Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE ANTUNES | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA MENORES DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - Não se revelando, objectiva e manifestamente, total desnecessidade na recolha antecipada de prova, inexiste justificação legal plausível para o indeferimento da tomada de declarações para memória futura aos menores alegadamente vítimas de crime de violência doméstica. II - A circunstância de os menores terem já sido ouvidos perante a CPCJ, não torna desnecessária a sua inquirição no âmbito do inquérito – aquela primeira audição não constitui diligência de produção de prova no inquérito, sendo que, na direcção dessa fase processual, o Ministério Público é autónomo e livre para, com observância das exigências decorrentes do princípio da legalidade e da obrigatoriedade da prática de certos atos de inquérito, realizar as diligências investigatórias que entender necessárias, em vista a proferir despacho de encerramento do inquérito, seja de arquivamento ou de acusação. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa * I – relatório 1. O Ministério Público junto do Juízo de Competência Genérica de ... requereu, no âmbito do Inquérito com o NUIPC 128/22.6T9VFC a tomada de declarações para memória futura às vítimas, nos seguintes termos: “Remeta à Instrução Criminal, requerendo-se a tomada de declarações para memória futura das vítimas A e B, ambos menores de idade, nascidos, respectivamente a 18/04/2013 e 22/05/2014, nos termos do disposto no art.º 33.º, n.º 1 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, também do art.º 271.º do Código de Processo Penal e igualmente de acordo com a Lei n.º 93/99, de 14 de Julho. Investiga-se nestes autos a prática de factos susceptíveis de integraram, em abstracto, a previsão típica do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal ou do crime de maus tratos, p. e p. pelo art.º 152.º- A, do mesmo diploma legal, alegadamente cometidos por parte dos progenitores das vítimas. Resulta já do auto de denúncia, bem como da inquirição como testemunha, de Maria Filomena Pavão, que os arguidos agridem fisicamente os menores e não providenciam as refeições adequadas aos mesmos, sendo que os menores passam, amiúde, fome. Assim, cabe averiguar se, além dos factos descritos, outros terão ocorrido, e quais, quando, onde e como tomaram lugar. Para tal desiderato, essencial se afigura o depoimento dos menores. Considerando que os menores têm 8 e 9 anos de idade, e sendo os seus progenitores os autores dos factos, afigura-se-nos que A e B, sendo vítimas do crime de violência doméstica são, nos termos do disposto no art.º 67.º-A, n.º 1, alíneas a), i) e b) e n.º 3, do Código de Processo Penal, vítimas especialmente vulneráveis. Às vítimas especialmente vulneráveis são aplicáveis, além das normas processuais penais, as medidas de protecção previstas na Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, de entre as quais figura a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 21.º n.º 2, alínea d) e 24.º de tal diploma legal, as quais devem tomar lugar num ambiente informal e reservado, porquanto se visa garantir, designadamente, que as suas respostas sejam espontâneas. Não sendo compulsória a tomada de declarações para memória futura nestes casos, há que as ponderar numa perspectiva de equilíbrio entre os interesses de defesa dos arguidos, com os interesses da vítima, nomeadamente os da sua protecção e revitimização. No caso concreto, reputamos que as vítimas deverão beneficiar de tal medida de protecção prevista legalmente, considerando a gravidade dos episódios e circunstâncias susceptíveis de agravar a vulnerabilidade das vítimas. Ademais, conforme determinado na Directiva n.º 5/2019 da Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público requer obrigatoriamente a tomada de declarações de crianças presentes em contexto de violência doméstica, ainda que não sejam destinatárias de violência. Assim, requer-se a V.Exa se digne agendar a tomada de declarações para memória futura às vítimas. Mais se requer seja determinada a presença de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento das testemunhas, se for caso disso, e proporcionar às testemunhas o apoio psicológico necessário por técnico especializado — artigo 27º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (Protecção de Testemunhas), facultando-se os necessários contactos com a antecedência necessária a esse acompanhamento.” 2. Por despacho datado de 8 de dezembro de 2022, o Sr. Juiz de Instrução Criminal decidiu indeferir o requerimento do Ministério Público, nos seguintes termos: “Dispõe o artigo 33.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16/09, na redação atualmente em vigor, com a epígrafe "Declarações para memória futura", o seguinte: "1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, afim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento". Conforme mencionado no Acórdão TR Coimbra de 07/04/2021, Proc. n.º 86/20.1T9OFR-A.C1, Relatora: Des. Isabel Valongo, cujo sumário se transcreve: "1— Por força do disposto no n.º 3 do artigo 67-A do CPP, as vítimas de condutas constitutivas do crime de violência doméstica integram-se, ope legis, na categoria de "vítimas especialmente vulneráveis". II — Daí decorre a faculdade concedida ao juiz de tomada antecipada de declarações das referidas vítimas, devendo a pretensão solicitada para a realização do dito acto ser deferida, excepto quando, objectiva e manifestamente, se revele totalmente desnecessária". No caso em apreço, entendemos que a tomada de declarações para memória futura dos dois menores aqui em causa (A e B, atualmente com 9 e 8 anos de idade) revela-se totalmente desnecessária, de forma objetiva e manifesta. Vejamos: Em primeiro lugar, o presente processo tem início com uma comunicação de alegados maus tratos perpetrados pelos pais dos menores, comunicação essa feita pela avó paterna dos mesmos. Ora, no auto de participação de fls. 6, resulta que a avó paterna C alegou que o pai A pegou no menor B pelo braço e bateu-lhe na cara, cabeça e costas, ficando com hematomas (o que não foi corroborado pelo Agente da P.S.P., pois nesse mesmo dia não verificou qualquer hematoma ou arranhão no menor em causa). Mais referiu a avó C que os menores em causa passam fome. Em segundo lugar, os menores foram ouvidos muito recentemente pela C.P.C.J. da ... (vide Processos n.º 173/22.1T9VFC e 174/22.0T9VFC, apensos aos presentes autos — ambos no dia 8 de novembro de 2022), por dois técnicos especializados. Dos respetivos autos de audição nada resulta que as crianças passem fome, muito pelo contrário: o menor B declarou, além do mais, "De manhã, ao pequeno almoço, come cereais e para o lanche leva, igualmente, cereais que mistura com leite, Quando a mãe prepara sandes para levar, gosta de manteiga, doce, bem como, pãezinhos com chocolate. Ao almoço, come a comida fornecida pela Escola. A criança referiu que, quando chega da escola, faz os TPC's e ao jantar come a comida confecionada pela mãe". Por seu turno, o menor A declarou, além do mais, "Ao pequeno almoço, come pão com manteiga. Ao lanche, bebe o leite da escola com cereais ou pão, preparado pela mãe. Ao almoço, come a comida fornecida pela escola. (...) Ao jantar, come a comida confecionada pela mãe, acrescentando que a sua sopa preferida é a de feijão e a sua comida preferida é batata frita com hambúrguer. A referiu que ajuda a colocar a mesa para o jantar e que a mãe, depois lava a loiça ou passa o chão, sendo que, às vezes, o irmão ajuda a lavar a loiça". Aquando do requerimento para tomada de declarações para memória futura dos dois menores, os autos de audição dos mesmos ainda não se encontravam no processo, tendo o Tribunal ordenado a sua junção. Após, o Tribunal determinou a abertura de vista ao Ministério Público para se pronunciar, tendo o mesmo manifestado que Mantém o pedido em causa, porquanto "o menor A afirmou que «o meu pai às vezes dá-me uma rabada» e o menor B afirmou que o progenitor «dá-lhe palmadas»". Ora, com o devido respeito, não se antevê de que forma possam os factos que constam do processo integrar minimamente o crime de violência doméstica, porquanto dos autos de audição dos menores resulta precisamente o contrário. Na verdade, o menor B declarou, entre o mais, "B disse que num dia «o meu pai deu-me duas palmadas no rabo, porque saí de casa sem pedir, mas pedi desculpa à minha mãe» (sic). A criança referiu também que o pai dá-lhe palmadas, às vezes, quando «me porto mal» (sic)_ Mas que isso acontece «quando eu mereço» (sic). A última vez que o pai ter-lhe-á dado uma palmada, aconteceu quando «eu saí de casa sem pedir, há um tempinho atrás» (sic). Contudo, B também disse que o pai dá abraços, acrescentando «o meu pai dá-me mais abraços que palmadas» (sic)" (sublinhado nosso). Mais consta do auto de audição que "Quando foi pedido para a criança completar a frase «eu gosto da minha mãe, porque...», o mesmo completou, dizendo «a minha mãe compra comida para mim» (sic) e em relação ao pai salientou que «o meu pai ajuda a fazer os TPC's» (sic)" (sublinhado nosso). Também o menor A declarou, entre o mais, "A criança disse que «quando o meu irmão se portou mal e fugiu para a casa da minha avó e o meu pai deu-lhe duas palmadas, eu estava a dormir» (sic), O A disse que fica de castigo porque «me porto mal» (sic). (...) A disse que «o pai às vezes dá-me uma rabada e a mãe fala mais alto» (sic) e que isso acontece «às vezes» (sic). Na última vez que o pai deu-lhe uma palmada, a criança não se lembra do porquê". Mais consta do auto de audição que "Quando foi pedido para a criança completar a frase «eu gosto da minha mãe, porque...», o mesmo completou, dizendo «eu amo a minha mãe» (sic) e em relação ao pai salientou que «faz comida» (sic)" (sublinhado nosso). Finalmente, acresce que os pais aceitaram a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, proposta pela C.P.C.J. da ... (fls. 47-48). Ora, é patente que há uma desavença familiar entre avó paterna e os pais dos menores aqui em causa. Também resulta que os menores foram já ouvidos e, caso houvesse tomada de declarações para memória futura, não acrescentariam muito mais do que já relataram quando ouvidos por dois técnicos especializados da C.P.C.J. da .... Fará sentido ouvir novamente os dois menores aqui em causa, no Tribunal, de modo a tomar declarações para memória futura? Cremos que não. Tudo indica que as crianças gostam muito dos pais, nutrem por eles afeto e amor e são bem tratadas e acompanhadas no seu desenvolvimento físico e psíquico, sendo que as palmadas e rabadas em causa, salvo melhor opinião, não parecem assumir relevância criminal, pois, nas certeiras palavras do Acórdão do TR Coimbra de 10/11/2021, Proc. n.º 110/17.5GASAT.C2, Relatora: Des. Maria José Nogueira, "Só o castigo corporal desproporcionado, imoderado, aquele que ultrapassa o ius corrigendi socialmente aceite, assume relevância criminal". Em face do exposto, uma vez que as crianças já foram ouvidas e sem qualquer outro elemento de prova, parece-nos manifestamente inusitada a tomada de declarações a ambas, principalmente quando tudo aponta que a participação inicial mais não foi do que uma arma de arremesso utilizada pela avó paterna e, em acréscimo, os pais já se encontram a receber apoio da C.P.C.J. no que concerne à utilização de rabadas e palmadas na educação dos seus filhos. Donde, indefere-se o requerido. Notifique e devolva os autos ao DIAP de ...”. 3. Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o Ministério Público, pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que determine a realização da requerida diligência. Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões: “1. Requerida a tomada de declarações para memória futura aos menores A e B, nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, porquanto a avó paterna destes, foi tal requerimento indeferido por despacho do Mmº. JIC, porquanto "(...) resulta que os menores firam já ouvidos e, caso houvesse tomada de declarações para memória futura, não acrescentariam muito mais do que já relataram quando ouvidos por dois técnicos especializados da CP. C.J. da ... (...) uma vez que as crianças já foram ouvidas e sem qualquer outro elemento de prova, parece-nos manifestamente inusitada a tomada de declarações a ambas, principalmente quando tudo aponta que a participação inicial mais não foi do que uma arma de arremesso utilizada pela avó paterna e, em acréscimo, os pais já se encontram a receber apoio da C.P.C.J. no que concerne à utilização de rabadas e palmadas na educação dos seus filhos."; 2. O despacho recorrido alicerça assim a sua decisão no conteúdo dos autos da audição aos menores, presididas pela CPCJ da ..., da circunstância de o agente da PSP autuante não ter observado hematomas ou arranhões no corpo de B num dia determinado, considerando, igualmente, que a denunciante dos factos em investigação, C, progenitora dos menores, utilizou a denúncia como "arma de arremesso" contra os arguidos, de tudo isso retirando a desnecessidade de diligenciar pelo depoimento de memórias futuras dos dois menores 3. Salvo o devido respeito, em face do exposto, o despacho recorrido, ao indeferir a tomada de declarações para memória futura, violou o disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, bem como o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, art.º 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e art.ºs 21.º. n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015 de 04 de Setembro. 4. No caso concreto, é necessária a audição dos menores B e A por Autoridade Judiciária no sentido de melhor concretizar os factos investigados, sendo os seus depoimentos essenciais à descoberta da verdade, porquanto há factos que são directamente vivenciados e apenas presenciados pelos menores. 5. Na verdade, mal se compreende como podem os autos de audição, efectuadas pela CPCJ, substituir ou dispensar a produção de prova no inquérito, cujo objectivo e valor probatório diverge completamente. 6. Os menores B e A são vítimas especialmente vulneráveis, o que resulta: da sua diminuta idade, da relação de parentesco mantida com os ora arguidos e do ascendente que dessa relação decorre, da circunstância de serem vítimas, segundo a denúncia, de crime de violência doméstica 7. Tal como se decidiu, entre muitos outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Agosto de 2020, processo 2/20.8GDVCT-B.G1, www.dgsi.pt, «a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima». 8. No caso concreto, não se vislumbra, nem foram alegadas razões atendíveis para censurar o juízo de necessidade da referida diligência realizado pelo Ministério Público, determinado por uma linha investigatória que respeita os preceitos legais supra determinados. 9. Pelo exposto, entende-se que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que determine a tomada de declarações aos menores B e A, nos termos oportunamente requeridos pelo Ministério Público. 4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal. 5. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer no sentido da procedência do recurso, aderindo à motivação e conclusões constantes das alegações apresentadas pelo Ministério Público junto da 1ª instância e acrescentando: “Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a posição do Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, aderindo-se à correta e bem fundamentada argumentação oferecida na sua Motivação e Conclusões do Recurso interposto, que aqui se subscreve e se dá por reproduzida, sublinhando-se, na linha do que consta da Motivação de Recurso que jamais os Autos de Audição efetuados pela CPCJ no âmbito de Processo de Promoção e Proteção poderão substituir ou dispensar a produção de prova em inquérito, nomeadamente a tomada de declarações para memória futura. Assim, o despacho judicial recorrido, salvo o devido e muito respeito por opinião diversa, a nosso ver, não deveria ter atribuído aos Autos de Audição efetuados pela CPCJ os efeitos jurídicos e probatórios que lhes atribuiu, socorrendo-se do conteúdo dos mesmos para fundamentar o indeferimento do requerimento apresentado pelo Ministério Público. Por outro lado, em termos jurisprudenciais, e entre outros, indica-se o Ac. TRL de 04-06-2020 (Proc. 382/19.0PASXL-A. L1 9ª Secção Desembargadores: Leonor Botelho e Maria do Carmo Ferreira) no qual se sustenta o seguinte: «I - No caso de crime de violência doméstica, a audição da vitima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vitima. Estabeleceu assim a lei um regime mais favorável nas situações de violência doméstica, concedendo legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando assim a sua protecção e evitando as, situações de revitimação. II - Sendo o crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos integra a noção de criminalidade violenta definida no art.º 1.º, alínea j), do C.P.P. Então haverá que considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do n.º 1 do art.º 67.º-A do ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade. III - A par do direito de audição em declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, reconhecido pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro — diploma aplicável a qualquer vítima de criminalidade mostra-se também legalmente reconhecido o direito de audição em declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, nos termos constantes do referido art.º 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro. Acresce que, o art.º 67.º-A do C.P.P., no qual se considera, como dissemos, vítimas especialmente vulneráveis, para além do mais, as vítimas de criminalidade violenta, foi introduzido precisamente pela referida Lei n. 130/2015, de 4 de setembro». * Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, o despacho judicial recorrido deve ser revogado e substituído por outro que que determine a tomada de declarações para memória futura aos menores nos termos requeridos pelo Ministério Público.” 6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir. * II – questões a decidir. Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»). Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir é a de saber se ocorrem ou não razões para indeferir a realização da diligência de declarações para memória futura. * iii – Elementos resultantes dos autos. Com relevo para a decisão a proferir, apura-se dos elementos certificados nos presentes autos, o seguinte: - Em 06.09.2022 a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens da ... enviou ao Ministério Público (DIAP – Secção de ...) comunicação referente ao menor B, de 8 anos de idade, com, para além do mais, o seguinte conteúdo: “O Processo de Promoção e Proteção (PPP) da criança B foi aberto a 06-09-2022, por motivo da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens da ... (CPCJP) ter recebido uma sinalização da Polícia de Segurança Pública — Esquadra da ..., na qual é mencionado que a criança é alegadamente vítima de maus tratos físicos e psicológicos, perpetrados pelos pais, bem como é alegadamente vítima de negligência parental ao nível da alimentação. Na referida sinalização, a avó paterna referiu que a criança, muitas vezes, vai à sua casa pedir comida, porque está com fome, apesar dos pais da criança o proibirem de frequentar a residência da avó. Ainda mais consta que a criança é agredida física e verbalmente pelos pais. Atendendo às situações de perigo da criança, no dia 06-09-2022, a Comissão Restrita em reunião deliberou, por unanimidade, incumbir a gestora e cogestora de processo de realizarem a comunicação dos alegados maus tratos físicos e psicológicos, perpetrados pelos pais, ao Ministério Público — Departamento de Investigação e Ação Penal — Secção de ..., ao abrigo do artigo 70.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo na sua redação atual. Presentemente, o PPP do B encontra-se em fase de avaliação diagnóstica, aguardando-se pela receção da certidão de nascimento da criança, no sentido de, posteriormente, a gestora e cogestora de processo procederem à convocatória de quem tenha que prestar o consentimento e da criança para audição. Mais se informa, que a gestora e cogestora de processo comunicaram ao Ministério Público - Procuradoria Junto Instância Central, secção de Família e Menores, Comarca dos Açores os alegados maus tratos psicológicos, perpetrados pelos pais à criança. Segue em anexo, a cópia da sinalização de maus tratos dos pais contra a criança.”. - A “sinalização” a que se encontra referência na sobredita comunicação corresponde à participação lavrada na Esquadra da PSP da ... em 22.08.2022, pela agente D, na qual se exarou que “A PSP deslocou-se ao local e detectou indícios claros da prática dos factos” que ali surgem descritos do seguinte modo: “Na data e hora acima mencionadas, quando me encontrava de Graduado de Serviço, recebi neste Departamento Policial uma chamada telefónica dos Bombeiros Voluntários da ..., a pedir a colaboração desta policia, pois receberam um pedido de ajuda do contato 967580972, contato pertencente a C (devidamente identificada em item próprio), a Informar que houve agressões entre o seu filho e o seu neto na sua residência. Chegada ao local, contactei com C, a qual comunicou-me o seguinte: No dia 19 de agosto do presente ano, C encontrava-se em sua casa, quando o seu neto (devidamente identificado em item próprio) veio ter com a mesma a pedir comida porque estava com fome, tendo também passado o dia inteiro com ela. Ao final da tarde (…) queria ir para o quintal brincar e mexer em água, mas como o mesmo já tinha tomado banho e C não queria que este ficasse doente, disse-lhe para não mexer na água, tendo este de imediato ido para casa dos pais. Passado alguns minutos C ouviu o seu filho, A (devidamente identificado em item próprio), pai do (…), a gritar com o mesmo e a dizer o seguinte "Não vais mais para aquela casa". Importa referir que residências de ambos são anexas uma à outra. C referiu que o (…) vai muitas vezes ter com ele, pedindo-lhe comida porque está com fome. No dia 20 de agosto, quando foi ter com a avó, disse-lhe que o pai mandou-o ir pedir cigarros a um vizinho, que é conhecido como o "pai do lourinho". No dia 21 de agosto, C estava a preparar o almoço para si e para o seu neto, quando ouviu E (devidamente identificado em item próprio), mãe do (…) a gritar com ele, tendo este de imediato ido para casa da avó e dito "fecha a porta à chave". A mesma disse que 2 minutos depois, A foi até à casa da mesma, abriu a porta da residência pegou no B pelo braço e bateu-lhe na cara, cabeça e costas, levando-o para sua casa. C disse que o B tinha hematomas na cabeça, cara e nas costas, sendo que esta polícia verificou o estado do mesmo e não foi verificado qualquer hematoma ou arranhão no (…), não sendo necessário qualquer tipo de tratamento hospitalar. Informou que costuma ajudá-los, dando mantimentos aos mesmos e fazendo comida para dar aos seus netos, filho e nora. De seguida contactei com A e E, pais do B, sendo que os quais me comunicaram o seguinte: C cria conflitos com os mesmos desde o início da relação, pois não gosta de E, sua nora. A e E têm dois filhos menores em comum (…) e A. Os mesmo informaram que a situação do dia 21 de agosto aconteceu da seguinte forma: E estava a estender a roupa no quintal e a falar com o seu filho, (…), tendo este respondido à mãe de forma agressiva e em alto tom. A ao verificar a reacção que o filho teve para com a mãe, não gostou e de forma a educar e repreender o mesmo pelo sucedido, foi atrás do (…) tendo este fugido para casa da sua avó. A disse que realmente bateu no filho, mas não lhe fez nada de mais apenas o repreendeu, visto que o filho tem vindo a ter este tipo de atitudes anteriormente pare com a mãe. A disse ainda que C apenas mostra afeto para com o (…), desprezando o outro neto, A (devidamente Identificado em item próprio). Importa referir que A e E estão a passar por uma fase difícil financeiramente, pois encontram-se os dois desempregados.”. - No âmbito do NUIPC 128/22.6T9VFC, no dia 22 de setembro de 2022, foi inquirida Maria Filomena Pacheco Pavão, avó paterna dos menores B e A, tendo a mesma declarado o seguinte: “É da sua vontade, como mãe do suspeito, prestar declarações. Refere que o seu filho vive numa relação análoga às dos conjugues, com a E, da relação têm em comum dois filhos, o A, com 9 anos de idade e o B de 8 anos de idade. Esclarece que ambos os seus netos não têm refeições adequadas para as suas idades, principalmente em quantidade, porque eles estão constantemente com fome. Refere que sempre ajudou na alimentação dos seus netos, confecionou muitas refeições que levava para os seus netos, que “devoravam” a comida. O seu neto mais velho, o A é mais reservado, não lhe dizia nada, nem lhe pedia nada, mas sabia bem que ele passava fome. Relativamente ao seu neto mais novo, o B, este quando a via dizia logo que estava cheio de fome, preparava-lhe uma refeição que ele comia de seguida e dava-lhe uma outra refeição para levar ao irmão, que era envergonhado e comia na casa dos pais. Sabe que o seu filho e nora, são pobres e que têm como primeira prioridade adquirir os seus vícios, como cigarros, deixando o bem-estar dos filhos para segundo plano. Por vezes faltam-lhes dinheiro, para a alimentação, mas nunca para os vícios (tabaco, café entre outras coisas). Os seus netos são vítimas de agressões por parte dos pais, principalmente o B. O A é mais reservado e tímido, fazendo tudo o que os pais lhe exigem, pelo que não é muito castigado fisicamente. Quanto ao B, como é mais sociável, conta-lhe tudo, como por exemplo que passa fome e os pais ao saberem disso, batem-lhe. Tem conhecimento de que os pais, deixam ambas as crianças sozinhas em casa, durante o dia, para poderem ir confraternizar para os cafés. Em termos de higiene e vestuário, os seus netos são bem tratados. Neste momento não tem uma boa relação com a sua nora, E e sabe bem que ela e o seu filho não querem que os seus netos visitem a avó, principalmente o B, que lhe conta tudo o que se passa em casa. O A é obediente aos pais e deixou de a visitar. O B mesmo sabendo, que os pais não o permitem, continua a visita-la e diz-lhe quase sempre que está com fome, que passa fome em casa. Relativamente a episódios de violência física, já assistiu a agressões. No dia em que chamou a polícia, (22-08-2022) o B foi fazer-lhe uma visita e reparou que ele tinha um hematoma numa das faces da cara. O B disse-lhe que foi o pai que lhe desferiu umas bofetadas. Após o B lhe relatar o acima descrito ele pede-lhe subitamente para fechar a porta. Fechou a porta e logo em seguida, surge o seu filho a bater na porta, abriu-a e o seu filho entrou, foi diretamente ao B que estava na cozinha, agarrou-o violentamente por um braço, e arrastou-o para o exterior ao mesmo tempo que lhe desferia inúmeras pancadas com as mãos. O seu filho batia no seu neto e dizia não te quero mais na casa da tua avó, nunca mais vens para aqui e continuava a desferir-lhe inúmeras bofetadas. No exterior estava a sua nora E, que pegou no B e levou-o para casa, desconhece se ela agrediu o B. Apenas ouvia a E a dizer, nunca mais quero ver a tua avó, nem morta (…) Em seguida o seu filho foi-se embora e nada mais aconteceu. Sabe que o seu filho manda os seus netos irem pedir-lhe cigarros a vizinhos. Refere que por vezes constatava marcas/hematomas no corpo dos seus netos, principalmente o B, não tem qualquer tipo de dúvida que era marcas de maus tratos físicos perpetrados pelo seu filho e nora. Tem noção que o seu filho e nora exageram nas repreensões física aos filhos. Sabe que a sua nora deve muito dinheiro a terceiros. O seu filho e nora não sabem gerir bem as suas vidas familiares e monetárias. O seu filho está todo o dia no computador, em casa, não procuram emprego e esta é outra das razões para terem problemas económicos. Vivem de ajudas do Estado e a sua nora esta a frequentar um programa na Câmara Municipal da .... E nada mais se recorda ou lhe foi questionado de útil à investigação.”. - No dia 8 de novembro de 2022, os menores B e A foram ouvidos pela CPCJ da ..., por dois técnicos especializados, em diligências a que compareceram acompanhados pelos progenitores, os quais, nas instalações daquela Comissão deram autorização para que as crianças fossem ouvidas sozinhas. O menor B declarou: “A gestora de processo perguntou ao B se sabia o que vinha fazer à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e se alguém lhe havia explicado o motivo, tendo respondido que sim e que era por causa da avó paterna. A gestora de processo explicou à criança o que era uma CPCJ e os direitos e deveres da criança. B disse que num dia "o meu pai deu-me duas palmadas no rabo, porque saí de casa sem pedir, mas pedi desculpa à minha mãe"(sic). A criança referiu também que o pai dá-lhe palmadas, às vezes, quando "me porto mal" (sic). Mas que isso acontece "quando eu mereço" (sic). A última vez que o pai ter-lhe-á dado uma palmada, aconteceu quando "eu saí de casa sem pedir, há um tempinho atrás" (sic). Contudo, B também disse que o pai dá abraços, acrescentando "o meu pai dá-me mais abraços que palmadas" (sic). Na escola, B admitiu que "bato nos outros meninos, mas também me batem em mim" (sic) A gestora explicou à criança que nenhuma criança deve levar palmadas, nem dar palmadas nas outras pessoas. B disse que está no segundo ano da escola e que a mãe o ajuda a fazer os TPC's e que "as coisas estão a correr bem, a minha professora chama-se Isabel e eu gosto dela" (sic). B referiu que não tem saudades da avó, apesar de dizer que gostava de estar com a mesma e que gostava da sua comida. Disse que a avó bateu-lhe uma vez, porque estava a "brigar com o meu primo e ela deu-me uma palmada na cabeça" (sic). No que se refere às atividades do dia a dia, B mencionou que ajuda a mãe a lavar a louça, às vezes, quando "a minha mãe está a dormir" (sic) e também dobra a roupa. O B partilha o quarto com o irmão, sendo que possuem um beliche. Uma vez que não têm uma escada, dormem na mesma cama. Quando foi pedido para a criança completar a frase "eu gosto da minha mãe, porque...", mesmo completou, dizendo "a minha mãe compra comida para mim"(sic) e em relação ao pai salientou que "o meu pai ajuda a fazer os TPC's" (sic). A criança respondeu que a sua comida favorita é canja de galinha e, no futuro, gostava de ser jogador de futebol, sendo que, a mãe vai colocar a criança e o irmão no Clube de Futebol ... De manhã, ao pequeno almoço, come cereais e para o lanche leva, igualmente, cereais que mistura no leite. Quando a mãe prepara sandes para levar, gosta de manteiga, doce, bem como, pãezinhos com chocolate. Ao almoço, come a comida fornecida pela Escola. A criança referiu que, quando chega da escola, faz os TPC's e ao jantar come a comida confecionada pela mãe.” O menor A declarou: “A gestora de processo perguntou ao A se sabia o que vinha fazer à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e se alguém lhe havia explicado o motivo, tendo respondido que não sabia. A gestora de processo explicou à criança o que era uma CPCJ e os direitos e deveres da criança. Em seguida, a gestora de processo explicou ao A que o processo surgiu por causa da avó paterna. A criança disse que "quando o meu irmão se portou mal e fugiu para a casa da minha avó e o meu pai deu-lhe duas palmadas, eu estava a dormir" (sic). O A disse que fica de castigo porque "me porto mal" (sic). Ao pequeno almoço, come pão com manteiga. Ao lanche, bebe o leite da escola com cereais ou pão, preparado pela mãe. Ao almoço, come a comida fornecida pela escola. Quando sai da escola, vai numa carrinha para casa e quando chega a casa, come, faz os TPC's, com a ajuda da mãe. A refere que toma banho sozinho e, às vezes, junto com o irmão. Ao jantar, come a comida confecionada pela mãe, acrescentado que a sua sopa preferida é a de feijão e a sua comida preferida é batata frita com hambúrguer. A referiu que ajuda a colocar a mesa para o jantar e que a mãe, depois lava a loiça ou passa o chão, sendo que, às vezes, o irmão ajuda a lavar a loiça. Quando questionado pela gestora, A respondeu que as coisas na escola estão bem. A criança disse que não sente saudades da avó, porque não gostava da mesma, na medida em que "quando ia para a casa dela, ela garriava comigo" (sic). Desde que os pais brigaram com a avó, nunca mais a viu, nem quer. A disse que "o pai às vezes dá-me uma rabada e a mãe fala mais alto" (sic). A criança disse que o pai dá-lhe uma palmada quando "eu me porto mal" (sic) e que isso acontece "as vezes" (sic). Na última vez que o pai deu-lhe uma palmada, a criança não se lembra do porquê. A gestora de processo explicou à criança que nenhum adulto tem o direito de bater numa criança. Em relação ao irmão, referiu que "ele é meio endoidado, gosta de bater nos outros meninos" (sic). A mencionou que os pais fumam dentro de casa, no quarto e nas restantes divisões da casa. Quando foi pedido para a criança completar a frase "eu gosto da minha mãe, porque...", o mesmo completou, dizendo "eu amo a minha mãe" (sic) e em relação ao pai salientou que "faz comida" (sic). No que se refere ao irmão, completou a frase, dizendo "porque ele é fofinho" (sic). Em relação à avó paterna, a criança acrescentou que "ela escondia comida de mim" (sic). A criança manifestou o seu interesse pelos jogos de telemóvel, sobretudo, relacionados com armas e, no futuro, gostava de ser polícia.” - Resulta dos termos certificados nos autos que no âmbito do inquérito NUIPC 128/22.6T9VFC não foram realizadas outras diligências. - Encontram-se em investigação no NUIPC 128/22.6T9VFC factos suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal. - A denunciante Maria Filomena Pacheco Pavão, testemunha presencial, foi inquirida pelos OPC´s previamente à prolação do despacho recorrido. * iv – Fundamentação. O crime em investigação no NUIPC 128/22.6T9VFC é o de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. e), e 2, al. a), do CP. Dispõe o art.º 271º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe declarações para memória futura, que: “1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º 7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações. 8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”. Por seu turno, o artigo 67º-A, nº 1, als. a), i) iii), e b), do CPP, ora com interesse, considera “vítima” a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, a criança ou o jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação no âmbito da prática de um crime, e “vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade. Por outro lado, o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica - Lei 112/2009, de 16 de setembro - estabelece no respetivo artigo 33º, sob a epígrafe declarações para memória futura que: 1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal. 4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal. 6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações. 7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. Em face do preceituado nas normas supra transcritas, nenhuma dúvida pode ter-se sobre a ocorrência de sustentação legal para realização da diligência de declarações para memória futura dos menores B e A, sendo certo que nos autos figuram como vítimas, por indiciariamente terem sido alvo de atos de violência e maus tratos pelos progenitores. O despacho recorrido não nega essa possibilidade legal, mas envereda por uma apreciação acerca da oportunidade da diligência no âmbito do inquérito, afirmando que, em consonância com o entendimento jurisprudencial seguido no Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de abril de 2021, estamos perante situação em que a diligência deve ser indeferida porque, de forma objectiva e manifesta, se revela totalmente desnecessária. No douto Acórdão[1] em que se apoiou a decisão recorrida podemos ler: “O que vem a traduzir-se numa faculdade atribuída ao juiz da tomada de declarações antecipada de vítimas de crime de violência doméstica, que implica como regra, “dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova” - Ac Rel Lisboa de 04.06.2020. No mesmo sentido Ac da Rel Coimbra de 21 de agosto de 2020 - relatora Des. Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso, onde se assinala: “Conforme resulta do transcrito art.º 33º, n.º 1, a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória (pode proceder). No entanto, deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer (no mesmo sentido, cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 9.11.2016, no proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1, e de 4.6.2020, no proc. 69/20.1PARGR-A.L1, e da Relação de Évora de 23.6.2020, no proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, todos em www.dgsi.pt).” Importa ponderar que o direito de audição antecipada, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a vitimização secundária e repetida e ainda quaisquer formas de intimidação e de retaliação e evitar também que as repercussões decorrentes do trauma se reflictam negativamente na aquisição da prova. Efectivamente, como se extrai do e-book do CEJ Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, manual pluridisciplinar, abril 2016, pág. 40, As situações de violência continuada resultam numa diversidade de consequências e danos físicos, psicológicos, relacionais, etc, que, nos casos mais graves, poderão conduzir à incapacitação, temporária ou permanente, da vítima ou, mesmo, à sua morte.”. O indeferimento contra o qual o presente recurso surge é fundado num juízo de inoportunidade da tomada de declarações para memória futura em virtude de os menores terem já sido ouvidos perante a CPCJ, entendendo o Sr. Juiz de Instrução Criminal que “não se antevê de que forma possam os factos que constam do processo integrar minimamente o crime de violência doméstica, porquanto dos autos de audição dos menores resulta precisamente o contrário”. Entrando claramente em campo reservado à direção do inquérito, ponderou o JIC que “uma vez que as crianças já foram ouvidas e sem qualquer outro elemento de prova, parece-nos manifestamente inusitada a tomada de declarações a ambas, principalmente quando tudo aponta que a participação inicial mais não foi do que uma arma de arremesso utilizada pela avó paterna e, em acréscimo, os pais já se encontram a receber apoio da C.P.C.J. no que concerne à utilização de rabadas e palmadas na educação dos seus filhos”. O cerne da questão em apreciação está, precisamente, em saber se está na disponibilidade do Juiz de Instrução Criminal a realização de um juízo de oportunidade, designadamente acerca do momento processual mais adequado, para a tomada de declarações para memória futura em sede de inquérito, quando a diligência tem sustentação legal, ou se, pelo contrário tal juízo de oportunidade compete apenas, e em exclusivo, ao Ministério Público. É para nós clara a solução. O processo penal português tem uma estrutura essencialmente acusatória (em contraponto a uma estrutura de natureza inquisitória), desde logo por força do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que impõe uma separação dos poderes processuais de investigação e de julgamento, cabendo ao Ministério Público investigar e acusar, no exercício da ação penal (art.º 48º do Código de Processo Penal), e ao juiz julgar os factos que lhe são apresentados pelo Ministério Público (art.º 283º, do CPP) ou pelo assistente (art.º 285º, do CPP). Essa estrutura acusatória do processo penal permite ganhos em matéria de autonomia e imparcialidade, estando também intimamente relacionada com a autonomia do Ministério Público, também ela consagrada na Constituição (artigo 219º da CRP). Uma vez que o exercício da ação penal, em todas as vertentes em que se decompõe a direção e realização do inquérito (cfr. artigos 53º, 262º, 263º e 267º, todos do Código de Processo Penal), cabe em exclusividade ao Ministério Público, é sua a prorrogativa da definição do objeto do inquérito, da escolha das diligências de prova a realizar e do momento da sua realização. Nesse domínio, em que o Ministério Público se moverá sempre orientado por critérios de legalidade, não pode o Juiz (seja o Juiz de Instrução Criminal, seja qualquer outro juiz, mesmo de tribunal superior) interferir no exercício dessas competências. No domínio dos atos de inquérito, apenas se ressalvam os atos previstos nos artigos 268º e 269º do CPP, atos a praticar, ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução. Porque se impõe respeitar a estrutura acusatória do processo penal, os poderes do juiz sobre a matéria referente às diligências de produção de prova a produzir em sede de inquérito - quer quanto à natureza das mesmas, quer quanto à sua extensão, quer quanto à ordem de produção e à oportunidade temporal de realização – ficam fortemente limitados. Não compete ao juiz de instrução impor ao Ministério Público que proceda ou não proceda à realização desta ou daquela diligência investigatória, sendo o Ministério Público autónomo e livre para, com observância das exigências decorrentes do princípio da legalidade e da obrigatoriedade da prática de certos atos de inquérito, realizar as diligências investigatórias que entender necessárias em vista de proferir despacho de encerramento do inquérito, seja de arquivamento ou de acusação, e bem assim a expor os factos que entender suficientemente indiciados no libelo acusatório, qualificando-os juridicamente com autonomia. Estas considerações valem quanto ao momento em que cada uma das diligências de prova deve, em sede de inquérito, ser realizada, designadamente no que se reporta à tomada de declarações para memória futura. Neste passo deve sublinhar-se o acerto das alegações do Ministério Público, designadamente quando afirma: “Impõe-se constatar, a priori, que os menores não foram ainda ouvidos em sede de inquérito, e as declarações prestadas perante as Sras. Técnicas da CPCJ, com todo o respeito que naturalmente nos merece a respectiva diligência, não dispensam ou substituem, nem podem dispensar ou substituir, a produção de prova no inquérito, cujo objectivo e valor probatório diverge completamente. Por outro lado, o despacho recorrido invoca a ausência de outros meios de prova que fundamentem o deferimento das declarações para memória futura dos menores, sendo que, simultaneamente, descredibiliza as declarações prestadas no inquérito por C, avó paterna dos menores, considerando que a participação apresentada pela mesma — e que deu origem aos autos — configura uma "arma de arremesso" contra os denunciados, conclusão que se nos afigura, de todo em todo, precipitada, considerando a fase embrionária em que se encontram os autos. Neste ponto diga-se, que a requerida e indeferida diligência configura, exactamente, a produção de prova com vista a corroborar, ou não, os factos participados, assim se atribuindo, ou não, credibilidade aos mesmos.”. Posto isto, a ponderação da prematuridade da realização da tomada de declarações para memória futura dos menores B e A no âmbito do inquérito não é permitida ao Juiz de Instrução Criminal, por violação do poder de direção do inquérito que cabe exclusivamente ao Ministério Público. É a este que compete, dentro dos seus poderes-deveres, promover as diligências necessárias, no tempo que considere adequado, com vista a dotar o inquérito de elementos para fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar o inquérito (com ressalva, naturalmente, dos atos cuja prática é obrigatória no decurso do inquérito). Em conclusão: o despacho recorrido contende com a estrutura acusatória do processo penal, não respeitando a exclusiva titularidade do exercício da ação penal por parte do Ministério Público, na vertente do poder de decisão sobre os meios de prova a produzir em sede de inquérito e o momento em que devem ser produzidos. Não se revelando, objectiva e manifestamente, total desnecessidade na recolha antecipada de prova, inexiste justificação legal plausível para o indeferimento da tomada de declarações para memória futura dos menores B e A. Procede, pois, o recurso. * V. DECISÃO Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em revogar o despacho proferido em 8 de dezembro de 2022, que deverá ser substituído por outro que deferindo o requerimento do Ministério Público, determine a tomada de declarações para memória futura dos menores A e B. * Sem custas. * Comunique a presente decisão, de imediato, ao Processo de Inquérito NUIPC 128/22.6T9VFC. * D.N. * O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art.º 94º, n.º 2 do C.P.P.). Lisboa, 22 de fevereiro de 2022 Jorge Antunes Sandra Oliveira Pinto Mafalda Sequinho dos Santos _______________________________________________________ [1] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Abril de 2021 – Relatora: Isabel Valongo – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/693bd825675ae57c802586b30034957c?OpenDocument |