Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
778/23.3T8PDL-A.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: INFRACÇÃO DISCIPLINAR
AMNISTIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude), não abrange no seu âmbito as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.
(sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA intentou contra Santa Casa da Misericórdia de X acção sob a forma de processo comum formulando os seguintes pedidos:
“a) Ser anulada a decisão da Ré de transferência do seu local de trabalho;
b) Ser declarado nulo o processo disciplinar instaurado contra a Autora ou, caso assim não se entenda,
c) Ser anulada a decisão da Ré que aplicou à Autora a pena disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade por 60 dias;
d) Caso a Autora tenha cumprido a referida sanção à data da sentença, a Ré deverá ser condenada no pagamento à Autora dos montantes retributivos que esta não recebeu, mas que normalmente auferiria, caso não tivesse sido sujeito à dita sanção disciplinar, acrescido de juros à taxa legal, desde a data em que deveria ter sido auferida, até ao integral pagamento.”
A Ré contestou reafirmando que a Autora, com a sua conduta, violou os deveres laborais previstos nas alíneas b), c), e), h) e j) do artigo 128.º do Código do Trabalho e ainda o ponto 11 da Circular Informativa n.º DRS-CINF/2022/5, de 11 de Abril e pediu que a acção seja julgada improcedente com a sua absolvição do pedido.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e absteve-se o Tribunal a quo de identificar o objecto do litígio e de enunciar os temas da prova.
Foi proferido despacho saneador e fixado o valor da causa em €6.937,40.
Realizou-se a audiência de julgamento no âmbito da qual foi proferido o seguinte despacho:
“ Nos termos definidos nos arts.2.º, n.º 2, alínea a) e 6.º da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2 de Agosto, denominada Lei da Amnistia, a sanção disciplinar que Santa Casa da Misericórdia aplicou a AA, no âmbito do procedimento disciplinar em causa nestes autos, de 60 dias de suspensão com perda de antiguidade e retribuição, por decisão proferida em 8 de Setembro de 2022, comunicada à Autora em 13 de Setembro de 2022 e, naturalmente por factos ocorridos em data anterior, encontra-se abrangida por este regime legal, sem que, tratando-se de uma sanção disciplinar, seja de impor, aqui, o requisito da idade, previsto no art.º 2.º, n.º 1 desta Lei. E está como tal amnistiada.
Neste sentido, reconhecendo o Tribunal a amnistia desta sanção disciplinar, e assim o declarando, defere-se o requerido pela Autora, julgando-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, especificamente quanto aos pedidos constantes das alíneas b), c) e d) do peticionado, prosseguindo a mesma quanto aos restantes.
Notifique.”
Inconformada com o despacho, a Ré recorreu e sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
“1. Os artigos 2º, n.º 2, al. b) e 6º ambos da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, devem ser interpretados com recurso aos elementos racional ou teleológico, elemento sistemático e elemento histórico na procura de encontrar o sentido mais conforme à constituição e aos princípios.
2. Na ordem jurídica portuguesa não há registo de alguma amnistia com âmbito laboral privado e apenas a amnistia da Lei 23/91 contemplou as infrações laborais, mas só as cometidas por trabalhadores de empresas públicas.
3. A amnistia é uma medida de clemência “simétrica da decisão de punir”; é “a contraface do direito de punir estadual”, pelo que apenas pode incidir sobre crimes e as respectivas penas e demais categorias punitivas públicas, incluindo infrações disciplinares dos funcionários do Estado e militares, incluído, excepcionalmente, os trabalhadores das empresas públicas.
4. O poder disciplinar, embora de cariz sancionatório, constitui uma excepção ao princípio da justiça pública, sendo as sanções disciplinares “penas privadas”, apenas sujeitas ao controlo jurisdicional a posteriori.
5. A natureza da amnistia, a história evolutiva do instituto, coerência sistemática do regime jurídico e a natureza das sanções disciplinares impõem que a norma do artigo 2º, n.º 2 al. b) e do artigo 6º da Lei nº 39-A/2023, seja interpretada no sentido de que apenas inclui as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço do Estado, organismos públicos e de empresas públicas.
6.A doutrina e a jurisprudência, admitindo a amnistia das sanções disciplinares de trabalhadores da esfera do Estado, põem em causa a constitucionalidade da extensão da amnistia às sanções disciplinares laborais no âmbito e entidades patronais privadas.
7. É, pois, inconstitucional a interpretação do artigo 2º, nº 2, al. b) e do artigo 6º da Lei nº 38-A/2023 no sentido de que abrangem as infracções disciplinares praticadas no âmbito de entidades patronais privadas, porquanto viola princípios e normas constitucionalmente consagradas, designadamente: artigo 2º (Estado de direito democrático); artigo 80º alínea c) (“Liberdade de iniciativa e de organização empresarial”); artigo 86, nº 2 (não intervenção do Estado nas empresas privadas).
8. Em qualquer caso, mesmo que assim se não entendesse, a coerência interna do diploma e o fim assinalado à amnistia impõem a conclusão de que todas as medidas de clemência têm como destinatários pessoas entre os 16 e 30 anos.
9. Assim, contrariamente ao decidido no douto Despacho recorrido, a amnistia nunca seria aplicável ao caso dos autos, dado que a Autora tem idade superior a 30 anos.
Nestes termos e nos mais de Direito, com douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido.
Porque só assim se aplicará o Direito
E se fará Justiça!”
A Autora contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“ 1. As normas de amnistia têm natureza excecional e não admitem interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (cfr, Acórdão Acórdão STJ de 25-10-2001, disponível em www.gdsi.pt).
2. Aplicando as regras da hermenêutica jurídica e, como tal, presumindo que o legislador se exprimiu em termos adequados (artigo 9º nº 3 do C.Civil), perscrutando o sentido do elemento literal do disposto nos arts.2º, nº 2, alínea b), e 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (doravante Lei da Amnistia ou Lei 38-A/2023), verificamos que não é feita qualquer distinção entre infrações disciplinares abrangidas pelo seu regime.
3. Conforme a redação dos aludidos normativos, o legislador não identificou, nem diferenciou, as infrações praticadas, por um lado, por trabalhadores de empresas privadas e, por outro, por trabalhadores ao serviço do Estado, organismos públicos e de empresas públicas, sendo certo, também, que
4. Não cabe ao intérprete distinguir o que o legislador não distinguiu, não se lhe podendo substituir.
5. Encontrado o sentido do elemento literal das normas em causa, estas devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, concluindo-se que a amnistia da Lei 38-A/2023 abrange todas e quaisquer infrações disciplinares laborais, sem qualquer distinção, máxime, as praticadas por trabalhadores de empresas e instituições privadas.
6. A inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, antes da Lei 38-A/2023, não foi apenas contemplada na Lei nº 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria, designadamente, os constantes das Lei nº 17/85, de 17 de Julho e da Lei nº 16/86, de 11 de Junho não havendo (então, como agora) qualquer motivo ou fundamento legal para negar a amnistiabilidade das infrações disciplinares no domínio das relações laborais comuns.
7. O regime jurídico da relação laboral pública, tanto de um ponto de vista dogmático e no plano dos princípios, como das normas, tem evoluído no sentido, não apenas de se aproximar, como, até, de se equiparar ao regime do Código do Trabalho (cfr. Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, artigo 4.º).
8. O poder de amnistiar da Assembleia da República não se circunscreve às categorias punitivas públicas, podendo abranger infrações de direito privado, competência que foi, efetivamente exercida e decretada na Lei 38-A/2023.
9. Pela sua clareza e exposição em relação a este assunto, remetemos para o Acórdão STJ, de 20-01-1993( disponível na ligação: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt), quando afirma que, “não faz sentido negar a amnistiabilidade das infracções disciplinares no domínio das relações laborais comuns, porquanto as razões que justificam a amnistia daquelas infracções (infracções disciplinares cometidas pelos funcionários e agentes da administração central, regional e local) cabem inteiramente no âmbito desta.”
10. Ou seja, não existe fundamentação de Direito ou de facto, para que o elemento literal seja interpretado restritivamente. Acresce que,
11. Conforme consta do cit. Acórdão STJ, de 20-01-1993, aplicável mutatis mutantis, à situação em apreço e para cujos termos se remete em suma:
a. (…)são muitas as indicações constitucionais que apontam para uma concepção constitucional unitária das várias figuras sancionatórias (confere artigos 32, n.8 e 269, n.3 e que, por outro lado, tendem progressivamente a apagar as fronteiras entre as relações laborais de emprego público e as relações de trabalho reguladas pela lei comum do contrato de trabalho”.
b.”(…) a Constituição da República limitasse a atribuir competência à Assembleia da República para conceder amnistias, sem estabelecer qualquer concessão entre essa competência e a competência em matéria penal e sem impor qualquer restrição quanto ao âmbito dessa competência”.
c.”(…) podendo a amnistia abarcar infrações disciplinares cometidas por funcionários ou agentes da administração regional e local e até instituições dotadas de autonomia, como as universidades, é evidente que ela é extensiva a infracções que ao Estado não cabe punir, mas antes àquelas entidades, que gozam de autonomia relativamente ao Estado.”
12. Pelo exposto, a previsão do artigo 2º, nº 2, al. b) e do artigo 6º da Lei 38-A/2023 de que a amnistia abrange as infracções disciplinares praticadas no âmbito de entidades patronais privadas não viola quaisquer princípios e normas constitucionalmente consagradas, designadamente, as normas apontadas pela recorrente. Finalmente,
13. Nenhum motivo existe para concluir que todas as amnistias previstas na Lei 38-A/2023 têm como destinatários, apenas, agentes com idade entre os 6 e os 30 anos.
14. Sendo o texto da lei o ponto de partida e limite da interpretação, constata-se que o nº 2 do artigo 2º da Lei 38-A/2023 não se refere à condição de se aplicar, apenas, a pessoas entre os 18 e os 30 anos.
15. Comparando o nº 1 e nº 2 al. b) do artigo 2º, estamos perante normas que têm o seu objecto específico e que integram, o primeiro, o regime de amnistia relativa a sanções penais e, o segundo, da amnistia em relação a sanções disciplinares (bem como militares),em ambos os casos, com o respectivo regime desenvolvido e complementado noutros artigos, designadamente, o nº 1 nos artigos 3º e 4º e, o n.º 2, no artigo 6º.
16. O nº 2 não é um complemento do n.º 1, ambos do artigo 2º, não efectuando aquele qualquer remissão para este, nem desenvolvente o seu regime, sendo assim, uma norma plenamente autónoma do número anterior e cujo regime é complementado, no caso da al. b) pelo art.6º.
17. A utilização do advérbio “igualmente” no nº 2 tem o significado de que “para além da das sanções penais, previstas no número anterior, também” são abrangidas as sanções relativas a infracções disciplinares, nos termos do regime previsto naquele número e no artigo 6º.
18. O facto de o legislador não ter repetido a expressão” por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade”, na letra e no espírito da lei, só pode ter o sentido de não ser aplicável aquele requisito da idade, especificamente previsto para o nº 1 do artigo 2º.
19. Acresce que o legislador, previu expressamente, no nº 2 do artigo 2º, que à semelhança do nº 1, serão abrangidas as infrações “praticadas até às 00:00horas de 19 de junho de 2023” e fê-lo, precisamente, porque esta norma tem o um objeto específico e é autónoma, não sendo uma mera concretização ou desenvolvimento daquele nº 1.
20. Do mesmo modo, o legislador não previu a limitação da idade para a aplicação da amnistia a infrações disciplinares, porque assim não quis e porque tal requisito não está previsto no seu regime.
Como tal
21. Bem esteve o Meritíssimo Juiz a quo, ao concluir que, mesmo tendo a A. e Recorrida mais de 30 anos, a sanção disciplinar que a R. lhe aplicou no procedimento disciplinar dos autos encontra-se abrangida pelo disposto nos arts.2º, nº 2 alínea b), e 6º da Lei nº 38-A/2023, tendo justamente reconhecido e declarado a respetiva amnistia, com todas as consequências legais daí advenientes.
22. Pelo exposto, não tem razão a Recorrente e o douto despacho recorrido não merece qualquer reparo ou censura, tendo o Tribunal a quo aplicado corretamente o Direito, pelo que deverá ser integralmente mantido.
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exª. mui doutamente suprirá, carecendo a argumentação e respectivas conclusões da Recorrente de fundamento, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmado o Douto Despacho recorrido, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso.
Recebidos os autos neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Não houve resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (art.ºs 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º n.º 2 do CPC), no presente recurso importa apreciar.
- Se no âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) não estão incluídas as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores com vínculo a empregadores privados, sob pena de inconstitucionalidade
- Se todas as medidas de clemência da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto têm como destinatários pessoas entre os 16 e os 30 anos.
Fundamentação de facto
Com interesse para a decisão, para além dos factos que decorrem do relatório que antecede, estão provados os seguintes factos:
-Por deliberação da Mesa Administrativa da Ré, datada de 08.09.2022, foi aplicada à Autora a sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade por 60 dias.
- A decisão final, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, foi comunicada à Autora por carta de 13.09.2022 que a recebeu em 15.09.2022.
- A Autora nasceu em 07.09.1966.
Fundamentação de direito
Comecemos, então, por apreciar se no âmbito da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) não estão incluídas as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores com vínculo a empregadores privados, sob pena de inconstitucionalidade.
Nesta sede sustenta a Recorrente que a amnistia não é aplicável ao presente caso estribando-se, essencialmente, na seguinte ordem de considerações:
-A natureza da amnistia, a história evolutiva do instituto, coerência sistemática do regime jurídico e a natureza das sanções disciplinares impõem que a norma do artigo 2.º, n.º 2 al. b) e do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, seja interpretada no sentido de que apenas inclui as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço do Estado, organismos públicos e de empresas públicas, sendo que na ordem jurídica portuguesa não há registo de alguma amnistia com âmbito laboral privado e apenas a amnistia da Lei 23/91 contemplou as infrações laborais, mas só as cometidas por trabalhadores de empresas públicas, enquanto que a Lei 29/99, de 12 de Maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os ilícitos laborais e incluía as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares; e
- É inconstitucional a interpretação do artigo 2.º, n.º 2, al. b) e do artigo 6.º da Lei nº 38-A/2023 no sentido de que abrangem as infracções disciplinares praticadas no âmbito de entidades patronais privadas, porquanto viola princípios e normas constitucionalmente consagradas, designadamente os artigos 2.º (Estado de direito democrático), 80.º alínea c) (“Liberdade de iniciativa e de organização empresarial”) e 86., nº 2 (não intervenção do Estado nas empresas privadas);
Vejamos:
À Autora foi aplicada a sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade por 60 dias, prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 328.º do Código do Trabalho.
Nos termos do artigo 98.º do Código do Trabalho, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.”
Como se escreve no sumário do Acórdão do STJ de 21.03.2012, Proc. 161/09.3TTVLG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, “I - A titularidade do poder disciplinar, enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, (que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador), está legalmente conferida ao empregador.
E, sendo um direito potestativo ambivalente, (com reconhecido carácter gravoso nesta sua mais característica manifestação de poder punitivo), importa reconhecer que o seu exercício – conferindo embora ao seu titular uma certa margem de natural elasticidade/discricionariedade – acarreta simultaneamente uma acrescida responsabilidade ante os limites gerais decorrentes da boa fé e do abuso do direito.
(…).”
E como também elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2022, Proc. 9443/19.5T8LRS.L1, igual pesquisa: “I– O poder disciplinar caracteriza-se por ser um poder subjetivo do empregador, que se reconduz à categoria de direito potestativo, traduzindo-se para o trabalhador numa posição de sujeição face às alterações que o exercício de tal poder implicam na sua esfera jurídica.
(…).”
E de acordo com o mesmo aresto, trata-se de um poder exclusivo do empregador, que pode ser exercido directamente pelo empregador ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (art.º 329.º n.º 4 do Código do Trabalho),
No exercício do poder disciplinar, o empregador pode aplicar as sanções elencadas no n.º 1 do artigo 328.º do Código do Trabalho, sem prejuízo das previstas nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (cfr. n.º 2).
Em suma, o empregador é o titular do poder disciplinar e é a ele que incumbe aferir da oportunidade do seu exercício e escolher, de entre o rol de sanções disciplinares e com respeito pelos limites estabelecidos no n.º 3 do artigo 328.º do CT, a que, em seu entender, se adequa ao caso concreto.
A posteriori caberá ao Tribunal o controlo e fiscalização das sanções aplicadas pelo empregador sem que, contudo, lhe seja permitida a alteração das mesmas.
Na verdade, como afirmado no Acórdão do STJ de 16.05.2012, Proc. 3982/06.5TTLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt e que também vem citado pela Recorrente, “Contrariamente  ao adrede aduzido pela recorrente, o efeito da neutralização de uma circunstância, tida então como agravante da responsabilidade disciplinar na prática posterior de uma outra infracção, apenas pode ver-se reflectido, quando muito, na determinação do ‘quantum’/medida da pena.
Mas ainda aqui sem possibilidade de intervenção ou controlo jurisdicional.
Sem se justificar discorrer sobre a fundamentação/natureza dogmática do poder disciplinar – onde tradicionalmente se confrontam teorias contratualistas e institucionalistas, como é sabido[2] - este, embora de cariz sancionatório, constitui uma excepção ao princípio da justiça pública, sendo as sanções disciplinares ‘penas privadas’.
A sua natureza, mais do que tornar problemática[3], exclui dos limites de fiscalização/controlo judicial, (realizáveis logicamente a posteriori), a possibilidade de alteração/substituição, não comportando a hipótese de graduação da pena aplicada.
O critério de graduação das sanções pertence ao empregador[4], norteado pragmaticamente por princípios gestionários e de oportunidade, e apenas condicionado pela tipologia legal das sanções e pelos seus limites, estes estabelecidos concretamente quanto às penas de feição pecuniária e de suspensão do trabalho – art.ºs 366.º e 368.º do Código do Trabalho/2003.”
Não obstante, o despacho recorrido considerou que a sanção disciplinar aplicada à Autora está amnistiada.
A amnistia, embora sem definição legal, está prevista no Código Penal, Título V (Da Extinção da responsabilidade criminal), Capítulo III (Outras causas de extinção).
Nos termos do n.º 1 do artigo 124.º do Código Penal, “A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”
E de acordo com o n.º 2 do artigo 128.º do Código Penal, “A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.”
Nos termos do artigo 161.º als. c) e f) da Constituição da República Portuguesa, compete à Assembleia da República “Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo” e “ Conceder amnistias e perdões genéricos;
A amnistia, é assim, uma medida de clemência emanada da vontade do poder político.
E como se afirma no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2023, Proc. n.º 2436/03.6PULSB-D.L1, consultável em www.dgsi.pt, “A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha.
Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstracção das normas legais.”
Por outro lado, há que ter presente que as Leis de Amnistia têm um carácter excepcional pelo que não comportam aplicação analógica (art.11.º do Código Civil). E como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.2023, Proc. 24/21.4PEPRT-B.P1, consultável em www.dgsi.pt, “II – (..) desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.”
Veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023, Proc. 401/12.1TAFAR-E.E1, consultável em www.dgsi.pt, onde se escreve: “É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”
A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigos 15.º e 1.º).
Nos termos do artigo 2.º da referida Lei:
“1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º
Sob a epígrafe “Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares” estatui o artigo 6.º da mesma Lei que  “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”
Sucede, porém, que, nem o artigo 2.º n.º 2 al. b), nem o artigo 6.º da Lei esclarecem sobre a natureza das “infracções disciplinares” contempladas pela amnistia colocando-se, pois, a questão de saber se nelas estarão incluídas as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas.
Ora, limitando-se as mencionadas normas a aludir às “infracções disciplinares” sem operar qualquer distinção entre as praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos e sendo conhecido o brocardo “onde  a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir”, à primeira vista, a conclusão a retirar seria a de que a Lei da Amnistia também abrangeria as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados por relação laboral privada.
Mas dizemos à primeira vista porque não será assim.
Como é sabido, a interpretação da lei não se cinge ao elemento literal.
Com efeito, estatui o artigo 9.º do Código Civil:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Como escrevem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, pág. 58, “2. Resumindo, embora, sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do n.º 3.”
Donde, a letra da lei é o ponto de partida e não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha o mínimo de expressão no texto da Lei.
A par, impõe-se ao intérprete socorrer-se dos demais elementos de interpretação da lei, assumindo, por vezes, particular importância, na busca da mente do legislador, a proposta que antecedeu a lei.
No caso, importa atentar no teor da Proposta de Lei n.º 97/XV/1ª que antecedeu a Lei da Amnistia, consultável em https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/15/01/245/2023-06-19/349?pgs=348353&org=PLC&plcdf=true, em cuja “Exposição de motivos” consta:
“A  Jornada  Mundial  da  Juventude  (JMJ)  é  um  evento  marcante  a  nível  mundial,  instituído  pelo Papa  João Paulo  II,  em  20  de  dezembro  de  1985,  que  congrega  católicos  de  todo  o  mundo.  Com  enfoque  na  vertente cultural,  na  presença  e  na  unidade  entre  inúmeras  nações  e  culturas  diferentes,  a  JMJ  tem  como  principais protagonistas os jovens.
Considerando  a realização  em  Portugal  da  JMJ  em  agosto  de  2023,  que  conta  com  a  presença  de  Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de  coima  aplicável  não  exceda  1000€,  exceto  as  que  forem  praticadas  sob  influência  de  álcool  ou  de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja  sanção  aplicável  não  seja  superior  a  suspensão  ou  prisão  disciplinar  e  as  infrações  penais  cuja  pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa.”
A redacção do artigo 2.º que constava da Proposta de Lei era a seguinte:
“Artigo 2.º
Âmbito
Estão abrangidas pela presente lei as infrações praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.”
E era a seguinte a redacção do artigo 1.º “A presente lei estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens.”
Contudo, não foram estas as redacções que passaram para a versão final da Lei; o artigo 1.º da Lei prevê  que: “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” e o artigo 2.º foi alterado, aditando-se-lhe ainda o n.º 2 acima citados.
Porém, no que respeita à questão em análise, a “Exposição de motivos” nada adianta quanto ao que extrair do artigo 2.º n.º 2 al. b) e 6.º na parte relativa às “infracções disciplinares.”
Sustenta a Recorrente que o elemento histórico aponta no sentido de que as “infracções disciplinares” não respeitam às praticadas por trabalhadores de empresas privadas e chama à colação a Lei n.º 23/91, de 4 de Julho, referindo que esta estendeu a amnistia mas limitada às infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos e que a Lei n.º29/99, de 12 de Maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais” e incluía as “infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares.”
A Recorrida, por seu turno, invoca que a inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, ao contrário do que alega a Recorrente, não foi apenas contemplada na Lei n.º 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria constantes na Lei n.º 17/85, de 17 de Julho e na Lei n.º 16/86, de 11 de Junho, mas reconhecendo que as amnistias anteriormente decretadas foram aplicadas a empresas públicas, concluindo, contudo, não haver fundamento para negar a amnistia a infracções disciplinares no domínio das relações laborais privadas.   
Analisadas as referidas Leis constata-se que a Lei n.º 23/91 de 4 de Julho amnistiou as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos (art.º 1.º al. ii) e a Lei 29/99 de 12 de Maio, amnistiou as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituíssem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não fosse superior à suspensão ou prisão disciplinar, desde que não constituíssem ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral (artigo 7.º al. c).
De tal análise cremos poder concluir que a história recente das Leis de Amnistia nunca seguiu no sentido de abranger as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.
E a explicação para tanto parece dever radicar na circunstância de o Estado não ter poderes para dispor de um direito de que não é titular.
Sobre esta questão escrevem António de Lemos Monteiro Fernandes e João Vilaça, em RH Magazine, 12 de Setembro de 2023, consultável em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral-estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/:
“Em termos de consequências práticas, importará saber se as infrações que, no quadro das relações de trabalho privadas, tenham sido punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição) devem considerar-se cobertas pela amnistia estabelecida, impondo-se o seu apagamento dos respetivos registos disciplinares e a eventual devolução de valores salariais retidos.
Em geral, os anteriores diplomas referentes a amnistias não deixavam espaço significativo para tal dúvida. Tomando como exemplos os que assinalaram as visitas a Portugal do Papa João Paulo II, encontramos dois enunciados diferentes, mas que respondiam no mesmo sentido à questão posta. A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento. Por seu lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada. Era assim claro que, pelo menos, as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia.
Por outro lado, é estabelecida uma amnistia, a qual cobre as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar” – ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias.
Quanto a este último ponto, todavia, a Lei n.º 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar.
A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei n.º 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art.º 6º da Lei n.º 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia.
Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa.
Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores.
A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos art.ºs 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art.º 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional.
Assim, pode bem interpretar-se o art.º 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.”
Considerando o que acima se referiu sobre os contornos do poder disciplinar e sobre as Leis de Amnistia acompanhamos aquela interpretação, sendo certo que considerar o contrário violaria o quadro constitucional vigente.
Com efeito, a interpretação de que o artigo 2.º n.º 2 al. b) da Lei da Amnistia quando refere “infracções disciplinares” está a incluir os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados, para além de esvaziar o poder disciplinar do empregador sem, em simultâneo, alterar o Código do Trabalho na parte relativa àquele poder, representaria uma intromissão por parte do Estado na gestão e organização das empresas privadas, não permitida por chocar com o direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial e com o princípio de que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, consagrados nos artigos 61.º n.º 1, 80.º al. c) e 82.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, como afirmado por aqueles autores.
Por conseguinte, resta concluir no sentido de que a Lei n.º 38-A /2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia), não abrange as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados-
Prejudicada fica, pois, a questão de saber se a idade da Autora constituía um óbice à aplicação daquela Lei.
Por conseguinte, o recurso deverá ser julgado procedente com a consequente revogação do despacho recorrido.
Atento o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade da Recorrida.
Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal e Secção em julgar o recurso procedente e revogar o despacho recorrido.
Custas pela Recorrida.
Registe e notifique.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2024
Celina Nóbrega
António Alves Duarte
Leopoldo Soares