Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1126/21.2T8LSB-A.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: ASSISTÊNCIA TÉCNICA
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O técnico designado para assistir à audiência final nos termos do artigo 601.º do CPC, aí prestar esclarecimentos e emitir, a final, um parecer, não se confunde com o perito designado para a prova pericial, tendo ambos uma distinta posição processual.
II – O perito é um agente da prova e apreende ou capta os factos em averiguação, através da inspecção e averiguações necessárias, e o técnico é um auxiliar da Justiça, prestando assistência ao juiz durante a produção da prova, vg. na audiência final, esclarecendo-o na percepção e compreensão de questões técnicas para as quais o juiz não tem a necessária preparação.
III – Carece de fundamento, no âmbito da assistência técnica, a realização de uma “segunda perícia”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
1.1. Na acção emergente de acidente de trabalho supra indicada, que AA e outros, respectivamente viúva, e filhos do sinistrado BB, intentaram contra BANCO BIC PORTUGUÊS, S.A. e VICTÓRIA - SEGUROS, S.A., foi realizada audiência prévia no dia 13 de Janeiro de 2023, no decurso da qual foi proferido o seguinte despacho:
«[…]
“v. Atento o objeto dos autos, na medida em que importa apurar o nexo de causalidade entre a situação clínica do infeliz Sinistrado e o seu suicídio, considera-se essencial a nomeação de um perito médico da especialidade de psiquiatria, para assistir ao julgamento, assessorando o tribunal na produção da prova relativa a factualidade respeitante à situação clinica do Sinistrado e nexo de causalidade entre esta, a situação laboral e o suicídio e para, finda a produção da prova, o mesmo elaborar parecer sobre tais nexos de causalidade, o que se determina ao abrigo do disposto no artigo 601.° CPC."
[…]»
Por despacho de 24 de Janeiro de 2023 foi fixado o “objecto do litígio” nos seguintes moldes:
«[…]
a) Apurar se à data da morte o Sinistrado se encontrava num estado depressivo;
b) Em caso afirmativo:
i. determinar se tal estado depressivo determinou o suicídio do Sinistrado.
ii. apurar o nexo de causalidade entre o mesmo e a vivência laboral do Sinistrado
c) Discutir como o evento ocorrido se enquadra na previsão do artigo 8.° da LAT
d) Definir os montantes da reparação:
i. Apurando a retribuição da Sinistrados nos 12 meses que antecederam o acidente
ii. Determinar os respetivos responsáveis.
[…]»
Na sequência da nomeação da Dra. CC, médica psiquiatra, para as assinaladas funções, e após já iniciada a audiência de julgamento a que a mesma assistiu e que se prolongou por seis sessões entre 2023.10.26 e 2024.11.19, a Mma. Juiz a quo, por despacho de 2025.01.07, formulou nove quesitos a ser por ela respondidos, vindo a mesma, em 2025.01.27, a apresentar o denominado “Relatório de Assessoria Técnica-Pericial Psiquiátrica” que concluiu respondendo aos indicados nove quesitos do seguinte modo:
«1. Entre o dia 16 de janeiro de 2020 (último dia do internamento hospitalar do Sinistrado) até ao dia 22 de janeiro de 2020 (até ao momento e hora da morte), o Sinistrado apresentava um quadro clínico de depressão profunda/em estado depressivo?
"Não, no que especificamente diz respeito a "depressão profunda", sem prejuízo do que pode ser reportado como sintomatologia ansiosa e depressiva e assim nesse sentido "estado depressivo" (cf. Secções Discussão e Conclusões)"
2. No pressuposto de que o Sinistrado estava sob pressão profissional esta seria causa direta e necessária uma depressão profunda?
"Não (cf. Secções Discussão e Conclusões)"
3. Os contactos mantidos com a Ré Empregadora, no mencionado período, eram suscetíveis de agravar a sua doença?
"Não possuímos elementos que nos permitam, com o necessário rigor científico, dar resposta ao quesitado."
4. Considerando-se provado que a Ré Empregadora negou ao Sinistrado a entrega do documento na posse daquela, e que ilibaria o Sinistrado de qualquer responsabilidade, agravou o seu estado depressivo?
"Em abstracto sempre poderia; porém, no caso concreto o que foi afirmado em audiência de julgamento e objectivado nos documentos clínicos não nos leva a supor que tal quadro tivesse sido agravado pela recusa na entrega da declaração."
5. Pode considerar-se que a divulgação da peça jornalística da ... foi causa direta, imediata, próxima ou principal do suicídio?
"Não é possível afirmar nem infirmar, com adequado grau de rigor científico, que a divulgação da peça jornalística da ... tenha sido causa directa, imediata, próxima ou principal para emergir a vontade de BB por termo à vida. Dito isto, pode considerar-se com grau de probabilidade que à Ciência não é possível quantificar, que a divulgação da peça jornalística da ... tenha contribuído - de forma não negligenciável - para a vontade de BB por termo à vida e, em conformidade, a concretização daquela vontade ou desejo."
6. A possibilidade de perda de reconhecimento profissional e estatuto social podem ser fatores determinantes ou adjuvantes do suicídio de BB?
"Sim."
7. Com que grau de probabilidade?
"Não nos é possível apenas com elementos científicos, dar resposta ao quesitado com o necessário rigor exigido."
8. É possível afastar, em absoluto, a existência de um nexo de causalidade entre o sentimento de vergonha e o receio de ser posta em causa a imagem e a reputação pessoal e profissional do Sinistrado em consequência do escândalo do "..." e o seu suicídio?
"Do ponto de vista médico-legal não é possível, em absoluto, afastar tal hipótese."
9. É possível afastar, em absoluto, a existência de um nexo de causalidade entre o receio de serem postos em causa o estilo de vida e a estabilidade financeira de que gozava o Sinistrado em consequência do escândalo do "..." e o seu suicídio?
"Do ponto de vista médico-legal não é possível, em absoluto, afastar tal hipótese.»
Em 12 de Fevereiro de 2025 os AA. apresentaram “reclamação contra o Relatório Pericial”, solicitando esclarecimentos e requerendo a realização de uma “segunda perícia” , nos termos das disposições conjugadas dos artigos 485º, n.º 2 e 487º, n.º 1 do CPC ex vi artigos 131º, n.º 3 e 49º, n.º 2 do CPT.
Alegaram, para tanto, em síntese, que o relatório “carece de ser completado, esclarecido e devidamente fundamentado, por padecer de manifestas deficiências, obscuridades e contradições que inviabilizam (…) respostas claras e concretas aos quesitos formulados pelo Tribunal, e, sem prejuízo, porque a Sr. Perita “não alterará as respostas dadas” e é relevante “a identificação, o mais precisa possível, da razão ou razões que explicam ou justificam a tentativa de suicídio (06.01.2020) e o suicídio (22.01.2020)”, havendo “desconformidade” com a perícia médico-legal solicitada pelo Ministério Público, sendo imprescindível a realização de uma segunda perícia.
Debruçando-se sobre aquele requerimento, foi proferido em 10 de Abril de 2025 o despacho judicial agora sob recurso, do qual ficou a constar, além do mais, o seguinte:
«[…]
« Importa, primeiro que tudo, afirmar que se considera que à questão em apreço seja aplicável o regime da prova pericial, na medida em que a elaboração de um relatório é sempre suscetível de pedidos de esclarecimentos, já que está em causa uma avaliação médica, com conceitos específicos e uma interpretação da realidade diferente da percecionada pelas partes e pelo Tribunal.
Contudo, contrariamente ao pretendido pelos os Autores, não se mostra justificada a realização de uma segunda perícia pois, por um lado, a nova perícia teria que levar à repetição do julgamento e, por outro, o relatório em causa mostra-se corretamente elaborado, não padecendo dos vícios apontados pelos Autores, necessitando, isso sim, de alguns esclarecimentos.
Repare-se que na impossibilidade de se levar a cabo um exame do sinistrado e existindo pouca documentação clínica quanto ao seu estado emocional, pretendeu-se que a avaliação da Sr.ª Perita contasse com os relatos efetuados pelas testemunhas inquiridas. Não cabe à Sr.ª Perita avaliar a prova, portanto, a apreciação levada a cabo no requerimento apresentado quanto a tal matéria não pode ser apreciada.
A Srª Perita levou a cabo o relatório de acordo com os elementos que dispunha no processo e com base na sua perceção dos relatos que foram apresentados e essa perceção, consta do relatório.
Importa ainda realçar que o Tribunal tem que valorar a prova no seu conjunto, entrecruzando as diversas modalidades de provas produzidas entre elas o relatório apresentado.
Considera-se, porém, que se justifica obter da parte da Sr.ª Perita certos esclarecimentos identificados pelos os Autores, a serem colocados em sede de audiência, a saber:
1) Considerando que, em termos de semântica, as palavras “disforia” e “depressão” são sinónimas, qual a diferença do ponto de vista médico-legal?
2) No pressuposto de que o Sinistrado estava sob pressão profissional esta seria causa direta e necessária para um estado depressivo?”
3) No pressuposto que a Empregadora se recusou a entregar uma declaração que ilibaria o Sinistrado de qualquer responsabilidade, o seu estado depressivo podia ter agravado?
4) Considerando-se que o fator determinante do suicídio foi a notícia televisiva e o receio que a mesma impactasse na imagem/consideração do Sinistrado a circunstância de a sua entidade laboral o ilibar com uma declaração escrita nesse sentido não atenuaria os efeitos das notícias?
5) Considerando que até ao dia 06/01/2020 não foram divulgadas quaisquer notícias que envolvessem o Sinistrado e que o mesmo só não veio a falecer naquele dia porque foi socorrido a tempo é, ou não, possível afirmar que a pressão profissional a que o mesmo estava sujeito foi causa direta e necessária da tentativa de suicídio?
6) Considerando que a Senhora Perita entende que as questões laborais foram um “desencadeante inequívoco” para a tentativa de suicídio, é possível afirmar que esse fator já não se verificava à data do suicídio?
Notifique.
[…]»
No mesmo dia 10 de Abril de 2025 a audiência de julgamento prosseguiu e, no seu decurso, a Dra. CC prestou esclarecimentos e respondeu aos demais quesitos colocados no despacho nesse dia prolatado, como consta da respectiva acta.
1.2. Inconformados com o despacho proferido em 10 de Abril de 2025 antes da audiência, que, além do mais, indeferiu a realização da 2.ª perícia, os AA. interpuseram recurso do mesmo, invocando justo impedimento para a não apresentação atempada do recurso.
Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:
“A) Vem o presente recurso da decisão do Tribunal a quo que decidiu - rejeitando parcialmente os pedidos de esclarecimentos apresentados na reclamação apresentada contra o Relatório Pericial - indeferir o pedido de realização de uma segunda perícia, desconsiderando para tanto os diferentes vícios apontados ao Laudo pericial ("Relatório de Assessoria Técnico -Pericial Psiquiátrica) na Reclamação/Requerimento apresentado pelos AA.
B) Decidiu/considerou o T ribunal a quo que: “(...) não se mostra justificada a realização de uma segunda perícia, pois, por um lado, a nova perícia teria que levar à repetição do julgamento e, por outro, o relatório em causa mostra-se corretamente elaborado, não padecendo dos vícios apontados pelos Autores, necessitando, isso sim, de alguns esclarecimentos."
C) A rejeição do requerimento de realização de uma segunda perícia e, assim, o fundamento da sua recusa (verdadeiramente incompreensível) merecem censura deste Tribunal superior.
D) O Julgamento, a prova pessoal produzida, está registada, uma nova perícia não implicaria a repetição do que quer que fosse. Por outro lado, a "economia processual" ainda que prejudicada pela repetição de um julgamento (que in casu, não se impunha) não consubstancia um valor superiores à descoberta da "Verdade" e, assim, da "Justiça".
E) O Relatório/ Laudo pericial não se mostra corretamente elaborado: (i) Transcreve incorretamente depoimentos testemunhais em aspetos da maior relevância; (ii) Contém julgamento sobre matéria de facto, que está ao alcance do julgador e excluído da perícia; (iii) Não considera todos os elementos constantes dos autos, mas discricionariamente, sem explicação plausível, apenas alguns desses elemento, com uma interpretação própria; (iv) é omisso e não se mostra suficientemente fundado, sendo incompreensíveis as conclusões apresentadas com base no jargão de que a "ciência não permite responder".
F) Do douto despacho que determinou/ordenou a realização da perícia, resulta que a mesma tinha por objeto uma pronúncia sobre os seguintes nexos causais: a) entre a situação clínica do Sinistrado e o suicídio; b) entre a situação clínica do Sinistrado e a situação laboral; c) entre a situação laboral e o suicídio.
E
as deficiências apontadas ao Laudo — não superadas pela Senhora Perita na Audiência de julgamento, que não foi, aliás, confrontada com todas as imprecisões imputadas— não permitem uma conclusão tecnicamente fundada sobre aqueles nexos.
G) Conforme entendimento sufragado pelos nossos Tribunais superiores apenas o caráter impertinente ou dilatório da argumentação apresentada como suporte da divergência contra a primeira perícia pode fundamentar a recusar de realização de uma nova perícia.
H) Não está na disponibilidade do juiz uma avaliação do mérito dos argumentos apresentados para a necessidade de realização de uma segunda perícia, não devendo aprofundar o bem ou mal fundado dos argumentos formulados, antes se deve conter na questão da respetiva pertinência ou não dilatoriedade - o que notoriamente não sucedeu (Vide, neste mesmo sentido, o Ac. do TRP, de 17-04-2023, Proc. N.° 12333/20.5T8PRT-B.P1; Ac. do TRC, de 01-12-2015, Proc. N.° 65/14.8TBCXTB-B-C1).
I) A orientação jurisprudencial dominante é a de permitir, por regra, uma segunda perícia. Estando em causa um provável ganho, uma mais-valia, quanto aos elementos disponíveis para a decisão, o critério deve ser o de apenas se rejeitar uma (segunda) perícia que se mostre totalmente desnecessária, atenta uma total ausência de fundamentação. In casu, a fundamentação apresentada, traduzida nos diferentes vícios apontados ao laudo pericial, é justificativa da realização da perícia requerida.
J) Há uma PESSOA que se tentou matar na sequência, segundo declarações da própria às entidades policiais, por pressões relacionadas com a sua profissão, é colocada de baixa médica, por depressão; no período da baixa continua a relacionar-se com a sua entidade laboral sobre o tema mediático que o preocupava (e havia colocado na situação clínica depressiva); após uma reunião tida no local de trabalho, e no período de baixa, suicida-se.
Neste contexto, não pode deixar de se interrogar, como é que a ciência forense pode dizer, como se afirma no Laudo que não é possível determinar (ainda que de modo probabilístico) se os contactos mantidos no período da doença (baixa) agravaram ou não a mesma?
K) As "regras da experiência", o "bom senso apontam" num sentido oposto; e os Autores não acreditam que a resposta da ciência seja: a ciência não consegue responder. Não se pode aceitar que a JUSTIÇA de uma decisão fique amarrada à apontada, mas não sustentada, ignorância da ciência psiquiátrica ou à economia processual.
L) É imprescindível, para o apuramento da verdade, a realização de uma segunda perícia quer seja pela relevância das apontadas deficiências, obscuridades, contradições e omissões para a discussão e decisão do mérito da causa, como pela desconformidade/contradição entre os relatórios periciais apresentados nos presentes autos (o Laudo pericial vs o relatório de perícia médico-legal de fls... solicitado pelo Ministério Público).
Nestes termos e nos demais de Direito, com o douto suprimento que se solicita, deverá dar-se provimento à Apelação e, em conformidade, revogar-se o Despacho que (com a fundamentação apresentada) rejeitou a realização de uma segunda perícia; ordenando-se a sua realização para que, então, se possa vir a fazer a costumada JUSTIÇA!”
1.3. Ambas as RR. apresentaram contra-alegações, defendendo a inverificação do justo impedimento e a improcedência do recurso.
1.4. Por despacho proferido em 25 de Junho de 2025, a Mma. Juiz a quo considerou verificado o invocado justo impedimento e admitiu o recurso.
1.5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em douto Parecer que não mereceu resposta das partes, defendeu que o recurso não merece provimento.
1.6. Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se deve, ou não, deferir-se o pedido formulado pelos recorrentes no sentido da realização de uma segunda perícia.
*
3. Fundamentação
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3.1. De facto
Os factos relevantes para a decisão do recurso resultam do relatório a que se procedeu.
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3.2. De Direito
*
Alegam os recorrentes ser imprescindível, para o apuramento da verdade, a realização de uma segunda perícia quer seja pela relevância das “deficiências, obscuridades, contradições e omissões para a discussão e decisão do mérito da causa” que apontam ao relatório da Dra. CC, quer pela “desconformidade/contradição entre os relatórios periciais apresentados nos presentes autos".
As recorridas refutam esta pretensão invocando, essencialmente, que o relatório da assessoria técnico-pericial psiquiátrica junto aos autos foi elaborado e apresentado ao abrigo do artigo 601° do Código de Processo Civil e não, como defendem os recorrentes no requerimento, ao abrigo dos artigos 467° e seguintes do mesmo Código, e que estes partem de um pressuposto errado e manifestamente inultrapassável porquanto não estamos perante uma prova pericial realizada nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 467° e seguintes do Código de Processo Civil.
Vejamos.
Nos termos do preceituado no artigo 601.º do Código de Processo Civil:
«1 - Quando a matéria de facto suscite dificuldades de natureza técnica cuja solução dependa de conhecimentos especiais que o tribunal não possua, pode o juiz designar pessoa competente que assista à audiência final e aí preste os esclarecimentos necessários, bem como, em qualquer estado da causa, requisitar os pareceres técnicos indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos.
2 - Ao técnico podem ser opostos os impedimentos e recusas que é possível opor aos peritos; a designação é feita, em regra, no despacho que marcar o dia para a audiência.
3 - Ao técnico são pagas adiantadamente as despesas de deslocação.»
O despacho cujo mérito agora se aprecia foi proferido no desenvolvimento da tramitação processual que se desenrolou após a determinação judicial da intervenção “de um perito médico da especialidade de psiquiatria, para assistir ao julgamento, assessorando o tribunal na produção da prova relativa a factualidade respeitante à situação clínica do Sinistrado e nexo de causalidade entre esta, a situação laboral e o suicídio” e para “finda a produção da prova, o mesmo elaborar parecer sobre tais nexos de causalidade”.
O que foi determinado pela Mma. Juiz a quo com expressa invocação do disposto no artigo 601.° do Código de Processo Civil, como se infere da transcrição do despacho a que supra se procedeu.
É pois patente que a nomeação e intervenção da Dra. CC nos presentes autos, quer no que concerne à assistência à audiência final, quer no que concerne aos esclarecimentos por ela prestados em tal diligência, quer no que concerne ao relatório que apresentou após a produção da prova, se enquadram no âmbito do regime da assistência técnica a que se reporta o artigo 601.° do Código de Processo Civil.
Ora, apesar de haver algum défice do legislador na regulação da assistência técnica, cremos não haver dúvida de que esta figura constitui realidade diversa da prova pericial.
Com efeito, a prova pericial mostra-se minuciosamente regulada nos artigos 467.º e ss. do Código de Processo Civil, em capítulo enquadrado nas normas do Código de Processo Civil constantes do seu LIVRO II (Do processo em geral) dedicadas à Instrução do processo (artigos 410.º e ss.) e, mesmo no seu âmbito, se prevê a possibilidade de a parte se fazer assistir por um técnico, personalidade distinta do perito (artigo 480.º, n.º 3).
Por seu turno a assistência técnica às partes ou ao juiz mostra-se prevista em diversas disposições do Código de Processo Civil (vg. nos artigos 50.º, 480.º, n.º 3, 492.º, n.º 1 e 426.º), em moldes distintos, e por vezes incompatíveis, com os previstos para a prova pericial.
A específica intervenção do técnico na audiência final sob designação do juiz mostra-se prevista no artigo 601.º do Código de Processo Civil, preceito adjectivo que se inclui nas normas do Código de Processo Civil dedicadas à audiência final (artigos 599.º e ss), no âmbito do Livro III deste compêndio normativo (Do processo de declaração).
Tem a mesma arrimo no artigo 85.º, n.º 6, da LOSJ1, nos termos do qual “[a] lei pode prever a colaboração de técnicos qualificados quando o julgamento da matéria de facto dependa de conhecimentos especiais”.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “o técnico designado para assistir à audiência final e aí prestar esclarecimentos não se confunde com o perito designado para a prova pericial. Trata-se dum auxiliar do juiz nos atos de produção de prova e de discussão da matéria de facto em audiência, cujos conhecimentos especializados são postos ao serviço da indagação, interpretação e avaliação de meios de prova com que, de outro modo, o juiz dificilmente lidaria. Faculta-o também o art. 492, especificamente para a prova por inspeção judicial2.
Expõe-se a esse propósito no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, que em resultado “de uma cada vez mais manifesta necessidade de um enquadramento interdisciplinar, reequacionaram-se os termos em que o tribunal e as partes podem provocar a intervenção, em audiência, de técnicos ou consultores especialmente qualificados em diversas áreas do saber e cujo contributo para a compreensão do exacto alcance a conferir à valoração da prova se revele importante”. Deste excerto decorre, como se enfatiza no Acórdão da Relação do Porto de 2012.11.08, que os técnicos têm “a função de contribuir para a compreensão do exacto alcance a conferir à valoração da prova”, ou seja, de concorrer para que a valoração dos meios de prova seja efectuada nas melhores condições de compreensão possíveis, pelo que, “tal como o observador ou os meios de que ele se serve para observar não se confundem com o horizonte observado, o papel destes técnicos é distinto da função dos meios de prova3. E, continua o aresto, “se o processo compreende matéria de facto que envolve questões ou dificuldades de natureza técnica cuja solução depende de conhecimentos especiais que não estão ao alcance do tribunal colocam-se sempre dois problemas distintos: o apuramento dessa matéria de facto e a capacidade do juiz para apreender a complexidade dessa matéria de facto, sem o que nunca lhe será possível apurá-la e julgá-la convenientemente. Ao primeiro desses problemas dá resposta a prova pericial. Ao segundo dá resposta o parecer técnico ou a assistência técnica na audiência”.
Por isso a jurisprudência defende que o entendimento do técnico pode ser usado na fundamentação da decisão, mas apenas desde que “os factos em questão resultem dos meios de prova concretamente produzidos no processo documental, testemunhal ou pericial e não apenas porque o técnico o afirmou”, o que parte exactamente do pressuposto de que a intervenção do técnico não tem valor como meio de prova4.
Ou seja, o técnico que assiste à audiência final e aí presta os esclarecimentos necessários ao juiz não é agente de prova, mas mero auxiliar do juiz no seu papel de observação e apreciação da prova. Por conseguinte, não substitui a prova pericial, nem tem o valor à mesma inerente5.
É certo que, quer a intervenção do técnico, quer a do perito, no processo civil, surge em situações em que são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (cfr. o artigo 388.º do Código Civil e vg. o artigo 601.º do Código de Processo Civil).
Mas este mesmo substracto material – situar-se a matéria de facto a apreciar em áreas de conhecimento específicas, para cuja apreensão e compreensão são necessários conhecimentos especializados – não colide com a distinta posição processual do perito, que é um agente da prova e apreende ou capta os factos em averiguação, através da inspecção e averiguações necessárias (artigo 480.º do CPC), e do técnico, que é um auxiliar da Justiça, prestando assistência ao juiz durante a produção da prova, vg. na audiência final, esclarecendo-o na percepção e compreensão de questões técnicas para as quais o juiz não tem a necessária preparação.
Não obstante a coincidência das situações materiais em que se prevê a possibilidade da prova pericial e da assistência técnica (em causas em que se suscitem questões cuja resolução envolve a necessidade de conhecimentos técnicos não acessíveis ao homem médio), aliada à falta de regulação mais específica da intervenção do técnico e a alguns aspectos do regime que poderão ser menos claros, serem susceptíveis de criar algumas dúvidas quanto ao enquadramento processual da figura do técnico6, a verdade é que o mesmo ocupa no ordenamento processual civil funções distintas das do perito.
O facto de a Mma. Juiz a quo ter de certo modo “solenizado” a intervenção da técnica designada nos presentes autos ao abrigo do artigo 601.º do CPC, praticando alguns actos processuais (como acontece com o juramento) que apenas se encontram prescritos no regime da prova pericial e designando-a por vezes como “perita”, não é susceptível de alterar a natureza e objectivos da intervenção processual da Dra. CC nos presentes autos.
A mesma foi determinada ao abrigo do preceituado no artigo 601.º do Código de Processo Civil e em conformidade com o nele estabelecido, a fim de “assistir ao julgamento, assessorando o tribunal na produção da prova relativa a factualidade respeitante à situação clínica do Sinistrado e nexo de causalidade entre esta, a situação laboral e o suicídio” e para “elaborar parecer” uma vez finda a produção da prova.
Precisada a posição processual da técnica nomeada, é patente a conclusão de que a pretensão dos recorrentes de realização de uma “segunda perícia” carece de fundamento legal.
Em primeiro lugar, não está prevista na lei a possibilidade de haver a designação de um técnico novo quando o parecer ou relatório do primeiro revelar “deficiências, obscuridades, contradições e omissões”, inexistindo para a assistência técnica normas similares às regras constantes dos artigos 487.º a 489.º do Código de Processo Civil.
Em segundo lugar, deve atentar-se em que – ao invés do que poderá suceder com outros actos processuais prescritos para a prova pericial que neste âmbito podem ser adoptados, sem que se desvirtue a função e modo de intervenção processual do técnico – a realização de uma segunda “perícia” no âmbito da assistência técnica prevista no artigo 601.º do Código de Processo Civil é absolutamente desadequada a esta figura na medida em que a mesma pressupõe que a “pessoa competente” (o técnico) “assista à audiência final e aí preste os esclarecimento necessários”, o que, por si só, uma vez que a audiência final terminou, torna materialmente impossível que se replique, com outro técnico, a referida assistência àquela.
Não vemos que uma tal assistência possa ser prestada perante a gravação da audiência a que se procedeu, na medida em que o técnico pode entender, por exemplo, sugerir ao juiz a colocação de questões cujo relevo este não tenha alcançado, ou uma qualquer outra intervenção que repute pertinente, auxílio este que, perante uma gravação, não pode simplesmente ser prestado.
Deve acrescentar-se que, mesmo perspectivando a hipótese – que, salvo o devido respeito, não se verifica – de encarar a assistência técnica que teve lugar nestes autos como um exame pericial, se nos afiguram acertadas as observações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto no sentido de que a impossibilidade de levar a cabo um exame ao sinistrado, conjugada com a escassez da documentação clínica referente ao estado emocional do mesmo à data dos factos, não permite supor que da realização do pretendido exame pericial advenha qualquer elemento probatório cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir.
Pelo que, tendo sido já realizada a prova requerida pelas partes, a par da pertinente intervenção oficiosa da Mma. Juiz a quo, ordenar agora uma tal actividade processual que, de antemão, se reputa de inconsequente, contrariaria a proibição legal da prática no processo de actos inúteis que emerge do artigo 130.º do Código de Processo Civil.
Nesta conformidade, cabe negar provimento à apelação.
As custas do recurso deverão ser suportadas pelos recorrentes, que nele decaíram, restringindo-se às custas de parte (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
4. Decisão
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Lisboa, 24 de Setembro de 2025
Maria José Costa Pinto
Francisca Mendes
Leopoldo Soares
_______________________________________________________
1. Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
2. In Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Coimbra, 2018, pp. 682 e 312.
3. Processo n.º 6439/07.3TBMTS.P1, in www.dgsi.pt.
4. Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 2015.04.23, proc. 163/15, in www.dgsi.pt.
5. Vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Novembro de 2003, in Colectânea de Jurisprudência, 2003, tomo 5°, p. 19, ainda que versando sobre o artigo 649.º do Código de Processo Civil revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que continha disciplina idêntica ao atual artigo 601.º. Segundo este aresto, o parecer que o técnico emita no âmbito do estipulado pelo artigo 601.° do CPC está subtraído à disciplina da prova pericial.
6. Vide, com muito interesse, Maria José Capelo, in “A Enigmática Figura Do Técnico No Código De Processo Civil", Separata de Estudos Em Homenagem Ao Prof. Doutor José Lebre De Freitas, Coimbra, 2013, Vol. I, pp. 1045 e ss.