Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8963/2006-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Embora o contrato de cessão de exploração não deva ser considerado de arrendamento, não estando, por isso, sujeito às regras próprias do arrendamento que limitam a liberdade contratual, como é o caso da prorrogação e renovação automática e obrigatória desse contrato, não pode deixa de ser evidente, em alguns aspectos, a semelhança entre os dois modelos jurídicos.
2. Tratando-se de contrato inominado, devem ser-lhe aplicáveis, na falta de estipulação das partes, as normas dos tipos contratuais afins, e depois as gerais das obrigações e dos contratos. Quando nem umas nem outras resolverem o caso, terá o juiz que fazer a integração do contrato nos termos gerais.
(F.G.)
Decisão Texto Integral: 15
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
M, Lda, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra P e, mulher, pedindo a sua condenação na quantia de 1.609.015$00, nas importâncias que vierem a ser apuradas, em liquidação de sentença, a título de dívidas ao fisco, autarquias locais ou quaisquer outros organismos, com referência ao período de tempo que durou a exploração levada a cabo pelos réus e juros que se vencerem após citação.
Para fundamentar a sua pretensão alega em síntese, que em 1997 celebrou com o 1.° R. um contrato mediante o qual cedeu a exploração do estabelecimento comercial, pelo prazo de três anos, com início em Março de 1997, pelo preço de 15.000.000$00, sendo que no primeiro ano pagaria 350.000$00 mensalmente, e nos subsequentes 450.000$00. Mais, alega que na cláusula 3.ª do sobredito contrato estipularam que o mesmo podia ser rescindido por qualquer das partes, desde que comunicada essa intenção com antecedência mínima de 90 dias e que o R. encerrou o estabelecimento no dia 31 de Novembro, sem que tivesse efectuado a predita comunicação e sem pagar as taxas impostos e multas devidas, conforme o acordado. Articula, ainda, com utilidade, que acordaram que o R. se responsabilizaria por todas as faltas de pertences e por avarias provocadas no material e equipamentos existentes no estabelecimento, sendo que provocou prejuízos totalizando a quantia de 259.015$00.

Regularmente citados, vieram os RR. deduzir contestação, contrapondo que efectuaram a comunicação prevista no contrato em Julho de 1999, na pessoa do sócio gerente da A., que substituíram todos os artigos quebrados e deixaram todos os equipamentos a funcionar, tendo igualmente procedido ao pagamento de todas as despesas constantes na cláusula sétima do referido contrato.

Foi proferido despacho saneador, com indicação da matéria de facto assente e elaborada a base instrutória pela forma constante de fls. 54 e 55.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades, tendo a matéria de facto controvertida sido julgada pela forma exarada a fls.112 e 114.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou o R. a pagar à A. a importância, que vier ser liquidada em execução de sentença, relativa às contribuições, impostos, taxas e multas devidas ao Estado, Autarquias locais, organismos de coordenação económica e quaisquer outros, no período compreendido entre 21 de Abril de 1997 e 2 de Novembro de 1998, absolvendo a Ré de todos os pedidos contra si formulados.

Inconformada com a sentença, dela recorreu a A., que, no essencial, formulou as seguintes conclusões:
1- As partes fizeram inserir na escritura de cessão de exploração de estabelecimento comercial, que qualquer das partes poderia rescindir o contrato, desde que seja comunicada essa intenção com a antecedência mínima de noventa dias (provado em 3. dos factos provados), e se fizeram inserir tal cláusula é porque entenderam que, em caso de incumprimento desse pré-aviso, a consequência é indemnizar o período em falta, pois doutra forma não faria sentido a introdução de tal cláusula;
2- Aliás é o que decorre da Lei, art. 100º, nº 4, do Regime do Arrendamento Urbano, aplicável ex-vi do art. 117º do mesmo diploma e ainda dos artigos 798º, 1055º e 1045º do Código Civil;
3- A falta de cumprimento do pré-aviso, determina a obrigatoriedade do pagamento das retribuições relativas ao período em falta, 450.000$00X3=1.350.000$00;
4- Os recorridos, na contestação, assumiram uma clara posição de que o estabelecimento era explorado por ambos, e, por isso, ambos retiraram proveito da sua exploração – Cfr. arts. 12º, 15º, 16º, 17º e 18º, da contestação, sendo que a recorrente alegou que a exploração do estabelecimento foi feita pelo recorrido em proveito comum do casal - Cfr. artº. 11º da p.i, e tal facto foi aceite como decorre do alegado pelos recorridos daqueles artigos da contestação;
5- Contrariamente ao entendimento da Mmª. Juíz do Tribunal “ a quo “, o conceito de proveito comum, não é um conceito apenas jurídico, pois pode considerar-se matéria de facto, uma vez que tal expressão é compreendida por qualquer pessoa e que tal quer dizer que o cônjuge que contraiu a dívida aplicou a respectiva quantia em beneficio dele e do outro cônjuge;
6- É desta actividade comercial que o recorrido provê ao sustento do casal, ou, pelo menos, também com esta actividade, e, por isso, responsabiliza ambos os réus – Cfr. art. 1724º do Código Civil e 1691º, alínea c) e d), e consequentemente, também ela é responsável pelo pagamento dos prejuízos causados à recorrente;
7- O Tribunal “a quo”, ao decidir da forma que decidiu, violou, entre outros, o disposto nos arts. 98º a 101º, 104º, 111º, 117º, nº 2, do R.A.U., e 406º, 798º, 1045º, 1055º e 1691º, alíneas c) e d) do Código Civil e 15º do Código Comercial;

Contra-alegaram os RR. que, no essencial, formularam as seguintes conclusões:
1- De acordo com a redacção do art. 111º do RAU, o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial não é havido como contrato de arrendamento e a ele não se aplica o regime dos arts. 99º a 101º do RAU, por força do art. 117° nº2 do mesmo diploma, regime aplicável à locação.
2- Nem na cláusula 3ª nem em outra do contrato, as partes convencionaram para o caso de incumprimento indemnização correspondente ao valor da mensalidade de 450.000$00 ou outra.
3- A Autora não alegou nem provou quaisquer prejuízos decorrentes da violação do prazo.
4- A recorrida mulher não pode ser responsabilizada, uma vez que não foram alegados quaisquer factos materiais concretos que permitam concluir pela existência de proveito comum e pela aplicabilidade da alínea c) do art. 1691° do C.C.

Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.

Sendo as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), importa apreciar quais as consequências da falta de cumprimento do pré-aviso de denuncia do contrato de cessão de exploração e, bem assim, a prova do proveito comum do casal e a condenação da Ré mulher.

II- OS FACTOS PROVADOS.
1. Por escritura outorgada o A. cedeu ao R. a exploração do estabelecimento comercial de café, pastelaria, fabrico de pastelaria, confeitaria e padaria, pelo prazo de três anos, com início em 1 de Março de 1997, tudo nos precisos termos que constam o documento de fls. 6 a 11.
2. Fixaram as partes no artigo segundo do aludido contrato, como preço total da cessão o montante de quinze milhões de escudos, a ser pago do seguinte modo:
a) no primeiro ano, mensalmente, trezentos e cinquenta mil escudos;
b) no segundo e terceiro ano mensalmente quatrocentos e cinquenta mil escudos.
3. No artigo terceiro, estipularam as partes que " O presente contrato poderá vir a ser rescindido por qualquer das partes, desde que seja comunicada essa intenção com antecedência mínima de noventa dias".
4. Sob o artigo quinto acordaram que " O cessionário utilizará todos os móveis e utensílios que se encontrem no aludido estabelecimento, os quais deverão ser restituídos em bom estado de conservação e findo o presente contrato, ficando o cessionário obrigado a restituir os que inutilizar ou perder (...).
5. No artigo sétimo estipularam que ficava "... a cargo do cessionário o pagamento de todas as contribuições, impostos taxas, e multas devidas ao Estado, Autarquias locais, organismos de coordenação económica e quaisquer outros.
6. O R. encerrou definitivamente o estabelecimento no dia 31 de Outubro de 1998.
7. E deixou as chaves do estabelecimento na caixa de correio em 2 de Novembro de 1998.

III- O DIREITO.

Em causa está a falta de cumprimento de pré-aviso de denúncia do contrato de cessão de exploração.
No caso presente, as partes fizeram inserir, na escritura de cessão de exploração de estabelecimento comercial, uma cláusula que permitia a qualquer uma delas por cobro à relação contratual, sem que carecessem de justa causa, para tanto bastando que a parte interessada em accionar tal cláusula comunicasse à contraparte essa intenção, desde que com a antecedência fixada no contrato (90 dias).
Contudo, tal como resultou provado, o R. encerrou definitivamente o estabelecimento no dia 31 de Outubro de 1998, sem que ficasse provado que comunicou (como era seu ónus e a sentença recorrida evidencia), a intenção de se desvincular do contrato, com a antecedência estipulada no contrato de 90 dias.
Pese embora esta violação contratual, considerou, a sentença recorrida, não decorrer, do teor da referida clausula, que tenha sido acordada, em caso de incumprimento do pré-aviso, qualquer indemnização correspondente ao valor da mensalidade.
Ao invés, diz a Apelante que, se as partes fizeram inserir tal cláusula é porque entenderam que, em caso de incumprimento desse pré-aviso, a consequência é indemnizar o período em falta, tal como sucede no contrato de arrendamento (art. 100º, nº 4 do RAU).

1. Do contrato de cessão de exploração
O contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, que tem como traço característico a cedência temporária e onerosa do estabelecimento, não tem regulamentação específica na lei civil, limitando-se o n.° 1 do art. 111.° do RAU, inserido no capítulo III “Do arrendamento para Comércio ou Industria” do RAU, a preceituar que "não é havido como arrendamento de prédio rústico ou urbano o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado".
O contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial - afloramento prático da liberdade contratual (art. 405º do CCivil), pode apresentar-se como um contrato atípico ou inominado que, aparentemente, é integrado por elementos fundamentais que definem o tipo contratual do arrendamento (a cedência temporária do gozo de um imóvel, por um lado e a retribuição correspondente, pelo outro - arts. 1022º e 1023º do Código Civil) e, ainda, por um outro tipo contratual, o aluguer. Esses contratos abrangem ainda a cedência do gozo temporário e remunerado de uma ou várias coisas móveis.
No entanto, como acentua Antunes Varela, o que há de característico nos contratos de locação de estabelecimento “não é a cedência da fruição do imóvel, nem o do gozo de mobiliário ou do recheio que nele se encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa” (1).
Embora, como se referiu, tal contrato não deva ser considerado de arrendamento, não estando, por isso, sujeito às regras próprias do arrendamento que limitam a liberdade contratual, como é o caso da prorrogação e renovação automática e obrigatória desse contrato, não pode deixa de ser evidente, em alguns aspectos, a semelhança entre os dois modelos jurídicos, tanto assim que, como assinala Miguel Pupo Correia (2), muitas vezes é utilizado o modelo jurídico da cessão de exploração, com o fim de evitar a aplicação da regra que proíbe a denúncia pelo senhorio, no fim do prazo, em caso de arrendamentos para fins comerciais.
A este respeito, diz Antunes Varela, que foi exactamente para prevenir a aplicação indevida das normas excepcionais inscritas no regime da locação (em especial, a ideia da renovação obrigatória) que não foram qualificados como arrendamentos os contratos de transferência temporária e onerosa da exploração do estabelecimento, juntamente com a fruição do prédio onde ele esteja instalado (3).
Pese embora as semelhanças com esta ou aquela figura contratual, a verdade é que o presente contrato não tem regime definido por lei, de sorte que urge indagar por que normas deve reger-se este contrato que, como já se aflorou, é tido como contrato atípico ou inominado.
Segundo Vaz Serra, atendendo a que “... as normas particulares dos vários tipos contratuais são aplicáveis, nesses tipos, de preferência às regras gerais das obrigações e dos contratos, afigura-se que, tratando-se de contrato inominado, devem ser-lhe aplicáveis, na falta de estipulação das partes, as normas dos tipos contratuais afins, e depois as gerais das obrigações e dos contratos. Quando nem umas nem outras resolverem o caso, terá o juiz que fazer a integração do contrato nos termos gerais" (4).

2. Do incumprimento da clausula de pré-aviso
Fazendo apêlo ao que acabou de ser referido, vejamos o caso concreto.
Está provado que o Réu encerrou o estabelecimento em 31.10.1998, e deixou as chaves do estabelecimento na caixa do correio em 02/11/1998.
Apesar de estar convencionada a exigência de comunicação da intenção de fazer cessar o contrato, com antecedência mínima de 90 dias, o Réu não fez prova de ter cumprido esta exigência, sendo certo que nada mais pagou.
Entende o Recorrente que deve, então, ser condenado no pagamento de indemnização equivalente a 3 mensalidades, por aplicação, ao caso do disposto no art. 100º do RAU.
Não parece suscitar dúvidas de que a violação do prazo de pré-aviso impediu a A. de se preparar para o termo do contrato, nomeadamente encontrando um novo interessado, para o que dispunha de 3 meses durante os quais o cessionário continuaria a pagar as mensalidades.
Logo, no caso concreto, a Recorrente deixou de auferir os três meses de retribuição que tinha a expectativa de receber, caso tivesse sido respeitado o prazo de rescisão.
E, como é sabido, tendo presente o disposto no art. 406º do CCivil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos.
Se é certo que estamos perante um contrato atípico que não deve confundir-se com o contrato de arrendamento, a verdade é que, não pode deixar de ter-se em atenção a ratio do clausulado, no caso a referida cláusula 3ª, com redacção idêntica à do nº 4 do art. 100º do RAU.
Em última instância, tal como na locação, através da cessão, o titular do estabelecimento obriga-se a proporcionar ao cessionário a fruição temporária dele mediante retribuição.
Pois bem, o presente contrato teve o seu início no dia 1 de Março de 1997 e foi celebrado pelo prazo de três anos, o que não impedia que em qualquer altura o contrato fosse denunciado, desde que com a antecedência mínima de 3 meses (90 dias), fosse a contraparte informada dessa intenção.
Segundo o nº. 1 do artigo 236º do Código Civil "a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele".
Ora, afigura-se que, um declaratário normal, colocado na posição da Recorrente, não deixaria de interpretar a cláusula 3ª do contrato com o sentido de ter como certo, caso não fosse cumprido esse prazo por banda do cessionário (tal como sucede no arrendamento nos casos em que é permitida a denúncia livre do contrato), que os efeitos dessa denúncia só produziriam efeitos decorrido que fosse o prazo estabelecido como aviso prévio. Donde, os efeitos da cessação do contrato só podem ter-se por válidos, 90 dias após a denúncia do contrato, ou, o que é o mesmo, o cessionário só fica desonerado do pagamento do valor da prestação pecuniária mensal, decorridos 90 dias, após a denúncia.
Também o cessionário, ora Recorrido, não pode desconhecer que quem cede a exploração de um estabelecimento pretende tirar dessa cedência, sem grande perda de tempo, os rendimentos ou o uso que ele é capaz de lhe proporcionar.
E sabe também que, para evitar os perigos decorrentes para o dono do estabelecimento de uma denúncia intempestiva, isto é, com eficácia imediata ou de tal modo próxima, que lhe possa causar dificuldades ou danos inaceitáveis, deve considerar-se necessário um pré-aviso.
Ademais, o art. 117º nº 2 do RAU, inserido no Capítulo III "Do Arrendamento para Comércio ou Indústria.”, tal como o art. 111º que se refere à cessão de exploração de estabelecimento comercial, remete para o regime dos artigos 98º a 101º do RAU, sendo certo que o art. 100º nº 4 permite, ao arrendatário que denuncie o contrato, com a antecedência mínima de 90 dias sobre a data em que se opera os efeitos.

2.1. Nesta medida a situação, que ocorre no caso sub judice, não é muito diferente do que se passa com a relação que se estabelece entre o arrendatário e o senhorio. Tal como no arrendamento, também, neste caso, importa zelar pelos interesses dos contraentes e portanto protegê-los reciprocamente de comportamentos repentinos e intempestivos.
Aliás, a denúncia do contrato de arrendamento tem, segundo o nº. 1 do artigo 1055º do CCivil - e o nº 4 do art. 100º do RAU - de ser comunicada ao outro contraente com a antecedência mínima nele indicada.
Tal como o art. 1055º, nº 1 do CCivil e o art. 100º, nº 4 do RAU, também a clausula 3ª do contrato dos autos destina-se a proteger tanto o locador/cedente, como o locatário/cessionário.
Conforme dizem Pires de Lima e Antunes Varela, "o estabelecimento de uma antecedência mínima para a realização da denúncia justifica-se pela necessidade de proteger tanto os interesses do locatário, eventualmente necessitado de locar outra coisa para satisfação das suas necessidades, como o locador, para que possa tirar da coisa, sem grande perda de tempo, os rendimentos ou o uso que ela é capaz de lhe proporcionar (5).
Estas razões justificam que, no presente caso, a denúncia do contrato celebrado entre A. e R. devia ser comunicada com a antecedência mínima de 90 dias, sob pena de, tal como decorre do disposto no art. 1055º nº 1 do CCivil e igualmente do disposto no art. 100º do RAU, tal denuncia só produzir efeitos 90 dias após a comunicação ou o conhecimento dessa denúncia.

2.2. Porque estamos no âmbito da responsabilidade contratual importa ter presentes as regras do ónus da prova da responsabilidade civil por incumprimento contratual, sendo certo que competia aos Recorridos demonstrar, então, que o incumprimento do contrato, não procedeu de culpa sua (art. 799º do CC), o que não lograram fazer. Portanto, o incumprimento da obrigação de comunicar com a antecedência de 90 dias, gera a obrigação de indemnizar, tornando o devedor responsável, nos termos da responsabilidade contratual, pelos prejuízos acusados à credora (art. 798º do Código Civil).
Sabendo-se que a partir de Março de 1998, a renda passou para 450.000$00 (cfr. art. 2º alínea b) da escritura de cessão), da aplicação do art. 100º, nº 4 do RAU, decorre a obrigação de indemnizar a Recorrente pela falta de cumprimento do aviso-prévio, ou seja, dos 90 dias, e é exactamente este o prejuízo da Recorrente, ou seja, a falta de pagamento da retribuição relativa ao período em falta.
Tudo isto para dizer que, uma vez que o Réu encerrou o estabelecimento em 31.10.1998, e deixou as chaves do estabelecimento na caixa do correio em 02/11/1998, a falta de cumprimento do pré-aviso, determina a obrigatoriedade do pagamento das retribuições relativas ao período em falta, 450.000$00X3=1.350.000$00, ou seja, do pagamento da contraprestação do Réu.

3. Do proveito comum do casal
A sentença recorrida absolveu a Ré mulher do pedido, com o fundamento de que não foram alegado factos materiais e concretos que permitam concluir pela existência de proveito comum.
É contra esta absolvição que a A. se insurge.
Vejamos.
No art. 11º da p.i., a A., ora Apelante, alegou que a exploração do estabelecimento foi feita no proveito comum do casal de ambos os recorridos e tal não foi impugnado expressamente na contestação, pelos RR.
Ademais, os próprios RR admitem que exploravam o estabelecimento.
É assim que referem, nos arts. 12º e 17º da contestação, que substituíram (ambos os réus), todos os artigos quebrados e deixaram os equipamentos do estabelecimento a funcionar.
Referem também, nos arts. 15º e 16º, que deixaram (ambos os réus) o estabelecimento em bom estado de conservação, devidamente equipado.
Esclarecem, ainda, os RR. que pagaram todas as despesas referentes a contribuições, impostos, taxas, referentes ao estabelecimento.
Donde a assunção, por ambos os RR/Recorridos, de que ambos utilizaram e exploraram o estabelecimento dos autos.

3.1. Da matéria de facto/matéria de direito
Não sendo isenta de dificuldades a delimitação entre o direito e o facto, enuncia Alberto dos Reis os seguintes critérios gerais de orientação: "É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei."(6).
Como lembra José Osório (7), o “julgamento da matéria de facto tende (...) a descrever uma situação ou acontecimento concreto da vida real, com vista à aplicação das normas jurídicas que a abrangem. Ora as normas jurídicas, destinadas a reger situações ou factos da vida real, contêm geralmente também a descrição da situação a que pretendem aplicar-se. O primeiro acto de julgamento no domínio jurídico consiste precisamente em verificar se a situação de facto averiguada através do julgamento de facto se ajusta à descrição da situação prevista pela norma, consiste, digamos, num juízo de comparação entre aquelas duas situações, uma real outra hipotética”.
Com vista a obter a tutela jurisdicional do seu direito de crédito contra a Ré, a A. alegou que o estabelecimento, objecto do contrato, era explorado em proveito comum do casal dos RR.
Como é sabido, o proveito comum do casal afere-se, não pelo resultado concreto do negócio empreendido, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu, fim esse que deve ser o interesse de ambos os cônjuges ou o da família, por eles constituída.
Como se escreveu no Ac. RL. de 24/6/99 (8) “o proveito comum do casal não é uma mera questão de facto, mas antes uma questão complexa: de facto, quando se trata de apurar o destino dado ao bem recebido e de direito, quando se procura determinar, em face do destino apurado, se a dívida foi ou não contraída em benefício do casal.
No caso sub judice, a A. alega que o estabelecimento, objecto do contrato, era explorado em proveito comum do casal dos RR.
Portanto, a afirmação, não impugnada por qualquer dos RR, antes confirmada, de que o estabelecimento era explorado por ambos e em proveito comum do casal dos RR., constitui, em si mesma, matéria de facto.
Mesmo a expressão “em proveito comum do casal” se pode dizer que contém matéria de facto, por se tratar de uma expressão da vida quotidiana perceptível, sem necessidade de especiais conhecimentos jurídicos (9).
A este respeito Anselmo de Castro refere que não se pode confundir matéria de direito com conclusões, além de que o acesso ao conhecimento das coisas não se faz, a maior parte das vezes, através de percepções puras.
A propósito do proveito comum como requisito de comunicabilidade da dívida contraída por um dos cônjuges, Anselmo de Castro, refere o seguinte (10) .
É geralmente considerado como conceito jurídico que não pode ser objecto de quesito, devendo apenas figurar o fim para que, concretamente, a dívida foi contraída. A questão tem importância, pois raro é o caso em que a petição inicial refira esse fim concreto e se não limite à alegação do proveito comum. Ora, bem pode dizer-se que não há aí lugar a uma subsunção jurídica, que se siga à averiguação dos factos relativos ao fim a que a dívida se destinou. A questão confina-se numa mera indagação de facto. Nada impede, pois, a nosso ver, que se quesite directamente o proveito comum, visto a respectiva resposta se reduzir a uma pura conclusão ou juízo de facto, aqui hipotético. O ser conveniente ou não que figurem os factos indiciários concretos, é já outra questão”.
Assim, a alegação de que a exploração do estabelecimento foi feita em proveito comum do casal, não obstante ter um sentido jurídico, corresponde, igualmente, a uma expressão de sentido fáctico, coincidente com aquele, sendo compreendida pelo cidadão normal, sem necessidade do recurso a conhecimentos jurídicos.
Vale isto por dizer que se mostra suficientemente factualizado o proveito comum do casal na exploração do estabelecimento objecto do contrato celebrado entre a A. e o Réu, sendo a indemnização devida à A. resultado do incumprimento do referido contrato de exploração.
Estamos, pois, perante um dado de facto que, na ausência de impugnação, se deve considerar admitido e aceite pelos RR. atentos os factos articulados na contestação, isto é, a existência de vantagens patrimoniais para os RR/Apelados advenientes da celebração do contrato dos autos, por via do qual passaram a utilizar, em proveito de ambos, como admitem, o dito estabelecimento comercial, daí retirando, ambos, proventos.
Em face do exposto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 659° e 712°, ambos do CPC, decide-se ampliar a matéria de facto provada, por forma a incluir o sobredito facto, ou seja, que a exploração do referido estabelecimento da A., foi feita por ambos os RR. dessa actividade retirando os proveitos que destinaram ao património dos Réus.
Assim, em face da factualidade provada, decorre preenchida, pelo menos, a previsão normativa dos arts. 1724º e 1691°, al. c), do CC, pelo que se tem de concluir pela condenação solidária da Ré. Ademais, tratando-se de uma cessão de exploração de estabelecimento comercial estamos perante um acto comercial, actividade que era exercida por ambos, por isso no exercício do comércio, que responsabiliza ambos os RR. (art. 1691º, d) do CCivil e 15º do CComercial).

IV – DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando-se, parcialmente, a sentença recorrida, condenam-se ambos os RR. a pagar à Recorrente a quantia de 1.350.000$00, correspondente a três mensalidades da retribuição da cessão de exploração, acrescida dos juros legais vencidos e vincendos, desde a citação até integral pagamento.
Vai, ainda, a Ré condenada, solidariamente com o Réu, a pagar à A. a importância que vier a ser liquidada em execução de sentença, nos mesmos termos em que a sentença recorrida condenou o Réu.
Custas pelos Apelados.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2006.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
_________________________
Antunes Varela, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 100, páginas 269 e 270.
2 Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, 2ª edição revista, pag. 241
3Antunes Varela, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 110, página 270.
4 Vaz Serra, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 98, página 217.
5 Código Civil Anotado, volume 2, edição de 1996, página 321
6 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., vol. III, págs. 206 e 207.
7José Osório, Julgamento de Facto, Rev. Dir. e de Estudos Sociais, VII, pag. 201.
8 In CJ, 1999, 3º, 133.
9 Entre muitos o Ac. RC de 2.10.1979, in BMJ 292º-439.
10 A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, Coimbra, pags. 270/271.