Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7262/2008-5
Relator: FILIPA MACEDO
Descritores: CRIME MILITAR
INSUBORDINAÇÃO MILITAR
ASSISTENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Apesar da natureza de crime militar – crime de insubordinação por ameaças do art.º 89º n.º 1 al. b) CJM – desde que resultem ofensas no corpo do ofendido, este tem legitimidade para se constituir assistente nos autos.
2. O termo “especialmente” utilizado na alínea a) do n.º 1 do art.º 68º CPP tem o significado de “particular” e não o de “exclusivo”.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA 5ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO:
1. – No processo nº 72/07.7NJLSB-A da 2ª Vara Criminal das Varas Criminais de Lisboa, foi proferido despacho pelo Mmº Juiz, a fls 11 destes autos, que indeferiu o pedido de constituição como assistente, formulado pelo lesado P… .

É do seguinte teor, tal despacho:
( … )
Fls. 203 - Nos termos do art.° 68.° do Código de Processo Penal, elencam-se os sujeitos que têm legitimidade para se constituírem assistentes em sede de procedimento criminal.
Se é certo que P…, de acordo com os termos da acusação, foi lesado com a conduta imputada ao Arguido, a verdade é que a incriminação em apreço reporta-se ao crime de insubordinação por ameaças ou outras ofensas. Este crime, de natureza militar, mostra-se consagrado no art.° 89.º/1 al.ª b) do Código de Justiça Militar, ou seja, sistematicamente descrito como um crime contra a autoridade, militar obviamente.
Nesta medida, a lei em apreço não tutela quaisquer interesses pessoais cujo titular seja o requerente, mas sim, e apenas, interesses supra-individuais, inerentes à instituição militar.
Como a matéria dos autos não está reportada na al. e) do n.° 1 do citado art.° 68.°, nem o requerente nas demais alíneas, resta-nos concluir que o mesmo não tem legitimidade para se constituir assistente.
Nessa medida, e por falta de legitimidade, indefiro o pedido de constituição como assistente formulado por P. ( … )

2. - Deste despacho, recorreu o ofendido, tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
( … )
1a.- Atendendo ao modo como se encontra fundamentado o acto impugnado e sob recurso, o intérprete fica sem saber se a recusa ou indeferimento da constituição de assistente é devida em todos os crimes estritamente militares ou tão-só no caso ao crime de ameaças a que se refere o artigo 89°, n° 1, alínea b) do Código de Justiça Militar.
2a.- O esclarecimento da contradição dos fundamentos do despacho acima referida é essencial para uma eficaz fundamentação da impugnação do despacho recorrido, pois de tal esclarecimento depende a impugnação da impossibilidade da constituição de assistente, de modo abstracto e relativamente a todos os crimes previstos e punidos pelo CJM, ou somente relativamente ao previsto no artigo 89°, n° 1, alínea b), do mesmo Código.
3a.- Também se pode afirmar que existe contradição no despacho recorrido, na parte em que, do antecedente, tendo tutelado o interesse do lesado com a admissão do pedido de indemnização civil, recusa a possibilidade de constituição de assistente com o fundamento de que a lei em apreço não tutela quaisquer interesses pessoais cujo titular seja o requerente lesado.
4a. -Não existem razões que levem a concluir que a norma da alínea b) do n° 1 do artigo 89° do CJM, ou outra do CJM, exclui a defesa dos bens jurídicos dos particulares lesados, incluídos na sua previsão. Nesta parte, tal como nos artigos 85°, 96, 88°, 92°, e muitos outros, as incriminações do CJM constituem incriminações especiais relativamente a tipos de crime do Código Penal, os quais neste admitem a constituição de assistente e tutelam interesses dos particulares afectados pelos factos praticados.
5a.- A alínea b) do n° 1 do artigo 89° do CJM, e o n° 1 do artigo 86°, também do CJM, violam os princípios constitucionais da igualdade e o do n° 7 do artigo 32° do CJM do direito do ofendido a intervir no processo, se interpretados no sentido de que não tutelam interesses pessoais dos ofendidos, o que implica a impossibilidade destes se constituírem assistentes.
6a.- Tendo existido manifesto erro na qualificação jurídica dos factos descritos na a acusação, na parte em que acusou o arguido de ter praticado facto p. e p. pelo artigo 89°, n° 1 al. b), do Código de Justiça Militar, quando tal facto melhor preenche a previsão do n° 1 do artigo 86°, existe erro de interpretação da alínea a) do n° 1 do artigo 68° do CPP, na parte em que existindo nos referidos crimes uma relação de especialidade relativamente aos dos artigos 153° e 143° do Código Penal, não se descortina que relativamente a estes seja possível a constituição de assistente e naqueles não, quando é certo que os interesses que a lei quis proteger com a incriminação do Código Penal não são afectados pela referida relação de especialidade.
7a.- A recusa da constituição de assistente do lesado impossibilita-o de efectuar recurso relativamente à requerida alteração jurídica da qualificação do crime, ou sobre despacho ou sentença que venha a decidir no que concerne ao pedido de indemnização civil.
8a.- Ora, o despacho recorrido deveria ter tido em atenção que encontrando-se objectivamente descrita na acusação uma situação de ofensas corporais, incluindo o dolo, e tendo sido tais factos integrados ou classificados na acusação como crime de ameaças, o lesado não assistente encontra-se impossibilitado de interpor recurso de tal errada subsunção jurídica, de modo a que seja feita justiça e atingida a paz jurídica.
9a.- Sendo certo que entre a incriminação do artigo 143° do Código Penal e a do n° 1 do artigo 86° do CJM existe uma relação de especialidade, não se consegue descortinar que também protegendo o artigo 143° do CP interesses pessoais, a qualidade de superior hierárquico em exercício de funções (que caracteriza a especialidade do n° 1 do artigo 86° do CJM, relativamente ao crime de ofensas corporais do artigo 143° do CP) implique a negação de defesa dos interesses pessoais pela norma incriminadora do n° 1 do artigo 86° do CJM com a consequente impossibilidade de constituição de assistente.
10a.- Protegendo o artigo 153° do CP interesses pessoais, a qualidade de superior hierárquico em exercício de funções e a ameaça por violência física que caracteriza o crime especial do artigo 89°, n° 1 alínea b) do CJM relativamente ao crime de ameaças do artigo 153° do CP, não traz como consequência a impossibilidade de constituição de assistente e a não defesa de interesses pessoais pela norma incriminadora do n° 1, alínea b) do artigo 89° do CJM.
lla.- O artigo 68°, n° 1, alínea a) do CPP, quando em conjugação com o artigo 89°, n° 1 alínea b) do CJM, é inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade e do princípio constitucional do direito de intervenção do ofendido no processo constante do n° 7 do artigo 32° da CRP, quando se entender que a qualidade de superior hierárquico em exercício de funções e a ameaça por violência física que caracteriza o crime especial do 89°, n° 1 alínea b) do CJM, relativamente ao crime de ameaças do artigo 153° do CP, impossibilita a constituição de assistente, em virtude daquele (crime previsto no 89°, n° 1 alínea b) do CJM) tutelar interesses supra-individuais inerentes à organização militar.
12a.- Sendo as regras do Processo Penal aplicáveis, salvo disposição legal em contrário ao processo de natureza pela militar regulado no CJM e em legislação penal avulsa e tendo em atenção a existência de um Capítulo do CJM intitulado "crimes contra os direitos das pessoas", bem como a redacção do projecto de lei 97/IX/1, que aprovou o novo Código de Justiça Militar no qual se referem os crimes cometidos em aboletamento ou as violências sobre as populações em tempo de guerra e a participação das forças armadas em missões humanitárias e de paz, fora do território nacional, reclamam tutela específica, deve ser entendido que o Código de Justiça Militar também tutela valores e interesses pessoais, e não só os valores ligados à disciplina e hierarquia essenciais ao cumprimento das missões constitucionais.

Termos que atendendo aos fundamentos expostos deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência admitida a constituição de assistente do lesado, com o que se fará justiça! (…)

3.– A Digna Magistrada do M.ºPº. “respondeu” ao recurso, “concluindo” o seguinte:
(…)

- O recorrente não é assistente, mas apenas lesado.
- O douto despacho recorrido não viola os artigos 68° n.° 1 al. a) do C.P.P. nem o art. ° 89° n.° 1 al. b) do C.J.M.
- O douto despacho recorrido não viola o art. ° 32° n.° 7 da C.R.P. porque o recorrente não é discriminado pela interpretação da lei efectuada no referido despacho.
- Nenhuma outra norma se mostra violada.
- Deve em conformidade negar-se provimento ao recurso mantendo-se o douto despacho recorrido. (…)

4. – Neste Tribunal, a Digna P.G.A. emitiu “ parecer”, entendendo, que o recurso merece provimento.
5. – Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas “conclusões”, é o seguinte:
- o lesado – p entende, que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência admitida a sua constituição como assistente.
II – CUMPRE APRECIAR:
Nestes autos, foi imputada a prática de crime de insubordinação por ameaças ou outras ofensas, p. e p. pelo art.° 89.° n.° 1 al. b) do Código de Justiça Militar, em que foi ofendido e lesado, o 2.° Sargento - P, veio o mesmo requerer a sua admissão, como assistente.

Por despacho de 6/6/08, o Mm.° Juiz "a quo" decidiu indeferir o pedido de constituição como assistente, por falta de legitimidade, por ter entendido, que apesar do requerente ser lesado com a conduta imputada ao arguido, esta incriminação reporta-se a um crime de natureza militar, em que é colocada em causa a autoridade militar.

Inconformado com este despacho, o requerente veio interpor o presente recurso.
Compulsado o despacho de acusação, deduzido contra o arguido, verifica-se que com a actuação do arguido, o requerente -que foi agredido com um pontapé - sofreu fractura nos ossos da mão tendo, em consequência, dessa actuação, ficado incapacitado parcialmente para o serviço, por um período de 90 dias.

Ora, nos termos do art.° 68.° do C.P.P.:
«Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) - Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei, especialmente, quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;».

O termo especialmente foi objecto de estudo no Acórdão do S.T.J. de 12/7/05, no qual se referiu, que aquele termo "especialmente" usado pela lei, tem o significado de particular e não de exclusivo.

Significa isto, que não se pode, restritivamente, decidir quais são os crimes específicos, em que o ofendido tem legitimidade para se constituir assistente e quais aqueles em que não tem essa faculdade.

É casuístico e há que interpretar o tipo incriminador, de modo a determinar, se há uma pessoa concreta, cujos interesses são protegidos com essa incriminação, não podendo essa constatação ser efectuada, secamente, tendo em conta apenas a natureza do crime em causa.

Realmente, só caso a caso, se pode verificar se essa constituição é ou não possível, pois pode estar em causa para além de um interesse de ordem pública, um interesse susceptível de ser corporizado num corpóreo detentor, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente, uma vez que os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos.

O Acórdão de Uniformização do STJ n.° 1/03, publicado no DR-I Série, 27/02/2003, que firmou jurisprudência no sentido de que: « No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.° 1 do art.° 256.° do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.».

Por outro lado, e de acordo com o que decidiu o Ac. do STJ, de 21/12/06, em que foi Relator – Cons. Rodrigues da Costa, é sumariado o seguinte:

«I -A legitimidade é a posição de um sujeito perante determinada decisão, que lhe confere a possibilidade de a impugnar por um dos meios previstos na lei.
II - O interesse em agir - também designado interesse processual, consiste na necessidade de recorrer aos tribunais para proteger um direito ameaçado, carecido de tutela e que só por essa via se logra obter; traduz a necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção e reside na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em crise.»

No caso dos autos, o requerente sofreu lesões em consequência da actuação do arguido, tendo por isso, interesse em agir para defender os seus interesses pessoais, nomeadamente o de interpor recurso da decisão, que vier a ser proferida, ou até a de deduzir “acusação” pelos factos acusados pelo M.°P.°, nos termos do art.° 284.° do C.P.P., já que, conforme resulta das suas “motivações” de recurso, parece, que discorda da qualificação efectuada, o que só poderá ser apreciada, se na verdade, o mesmo tiver a possibilidade de defender os seus interesses pessoais nestes autos.

Assim, entende-se conceder provimento ao recurso.

III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
a) conceder provimento ao recurso do recorrente, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, que autorize o recorrente/lesado a constituir-se assistente;
b) sem custas.

Lisboa, 28 de Outubro de 2008

Filipa de Frias Macedo
Contra-Almirante Vasco António Leitão Rodrigues.