Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO | ||
Descritores: | SECÇÕES CRIMINAIS APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO COMPETÊNCIA PARA CONHECER | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/10/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE A RECLAMAÇÃO | ||
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Sumário: | Compete às Secções Criminais e não à Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação apreciar e decidir o recurso da decisão do Juiz de Instrução Criminal que declarou a nulidade da apreensão de correspondência electrónica efectuada pela Autoridade da Concorrência. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO VODAFONE PORTUGAL - COMUNICAÇÕES PESSOAIS, SA arguiu a irregularidade da busca efectuada pela AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA (AdC) nas suas instalações, alegando a irregularidade do despacho do Ministério Público (MP) que suportou tal busca. Por decisão proferida pelo Juiz de Instrução Criminal de Lisboa (JIC), foi declarada a nulidade da apreensão dos e-mails recolhidos na sede da visada Vodafone. Inconformada com tal decisão, dela veio a Autoridade da Concorrência interpôr recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, requerendo a revogação do despacho proferido pelo Tribunal a quo. Por decisão sumária proferida pela Relatora em 9/12/2021 foi declarada a incompetência desta Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão para apreciar e decidir o presente recurso, sendo determinada, após trânsito, a distribuição dos autos às secções criminais deste Tribunal da Relação de Lisboa. Veio então a Recorrente, por requerimento de 6/1/2022, reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto nos artigos 417º/6 a) e 8 do Código de Processo Penal ex vi art. 41º do RGCO e art. 83º da Lei nº 19/2012, de 8 de Maio, alegando, em síntese, que: - O Juiz de Instrução Criminal não é competente para apreciar a validade dos mandados emitidos, nos presentes autos de contraordenação, pelo Ministério Público, nos termos do artigo 21.º da Lei da Concorrência. - Pese embora o TCRS não possa controlar a validade dos mandados de uma autoridade judiciária distinta, este tem vindo a ser sucessivamente convocado a apreciar a forma como a AdC executa esses mesmos mandados e, no recurso de impugnação judicial de decisão final proferida pela AdC, tem controlo de plena jurisdição que lhe permite sim apreciar a validade da prova apreendida e a sua respetiva autorização (cf. artigos 87.º e 88.º da Lei da Concorrência). - A circunstância de determinada visada suscitar – erradamente – junto do Juiz de Instrução Criminal a validade da autorização conferida pelo Ministério Público e da prova ao seu abrigo apreendida e de este se ter declarado competente e se ter pronunciado, não tem a virtualidade de afastar aquele que foi o propósito do legislador com a criação desta Secção. - Existe uma lacuna na Lei da Organização Judiciária quanto a estas situações, porquanto o legislador não fez constar expressamente a que secção deveriam ser distribuídas as decisões proferidas pelo Juiz de Instrução Criminal em matéria de direito da concorrência. - Tal lacuna deverá ser integrada nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do Código Civil, segundo o qual “[o]s casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.” - Apesar de ausência de norma expressa que atribua à PICRS as decisões provenientes do Juiz de Instrução Criminal em matéria do direito contraordenacional da concorrência, a integração desta lacuna apenas pode ser feita no sentido de se estender à esfera de competências da PICRS aquelas decisões proferidas pelo Tribunal de Instrução Criminal. Conclui requerendo que [transcrição]: a. Se dignem a declarar a competência material da Secção de Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão para a apreciação do recurso interposto, revogando a Decisão Sumária reclamada; b. Em caso de procedência da presente reclamação, se dignem a atribuir o efeito suspensivo aos recursos interpostos pela Autoridade da Concorrência e pelo Ministério Público. * Notificada, a Vodafone respondeu sustentando, em síntese, ser inadmissível a discussão nesta sede sobre o efeito do recurso e sobre a suposta possibilidade de apreensão de correio electrónico regulada de forma expressa pela Lei da Concorrência; considerando ser inadmissível a presente reclamação; e subsidiariamente, pugnando pela improcedência da reclamação e consequente manutenção da decisão reclamada, ordenando-se a distribuição dos autos de recurso a secção criminal deste Tribunal da Relação. * Colhidos os vistos legais, cumpre reapreciar, agora em conferência, se cabe a esta Secção PICRS a competência para decidir do recurso interposto pela AdC do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, que declarou a nulidade da apreensão dos e-mails recolhidos na sede da Vodafone. * II. FUNDAMENTAÇÃO Veio a AdC reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 417º/6 a) e 8 do Código de Processo Penal, da decisão sumária proferida em 9/12/2021, que declarou a incompetência desta Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão para apreciação do recurso. Contra a admissibilidade da reclamação insurge-se a recorrida Vodafone alegando, em síntese, que a decisão reclamada não obstou ao conhecimento do recurso, como a norma exige. Não assiste razão à recorrida. Com efeito, a decisão sumária proferida em 9/12/2021, ao apreciar a questão da competência desta Secção PICRS declarando-a incompetente, obstou efectivamente ao conhecimento por esta Secção do recurso em causa. Assim sendo, estamos no âmbito da situação prevista na alínea a) do nº 6 do art. 417º do CPP, de cujo despacho cabe reclamação para a conferência, nos termos do nº 8 do mesmo preceito. Mostram-se despiciendas maiores considerações para se concluir pela admissibilidade da presente reclamação. * Cumpre agora reapreciar a questão da competência que foi objecto da decisão sumária posta em crise, sendo certo que a reclamação não poderá incidir sobre questões que não tenham sido apreciadas naquela decisão sumária, nomeadamente aquelas que constituem o objecto do recurso (da decisão do JIC). A reclamação apresentada assenta no argumento essencial de que “existe uma lacuna na Lei da Organização Judiciária quanto a estas situações, porquanto o legislador não fez constar expressamente a que secção deveriam ser distribuídas as decisões proferidas pelo Juiz de Instrução Criminal em matéria de direito da concorrência”, concluindo então que a lacuna deve ser integrada por analogia, estendendo à esfera de competências da PICRS aquelas decisões proferidas pelo JIC. Nenhuma razão assiste à reclamante. Senão vejamos. Dispõe o art. 67º/5 da LOSJ (na redacção introduzida pela Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho) que: “É criada no tribunal da Relação de Lisboa uma secção em matéria de propriedade intelectual e de concorrência, regulação e supervisão, à qual são distribuídas as causas previstas nos artigos 111.º e 112.º, e que acresce às secções instaladas nesse tribunal”. Por seu turno, estabelece o art. 112º do mesmo diploma, sobre a competência do TCRS, que: 1 - Compete ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas ao recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contraordenação legalmente susceptíveis de impugnação: a) Da Autoridade da Concorrência (AdC); b) Da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT); c) Da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC); d) Da Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM); e) Da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF); f) Do Banco de Portugal (BP); g) Da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM); h) Da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC); i) Da Entidade Reguladora da Saúde (ERS); j) Da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR); k) Da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). 2 - Compete ainda ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução: a) Das decisões da AdC proferidas em procedimentos administrativos a que se refere o regime jurídico da concorrência, bem como da decisão ministerial prevista no artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro; b) Das demais decisões da AdC que admitam recurso, nos termos previstos no regime jurídico da concorrência. Extrai-se cristalinamente de tais preceitos que à Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão compete, na parte que agora importa considerar (sem atentar nas decisões do Tribunal da Propriedade Intelectual a que se reporta o art. 111º do LOSJ), decidir dos recursos das decisões proferidas pelo TRCS que apreciem as decisões das entidades reguladoras elencadas no supra citado art. 112º, aí se incluindo as decisões da AdC. Por outras palavras, esta secção (PICRS) “écompetente sempre que o sejam o Tribunal da Propriedade Intelectual ou o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, sendo mandatório daqui concluir, por razões relativas à lógica formal, à construção gramatical e à inserção sistemática dos preceitos referidos que, se os processos aqui objecto de decisão em segunda instância são os indicados naqueles números, então tais processos são, exclusivamente, os provenientes desse tribunais” (cf. decisão sumária proferida no âmbito do P. nº 10626/18.0T9LSB-B.L1). Em consonância com a LOSJ, o Regime Jurídico da Concorrência (RJC - aprovado pela Lei nº 19/2012, de 8 de Maio, objecto de sucessivas alterações v.g. Lei nº 23/2018 de 5 de Junho) veio estabelecer um conjunto de regras sobre os recursos judiciais. Vejamos. Artigo 84.º Recurso, tribunal competente e efeitos do recurso 1 - Cabe recurso das decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência cuja irrecorribilidade não estiver expressamente prevista na presente lei. 2 - Não é admissível recurso de decisões de mero expediente e de decisões de arquivamento, com ou sem imposição de condições. 3 - Das decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência cabe recurso para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão. 4 - O recurso tem efeito meramente devolutivo, exceto no que respeita a decisões que apliquem medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º, cujo efeito é suspensivo. 5 - No caso de decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, o visado pode requerer, ao interpor o recurso, que o mesmo tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução em substituição, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução no prazo fixado pelo tribunal. Artigo85.º Recurso de decisões interlocutórias 1 - Interposto recurso de uma decisão interlocutória da Autoridade da Concorrência, o requerimento é remetido ao Ministério Público no prazo de 20 dias úteis, com indicação do número de processo na fase organicamente administrativa. 2 - O requerimento é acompanhado de quaisquer elementos ou informações que a Autoridade da Concorrência considere relevantes para a decisão do recurso, podendo ser juntas alegações. 3 - Formam um único processo judicial os recursos de decisões interlocutórias da Autoridade da Concorrência proferidas no mesmo processo na fase organicamente administrativa. Das normas transcritas resulta claro que das decisões da AdC cabe recurso para o TRCS e das sentenças e despachos por este proferidos cabe recurso para o Tribunal da Relação competente (art. 89º/1 do RJC). Transpondo tais considerações para o caso vertente, é forçoso concluir que a decisão recorrida não se integra em qualquer dos casos previstos nas normas de competência acima analisadas. Desde logo, a decisão recorrida é proferida por juiz de instrução criminal e não pelo TRCS, sendo este o competente para se pronunciar sobre as decisões das entidades reguladoras (v.g. Autoridade da Concorrência). Por outra banda, a decisão objecto de recurso (interposto pela AdC) declara a nulidade da apreensão de correio electrónico, apreensão efectuada pela AdC no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 18º/1 c), em execução de mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, em conformidade com o disposto no art. 18º/2 e 21º todos do Regime Jurídico da Concorrência. Quer dizer, não se trata de recurso de decisão da AdC e não estamos perante matéria de direito da concorrência, mas sim matéria criminal e processual penal. A matéria a que se reporta o despacho do JIC objecto do recurso destes autos, relativa à apreensão de correio electrónico, constitui matéria da competência dos Juízos de instrução criminal (art. 119º da LOSJ). Consequentemente, o recurso dessas decisões compete às secções criminais do Tribunal da Relação (artigos 67º/3 e 73º a) do LOSJ). Não colhe, portanto, o argumento da reclamante de que existe lacuna e logo a competência desta Secção PICRS seria encontrada mediante a integração da lacuna recorrendo a norma existente para casos análogos. Na verdade, a competência do tribunal define-se em função das regras de competência estabelecidas e não por analogia. E as regras da competência estão reguladas nos preceitos supra indicados, não competindo ao decisor alterar tais normas com recurso à analogia. Analisando o regime previsto nos aludidos arts. 18º/2 e 21º d RJC, escreveu-se no acórdão da 3ª Secção (criminal) deste Tribunal da Relação de Lisboa (P. nº18/19.0YUSTR-A, relativo a matéria de apreensão de correio electrónico pela AdC suportado por mandados de busca autorizados pelo MP) que: “Estas normas, ao atribuírem competências ao MP, saíram do quadro de competências e controlo previstas na lei e cujo padrão está corporizado pela AdC e pelo TRCS. Nestes termos, podemos afirmar que quando se atribui poderes de intervenção ao MP, no âmbito deste regime contraordenacional, enquanto autoridade judiciária competente, está-se a traçar um quadro equivalente à função que o MP exerce na fase de inquérito do processo penal (art. 1º b) e 263º do CPP). Ou seja, uma actuação organicamente enquadrada dentro do CPP, onde devem ser colocadas todas as questões relacionadas com a intervenção do MP no âmbito contraordenacional da concorrência, estando portanto excluída a sua apreciação e conhecimento por parte do TCRS”. Mais se sustentou em tal aresto que: “A aplicação da norma de competência do art. 112º/2 b) da LOSJ aprovada pela Lei nº 62/2013, com referência ao art. 85º do NRJC, dirige-se a um acto decisório procedimental da autoridade administrativa, sequente das diligências probatórias, mas com elas não se confunde”. Em casos semelhantes ao presente, vejam-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos proferidos pelas secções criminais deste Tribunal da Relação de Lisboa: acórdão proferido em 14/4/2020 no âmbito do P. nº 29000/18.2T8LSB.L1 da 5ª secção; e acórdão proferido em 24/11/2021 no âmbito do P. nº 18/19.0YUSTR-C.L2 da 3ª secção. Do que se vem expondo resulta insofismável que o caso vertente está excluído da competência material do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, e, por conseguinte, esta secção PICRS carece de competência para a apreciação do recurso apresentado. Impõe-se, pois, concluir pela incompetência desta Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão para apreciar e decidir o recurso interposto pela AdC do despacho do JIC. Atento o exposto, mostra-se prejudicada a apreciação da questão do efeito do recurso, deduzida para o caso de procedência da reclamação e que, aliás, não foi nem podia ser objecto da decisão sumária reclamada. Improcede, assim, a reclamação. * III. DECISÃO Pelo exposto, acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa em: - Julgar improcedente a reclamação apresentada e consequentemente, declarar a incompetência desta Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão para apreciar e decidir o presente recurso, por ser da competência das Secções Criminais. Notifique. * Custas do incidente pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2UC. Após trânsito, DN para distribuição dos autos às Secções Criminais deste Tribunal da Relação de Lisboa. Notifique. Lisboa, 10 de Fevereiro de 2022 Ana Mónica Mendonça Pavão Maria da Luz Teles Menezes de Seabra |