Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
891/22.4GAMTA.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: BRANQUEAMENTO
PRESUNÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário:
I. Sendo certo que o princípio da investigação investe o Tribunal de poderes, desde logo na fase de julgamento, que lhe permitem não ser um mero espectador, fazendo diligências desde logo para apurar a verdade dos factos, também é certo que o sistema legal português é norteado pela nítida separação da investigação com vista a julgamento e deste julgamento, atribuindo competências diversas ao Ministério Público e ao juiz. Ou seja, a investigação, que é da competência do Ministério Público, implica que o mesmo Ministério Público feche o inquérito com os elementos suficientes para levar o visado a julgamento porque estão expostos indícios da prática de crime.
II. No caso dos autos, além dos documentos juntos, a prova resumiu-se às declarações do ofendido, tendo a arguido faltado a julgamento, apesar de devidamente notificada. E isto significa que o Ministério Público, quando assim levou o processo a julgamento, e porque não pode presumir que o arguido preste declarações, e menos ainda que confesse os factos, considerou aquela prova suficiente. No entanto, não é o volume da prova que releva.
III. Neste caso, o Tribunal a quo diz que a sua decisão de absolvição da arguida se sustenta na referida prova. No entanto, dessa prova resulta, necessariamente, a conclusão inversa: a quantia total subtraída ao aqui ofendido (através dessa mobilização por MBway) por intervenção de terceiro, que se presume conluiado com a arguida, foi transferida da conta do ofendido para uma conta de que é única titular a mesma arguida; imediatamente após isso, essa quantia foi retirada dessa conta da arguida, o que nos diz que entre os factos e o saque dessa quantia existe uma relação de causa-efeito evidente; e é certo também que, se assim não fosse, não haveria razão para que o saque da conta se desse tão prontamente. Na falta de alguma explicação que inverta esta lógica, temos, como tal, que a lógica aliada à normalidade e experiência nos dizem que quem opera uma conta que só tem um titular é o titular dela; assim como nos diz, sem elemento que inverta o sentido da normalidade, que quem resgatou logo de imediato essa quantia foi o titular da conta, pois que sabia o que sacava, quanto sacava e quando exactamente o devia fazer, até para evitar que o banco invertesse a operação, ou a congelasse, a pedido do lesado. Fechando o círculo, a mesma lógica interpretativa da prova junta ao processo permite concluir, à falta de outra verdade que se sobreponha, excludente, que a arguida não veio trazer ao processo, que a mesma actuou com dolo directo na prática destes factos. É certo que é o Ministério Público que tem que fazer prova de cada segmento relevante da acusação. No entanto, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, essa prova foi feita. Aliás, estava documentalmente feita no processo e foi complementada em julgamento pelas declarações do ofendido. Os elementos da tipicidade penal não se presumem e nem se assumem por exclusão de partes. Ou se podem extrair da prova sem sobressalto, ou não. Neste caso, a prova que foi oferecida pelo Ministério Público a julgamento chega, como bem se vê, para estabelecer os factos que integram o tipo legal imputado, atento que a imputação assenta no pressuposto de uma actuação de terceiro que a arguida com isto veio branquear.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal do Barreiro – J1 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo:
(…)
a) Absolver a arguida AA da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.º 1, alínea b), n.ºs 3, 5, 6 e 12 do Código Penal;
b) Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público, absolvendo-se a arguida do mesmo;
(…)
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
1- O presente recurso vem interposto no seguimento da sentença depositada no dia 13- 02-2025, no Processo Comum, Tribunal Singular, n.º 891/22.4GAMTA, que absolveu a arguida AA da prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo Artº. 368º-A, nº.1, b), nºs 3, 5, 6 e 12, do Código Penal
2- Versando sobre a matéria de facto e de direito;
3- Não concordamos com a ponderação que o Tribunal efectuou no que à prova do crime em apreço diz respeito, no sentido em que entendeu que, apesar de a arguida ser a titular exclusiva da conta bancária utilizada para a prática dos factos, não se sabe se a mesma era a única utilizadora;
4- Tudo, porque inexistem outros meios de prova que comprovem tal possibilidade;
5- Ora, tendo a arguida exercido o seu direito ao silêncio e não tendo explicado se, de facto, era outrem que utilizava a conta bancária por si titulada de forma exclusiva, então, terá de se considerar que a mesma era, verdadeiramente, a única utilizadora daquela conta;
6- Tal ponderação advém do facto do silêncio da arguida não a poder desfavorecer, mas tal silêncio permite ao Tribunal daí retirar conclusões, resultando tal situação das regras da experiência, que nos leva a concluir que se a arguida é a titular exclusiva da conta bancária e não tendo apresentado qualquer justificação em sentido diverso, então, é ela a utilizadora de tal conta;
7- Pelo que se expôs, deverão os factos que foram considerados como não provados ser considerados provados;
8- Não concordamos, também, com o entendimento do Tribunal, quando explana que o crime de branqueamento, p. e p. pelo Artº. 368º-A, nº.1, b), nºs 3, 5, 6 e 12, do Código Penal, não é punível a título de dolo eventual, nos termos do Artº. 14º, nº.3, do Código Penal;
9- Tal crime é doloso, abarcando, portanto, o dolo eventual;
10- Pelo que se expôs, deverá admitir-se que o crime de branqueamento é punível a título de dolo eventual e, consequentemente, revogar a sentença, a qual deverá ser substituída por outra que condene a arguida pela prática daquele crime, dando como provados os elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço.
Nestes termos e nos demais de Direito deve o presente recurso ter provimento revogando-se a Douta Sentença recorrida, sendo a mesma substituída por outra que condene a arguida AA pela prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo Artº. 368º-A, nº.1, b)-, nºs 3, 5, 6 e 12, do Código Penal.
(…)
A arguida não veio responder ao recurso.
***
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso, remetendo considerações para as alegações proferidas em primeira instância.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
***
Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
O Ministério Público, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- errada apreciação da prova que levou à falta de prova dos factos que devem ter-se como provados;
- errada apreciação de direito, desde logo porque o crime de branqueamento é susceptível de ser praticado com dolo eventual, procedendo assim a acusação
***
Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo:
(…)
De relevante para a boa decisão da causa, abstendo-se este Tribunal de se pronunciar sobre factos conclusivos, repetidos, irrelevantes e/ou que apenas continham matéria de direito, resultou provada a seguinte factualidade:
1. No dia ........2022, o ofendido BB, quando se encontrava na sua residência sita na ..., publicou um anúncio para venda de um exaustor, no site ..., pelo valor de €425,00.
2. Nesse mesmo dia, o ofendido foi contactado por alguém, do sexo masculino, cuja concreta identificação não se logrou apurar, através do número de telemóvel ..., associado a um cartão pré-pago, sem dados de identificação.
3. Após terem negociado o preço do referido artigo, aquela pessoa, com quem o ofendido comunicava, disse-lhe que efetuaria o pagamento do respetivo preço através da aplicação MBWay, mas como o ofendido não tinha essa aplicação instalada no seu telemóvel, o seu interlocutor solicitou-lhe o número do cartão multibanco de que é titular e, bem assim, o código de ativação que, seguidamente, foi enviado para esse telemóvel - do ofendido -, o qual forneceu esses dados à dita pessoa cuja identidade não foi possível apurar.
4. Assim, munido de tais dados, esta pessoa não identificada efetuou uma transferência no valor de €750,00, através da aplicação MBWay associada ao número de telemóvel ..., sem a autorização do ofendido.
5. Sucede que os mencionados €750,00 foram transferidos para a conta bancária sediada no banco ..., com o ..., titulada exclusivamente pela arguida AA.
Mais se provou que:
6. Do certificado de registo criminal da arguida não constam quaisquer condenações.
*
b. Factos não provados
Não resultaram provados quaisquer outros factos. Designadamente, não se provou que:
A. A arguida agiu com o propósito alcançado de fornecer a identificação da sua conta bancária e, dessa forma, colaborar com a atuação ilícita do indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, evitando, dessa forma, que o mesmo fosse identificado e perseguido criminalmente, desta forma facilitando a atuação daquele na transferência de dinheiro de terceiros, que lhe não pertencia e do qual pretendia apoderar-se, representando como possível que o dinheiro que recebia na respetiva conta bancária fosse proveniente de atividades ilícitas cometidas de forma organizada, conformando-se com esse resultado.
B. Agiu igualmente com o objetivo concretizado de obter proveito económico da colaboração prestada ao referido indivíduo que procedeu à transferência da quantia em dinheiro para a sua conta bancária, cujo único titular era ela própria, sendo-lhe indiferente a proveniência ilícita do referido dinheiro, bem sabendo que aquele valor não lhe pertencia nem a ele tinha direito.
C. Atuou a arguida de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
(…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo:
(…)
O Tribunal formou a sua convicção com base na concatenação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como de toda a prova com que os autos foram instruídos; prova esta apreciada de acordo com o seu valor probatório e as regras da experiência comum, segundo dita o princípio da livre apreciação da prova.
Relativamente à factualidade considerada provada em 1., 2., 3., 4. e 5., o Tribunal atentou no depoimento prestado de forma genuína e espontânea pelo ofendido, aqui testemunha, BB, o qual, de forma bastante honesta, acabou por admitir que mesmo estando desconfiado de que estaria a ser vítima de uma burla, optou, ainda assim, por fornecer os seus dados à pessoa com quem comunicava telefonicamente e a qual estaria interessada em adquirir o exaustor que colocara para venda no site ..., pela quantia de €425,00.
Apercebendo-se, instintivamente, ser esse o caso assim que terminou de lhe fornecer esses dados. Tanto que, logo de seguida, dirigiu-se à sua instituição bancária a fim de por cobro a esta situação, sem prejuízo de, entretanto, já ter sido desapossado da quantia de €750,00. A qual foi transferida da sua conta bancária para aqueloutra suprarreferida em 5. sem a sua autorização. No mais, o Tribunal atentou no teor da documentação junta a fls. 5, 18-30 e 47-74 dos presentes autos.
Quanto à factualidade tida por não assente em A. a C., assim foi considerada atenta a ausência de prova - mormente, suficiente - a propósito da respetiva ocorrência.
Por um lado, a arguida, pese embora regularmente notificada para o efeito, optou por não comparecer em audiência de discussão e julgamento, de molde a, querendo, fornecer a sua versão dos factos.
Sem prejuízo, para além da factualidade considerada provada nos termos e pelos motivos acima consignados, da documentação junta aos autos - à míngua de prova testemunhal a respeito da factualidade ora em questão - apenas resulta que a sobredita quantia de €750,00, pertença do ofendido, foi transferida, sem o seu consentimento, para uma conta bancária de que a arguida é a única titular.
Contudo, tão-somente com recurso a essa circunstância não é possível, quanto a nós, inferir, sem mais, ter sido a própria ofendida quem facultou ao dito indivíduo cuja identidade não se logrou apurar o IBAN associado a essa conta bancária - e, como resulta do libelo acusatório, a troca de um qualquer benefício económico, posto que não foi, de todo, estabelecida qualquer relação entre um e outro -, nem sequer ter sido ela quem procedeu aos subsequentes levantamentos do numerário aí depositado.
Inexistindo, v.g., quaisquer imagens captadas, por exemplo, através de câmaras de videovigilância existentes nos locais onde os ditos levantamentos foram efetuados de molde a fazer corresponder a respetiva execução à pessoa da arguida. Desconhecendo-se, outrossim, se, não obstante a sobredita conta bancária ser titulada tão-somente pela arguida, apenas esta tinha acesso à mesma e, a este respeito, por exemplo, quantos cartões de débito estavam associados a essa conta bancária.
Como é consabido, a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis quer em direito penal quer em direito processual penal - cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 512/2018, de 17.10.2018, disponível em www.dgsi.pt. A este propósito, traz-se à colação o decidido pelo Venerando TRG, em Ac. de 17.05.2010, proc. n.º 368/06.5GACBC.G1, disponível em www.dgsi.pt, a saber: “Segundo a jurisprudência espanhola do Tribunal Constitucional e do Tribunal Supremo, com o aplauso geral da doutrina, a eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos:
- Prova dos indícios: os indícios devem estar plenamente provados por meio de prova direta e não serem meras conjeturas ou suspeitas, por não ser possível construir certezas sobre simples probabilidades;
- Concorrência de uma pluralidade de indícios: embora a validade da regra “indicium unus indicium nullus” seja cada vez mais questionada (cf., criticamente, Miranda Estrampes, La minima actividad probatoria en el proceso penal Barcelona, 1997, págs. 233-240), salvo em casos excecionais, um único facto (indício) impede a formulação de uma convicção judicial com base na prova indiciária. Para além dessa pluralidade exige-se ainda que os indícios sejam periféricos relativamente ao facto a provar, assim como estejam interligados com o facto nuclear carecido de prova e que não percam força pela presença de contraindícios que neutralizem a sua eficácia probatória;
- Raciocínio dedutivo: entre os indícios provados e os factos que deles se inferem deve existir um nexo preciso, direto, coerente, lógico e racional. A falta de concordância ou irracionalidade deste nexo entre o facto base e o facto deduzido tanto pode ter por fundamento a falta de lógica ou de coerência na inferência como o carácter não concludente por excessivamente aberto, débil ou indeterminado.
- Motivação da sentença: o tribunal deve explicitar na sentença o raciocínio em virtude do qual partindo dos indícios provados chega à conclusão da culpabilidade do arguido. Por isso, “a sentença baseada em indícios deve ter uma extensa e abundante motivação” (Francisco Pastor Alcoy, Prueba Indiciaria y Presuncion de Inocencia, cit. pág. 63).” (sublinhado nosso).
No caso sub judice, entende-se não estarem reunidos, na íntegra, estes requisitos, sabendo-se, tão-somente, como já supra se aludiu e para o que ora releva, que a dita quantia de €750,00 foi transferida, por alguém cuja identidade se desconhece, para uma conta bancária titulada apenas pela ofendida, tendo sido posteriormente levantada (por alguém).
Finalmente, a sobredita factualidade tida por não assente também assim foi considerada em face das considerações jurídicas que infra se exporão.
(…)
Concretamente quanto à matéria de direito, fundamentou-se que:
(…)
i. Enquadramento jurídico-penal
A arguida vem acusada da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.º 1, alínea b), n.ºs 3, 5, 6 e 12 do Código Penal.
Dispõe este normativo, na redação em vigor à data da factualidade em apreço, introduzida pela Lei n.º 79/2021, de 24.11, que “1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, ndependentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de: a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores; b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados; c) Falsidade informática, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido; d) Associação criminosa; e) Terrorismo; f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas; g) Tráfico de armas; h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos; i) Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais; j) Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social; k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado; l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado; m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias. 2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior. 3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos. 4 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos. 5 - Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade. 6 - A punição pelos crimes previstos nos n.os 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º. 7 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada. 8 - A pena prevista nos n.os 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais. 9 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada. 10 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial. 11 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens. 12 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.” (sublinhado nosso).
O chamado branqueamento de capitais é legalmente descrito com um processo destinado a um certo fim: a ocultação ou dissimulação de um conjunto de características de bens de origem ilícita, ou seja, o produto de operações criminosas ilícitas é investido em atividades aparentemente lícitas, mediante a dissimulação da origem dessas operações. Traduz-se, pois, no desenvolvimento de atividades em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Segundo Rodrigo Santiago (in “Branqueamento de capitais e outros produtos do crime”, RPCC, 1994, págs. 501/2), “O branqueamento passa, ou pode passar, por dois momentos: um primeiro, conhecido por «money laundering», e um outro chamado «recycling». O «money laundering» constitui o núcleo essencial do branqueamento. Pretende-se, através das operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais, resultantes do facto criminoso anterior, sejam rapidamente libertadas dos vestígios da respetiva origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respetivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu, dissimular não só a sua origem, como a respetiva identificação. E normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro «sujo» por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam joias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas coletivas, negócios de Bolsa, aquisição de lotaria premiada, etc. Já a «recycling», quando chega a ter lugar, se concretiza em operações ou «manipulações» através das quais os incrementos referidos, já previamente «lavados», vão ser objeto de «tratamentos» de forma a que ganhem a aparência de se tratar de objetos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, por via de regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espetáculos, ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras.”.
Dentro da modalidade de money laundering é comum a angariação de uma conta de destino para os fundos da atividade ilícita a transferir (a denominada conta money mule), de onde são posteriormente levantados os valores para ali transferidos e, subsequentemente, entregues aos interessados na manutenção da atividade ilícita para, assim, branquear a origem ilícita desses proventos.
Portanto, a punição do branqueamento visa, em última análise, tutelar a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime ou, mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na deteção e perda das vantagens de certos crimes (cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, UCP Editora, 6.º ed. atualizada, março de 2024, pág. 1306).
Constituem elementos objetivos do tipo:
i) a existência de certos crimes precedentes, previstos no catálogo legal, de cuja prática sejam provenientes os bens cuja origem se pretende dissimular, sendo indispensável demonstrar essa proveniência, não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem lícita não resultava clara; e
ii) o preenchimento de alguma das modalidades de conduta típica, a saber: conversão ou transferência das vantagens ilícitas; auxílio ou facilitação de alguma operação de conversão ou transferência; aquisição, detenção ou utilização das vantagens, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade.
A operação de “conversão” consiste na alteração da natureza e configuração dos bens gerados ou adquiridos com a prática do facto ilícito típico subjacente, enquanto a “transferência” se traduz quer na deslocação física dos bens quer na alteração jurídica através da titularidade ou do domínio.
Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de um crime doloso.
Diz-nos Paulo Pinto de Albuquerque (in ob cit., pág. 1311, acompanhado por Miguez Garcia e Castela Rio in “Código Penal. Parte Geral e Especial”, Coimbra: Almedina, 2014, pág. 1218) que “não basta que ele [o agente] configure a possibilidade da proveniência ilícita da vantagem. (…) Quem quer esconder a origem ilícita da vantagem é porque sabe que essa vantagem tem proveniência ilícita. Esta é uma verdade lapalissiana que se impõe na interpretação do tipo subjetivo do n.º 4. Portanto, o dolo de dissimular ou esconder a origem da vantagem é incompatível com o dolo eventual. (…) Como também é incompatível com o dolo eventual a intenção de evitar que alguém seja perseguido por um crime que cometeu. Dito de outro modo, quer o tipo subjetivo congruente do n.º 4, quer mesmo o tipo incongruente do n.º 3 são incompatíveis, tal como estão formulados, com o dolo eventual, exigindo que o agente conheça a proveniência ilícita da vantagem.”.
No caso vertente, em face da factualidade tida por assente em 1. a 5., dúvidas inexistem de que o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar preencheu, com a sua conduta, os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de burla informática na pessoa do ofendido BB. Crime este que está incluído no catálogo previsto no n.º 1, do artigo 368.º-A do Código Penal (alínea b).
Contudo, consta do libelo acusatório que a arguida quis auxiliar o dito indivíduo a ocultar quer a sua identidade quer o crime que cometeu, fornecendo-lhe, para o efeito, a identificação da respetiva conta bancária para a qual foi efetuada a sobredita transferência, (ainda que) ora admitindo como possível a correspondente origem ilícita ora sendo-lhe a mesma indiferente. O que, como bem refere o ilustre autor supramencionado, é, desde logo, incompatível com a conduta de quem quer esconder a origem ilícita dessa vantagem (que necessariamente tem de conhecer) e, ainda, com a atuação de quem visa evitar que outrem seja perseguido por um crime que cometeu (e o qual tem necessariamente de saber ter sido cometido pelo visado).
Finalmente, da efémera prova produzida também não resultou provado, para além dos elementos subjetivos, a totalidade dos elementos objetivos do tipo de ilícito aqui em causa, a saber, aquele acima referido em ii).
Por conseguinte, impõe-se, sem necessidades de ulteriores considerações, a absolvição da arguida da prática do crime de que vem acusada.
(…)
Especificamente quanto à perda de vantagens, considerou o Tribunal recorrido:
(…)
O Ministério Público requereu a condenação da arguida a pagar ao Estado o montante correspondente ao valor da alegada vantagem obtida pela mesma com a prática da factualidade ilícita, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal, e o qual refere ascender ao montante de €750,00.
Prevê este preceito legal que “1 - São declarados perdidos a favor do Estado: (…) b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.”.
Estabelecendo o seu n.º 4 que “Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.”.
No caso sub judice, conforme resulta das considerações supra expendidas, não resultou provado que a arguida tenha praticado um qualquer facto ilícito, mormente, aquele de cuja prática vem acusada nos presentes autos.
Destarte, resta julgar improcedente o pedido de declaração de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público nos moldes supra expostos, absolvendo, em consequência, a arguida de tal pedido.
(…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do recorrente.
Comecemos por atender aos elementos relevantes resultantes do processo.
O Ministério Público acusou a arguida pela prática, em autoria material de um crime de branqueamento, na forma consumada, p. e p. pelo Artº. 368º-A, nº.1, b), nºs 3, 5, 6 e 12, do Código Penal.
O Tribunal a quo assentou a sua convicção nas declarações do ofendido e documentos juntos aos autos, conquanto a arguida nem sequer compareceu a julgamento, sendo considerada regularmente notificada.
Vejamos.
O que o Ministério Público diz na acusação, depois de relatar que da conta do ofendido foi retirada a quantia de 750€ após ser contactado por um indicado comprador de artigo que vendia a quem deu os dados de MBWay, indivíduo esse de sexo masculino, e que essa quantia dali subtraída foi depositada numa conta de que a aqui arguida era exclusiva titular, razão por que lhe imputa o crime de branqueamento, dizendo que a mesma agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, alcançado, de fornecer a identificação da sua conta bancária e, dessa forma, colaborar com a actuação ilícita do indivíduo cuja identidade não se logrou apurar e evitando, dessa forma, que o mesmo fosse identificado e perseguido criminalmente, facilitando, assim, a actuação daquele na transferência de dinheiro de terceiros que lhe não pertencia e do qual pretendia apoderar-se, representando como possível que o dinheiro que recebia na respetiva conta bancária proviesse de actividades delituosas cometidas de forma organizada, conformando-se com esse resultado, e agiu igualmente com o objectivo, concretizado, de obter proveito económico da colaboração prestada ao referido indivíduo que procedeu à transferência da quantia em dinheiro para a sua conta bancária, cujo único titular era ela própria, sendo-lhe indiferente a proveniência ilícita do referido dinheiro, bem sabendo que aquele valor não lhe pertencia nem a ele tinha direito.
Porém, o Tribunal a quo, que, recorde-se, só ouviu o ofendido que não assistiu aos factos relativos à arguida, apenas confirmou o referido anúncio e contacto e partilha de dados bancários da sua parte com o referido indivíduo do sexo masculino, entendeu que isso não chegava, primeiro, para fazer prova da participação da arguida nos factos e, segundo, para provar o tipo subjectivo do ilícito contra si.
Disto discordando o Ministério Público.
É certo que o princípio da investigação investe o Tribunal de poderes, desde logo na fase de julgamento, que lhe permitem não ser um mero espectador, fazendo diligências desde logo para apurar a verdade dos factos.
No entanto, o sistema legal português também é norteado pela nítida separação da investigação com vista a julgamento e deste julgamento, atribuindo competências diversas ao Ministério Público e ao juiz.
A investigação, que é da competência do Ministério Público com vista a, sendo caso disso, remeter o processo para julgamento, implica que o mesmo Ministério Público feche o inquérito com os elementos suficientes para aquele efeito, quando decide acusar.
Ora, neste concreto caso, toda a prova indicada na acusação pelo Ministério Público foi produzida em audiência: declarações da única testemunha indicada e documentos.
A arguida, como consta do processo, decidiu não comparecer.
Ora, atento a que não se pode ter a expectativa de que o arguido confesse em julgamento, temos de concluir que o Ministério Público levou o processo a julgamento convicto de que ali estava a prova necessária para a procedência daquela acusação.
No entanto, o Tribunal recorrido entendeu de modo diverso.
No entanto, importa atender ao seguinte.
Da prova que o Tribunal recorrido diz ter consentido a decisão a que chegou, de que fazem parte os estratos bancários da conta da arguida no banco ... e que estão juntos, resulta o oposto daquilo por que concluiu o Tribunal a quo.
Vejamos.
A quantia total subtraída ao aqui ofendido foi transferida da conta do ofendido para uma conta de que é única titular a arguida.
Esse facto está comprovado na documentação.
Imediatamente após isso, essa quantia foi retirada da conta da arguida, o que nos diz que entre os factos e o saque dessas quantias existe uma relação de causa-efeito evidente.
É certo também que, se assim não fosse, não haveria razão para que o saque da conta se desse tão prontamente.
Ora, na falta de alguma explicação que inverta a lógica por porte da arguida, temos, como tal, a lógica aliada à normalidade e experiência, que nos dizem que quem opera uma conta que só tem um titular é o titular dela.
Assim, a normalidade e a prova disponível interpretadas de acordo uma com a outra e com recurso à lógica, permitem concluir sem sobressalto que tal saque foi feito pela titular da conta, portanto, a arguida.
A mesma lógica e prova permitem concluir que, atento o lapso de tempo que decorreu entre o momento da transferência e o saque, quem fez o saque sabia o que sacava e quando exactamente o devia fazer, até para evitar que o banco invertesse a operação, ou a congelasse, a pedido do lesado.
Assim, a mesma lógica e normalidade da prova permitem concluir que a arguida levantou aquele dinheiro precisamente porque sabia que ele ali estava naquele instante.
Por outro lado, ainda, temos o facto de o contacto telefónico feito para o ofendido, muito embora este ficasse com a ideia de que era um homem com quem falava, esse contacto telefónico foi feito de um número pertencente a um pacote de dados que vem no processo demonstrado estar no nome da arguida, pois que a prestadora do serviço juntou essa informação ao processo [conforme resulta da informação junta pela PJ ao processo - e-mails trocados em ........2024 entre a PJ e o processo].
O que significa também, a menos que qualquer outra explicação quebre esta lógica que é muito evidente, e que a arguida não veio dar, que daqui retira a normalidade da vida que o contacto foi feito pela arguida, a mando dela ou com o seu conhecimento, o que significa conhecimento dos factos e domínio dos mesmos e do seu desfecho.
E se juntarmos tudo isto, a normalidade da vida permite também concluir, aliás, apenas permite concluir nesse sentido, que foi a arguida a autora dos factos ou, no mínimo, co autora deles.
Fechando o círculo, a mesma lógica interpretativa da prova junta ao processo permite concluir, à falta de outra verdade que se sobreponha, excludente, que a arguida não veio trazer ao processo, que a mesma actuou com dolo directo na prática destes factos.
Ou seja, e isto extrai-se da prova e é assumido pela decisão recorrida, fica evidente que essa conta utilizada, do banco ... e com o ..., é comum a todas estas actuações e apenas titulada pela arguida.
Diz, no entanto, o Tribunal a quo:
(…)
Sem prejuízo, para além da factualidade considerada provada nos termos e pelos motivos acima consignados, da documentação junta aos autos - à míngua de prova testemunhal a respeito da factualidade ora em questão - apenas resulta que a sobredita quantia de €750,00, pertença do ofendido, foi transferida, sem o seu consentimento, para uma conta bancária de que a arguida é a única titular.
Contudo, tão-somente com recurso a essa circunstância não é possível, quanto a nós, inferir, sem mais, ter sido a própria ofendida quem facultou ao dito indivíduo cuja identidade não se logrou apurar o IBAN associado a essa conta bancária - e, como resulta do libelo acusatório, a troca de um qualquer benefício económico, posto que não foi, de todo, estabelecida qualquer relação entre um e outro -, nem sequer ter sido ela quem procedeu aos subsequentes levantamentos do numerário aí depositado.
Inexistindo, v.g., quaisquer imagens captadas, por exemplo, através de câmaras de videovigilância existentes nos locais onde os ditos levantamentos foram efetuados de molde a fazer corresponder a respetiva execução à pessoa da arguida. Desconhecendo-se, outrossim, se, não obstante a sobredita conta bancária ser titulada tão-somente pela arguida, apenas esta tinha acesso à mesma e, a este respeito, por exemplo, quantos cartões de débito estavam associados a essa conta bancária.
(…)
Mas não tem razão, como acima se vê.
Aquela coincidência de factos comprovados no processo chega para o preenchimento típico.
Chega para o preenchimento do tipo dizer que, como única titular daquela conta, a arguida tinha de saber, autorizar ou comparticipar de alguma forma.
Não porque o processo penal proíba presunções, porque não proíbe, mas porque não há aqui nada que se presuma: os factos são muito claros e assentes na prova que se juntou ao processo.
Ora, a arguida podia, como se disse, ter vindo ao processo quebrar a lógica que resulta desta prova.
No entanto, não o fez.
Ao não o fazer, o Tribunal fica-se com a lógica resultante da interpretação probatória e que, respeitando os limites da legalidade da prova e o disposto no artº 127º do Cód. Proc. Penal, impõe apenas aquela solução para os factos.
Não é relevante o facto de ter sido, ou não, a arguida a telefonar para o ofendido.
Esse é um facto acessório, não típico até.
É certo que é o Ministério Público que tem que fazer prova de cada segmento relevante da acusação.
No entanto, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, essa prova foi feita. Aliás, estava documentalmente feita no processo e foi complementada em julgamento pelas declarações do ofendido.
Os elementos da tipicidade penal não se presumem e nem se assumem por exclusão de partes. Ou se podem extrair da prova sem sobressalto, ou não.
Neste caso, a prova que foi oferecida pelo Ministério Público a julgamento chega, como bem se vê, para estabelecer os factos que integram o tipo legal imputado.
Até quanto ao elemento subjectivo, senão, vejamos.
Se a conta é só da arguida e o contacto telefónico utilizado integra um pacote de que a mesma é a única titular, e atendendo às declarações do ofendido, foi esse o telefone usado numa conversa que terminou na apropriação por outros dos dados do mesmo e da referida quantia que logo depois de ser transferida desapareceu da referida conta, também exclusivamente titulada por ela, isto significa que todos estes passos foram dados com intenção de assim conseguir e vontade de assim obter vantagem.
Vontade essa que, como resulta do exposto, só pode ser imputada à arguida.
Pelo que, em rigor, temos o dolo directo provado também e o tipo legal totalmente preenchido.
O branqueamento, enquanto crime de mera actividade, mesmo para quem aceite que possa ser cometido com dolo eventual, impõe a prova dos elementos específicos do tipo subjectivo.
A jurisprudência e doutrina deixaram já muito dito sobre a questão, não competindo aqui aprofundar razões.
E não cumpre porque, desde logo, a procedência do recurso quanto à errada conclusão sobre a prova a que chegou o Tribunal recorrido deixa evidenciado que, por um lado, o elemento subjectivo, ainda que aquele título, decorre ainda da factualidade que importa dar como provada.
Razão pela qual é de considerar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Esta procedência impõe a este Tribunal refazer a matéria de facto por ter ao alcance os meios necessários para o efeito.
Assim, atenta a cópia junta do comprovativo de transferência (fls. 5), bem como a informação bancária do banco ... e do banco ... e estratos bancários constantes dos autos (fls. 18-30 e 47-74), conjugadas com a informação citada quanto ao pacote de dados utilizado e atento ainda o CRC da arguida junto, é possível fixar a matéria de facto provada e não provada que, conjugada com as declarações do ofendido em julgamento, resultam num enquadramento factual oposto ao da decisão recorrida.
A fundamentação da decisão quanto à matéria de facto será a que antecede.
Assim, a procedência do recurso impõe que, atenta a fundamentação que antecede, se fixe a matéria de facto provado do seguinte modo [fixando-a este Tribunal de recurso]:
1- No dia ...-...-2022, BB, quando se encontrava na sua residência sita na ..., publicou um anúncio para venda de um exaustor, no site ..., pelo valor de 425,00€;
2- Pouco depois, nesse mesmo dia, foi contactado por alguém do sexo masculino que não foi possível identificar, através do número ..., que corresponde a um cartão pré-pago sem dados de identificação;
3- Após terem negociado o preço do referido artigo, aquela pessoa com quem BB comunicava, convenceu-o a efectuar o pagamento através da aplicação MBWAY;
4- Como BB não tinha tal aplicação instalada, o seu interlocutor solicitou-lhe o número do seu cartão multibanco e o código de activação, dados que este forneceu;
5- Assim, em poder de tais dados, a pessoa que não se logrou identificar, efectuou uma transferência no valor de 750,00€, através da aplicação MBWAY, associada ao número ..., sem qualquer autorização por parte de BB;
6- Sucede que, aquando da prática de tais factos (os quais consubstanciam a prática de um crime de abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento), os mencionados 750,00€ foram transferidos para a conta bancária do banco ..., com o ..., titulada exclusivamente por AA;
7- AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, alcançado, de fornecer a identificação da sua conta bancária e, dessa forma, colaborar com a actuação ilícita do indivíduo cuja identidade não se logrou apurar e evitando, dessa forma, que o mesmo fosse identificado e perseguido criminalmente, facilitando, assim, a actuação daquele na transferência de dinheiro de terceiros que lhe não pertencia e do qual pretendia apoderar-se, representando como possível que o dinheiro que recebia na respetiva conta bancária proviesse de actividade delituosa, conformando-se com esse resultado;
8- Agiu igualmente com o objectivo, concretizado, de obter proveito económico em colaboração com o referido indivíduo, conseguindo a transferência da quantia em dinheiro para a sua conta bancária, cujo único titular era ela própria, sendo-lhe indiferente a proveniência ilícita do referido dinheiro, bem sabendo que aquele valor não lhe pertencia nem a ele tinha direito;
9- AA sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
10- Do certificado de registo criminal da arguida não constam quaisquer condenações.
Não se prova:
Que a actividade em causa tivesse sido desenvolvida de forma organizada, em tudo quanto exceda os factos acima provados.
Aqui chegados, como se percebe, tem este Tribunal de concluir, e é isso que faz, que a arguida cometeu o crime por que vinha acusada.
Crime esse que é punido nos termos do artº 368º-A, nº1, al. b), e ns. 3, 5, 6 e 12, todos do Cód. Penal.
Ora, atento a que a arguida não compareceu e nem foi feita comparecer a julgamento, desconhecendo-se em absoluto a sua situação pessoal porque nenhum relatório social foi feito e junto, como devia, dispondo apenas este Tribunal da informação de que estaria em 2024 empregada [inf. de ........2024 da SS no citius], os elementos essenciais para a escolha e determinação da pena que dizem concretamente respeito ao seu enquadramento familiar e profissional e integração social, e demais, estão ausentes e este Tribunal não consegue ultrapassar esta insuficiência, importa devolver os autos à primeira instância para que determine o quantum da pena, bem como a forma do seu cumprimento.
Assim, revogando-se a decisão recorrida, fixou-se aqui a matéria de facto provada e não provada, baixando os autos para que seja determinada em concreto a pena e forma de cumprimento da mesma pena.
Atento a que o Ministério Público deduziu incidente de perda de vantagem, e atentos os factos que se provaram, importa também dar procedência ao mesmo, condenando-se a arguida na perda de vantagem e a entregar ao Estado montante em equivalente ao benefício retirado dos factos, ou seja, condenando-se a mesma no pagamento de 750€ (setecentos e cinquenta euros).
Sendo procedente o recurso, baixarão os autos à primeira instância para determinação concreta da pena e forma de cumprimento da mesma, circunstância para a qual deve tentar-se, pelo menos, obter junto da DGRSP um relatório social que permita ponderar para aquela fixação.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se:
- julgando procedente a acusação, condena-se a arguida pela pratica de um crime p. e p. pelo artº 368º-A, nº1, al. b), e ns. 3, 5, 6 e 12, todos do Cód. Penal;
- a matéria de facto provada e não provada é aquela acima deixada, para que integralmente se remete e nos termos da fundamentação que lhe antecede;
- julga-se procedente ainda o pedido de perda de vantagem deduzido pelo Ministério Público, condenando a arguida a pagar ao Estado a esse título a quantia de 750€ (setecentos e cinquenta euros);
- determinar a baixa dos autos à primeira instância para que seja determinada a pena concreta à arguida e forma de cumprimento da mesma, sem prejuízo de o Tribunal a quo envidar esforços no sentido de, para esse exclusivo efeito, determinar a recolha pela DGRSP de elementos ou elaboração de relatório social.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Julho de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
João Bártolo
Rui Miguel Teixeira