Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1757/23.6Y5LSB.L1-9
Relator: ISABEL MARIA TROCADO MONTEIRO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
RECINTO DESPORTIVO
PRINCÍPIO DA CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Ainda que inovatoriamente alegadas as questões suscitadas no âmbito do recurso interposto para esta Relação, atenta a postura confessória assumida na impugnação da decisão da autoridade administrativa, que o condenou o recorrente em coima e em sanção acessória de interdição de entrada em recinto desportivo, são aquelas questões de conhecer em obediência ao Acórdão nº 3/2019, DR-124 SÉRIE Ide 2019-07-02, na interpretação do artigo 75º, do R.G.C.C.
II. Os requisitos estabelecidos no artigo 58º, do Regime Geral de Contraordenações e Coimas prende-se com a observância do nº 10, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa e assim com a necessidade de assegurar ao acoimado o exercício do direito de defesa, que pressupõe, o conhecimento pelo visado dos factos que lhe são imputados, aqui se incluindo quer os factos objetivos ou exteriores, quer os factos subjetivos ou interiores; nos termos do artigo 50º, do R.G.C.C.
III. O princípio da culpa, tem plena vigência no direito contraordenacional, pois só pode existir responsabilidade contraordenacional com dolo ou negligência, artigo 8º, nº 1, do R.G.C.C. ainda que, neste domínio com maior flexibilidade dogmática e probatória, do que no âmbito penal, atenta a relação com o parâmetro normativo do papel social, densificado pelo conjunto de deveres, práticas, usos, que regulam o exercício de cada sector ou a atividade, que se espera que cada particular adote e cumpra.
IV. No plano da imputação subjetiva, em particular na negligência, o papel social fornece o padrão do cuidado, cujo incumprimento constitui o desvalor da ação. No plano da culpa, a censura tem o sentido de uma admonição ou reprimenda social de um mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas e o conteúdo ou objeto da censura é o desempenho defeituoso do papel, ou seja, o desvio relativamente ao procedimento-padrão.
V. Resulta confessado que o recorrente estava no interior do recinto desportivo, no controlo de acessos, junto ao Museu Benfica, tendo ocultando no seu corpo o material pirotécnico, quando apercebendo-se que iria ser revistado, saiu para tentar a entrada por outra porta do estádio, sem revista, pelo que, revelava-se introduzido no recinto desportivo, o material pirotécnico que consigo transportava.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência os Juízes Desembargadores, subscritores, da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
1. No dia 19 de março de 2024, foi proferida sentença na primeira instância, que terminou com o seguinte dispositivo:
“IV. DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o recurso de contra-ordenação e em consequência:
A) Mantenho a decisão administrativa que condenou a recorrente AA, pela prática contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 39.º, n.º 1, alínea g) e 40.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, numa coima no montante de €1.000 (mil euros), reduzindo a sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos para o período de 1 (um) ano.
B) Condeno AA no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta.” (…)
*
2. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso da decisão, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos: [transcrição]
“Pelo exposto formulam-se as seguintes CONCLUSÕES:
A) Da notificação não constam quaisquer elementos, quer de facto, quer de direito, relativos ao tipo subjetivo, e bem assim os critérios legais para a determinação da medida da coima ou da sanção acessória.
B) Sendo a entidade instrutora a mesma que julga, o Arguido deverá conhecer o sentido provável da decisão, sob pena de violação dos seus legítimos direitos de audiência e defesa, consagrados no art.º 50.º do RGCO e no art.º 32.º, n.º 10 da Constituição, pelo que, sob pena de nulidade de todo o processado, deve ser ordenado que seja efetuada nova notificação, se digne ordenar que nesta se indique a medida da coima e da sanção acessória provavelmente aplicável em função da instrução realizada.
C) Como resulta da decisão proferida nos presentes autos de contraordenação, e tal como foi acolhido pela Entidade Autuante, não se conclui que o Arguido tenha agido com dolo.
D) Ainda que o Arguido tivesse agido nos termos descritos no auto, o que se contesta, isso, nas circunstâncias concretas não constituiria perigo para ninguém, pois não houve de facto, em momento algum, perigo concreto para outrem, nem para coisa alguma. Muito menos foram causados danos a alguém ou a coisa alguma.
E) Pelo que resulta da decisão, estaremos em presença de uma “infração de perigo abstracto”.
F) As normas que preveem “infrações de perigo abstrato” sendo, portanto, inconstitucionais, deverão ser julgadas inaplicáveis, dando assim cumprimento ao disposto no art.º 204.º da Constituição da República Portuguesa.
G) No caso concreto, a alínea g) do n.º 1 do artigo 39º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que considera haver contraordenação punível e de natureza grave, sempre que se verifique a introdução ou utilização de substâncias ou engenhos pirotécnicos não é aplicável ao caso concreto, uma vez que o arguido não chegou a entrar em qualquer recinto desportivo munido de tais artefactos e/ou, sequer, os introduziu ou utilizo, razão pela qual existe uma presunção inelidível de existência de perigo concreto e de culpa na criação desse perigo.
H) De acordo com o art.º 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95 de 14 de Setembro, os princípios que regem o processo criminal são aplicáveis ao processo de contraordenação, pelo que deve rejeitar-se liminarmente a exigência de produção de prova negativa em processo contraordenacional, e manter o julgamento de inconstitucionalidade das supra citadas normas da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
I) Da alegada infracção em causa nos autos não resultou qualquer perigo concreto para o pessoas, nem tão pouco o arguido introduziu ou utilizou os objetos referidos na douta sentença (a este ponto vide matéria dada como provada no Ponto C): “(...) quando eram 20H, AA, que se encontrava a aceder ao complexo desportivo, mais concretamente no controle de acessos junto ao museu Benfica (...) ao verificar que ia ser alvo de revista por parte dos ARD´S de serviço naquele local, tentou fugir em direção à porta 9, para aceder ao recinto desportivo sem ser alvo de revista”
J) Dúvidas não restam que o arguido, quando foi intercetado, ainda não se encontrava no interior do recinto desportivo, não ultrapassou os torniquetes de acesso ao recinto desportivo e, como tal, não praticou a contraordenação imputada devendo, consequentemente, ser a sentença revogada e substituída por acórdão que o absolva da prática da contraordenação imputada e não o sancione com a coima e a sanção acessória.
Normas Jurídicas violadas: artigo 39º, n.º 1, alínea g) da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, artigo 50º do Código Penal, artigo 2º, nº 2 alínea a) da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, artigo 127º, 128º, n.º 2 e 3 do C.P., .; artigo 32º da CRP, artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Impõem solução diversa:
- uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida, designadamente:
- Toda prova documental junta aos autos.
- E uma correcta apreciação daqueles elementos no cotejo com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas
- A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça.
Em suma:
- Há contradição insanável na fundamentação, entre os factos assentes e entre esses e a decisão (artigo 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.P.)
- Há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto aos factos tendentes à formação da convicção de que o recorrente foi autor dos factos indicados nos artigos A) a G) dos factos provados.
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3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, ou seja, nos termos legais.
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4. O Ministério Público, em 1º instância, apresentou resposta à motivação do recurso, concluindo pela sua improcedência, e onde toma posição a respeito do recurso interposto, pugnando pela manutenção do decidido, sem formular conclusões.
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5. O Ministério Público junto deste Tribunal, apôs visto.
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6. Foi requerida audiência, que foi indeferida no despacho preliminar a que alude o artigo 417º, onde se decidiu que o processo seria decidido em conferência, após os vistos legais e respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
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7. Questões a decidir
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V). e a jurisprudência (como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1) são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal superior perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o seu thema decidendum:
- insuficiência da matéria de facto provada, ausência na notificação de quaisquer elementos, de facto e de direito, desde logo relativos ao tipo subjetivo do ilícito, bem como dos critérios legais para determinação da medida da coima ou da sanção acessória, falta de notificação do sentido da decisão, e violação do disposto nos artigos 50º, e 58º, ambos do RGCC e do artigo 32º, nº 10 da CRP, que faz inquinar todo o processado de nulidade, devendo ordenar-se nova notificação; o recorrente nas concretas circunstancias em que agiu não criou qualquer perigo concreto para outrem ou para as coisas, pelo que, estando-se perante normas de perigo abstrato, estas são inconstitucionais, devendo ser julgadas não aplicáveis, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 204º, da Constituição da Republica Portuguesa, sendo no caso concreto a alínea g) do nº 1, do art.º 39º, da Lei nº 39/2009 de 30.07, inaplicável ao caso pois o recorrente não chegou a entrar, introduzir ou utilizar, munido dos artefactos apreendidos no recinto desportivo, razão da existência de presunção inelidível da existência de perigo concreto e de culpa na criação de perigo; nos termos do artigo 41º do R.G.C. C devem aplicar-se no âmbito do processo de contraordenação os princípio do direito processual penal, pelo que deve rejeitar-se a exigência de produção de prova negativa em processo de contraordenação, e manter o julgamento de inconstitucionalidade das normas supra citadas da Lei 39/2009, de 30.07; a falta de perigo concreto pois o recorrente em face dos factos ainda não tinha acedido ao recinto desportivo, não ultrapassou os torniquetes, não cometeu a infração, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por outra que absolva o recorrente da contraordenação;
- contradição insanável entre a fundamentação e os factos assentes, artigo 410, nº 2 b) do C.P.P.
- erro de julgamento na valoração das provas e por falta de provas.
- suspensão da coima aplicada.
- deve ser aplicado o perdão à coima da Lei 38-A/2023 de 2.08, no seu artigo 2º, nº2, e artigos 127 e 128, ambos do Código Penal.
Em face do que mostram-se violados as normas dos artigo 39º, nº 1, al. g) da lei 39/2009, de 30.07, 50º, do Código Penal; 2º, nº2, da Lei 38-A/2023 de 2.08, artigo 32º, da CRP e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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II – OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
Perante as questões suscitadas no recurso torna-se essencial, para a devida apreciação do seu mérito, recordar a fundamentação em matéria de facto vertida na decisão recorrida:
“II. FUNDAMENTAÇÃO
1. FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resultam demonstrados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
A) No dia 23 de Agosto de 2022, realizou-se no Estádio da Luz, localizado na Av. Eusébio da Silva Ferreira, em Lisboa, um jogo de futebol entre as equipas do Sport Lisboa e Benfica e do Dinamo de Kiev, com inicio previsto para as 20h00, a contar para o Play-Off da Liga dos Campeões, 2.ª Mão, Época Desportiva 2022/2023;
B) A Polícia de Segurança Pública efetuou o policiamento do evento desportivo.
C) Quando eram 20H, AA, que se encontrava a aceder ao Complexo Desportivo, mais concretamente no controle de acessos junto ao Museu Benfica, ao verificar que ia ser alvo de revista por parte dos ARD'S (Assistentes de Recinto Desportivo) de serviço naquele local, tentou fugir em direcção à Porta 9, para aceder ao Recinto Desportivo sem ser alvo de revista, sendo seguido pelos referidos ARD’s, facto que chamou a atenção da equipa policial na qual o Agente autuante estava enquadrado.
D) Na sequência do descrito, o agente autuante deslocou-se na sua direção, vindo a interceptá-lo quando já se encontrava a ser agarrado por um ARD.
E) Efectuada revista pessoal de prevenção e segurança a AA, foi encontrado e apreendido na posse do mesmo, escondidos nas meias e interior dos boxers, os artigos pirotécnicos a seguir indicados: 2 (Dois) Potes de fumo; 1 (Uma) Tacha; 1 (Uma) Flashlight
F) AA é sócio do Sport Lisboa e Benfica (Sócio nº …), tendo RedPass para a Bancada …, Piso Sector …, Fila …, Lugar …, com entrada pela Porta ….
G) AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de introduzir aqueles artefactos pirotécnicos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
1) Que AA tivesse actuado com negligência.
Não resultou provada outra factualidade, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem relevância para a boa decisão da causa.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O tribunal estribou a sua convicção, no que respeita à factualidade julgada provada, no teor dos autos de notícia de fls. 2 e seguintes e 4 e seguintes, do auto de apreensão de fls. 6, da fotografia de fls. 7 e das imagens de fls. 10, conjugados com as alegações da recorrente nas quais não é posta em crise a factualidade demonstrada, sendo que o auto de notícia faz fé do que foi constatado pelos agentes.
A actuação do recorrente, (nascido em nascido a .../.../2001), não se mostra compatível com uma actuação negligente do mesmo, pelo que o facto descrito em 1) não resultou demonstrado.
Do cotejo da prova produzida resultou, pois, demonstrada a factualidade elencada.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta a natureza das questões submetidas no recurso, importa respeitar as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal).
Em processo de contraordenação, o regime de recurso interposto para o Tribunal da Relação de decisões proferidas em primeira instância, deve observar as regras específicas referidas nos artigos 73º a 75º do DL 433/82, de 27/10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14/9 e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12 (Regime Geral das Contraordenações e Coimas doravante R.G.C.C.), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art.º 74º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art.º 41.º, n.º 1, do RGCO.
O Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, como estatui o n.º 1 do artigo 75.º do RGCO, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida” ou “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cf. art.º 75.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO).
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3.1 Da insuficiência da matéria de facto provada, onde o recorrente suscita
a) a nulidade da notificação por ausência de quaisquer elementos, de facto e de direito, relativos ao tipo subjetivo do ilícito, bem como dos critérios legais para determinação da medida da coima ou da sanção acessória, falta de notificação do sentido da decisão, e violação do disposto nos artigos 50º, e 58º, ambos do RGCC e do artigo 32º, nº 10 da CRP, devendo ordenar-se nova notificação;
b) o recorrente nas concretas circunstâncias em que agiu não criou qualquer perigo concreto para outrem ou para as coisas, pelo que, estando-se perante normas de perigo abstrato, estas são inconstitucionais, devendo ser julgadas não aplicáveis, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 204º, da Constituição da Republica Portuguesa, sendo no caso concreto a alínea g) do nº 1, do art.º 39º, da Lei nº 39/2009 de 30.07, inaplicável ao caso pois o recorrente não chegou a entrar, introduzir ou utilizar, munido dos artefactos apreendidos no recinto desportivo, razão da existência de presunção inelidível da existência de perigo concreto e de culpa na criação de perigo;
c) nos termos do artigo 41º do R.G.C. C devem aplicar-se no âmbito do processo de contraordenação os princípio do direito processual penal, pelo que, deve rejeitar-se a exigência de produção de prova negativa em processo de contraordenação, e manter o julgamento de inconstitucionalidade das normas supra citadas da Lei 39/2009, de 30.07; a falta de perigo concreto, pois o recorrente em face dos factos ainda não tinha acedido ao recinto desportivo, não ultrapassou os torniquetes, não cometeu a infração, pelo que, a sentença deve ser revogada e substituída por outra que absolva o recorrente da contraordenação.
Em resposta ao recurso, apenas o Ministério Público se pronunciou a esse respeito, pugnando pela inexistência de tal insuficiência na decisão recorrida.
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A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do art.º 410º, nº 2, do Código de Processo Penal é aquela que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. Se tal sucedeu, então o tribunal de julgamento terá deixado de considerar um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o "thema probandum".
Recaindo a sentença sobre a decisão da autoridade administrativa que foi alvo de impugnação pelo recorrente, este no âmbito da sua defesa concluiu não haver dúvida ter praticado os factos imputados na sua vertente objetiva e subjetiva pugnando, todavia, que se qualifique o aludido comportamento como negligente.
A este respeito, a decisão recorrida não sufragou a compatibilidade do comportamento empreendido e aceite pelo recorrente, com uma postura de violação de um dever de cuidado (negligente), daí a não prova desta alegação.
No exercício do seu direito de defesa, o recorrente mais declarou o seu arrependimento, invocou a sua juventude, 21 anos, ser influenciável, ter bom comportamento anterior, não ter condenações anteriores, não ter retirado benefícios do facto, estar a iniciar estudos no ensino superior e trabalhar em part-time, para financiar os estudos.
Em face desta argumentação pugnou o recorrente pela substituição da coima por admoestação e pela suspensão da sanção acessória de interdição de entrada em recintos desportivos, que lhe foi aplicada, por 12 meses, por igual período de tempo.
Assim, estando delimitada a defesa apresentada pelo recorrente, a decisão recorrida apreciou não apenas os factos imputados pela autoridade administrativa, como os trazidos pela defesa do recorrente, nada omitindo, pois o recorrente não colocou em causa os factos imputados, pugnando apenas por um grau inferior de culpa, (o que foi julgado incompatível com os factos objetivos aceites, pelo recorrente), que se mostravam alicerçados na demais prova documental junta com a decisão administrativa, de notícia de fls. 2 e ss. e 4 e ss, que faz fé em juízo, o auto de apreensão de fls. 6, o registo fotográfico de fls. 7 e 10; e, bem assim, do teor das declarações do recorrente de fls. 52-63, bem como que o recorrente nasceu em .../.../2001, concluindo pela demonstração da factualidade elencada de A) a G) dos factos assentes.
Em face do exposto, e ainda que inovatoriamente alegado o vertido nas alíneas supra indicadas de a) a c) ( constantes das conclusões A a J) uma vez que sobre tais questões a decisão recorrida, não se pronunciou, em obediência ao Acórdão nº 3/2019, DR-124 SÉRIE Ide 2019-07-02, na interpretação do artigo 75º, do R.G.C.C cumpre apreciar e decidir:
Dispõe o art.º 1º do Regime Geral das Contraordenações (doravante RGCO) que, constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.
Prevê o art.º 58º do RGCO, os requisitos da decisão administrativa, na parte em que agora releva, devendo a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
O estabelecimento destes requisitos, no que à decisão administrativa condenatória respeita, prende-se com a necessidade de, em observância do comando previsto no nº 10 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, assegurar ao coimado o exercício efetivo do direito de defesa.
Por sua vez, estabelece o art.º 8º, nº 1 do R.G.C.C que, só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência, não sendo, pois, possível, a punição do agente pela prática de uma contraordenação, independentemente da censurabilidade do facto, não podendo existir responsabilidade contraordenacional sem culpa, o que vale dizer que o princípio da culpa tem plena vigência no direito de mera ordenação social.
Porém, este princípio não assume no Direito das Contraordenações a densidade que tem no Direito Penal, tendo aqui uma maior flexibilidade dogmática e probatória - cf. Augusto Silva Dias, in Direito das Contraordenações, 2018, Almedina, pág. 65.
Para esta flexibilidade, continua o autor citado, concorre a circunstância de o parâmetro normativo no Direito das Contraordenações ser constituído pelo papel social: no centro da imputação subjetiva e da censura estão as representações, procedimentos e comportamentos típicos do papel em cada sector da atividade económica e social: o empresário, o contribuinte, o condutor, o intermediário financeiro, o espetador etc., diligentes e criteriosos. O papel é densificado mediante o conjunto de deveres, práticas e usos que regulam o exercício de cada sector de actividade e se espera que cada participante cumpra ou adote. No plano da imputação subjetiva, em particular na negligência, o papel fornece o padrão de cuidado cujo incumprimento constitui o desvalor da ação, que no caso nem sequer se coloca, pois, o ilícito foi praticado com dolo, isto é, a consciência e a intenção da prática do ilícito contraordenacional. No plano da culpa, a censura tem o sentido de uma admonição ou reprimenda social, de um mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas e o conteúdo ou objeto da censura é o desempenho defeituoso do papel, ou seja, o desvio relativamente ao procedimento-padrão.
Como é sabido, o R.G.C.C não contém a definição de dolo e de negligência, havendo que lançar mão das definições contidas no Cód. Penal - art.º 14º e 15º - consistindo o dolo no conhecimento e vontade de praticar o facto descrito na norma que prevê a contraordenação e a negligência na omissão do cuidado devido, que acarreta a realização do facto descrito naquela norma.
Por isso, devem ter-se por verificados estes requisitos quando as indicações constantes da decisão bastem para permitir ao arguido o exercício da defesa (cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 5ª Edição, 2009, Vislis, Editores, pág. 454).
O exercício do direito de defesa pressupõe, desde logo e além do mais, o conhecimento pelo visado dos factos que lhe são imputados, aqui se incluindo quer os factos objetivos ou exteriores, quer os factos subjetivos ou interiores.
Todos eles devem, portanto, constar da decisão sob pena de nela (decisão) não ser imputada ao arguido, uma “completa” contraordenação, não sendo permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre – art.º 50º do RGCO.
In casu, o recorrente foi notificado nos termos que constam dos autos, com a entrega dos autos de notícia e cópias dos restantes anexos que deram origem aos presentes autos.
Analisando tal documentação, cumpre dizer que, atento o carácter sintético da narração dos factos (que nesta sede se concede), dos mesmos resultam a infração que está a ser imputada ao aqui recorrente, afigurando-se perfeitamente percetível e cognoscível as notificações realizadas.
De facto, tenha-se presente que qualquer homem/mulher médio(a) ao ler os autos de notícia e respetivos anexos, bem como, das notificações consegue extrair claramente o tipo de ilícito que lhe está a ser imputado.
Na verdade, nos autos de notícia são descritos os factos concretos subjacentes ao ilícito em causa, e das notificações realizadas constam todos os elementos obrigatórios nos termos legais (art.º 243º do Cód. de Processo Penal), donde se extrai, claramente, o que é imputado ao recorrente.
Ora, a nulidade por falta do exercício do direito de defesa implica que ao visado não lhe tenham sido fornecidos todos os elementos necessários para que este fique a conhecer os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito.
Não é evidentemente o caso, porquanto, para além de tais elementos terem sido efetivamente comunicados ao arguido, no recurso interposto este admitiu a prática dos factos, declarando-se arrependido, do que se conclui que compreendeu, perfeitamente, o que lhe estava a ser imputado, improcedendo nesta parte as nulidades invocadas.
Por outro lado, a motivação fáctica da decisão administrativa, não deixa dúvidas quanto ao circunstancialismo de tempo e lugar, os motivos, imputando a título doloso o comportamento “agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de introduzir aqueles artefactos pirotécnicos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” E que aceitou tal factualidade pois através da impugnação apresentada revelou perfeito entendimento dos factos, que lhe foram imputados na decisão administrativa e do título a que o foram assim ficando demonstrado, também por esta via, que a fundamentação da decisão foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa e, portanto, que a mesma observou as exigências do art.º 58º, nº 1 do RGCO.
Assim, considera-se que a descrição factual contida na decisão administrativa – objetiva e subjetiva – é bastante para preencher o tipo objetivo e subjetivo da contraordenação nela imputada, e para permitir, como permitiu, o efetivo exercício do direito de defesa do recorrente, pelo que, com ressalva do respeito devido, não enferma da nulidade invocada.
Acresce resultarem indicadas as normas que punem tal comportamento ilícito, os fundamentos da decisão, a coima e sanção acessória, bem como a possibilidade do seu pagamento, com as advertências de que o não sendo impugnada a decisão se tornaria definitiva.
Nesta parte o recurso interposto alude a uma contraordenação, com uma moldura ente 2.000 a 3.500€, que não é a que está em causa nos autos, pois a moldura abstrata da coima em causa e comunicada é entre 1.000 a 10.000€ acrescida de sanção acessória de interdição de entrada em recinto desportivo.
O arguido impugnou a decisão administrativa pedindo a substituição da coima por admoestação, pelo que, a decisão não enferma de qualquer das nulidades invocadas nas conclusões A a C.
Por outro lado o tipo contraordenacional em causa, consubstanciador de uma infração de perigo abstrato, não estabelece, de modo algum, uma presunção inilidível de verificação de perigo concreto e de culpa na criação desse perigo, não se vendo, assim, que, as normas ordinárias em destaque, padeçam de inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º da Constituição da República, ou de quaisquer outro preceito legal, e que o recorrente na sua motivação concretiza com normas do Código da Estrada, pelo que, a decisão no que respeita à contraordenação verificada não enferma da inconstitucionalidade invocada nem impõe a absolvição do recorrente, que não se pode ter como uma atuação diligente e no respeito de deveres de cuidado exigidos, não integrativo do ilícito imputado, improcedendo as conclusões D a I.
Nestes termos não resta outra solução, senão considerar improcedente a argumentação do recorrente.
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3.2. Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, artigo 410, nº 2 b) do C.P.P.
Este vício consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Evidencia-se quando um mesmo facto, com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
A respeito deste vício Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., pág. 78 discorrem que ele se traduz numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entes este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.
Não chega, todavia, esta contradição entre factos provados e não provados, revela-se ainda necessário que esta seja insanável, seja de todo em todo irreparável e insuscetível de saneamento”, (vide Acórdão do STJ de 09.07.1998, Proc. nº 262/98).
A este propósito, o Acórdão do STJ, de 23.03.2022, Proc. nº 4/17.4SFPRT.P1.S1,“o vício da contradição insanável da fundamentação – al. b) do n.º 2, do art.º 410.º/CPP – perfectibiliza-se quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008 (Proc. n.º 3453/08-3.ª), “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão…”. Assim, há manifesta contradição porquanto, sobre o mesmo ponto, fazem-se afirmações inconciliáveis que se excluem mutuamente”.
Tal contradição tem que resultar do texto da decisão e sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo.
Revisitada a decisão recorrida constatamos que deu como provada toda a factualidade vertida na decisão administrativa proferida, para a qual se remete.
O Tribunal alicerçou a sua convicção para dar por assentes os factos na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida, concatenada com as regras da normalidade e da experiência comum, valorando, o teor do auto de notícia de fls. 2 e ss. e 4 e ss., o qual faz fé em juízo; o auto de apreensão de fls. 6; o registo fotográfico constante de fls. 7 e 10; o teor das declarações do recorrente, no âmbito das quais não foi impugnada a bondade da factualidade objeto dos presentes autos e dada como provada na sentença recorrida (veja-se o teor de fls. 52-63).
Com efeito, da leitura atenta da fundamentação expendida na douta sentença constata-se que, o Tribunal a quo valorou, (i) o exarado pelos Agentes de Polícia de ... Pública no auto de notícia lavrado, o qual faz fé em juízo; (ii) o teor do auto de apreensão (do qual resulta a apreensão dos dois potes de fumo, 1 tacha e uma flashlight, os quais se encontravam na posse do recorrente, dissimulados no interior das meias e dos boxers que o mesmo à data trajava); (iii) o print fotográfico de fls. 7, 10, dos artigos pirotécnicos apreendidos ao recorrente; e (iv) as declarações do recorrente de fls.53-54, o qual referiu “encontrar-se muito arrependido pelo seu comportamento”, “ser bastante influenciável, fruto da idade”, peticionando, a final, que lhe fosse aplicada uma admoestação.
Destarte, sopesando todo o acervo probatório constante dos autos, ao qual se atribuiu inteira credibilidade e autenticidade, bem andou o Tribunal “a quo” ao dar como provada toda a factualidade vertida na decisão administrativa proferida, pois que, nada mais foi carreado para os autos que infirmasse a versão narrada pela Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto.
Consequentemente, face à fundamentação da sentença recorrida (que justifica, a factualidade assente e identifica as provas valoradas para o efeito e o juízo probatório realizado), outra decisão não se evidencia.
De facto, a factualidade dada como provada subsume-se na qualificação jurídica imputada (a contraordenação prevista nos artigos 39.º/1 alínea g) e 40.º/3 da Lei n.º 39/2009, de 30/07) e não comportaria outra solução que não fosse a manutenção da decisão administrativa tal qual proferida pela Autoridade de Prevenção e Combate à Violência no Desporto, pois que o recorrente como resulta confessado, estava no interior do recinto desportivo, junto ao Museu Benfica, na passagem para o controlo de acessos, tendo ocultando no seu corpo o material pirotécnico, quando apercebendo-se que iria ser revistado, saiu para tentar a entrada por outra porta do estádio, sem revista, pelo que, revelava-se introduzido no recinto desportivo, o material pirotécnico que consigo transportava.
Isso mesmo se revela na decisão recorrida ao ter feito constar ter o recorrente “agido com o propósito concretizado de introduzir os artefactos pirotécnicos”, que se mostra confessado pelo recorrente.
Razão pela qual e analisado o texto da decisão recorrida, verificamos que dele não ressaltam, naquele ou em qualquer outro aspeto, factos, fundamentos ou posições antagónicas ou inconciliáveis, com relevo, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas, simultaneamente, dentro da perspetiva da lógica interna da decisão, no que respeita ao ilícito imputado ao recorrente.
Do que se deixa dito se conclui que, o Tribunal “a quo” não incorreu em qualquer contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou ente a fundamentação e a decisão proferida, considerando-se, assim, que o teor da sentença recorrida não padece de qualquer vício, não merecendo, pois, qualquer reparo.
Improcede, ainda parte da conclusão I, e a demais argumentação expendida, a este propósito.
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3.3. Erro de julgamento na valoração das provas e por falta de provas.
Não se pode olvidar que o Tribunal da Relação em matéria de contraordenações, apenas conhece, em regra, a matéria de direito, como estatui o n.º 1 do artigo 75.º do RGCO, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida” ou “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cf. art.º 75.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO).
Por isso, o erro de julgamento deverá emergir da decisão recorrida em resultado da apreciação da prova, quando a convicção do julgador, (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às mais elementares regras da lógica ou da experiência comum, ou seja, quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Este erro também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 341).
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9ª ed., pág. 81).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Quanto a este vício – erro notório na apreciação da prova – importa referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
O art.º 127º do C.P.P dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Assim, do princípio da livre apreciação da prova, resulta por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal, estando apenas vinculado às regras da experiência comum, e aos princípios estruturantes do processo penal- nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio da presunção da inocência e in dúbio pro reo.
Esta regra concede aos julgadores uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
No entanto, tal não significa apreciação arbitrária ou valoração puramente subjetiva da prova, mas antes apreciação motivada de acordo com critérios lógicos e objetivos em função da razoabilidade e das regras da experiência comum.
Por conseguinte, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
Revisitando a decisão recorrida não surpreendemos o vício alegado, isto é, qualquer contradição ou irrazoabilidade patente a qualquer observador comum, em que o recorrente admitiu os factos assentes, e onde se evidencia o processo de formação da convicção do Tribunal que objetivou, indicando o peso das provas no processo decisório, não resultando daquelas qualquer dúvida, como resulta da fundamentação de facto acima transcrita e para onde nos remetemos.
O Tribunal: (i) discriminou os factos provados e não provados; (ii) enumerou as provas que alicerçaram a delimitação de tais factos; e (iii) escrutinou a bondade e consistência do acervo probatório produzido, do qual se muniu para formar a sua convicção.
E, da análise da fundamentação vertida na Sentença recorrida, afigura-se-nos que o Tribunal a quo não deixou, nomeadamente, quanto aos factos ora impugnados, qualquer margem para dúvidas, explanando a respetiva convicção norteada pelos parâmetros legalmente exigidos.
Como assinala o Ministério Público “cumpre recordar, que: (i) por um lado, o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169.º do Código de Processo Penal e 371.º/1 do Código Civil, se circunscreve aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial (veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/11/2022, relatora Isabel Ferreira de Castro, Proc. n.º 62/17.1PKLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt; e (ii) por outro lado, a força probatória da demais prova documental junta aos autos, é livremente apreciada pelo julgador. Assim reza o princípio da live apreciação da prova vigente no nosso ordenamento jurídico penal e plasmado no art.º 127.º do Código de Processo Penal.”
Daqui resulta, que tendo o recorrente confessado os factos e por via do recurso de impugnação apenas submetido ao tribunal a reapreciação das sanções aplicadas, não se alcança a atual discordância com a decisão proferida, atento o seu contributo para a prova, inexistindo qualquer erro de julgamento.
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3.4. Ainda que não figure das conclusões consta da motivação que o recorrente pretende ver a coima aplicada deve ser suspensa, pontos 79 a 99º, por aplicação do artigo 50º, do Código Penal.
A respeito da dosimetria das sanções aplicadas decidiu-se na decisão recorrida que:
“2. DA DOSIMETRIA DA COIMA
O recorrente vem condenado pela prática contraordenação prevista e punida pelos artigos 39.º, n.º 1, alínea g) e 40.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, numa coima no montante de €1.000 e ainda na sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período de até 2 (dois) anos.
A moldura da coima situa-se entre €1.000 e €10.000.
Tendo a autoridade administrativa aplicado a coima pelo montante de €1.000 (correspondente ao mínimo da moldura), deve manter-se o valor da coima aplicada.
Relativamente à pena acessória prevista no artigo 42.º, n.º1, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (sendo a versão da norma vigente à data da prática dos factos mais favorável ao recorrente ponderado o limite da sanção acessória ser de até 2 anos, enquanto a actual versão situa a moldura da sanção acessória até 3 anos, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, se aplica a redacção vigente à data da prática dos factos), atenta a gravidade e perigosidade da conduta (atento o número e a natureza dos artefactos em causa) mas não olvidando que foi aplicada a sanção pelo seu limite máximo, entende-se reduzir o período de sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos para o período de 1 (um) ano.
Considerando os critérios a que alude o artigo 51.º, do Regime Geral das Contra-ordenações, a gravidade do ilícito e que a culpa do agente é elevada atento o número e a natureza dos artefactos que trazia na sua posse e a perigosidade que os mesmos, no contexto de um evento desportivo, acarreta, entende-se não substituir por admoestação.”
De facto, a gravidade do comportamento assumido justificou a aplicação da coima pelo mínimo legal, 1.000€ e da sanção acessória de interdição de acesso aos recintos, por 1 ano, como aliás já a autoridade administrativa havia aplicado, não sendo de aplicar a admoestação por a contraordenação em apreço não ser leve, e assim não se mostrarem observados os pressupostos do artigo 51º, do R.G.C.C. e a jurisprudência obrigatória, fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n° 6/2018, de 14-11.
Uma vez que a Lei 39/2009 de 30.07, não prevê a possibilidade de suspensão da coima e da sanção e acessória de interdição de entrada no estádio, e não sendo de aplicar subsidariamente o Código Penal, por falta de fundamento legal, improcede a pretensão do recorrente.
Improcede também nesta parte o recurso interposto.
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3.5 Aplicação à coima do perdão à coima da Lei 38-A/2023 de 2.08, no seu artigo 2º, nº 2, e artigos 127 e 128, ambos do Código Penal.
A questão suscitada foi apreciada na sentença recorrida, de onde se fez constar o seguinte:
“Da amnistia
A fls. 80 e seguintes veio o recorrente requerer a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, com o arquivamento dos autos.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido vertido a fls. 82 e seguintes.
Cumpre apreciar e decidir
De acordo com o disposto no artigo 127.º, do Código Penal, “1 - A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”.
Estatui o artigo 128.º, nº 2 e 3, do Código Penal, que “2 - A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança. 3 - O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte.”.
Estatui o artigo 2.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto, que “2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as: a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;”.
Determina o artigo 5.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que “São perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1.000 (euro).”.
Tem vindo a ser entendido que “ao contrário do que se passa com as infrações e sanções penais, no que se refere às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infrações disciplinares, a Lei em apreço aplica-se às infrações praticadas até à meia-noite de dia 18-06-2023, independentemente da idade do agente à data dos respetivos factos.”(1 ) BRITO, Pedro, Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Revista Julgar, Agosto de 2023, pág. 6.
Nos presentes autos, vem o recorrente condenado pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 39.º, n.º 1, alínea g) e 40.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, numa coima no montante de €1.000 e ainda na sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período de até 2 (dois) anos.
Determina o artigo 39.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º39/2009, de 30 de Julho, na versão vigente à data da prática dos factos, que “1 - Constitui contraordenação, para efeitos do disposto na presente lei: g) A introdução ou utilização de substâncias ou engenhos explosivos, artigos de pirotecnia ou fumígenos, ou objetos que produzam efeitos similares, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis;”.
À data da prática dos factos, estatuía o artigo 40.º, n.º3, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, que “3 - Constitui contraordenação, punida com coima entre 1000 (euro) e 10 000 (euro), a prática dos atos previstos nas alíneas d), g), h), j) e l) do n.º 1 do artigo 39.º”.
Após a alteração operada pela Lei n.º 40/2023, de 10 de Agosto, estatui o citado normativo que “1 - Constitui contraordenação, para efeitos do disposto na presente lei: g) A introdução ou utilização de substâncias ou engenhos explosivos, artigos de pirotecnia ou fumígenos, ou objetos que produzam efeitos similares, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis;”.
Actualmente, determina o artigo 40.º, n.º 3, da Lei n.º 39/2009, que “3 - É punida com coima entre 1.000 (euro) e 10.000 (euro) a prática dos atos previstos nas alíneas g), h), i), j), l), n) e o) do n.º 1 do artigo 39.º”.
Dos citados normativos resulta que a versão actual das normas aplicáveis não se mostra concretamente mais favorável ao recorrente, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, se aplica a versão vigente à data da prática dos factos.
Considerando a moldura da coima aplicável que se situa entre €1.000 e €10.000, não relevando a coima concretamente aplicada, entendemos não estarem preenchidos os pressupostos para a amnistia nem para o perdão, pelo que resulta improcedente o requerido
Pelo exposto, por ausência de preenchimento dos pressupostos legais, não há lugar a amnistia nem a perdão nos termos previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.”
Revela-se correta a aplicação da Lei 38-A/2023, e o recorrente não assinala em que aspeto da sua aplicação discorda, pelo que, não havendo qualquer reparo a fazer, é de manter o decidido.
Também nesta parte improcede o recurso interposto.
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Em suma não se mostram violadas as normas dos artigo 39º, nº 1, al. g) da lei 39/2009, de 30.07, 50º, do Código Penal; 2º, nº2, da Lei 38-A/2023 de 2.08, artigo 32º, da CRP e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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3.6 Das custas:
Sendo negado provimento ao recurso da arguida, impõe-se a condenação desta recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça é fixada em 3 (três) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto e a extensão mediana do recurso.
IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes Desembargadores subscritores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em Negar provimento ao recurso do recorrente/arguido AA, e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (três unidades de conta).
(A presente decisão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)

Lisboa 5 de dezembro de 2024
Isabel Maria Trocado Monteiro
Manuela Trocado
Eduardo de Sousa Paiva