Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6637/19.7T8LSB.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CAPITAL DE REMIÇÃO
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: - O artigo 150.º do CPT na redacção introduzida pela Lei n.º 107/2019, de 9 de Setembro, dá preferência à transferência bancária para o IBAN do respectivo destinatário e só no caso de tal não ser possível é que a entrega do capital de remição ou de parte dele é feita por termo nos autos.
- É ao obrigado à prestação que incumbe comprovar o pagamento do capital de remição e demais despesas decorrentes do sinistro, não servindo para tal efeito documento interno emitido pelos Serviços da Companhia de Seguros, mas sim, o documento que comprove a competente transferência bancária.
(Pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é Sinistrado AAA e Entidade Responsável BBB., no dia 23.09.2019, realizou-se a tentativa de conciliação no âmbito da qual as partes aceitaram o acordo proposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público (“A entidade seguradora pagará ao sinistrado: 1- o capital de remição da pensão anual e obrigatoriamente remível no valor de 1.106,25€, com vencimento em 20.3.2019, acrescido dos juros de mora devidos sobre o capital de remição desde aquela data e até à do pagamento. 2- o montante de 12,00€ relativo a despesas com transportes das deslocações feitas no âmbito do processo (2,00€ x 6), por cada deslocação, ida e volta. 3- o montante de 34,90€de reembolso com as despesas para aquisição dos óculos graduados. 4-o montante de 58,33€ de diferenças de indemnizações pelo período de incapacidade temporária absoluta”) e, nessa sequência, foram consideradas conciliadas, determinando-se a remessa dos autos à Secção para homologação do acordo.
Em 03.10.2019, ao abrigo do artigo 114.º do CPT, o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho:
“I - HOMOLOGAÇÃO
Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é Sinistrado AAA e é Entidade Responsável BBB (Seguradora), por ser conforme com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais aplicáveis, nos termos do art. 114º do C.P.Trabalho, homologa-se o acordo que integra o Auto de Conciliação de fls. 101 a 102.
Nos termos do art. 120º/2 do C.P.Trabalho, fixa-se o valor da causa no correspondente à soma das reservas matemáticas das pensões, acrescido dos valores de € 12,00, € 34,90 e € 59,33.
Custas pela Seguradora.
Oportunamente cumpra-se o disposto nos arts. 148º/4, 149º e 150º do C.P.Trabalho.
Deverá a entidade responsável vir demonstrar nos autos o pagamento das quantias relativas às diferenças de incapacidade temporária, ao reembolso “óculos” e às despesas de transporte (art. 90º/2 do C.P.Trabalho).
Notifique-se e registe-se. “
Foi efectuado o cálculo do capital de remição.
Aberta vista nos autos, em 24.10.2019 o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu o seguinte despacho:
“Vi e conferi o cálculo do capital de remição.
A seguradora deve comprovar nos autos ter efetuado o seu pagamento, bem como o dos juros de mora e das demais quantias que estejam em dívida, especificando o cálculo dos juros, através de transferência bancária.
Notifique-se (com cópia do auto de cálculo).”
Em 14 de Novembro de 2019 a seguradora, para prova do pagamento da quantia de €17.380,29, juntou aos autos cópia de documento interno, dirigido ao Sinistrado, com data de emissão de 6.11.2019, denominado “Regularização de Sinistro” onde consta além do mais: “ Informamos que nesta data foi processada uma transferência no valor de EUR 17380,29 (dezassete mil trezentos e oitenta euros e vinte e nove cêntimos) para a conta identificada pelo IBAN (…).
Motivo: n.º de sinistro
(…).”
Em 25 de Novembro de 2019, a Seguradora, para prova do pagamento das quantias referentes a €12,00 de despesas de transportes, €59,33 de diferenças de IT´s e €34,90 do reembolso dos óculos, juntou aos autos outro documento interno, com data de emissão de 9.10.2019, endereçado ao Sinistrado, sob o assunto “Regularização de sinistro” no qual consta, além do mais, que “ nesta data foi processada uma transferência bancária no valor de 106,23 EUR para a conta identificada com o IBAN (…).”
Motivo: Nº sinistro (…)
(…).”
Aberta vista nos autos, o Digno Magistrado do Ministério Público, em 26.11.2019, promoveu o seguinte:
A seguradora foi notificada para proceder ao pagamento do capital de remição e demais quantias devidas, bem como dos juros de mora, por transferência bancária.
A seguradora vem alegar que pagou o capital de remição e as demais quantias devidas, mas nada alega quanto aos juros de mora e não junta nenhum comprovativo da transferência bancária.
Caso a seguradora não junte os documentos comprovativos dos pagamentos será, nos termos da lei, instaurada execução - art.º 90/2 e 7 do CPT.
P., assim, que se determine que a seguradora deve junte os documentos comprovativos da transferência bancária, incluindo o que se refira ao valor dos juros de mora, o qual deve calcular até à data do efetivo pagamento.”
 O Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho:
“I Promoção de Fls. 129
Notifique-se a Seguradora nos termos e para os efeitos promovidos. Prazo: 10 dias. Advertência: não dando cumprimento ao despacho, para além do mais, será condenada em multa nos termos do art. 417º do C.P.Civil de 2013, aplicável ex vi do art. 1º/2a) do C.P.Trabalho.”
A seguradora juntou aos autos o seguinte requerimento:
“BBB., com sede em Lisboa, na (…), nos autos de acidentes de trabalho à margem referenciados, em que é sinistrado  AAA vem, nos termos despacho e promoção, com as refºs 392263395 e 392182766, vem informar e requerer o seguinte:
1. Nos termos do despacho homologatório de 03-10-2019, a ora expoente juntou aos autos, em 15-10-2019 requerimento a informar o pagamento ao sinistrado, bem como cópia do documento comprovativo da respetiva transferência bancária, do montante total de 106,23€, quantia correspondente a 12,00€ (despesas de deslocação), 59,33€ (diferenças de Incapacidades Temporárias) e 34,90€ (despesas para aquisição de óculos graduados), conforme cópias que se juntam para melhor esclarecimento (doc.1);
2. De igual modo e em 07-11-2019, a BBB juntou aos autos requerimento a informar já ter procedido ao pagamento da quantia de 17.380,29€, respeitante ao capital de remição, comprovando tal pagamento através de documento comprovativo da transferência bancária efetuada, conforme cópia do mencionado requerimento que se junta (doc.2);
3. Por mero lapso, aquando dos pagamentos acima referidos não foi efetuado o pagamento dos respectivos juros de mora, situação que se colmatou em 08-12-2019, com o pagamento da quantia de 444,00€, conforme comprovativo de respetivo pagamento que se junta (doc.3);
4. Relativamente ao montante de juros referidos em 3., esclarece que foram os mesmos calculados nos seguintes termos:
- Montante referente a despesas e acerto de IT’s: desde 23-09-2019 (data da tentativa de Conciliação) até 10-10-2019, no valor de 0,21€;
- Capital de remição desde 20-03-2019 (data do cálculo do capital remição) até 07-11-2019, no valor de 443,79€;
O que perfaz o montante total de 444,00€.
5. No que concerne aos documentos enviados como comprovativos das transferências bancárias efetuadas, esclarece que:
O programa de pagamentos da BBB no caso de pagamento através de transferência bancária é totalmente informatizado.
Diariamente, o programa recolhe a totalidade das regularizações registadas no sistema integrado de gestão de sinistros que ainda estejam pendentes de pagamento e envia a listagem, através de ficheiro informático (file transfer), para a entidade bancária.
Após este envio automático, os serviços de tesouraria autorizam a entidade bancária em causa, formalmente, a efetuar os movimentos constantes do ficheiro enviado, autorização da qual apenas consta o montante global do file transfer.
Apenas após o envio, com sucesso, do ficheiro acima referido para a entidade bancária, é que o sistema informático emite, de forma totalmente automática, o documento comprovativo da transferência bancária efetuada.
6. Nesta sequência e tendo todos os pagamentos efetuados ao sinistrado AAA sido gerados através do circuito automatizado de pagamentos que acima se explanou, inexiste na BBB qualquer documento que comprove individualmente cada um dos pagamentos quer foram efetuados, para além dos ora juntos.
7. Segundo informação obtida junto dos Serviços de Tesouraria da ora expoente, não há registo de qualquer anomalia ocorrida nos dias dos pagamentos efetuados ao sinistrado;
8. Através de contato telefónico com o sinistrado, foi ainda possível obter a sua confirmação do recebimento das três transferências bancárias mencionadas.
9. Face à impossibilidade de apresentar qualquer outro documento que, de forma individualizada comprove as transferências bancárias efetuadas vem, mui respeitosamente, requerer a V. Exa. se digne ordenar a notificação do acidentado AAA a fim de vir aos autos informar se efectivamente recebeu as quantias em causa.
REQUER A JUNÇÃO AOS AUTOS
JUNTA: 3 (três) documento”
E ainda juntou aos autos, para além dos documentos anteriormente juntos, um documento interno para prova do pagamento dos juros, com data de emissão de 7.12.2019 dirigido ao Sinistrado e no qual consta, além do mais, “Informamos que nesta data foi processada uma transferência bancária no valor de EUR 444,00 para a conta com o IBAN (…).
Motivo: Nº sinistro (…)
Juros de Mora.”  
Em 20.12.2019, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte despacho:
Fls. 134 e segs.: A seguradora alega que juntou antes e que agora vem juntar aos autos “documento comprovativo da respectiva transferência bancária”, relativos ao pagamento do capital de remição e dos juros de mora.
O que a seguradora alega não tem tradução documental no processo.
Efetivamete, o que a seguradora junta são cópias de cartas, alegadamente enviadas ao sinistrado, a comunicar que “foi processada uma transferência bancária”.
A lei veio prever que o pagamento do capital de remição se faça preferencialmente por meio de transferência bancária (redação atual do art.º 150.º do CPT).
Ora, cabe, evidentemente, à entidade responsável provar nos autos que efetuou esse pagamento e a data em que o mesmo ocorreu.
A apresentação de documentos internos, que alegadamente serão cartas dirigidas ao sinistrado, supostamente retirados de um sistema informático da seguradora, não só não prova o pagamento como não permite sequer comprovar a data em que o mesmo terá efetivamente sido feito.
Cabe ao devedor provar que cumpriu a obrigação de pagamento.
De qualquer transferência bancária resulta, como é óbvio, um documento comprovativo da sua realização. Documento esse que a seguradora deve juntar ao processo.
Só assim o Tribunal estará em condições de sindicar, conforme a lei impõe que faça, quer o pagamento quer a data do mesmo, sendo o conhecimento desta essencial para a verificação da correção do valor dos juros pagos, os quais são devidos até à data do pagamento.
Caso não seja comprovado o pagamento, o Tribunal deverá dar início, oficiosamente, à execução, nos termos previstos no art.º 90.º, n.º 2, do CPT.
P., assim, que se determine que a seguradora junte os documentos comprovativos das transferências bancárias, com a data em o pagamento teve efetivamente lugar, sob pena de ser iniciada a execução.”
Em 08.01.2020, pelo Mmo. Juiz foi proferido o seguinte despacho:
I – Requerimentos de Fls. 123, 126, e 134/134v (Seguradora) e Promoção de Fls. 106140
“Atento o expressamente alegado pela Seguradora sobre as circunstâncias em que os documentos são emitidos e atento que os mesmos têm expressamente consignado que «nesta data, foi processada uma transferência bancária no valor…» (pelo que indicam as datas das transferências e respectivos valores), antes de tudo mais, notifique-se o Sinistrado para, no prazo de 10 dias, confirmar nos autos se lhe foram feitos os pagamentos em causa, advertindo-se de que, no caso de nada dizer, considera-se que os mesmos lhe foram efectivamente realizados.”
Notificado o sinistrado nada veio dizer aos autos.
“Em 02.03.2020 foi proferido o seguinte despacho:
“I Fls. 141
Nos termos do art. 247º do C.P.Civil de 2013, o Sinistrado considera-se notificado, e, aliás, voltou a ser notificado a fls. 146.
“II – Requerimentos de Fls. 123, 126, e 134/134v (Seguradora) e Promoção de Fls. 140
Atento o teor do despacho de fls. 141 e o silêncio do Sinistrado, considera-se que lhe foram efectivamente pagos os valores em causa, nada mais havendo a apreciar ou a ordenar, advertindo-se a Seguradora de que, futuramente, deverá modificar o seu “sistema de comprovar pagamentos” para que consiga de forma clara, inequívoca e imediata (e sem outros incidentes e necessidades de notificações ao Sinistrado) comprovar nos processos o pagamento através da forma prevista nova redacção do disposto no art. 150º do C.P.Trabalho.
Notifique-se.”
Inconformado com este despacho, o Ministério Público recorreu formulando as seguintes conclusões:
“1 – Conforme prescreve o art.º 78.º da Lei 98/2009, de 04-09 (LAT), os créditos provenientes do direito à reparação previstos nessa lei são irrenunciáveis;
2 - Sendo fixados créditos laborais no processo especial para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, o devedor deverá juntar ao processo “documento comprovativo da extinção da dívida”, conforme se prevê no n.º 2, do art.º 90.º do CPT;
3 - Antes das alterações ao CPT operadas pela Lei 107/2019, de 09-09, a entrega do capital de remição tinha necessariamente de ser feita por termo nos autos e sob a presidência do Ministério Público, conforme dispunha o art.º 150.º do CPT antes daquela alteração de 2019;
4 – Com a alteração da norma do art.º 150.º do CPT, operada pela L 107/2019, de 09-09, a partir de 09-10-2019 a entrega do capital de remição passou a ser “feita, preferencialmente, por meio de transferência bancária para o IBAN do respetivo destinatário ou, não sendo possível, por termo nos autos”;
5 - A apresentação de documentos internos, que alegadamente serão cartas dirigidas ao sinistrado, supostamente retirados de um sistema informático da seguradora, não só não prova o pagamento como não permite sequer comprovar a data em que o mesmo terá efetivamente sido feito;
6 - E também não se pode notificar o sinistrado para confirmar se lhe foram feitos determinados pagamentos, conforme a alegação da seguradora, com a advertência de que se nada disser em 10 dias se considera que os confirma, dado que o ónus de alegação e de prova que a lei prevê é da entidade responsável e que dessa forma se estaria a desonerar a responsável da obrigação que lhe está legalmente cometida e a transferir a responsabilidade para o pensionista;
7- Feita essa notificação ao sinistrado, nada tendo o mesmo vindo dizer aos autos, o despacho judicial, no qual se decidiu considerar que foram efetivamente pagos os valores em causa ao sinistrado, nada mais havendo a apreciar ou a ordenar, viola as normas do art.º 150.º e do n.º 2, do art.º 90.º , ambos do CPT;
8 – Devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que considere que não foi comprovado nos autos o pagamento dos créditos devidos ao sinistrado e no qual se determine que a seguradora junte os documentos bancários comprovativos da realização das transferências bancárias que alegou ter feito relativamente a esses pagamentos.
Com o que se fará Justiça.”
A Seguradora contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
“A. O douto despacho proferido pelo tribunal a quo e ora colocado em crise pelo Recorrente é, a nosso ver, justo, bem fundamentado e inatacável, demonstrando uma aplicação exemplar das normas jurídicas aos factos dados, e muito bem, como provados, no que concerne a considerar como efectivamente pagos os créditos devidos pela Recorrida.
I. DA EXTEMPORANEIDADE DO RECURSO
B. A condenação da Recorrida e modo como deveria apresentar o comprovativo de pagamento das quantias ocorreu no dia 03/10/2019.
C. Se o Recorrente não concordava com a falta de objectividade no que diz respeito à demonstração de pagamento deveria ter recorrido no prazo de 15 dias, conforme dispõe o artigo 80º n.º 2 do CPT.
D. Não o tendo feito, não lhe pode ser legítimo, para obviar tal extemporaneidade, apresentar um recurso do douto despacho proferido.
E. E na mera eventualidade de tal ser viável, o que não se concede nem concebe, o despacho recorrido seria o de 08/01/2020, que ordenou a notificação do Sinistrado para, no prazo de 10 dias, confirmar nos autos os pagamentos em causa, uma vez que o argumento aduzido pelo Recorrente é a errada desoneração do responsável da obrigação..
II. DO RECURSO
F. Para além de a Recorrida demonstrar os efectivos pagamentos, é o próprio Sinistrado, nos presentes autos, que confirma os créditos pagos pela Seguradora.
Ainda assim, o Ministério Público, numa manifesta obra de má-fé, sem se ter munido da confirmação ou não do recepcionamento destes valores com o Sinistrado, pretende pugnar uma decisão que sabe encontrar-se digna.
G. Labora em erro o Recorrente quando entende extensivamente, decorrente da lei que prevê que o pagamento do capital de remição se faça, preferencialmente (não único), por meio de transferência bancária, que o documento a apresentar tem provir de uma transferência bancária.
H. A Recorrida juntou aos autos, como sempre o fez, um documento interno uma vez que o pagamento ao Sinistrado foi efectuado através de um circuito automatizado de pagamentos, impossibilitando a junção individual desses mesmos comprovativos.
I. O próprio Recorrente não impugnou os documentos juntos pela Recorrida, nos termos e para os efeitos do artigo 376º do Código Civil.
J. A Recorrida demonstrou ter pago os créditos do Sinistrado.
K. Neste sentido, estão reunidas todas as condições para que V. Exas. decidam manter o sentido do despacho proferido pelo tribunal a quo.
TERMOS EM QUE,
Deverão V. Exas. julgar o recurso improcedente e manter o sentido do despacho proferido pelo tribunal a quo relativamente à absolvição da Recorrida, assim se fazendo a
Sã e Costumeira Justiça.”
O Sinistrado foi notificado da interposição do recurso e nada disse.
O recurso foi admitido, tendo o Tribunal a quo considerado que é tempestivo posto que foi interposto do despacho de fls.148 e não da sentença.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no caso importa apreciar se o despacho recorrido, ao considerar que foram efectivamente pagos os valores devidos ao Sinistrado, nada mais havendo a apreciar ou a ordenar, viola as normas do art.º 150.º e do n.º 2, do art.º 90.º do CPT.
Previamente impõe-se apreciar a alegada extemporaneidade do recurso, suscitada pela Recorrida nas contra-alegações.
Fundamentação de facto
Os factos com relevância para a decisão são os que constam do relatório que antecede e para o qual se remete.
Fundamentação de direito
Comecemos, então, por apurar se o recurso é extemporâneo.
A este propósito sustenta a Recorrida, em suma, que a condenação da Recorrida e modo como deveria apresentar o comprovativo de pagamento das quantias ocorreu no dia 03/10/2019, se o Recorrente não concordava com a falta de objectividade no que diz respeito à demonstração de pagamento deveria ter recorrido no prazo de 15 dias, conforme dispõe o artigo 80º n.º 2 do CPT e não o tendo feito não pode agora, para obviar tal extemporaneidade, apresentar um recurso do douto despacho proferido e, no caso de tal ser viável, o despacho recorrido sempre seria o proferido em 08.01.2020, que ordena a notificação do Sinistrado para, no prazo de 10 dias, confirmar nos autos os pagamentos em causa, uma vez que o argumento aduzido pelo Recorrente é a errada desoneração do responsável da obrigação.
Vejamos:
O despacho de 03.10.2019 homologou o acordo e determinou que a entidade responsável viesse demonstrar nos autos o pagamento das quantias relativas às diferenças de incapacidade temporária, ao reembolso “óculos” e às despesas de transporte, nos termos do artigo 90.º n.º 2 do CPT.
O recurso não põe em causa a homologação do acordo nem a 2ª parte do mencionado despacho. Ou seja, o objecto do recurso não incide sobre o conteúdo do despacho de 03.10.2019.
Por outro lado, no que respeita ao despacho de 08.01.2020 no qual se ordena a notificação do Sinistrado para confirmar se lhe foram feitos os pagamentos, é certo que, no recurso, o Ministério Público argumenta, além do mais, que não havia que notificar o Sinistrado e fazer recair sobre ele a prova dos pagamentos.
Mas não obstante a discordância do Ministério Público quanto a essa notificação, a verdade é que, não tendo impugnado aquele despacho, tal significa que acabou por aceitar o seu teor. E esse despacho é cindível daquele proferido em 02.03.2020 que considera efectivamente efectuados os pagamentos ao Sinistrado.
Com efeito, o cerne do presente recurso é a consideração de que os pagamentos devidos ao Sinistrado foram feitos e que nada mais há a apreciar e a ordenar quanto aos mesmos, declaração que consta apenas e tão só do despacho de 02.03.2020.
 E é dessa decisão que foi interposto recurso.
Ora, à presente acção e ao recurso são aplicáveis as normas do CPT na versão introduzida pela Lei n.º 107/2019 de 9 de Setembro que entrou em vigor no dia 9 do mês seguinte (arts.5.º n.º1 e 3 e 9.º n.º 1).
Assim, face ao disposto no artigo 80.º n.º 2 do CPT o prazo de interposição do recurso é de 15 dias.
Uma vez que o Ministério Público foi notificado do despacho em 03.03.2020 e o recurso foi interposto em 18.03.2020, impõe-se concluir que é tempestivo.
*
Apreciemos, agora, se o despacho recorrido, ao considerar que foram efectivamente pagos os valores devidos ao sinistrado, nada mais havendo a apreciar ou a ordenar, viola as normas do art.º 150.º e do n.º 2, do art.º 90.º do CPT.
A este propósito defende o Recorrente, em resumo, que a apresentação de documentos internos, que alegadamente serão cartas dirigidas ao Sinistrado, supostamente retirados de um sistema informático da seguradora, não só não prova o pagamento como não permite sequer comprovar a data em que o mesmo terá efectivamente sido feito, que também não se pode notificar o Sinistrado para confirmar se lhe foram feitos determinados pagamentos com a advertência de que se nada disser em 10 dias se considera que os confirma, dado que o ónus de alegação e de prova que a lei prevê é da entidade responsável e que dessa forma se estaria a desonerar a responsável da obrigação que lhe está legalmente cometida e a transferir a responsabilidade para o pensionista e que face ao silêncio do Sinistrado não se podia considerar que estavam pagos os valores em causa, pelo que deverá concluir-se que não foi comprovado nos autos o pagamento dos créditos devidos ao sinistrado, devendo a seguradora juntar os documentos bancários comprovativos das transferências que alegou ter feito relativamente a tais pagamentos.
Vejamos.
Tendo o acidente de trabalho a que se reportam os autos ocorrido em 03.09.2018, são-lhe aplicáveis as normas previstas na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (Reparação e Prevenção de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais) – arts. 187.º e 188.º .
Assim, de acordo com o artigo 78.º da referida Lei “ Os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.”
Por seu turno, dispõe o artigo 150.º do CPT sob a epígrafe “Entrega do capital”
"A entrega ao pensionista do capital da remição ou de parte dele é feita preferencialmente por meio de transferência bancária para o IBAN do respetivo destinatário ou, não sendo possível, por termo nos autos.”
Anteriormente à redacção introduzida pela Lei n.º 107/2019 de 9 de Setembro o artigo 150.º do CPT estatuía:” A entrega ao pensionista do capital de remição ou de parte dele é feita por termo nos autos, sob a presidência do Ministério Público.”
Do confronto da redacção do artigo 150.º do CPT extrai-se que:
- Na anterior redacção, impunha-se que a entrega do capital de remição ou de parte dele fosse sempre efectuada por termo nos autos e sob a presidência do Ministério Público, dotando-se, por um lado, o acto de entrega do capital de remição de maior solenidade e, por outro, obviando-se a enganos, quer de identidade dos sinistrados, quer de outra natureza.
- Na actual redacção, o normativo em causa, para a entrega do capital de remição ou de parte dele dá preferência à transferência bancária para o IBAN do respectivo destinatário e que só no caso de tal não ser possível é que a entrega do capital de remição ou de parte dele é feita por termo nos autos.
Agilizou-se o procedimento, mas tal não significa, de modo, nenhum, que tenham diminuído as garantias que tutelam o direito de o sinistrado receber os créditos advenientes de acidente de trabalho.
E nessa senda estatui o artigo 90.º do CPT:
“1 - Tratando-se de direitos irrenunciáveis, o autor tem o prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de condenação em quantia certa, prorrogável pelo juiz, para iniciar a execução do título executivo.
2 - Se o autor não iniciar a execução no prazo fixado, e não tiver sido junto ao processo documento comprovativo da extinção da dívida no prazo referido no número anterior, o tribunal, oficiosamente, ordena o início da execução, cujas diligências são realizadas por oficial de justiça.
3 a 6 (Revogados)
7 - Para o efeito previsto no n.º 2, o requerimento executivo é preenchido pelo Ministério Público, ao qual cabe ainda, na falta de resposta do exequente e sem prejuízo do disposto no artigo 9.º, a representação deste na execução”.
Ora, também não temos dúvidas de que é o obrigado à prestação que deve comprovar nos autos a sua realização integral e pontual, mediante meios idóneos para tal.
Por conseguinte, impõe-se afirmar que era à Seguradora que incumbia comprovar nos autos que efectuou os pagamentos devidos ao Sinistrado. Donde, acompanhamos o Ministério Público quando refere que não havia que notificar o Sinistrado para vir aos autos informar se recebera os pagamentos da seguradora, quando o ónus em causa não recaía sobre ele.
Mas defende a Recorrida que comprovou nos autos os pagamentos em causa.
Conforme decorre dos autos, em 14 de Novembro de 2019 a seguradora, para prova do pagamento da quantia de €17.380,29, juntou aos autos cópia de documento interno, com data de emissão de 6.11.2019, dirigido ao Sinistrado, denominado “Regularização de Sinistro” onde consta além do mais: “ Informamos que nesta data foi processada uma transferência no valor de EUR 17380,29 (dezassete mil trezentos e oitenta euros e vinte e nove cêntimos) para a conta identificada pelo IBAN (…).
Motivo: n.º de sinistro 436436
(…).”
Também em 25 de Novembro de 2019, a Seguradora, para prova do pagamento das quantias referentes a €12,00 de despesas de transportes, €59,33 de diferenças de IT´s e €34,90 do reembolso dos óculos, juntou aos autos outro documento interno, com data de emissão de 9.10.2019, endereçado ao Sinistrado, sob o assunto “Regularização de sinistro” no qual consta, além do mais, que “ nesta data foi processada uma transferência bancária no valor de 106,23 EUR para a conta identificada com o IBAN (…).”
Motivo: Nº sinistro 436436.”
E ainda juntou um outro documento interno para prova do pagamento dos juros, com data de emissão de 7.12.2019, dirigido ao Sinistrado e no qual consta, além do mais, “Informamos que nesta data foi processada uma transferência bancária no valor de EUR 444,00 para a conta com o IBAN (…).
Motivo: Nº sinistro 436436-Juros de Mora.”  
Ou seja, para comprovar o pagamento do capital de remição, dos juros de mora e das despesas reclamadas nos autos pelo Sinistrado, a Seguradora juntou aos autos cópias de documentos internos e retirados do seu sistema informático que terão sido endereçados ao Sinistrado e nos quais lhe dá conta que nas datas apostas nos mesmos foram processadas as quantias neles identificadas.
E também veio aos autos esclarecer por que motivo não juntou os documentos individualizados relativos a cada transferência, bem como acrescentou que, em contacto telefónico, o Sinistrado confirmou ter recebido as três transferências em causa.
Sucede, porém, que os documentos internos da Seguradora, só por si, são insuficientes para comprovar as alegadas transferências e consequentes pagamentos.
Na verdade, como se escreve no Acórdão deste Tribunal e Secção de 28 de Outubro, proferido no Processo n.º 1832/18.9T8SNT.L1 em que é Relatora a Exma. 1ª Adjunta, “O pagamento a que se referem os autos – do capital de remição e das despesas de transporte – insere-se no âmbito dos direitos indisponíveis, como resulta do disposto no artigo 78º da Lei 98/2009 de 04-09 (“Os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis …”), o que significa , entre o demais, que sobre eles não pode incidir declaração confessória (cfr. art. 354º c) do C.Civil). Ou seja, é inadmissível a declaração da sinistrada em como recebeu as quantias em dívida, portanto, o silêncio da sinistrada, mesmo na sequência da advertência judicial de que, se nada disser, se têm como pagas as quantias, é ineficaz pois tratar-se-ia de uma confissão ficta.
Sendo à Seguradora que incumbia a prova do pagamento – artigo 90º nº2 do CPT – cumpre verificar se os documentos que juntou são aptos a fazer prova inequívoca do mesmo.
Constatamos desde logo que os documentos não foram impugnados. No entanto, a sua não impugnação não é bastante para concluir acerca da sua força probatória. Ela terá de encontrar-se no próprio documento. Como afirma o recorrente, antes das alterações ao CPT, operadas pela Lei 107/2019, de 09-09, a entrega do capital de remição tinha necessariamente de ser feita por termo nos autos e sob a presidência do Ministério Público, conforme dispunha o artº 150.º do CPT. Actualmente, a lei privilegia a transferência bancária – artigo 150º do CPT – “A entrega ao pensionista do capital da remição ou de parte dele é feita preferencialmente por meio de transferência bancária para o IBAN do respectivo destinatário ou, não sendo possível, por termo nos autos.” Em ambos os regimes está bem patente a importância que a lei confere à prova da extinção da obrigação pelo pagamento. Essa prova deve ser inequívoca.
No caso dos autos, estamos em presença de documentos que foram emitidos pela própria companhia e seguros, e que não demonstram a existência de qualquer transferência bancária. A prova dessa transferência deve ser feita mediante documento bancário que a ateste.
A argumentação apresentada pela responsável não assume qualquer relevância ante aquele que é o desiderato legal, que é a prova efectiva do pagamento pela responsável.”
Perfilhamos este entendimento, pelo que resta concluir pela procedência do recurso.
Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine que a entidade responsável, BBB, comprove nos autos a extinção da obrigação de pagamento ao sinistrado do capital de remição, juros, despesas com transportes das deslocações feitas no âmbito do processo, reembolso com as despesas para aquisição dos óculos graduados e das diferenças de indemnizações pelo período de incapacidade temporária, mediante documento comprovativo da competente transferência bancária.
Custas pela Recorrida.
Registe e notifique.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2020
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Filomena Manso