uma conduta normativa em meio livre e se está capaz de observar as injunções e proibições inerentes à liberdade condicional».
15. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/6/2019, processo n.º 3371/10.7TXPRT-M.C1, in www.dgsi.pt.
16. No qual, aliás, estava em causa uma quantidade de cocaína superior a 20kg.
17. Sublinhado nosso.
18. Quando a concessão da liberdade condicional é apreciada aos dois terços da pena queda-se o pressuposto a que alude a al. b) do art. 61º, n.º 2 do C.P., atinente às razões de prevenção geral, tendo o legislador presumido que a libertação neste marco já não é inconciliável com a defesa da ordem e da paz social.