Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2171/18.0T8ALM.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: DESPACHO SANEADOR-SENTENÇA
NULIDADE
ARRENDAMENTO
CÔNJUGE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A decisão de proferir de imediato despacho saneador-sentença, porquanto, no entendimento do Mm.º Juiz, os autos forneceriam todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, dispensando a audiência prévia sem permitir às partes que se pronunciem sobre a dispensa dessa diligência, não constitui nulidade da sentença, em si mesma considerada, nos termos do Art. 615.º do C.P.C., mas sim uma nulidade relativa à tramitação do processo, por omissão de ato previsto na lei (v.g. no Art. 6.º n.º 1, conjugado com os Art.s 3.º n.º 3 e 591.º a 593.º do C.P.C.), subordinada ao regime jurídico do Art. 195.º n.º 1 do C.P.C., que só determina a invalidade dos atos subsequentes, dependentes do ato omitido, se for demonstrado que essa omissão teve influência no exame ou decisão da causa.
A celebração de contrato de arrendamento para fins habitacionais que tem por objeto imóvel que faz parte dos bens comuns de um casal, depende do consentimento de ambos os cônjuges (Art. 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C.), independentemente do facto de cada cônjuge ter poderes gerais de administração sobre dos bens comuns do casal (Art. 1678.º n.º 3 do C.C.) e do contrato de arrendamento celebrado por prazo inferior a 6 anos ser legalmente tido por ato de mera administração ordinária (Art. 1024.º n.º 1 do C.C.).
O consentimento do cônjuge deve ser especial para cada ato em concreto (Art. 1684.º n.º 1 do C.C.), não podendo consistir em autorização de caráter genérico.
O consentimento para a celebração de contratos de arrendamento incidentes sobre imóveis comuns do casal deve ser dado por escrito (Art. 1684.º n.º 2, 262.º n.º 2 e 1069.º do C.C.).
As exigências legais da especialidade do consentimento e da forma escrita são justificadas por razões relacionadas com a necessidade do cônjuge refletir e ponderar, em cada caso, as concretas implicações patrimoniais que o ato de oneração irá determinar para os bens comuns do casal. As quais, não sendo verificadas determinam a invalidade do ato, por força da conjugação dos Art.s 1682.º n.º 1 al. a), 1684.º n.º 1 e n.º 2, 262.º n.º 2, 1069.º e 1687.º n.º 1 do C.C..
A alegada existência duma autorização genérica e verbal para que o outro cônjuge possa, se quiser, arrendar certo imóvel comum do casal a terceiros, não dispensa o posterior consentimento especial para o arrendamento que concretamente vier a ser realizado, nem a forma escrita desse consentimento, ficando a validade do contrato de arrendamento dependente da confirmação desse ato pelo cônjuge não outorgante ou da caducidade do direito de ação, sem prejuízo do
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A. veio intentar a presente ação constitutiva, em processo declarativo comum, contra B. e C., pedindo a anulação do contrato de arrendamento celebrado entre os R.R., que tem por objeto a fração autónoma designada pelas letras “AF”, correspondente ao 5.º andar (...)  na Costa da Caparica, inscrito na matriz predial da freguesia da Costa da Caparica, sob o artigo ..., e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número ... desta freguesia.
Para tanto alega que é casado no regime de comuns de adquiridos com a 1.ª R. e que na constância desse matrimónio adquiriram a fração em referência, que terá servido de casa de morada de família, embora entretanto o casal esteja separado na sequência do A. ter abandonado a casa.
Sucede que, entretanto, a 1.ª R., sem o seu consentimento, arrendou tal fração ao 2.º R., o que viola o Art. 1682.-ºA n.º 1 al. a) do C.C. e determinada a anulabilidade desse contrato, nos termos do Art. 1687.º do C.C..
A 1.ª R. contestou, alegando que à data da separação do A. foi acordado entre ambos o arrendamento deste imóvel, tendo o A. então dado o seu consentimento, embora não o tenha feito por escrito. Assim, conclui pela improcedência da ação, devendo o contrato de arrendamento ser considerado validamente celebrado, pedindo também a condenação do A. como litigante de má-fé.
O 2.º R. na sua contestação alegou que desconhecia a existência de um litígio entre o A. e a 1.ª R., invocando que celebrou o contrato de arrendamento de boa-fé. Sem prejuízo, invocou a preterição de litisconsórcio passivo necessário, por não ter sido demandada a sua esposa, estando em causa a casa de morada de família.
O A. respondeu às exceções invocadas, negando ter dado consentimento ao arrendamento, exercendo o contraditório quanto ao pedido de condenação em litigância de má-fé. Requereu ainda a intervenção principal provocada do cônjuge do 2.º R..
Deferido ao incidente de intervenção principal provocada, veio a Chamada, AS., a aderir à contestação apresentada pelo 2.º R., seu marido.
Findos os articulados, veio a ser proferido despacho que fixou o valor da causa em €12.650,00 e julgou dispensar a realização de audiência prévia. Nessa sequência, de imediato, é proferido despacho-saneador sentença, julgando suprido o vício de preterição de litisconsórcio passivo necessário e, conhecendo logo do mérito da causa, julgou a ação procedente por provada, declarando a anulabilidade do contrato de arrendamento celebrado a 28 de Fevereiro de 2018 entre a 1.ª R., B., o 2.º R., C., e a Chamada, AS., e absolveu o A. do pedido de condenação por litigância de má-fé.
É dessa sentença que a 1.ª R. vem recorrer, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
a) O A. e primeira R., de ora em diante designada de Recorrente, contraíram casamento civil, sem convenção antenupcial, em 11 de Setembro de 2010, e divorciaram-se a 19 de Novembro de 2018.
b) A ora Recorrente arrendou um dos imóveis, propriedade de ambos, para fazer face ao pagamento do empréstimo bancário.
c) Não se tratando da casa de morada de família, nos regimes da comunhão geral ou de adquiridos, carece do consentimento de ambos os cônjuges a alienação, oneração e arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns.
d) Assim sendo, nestes regimes, qualquer que seja a natureza do imóvel, a sua alienação ou oneração implicam necessariamente o consentimento dos dois cônjuges.
e) Relativamente, aos contratos promessa é válido o contrato de promessa de compra e venda celebrado apenas por um dos cônjuges.
f) Contudo, não obter o consentimento do outro (seja presencial ou através de documento escrito) aquando da celebração da escritura pública de compra e venda é considerado incumprimento do contrato, fazendo nascer na esfera jurídica do promitente comprador o direito à resolução do contrato com a consequente devolução de sinal em dobro.
g) Ocorrendo uma venda de bem imóvel, sem que tenha sido prestado o consentimento de ambos os cônjuges, o cônjuge que não consentiu poderá requerer a anulação do contrato no prazo de seis meses a contar da data em que dele tomou conhecimento, mas nunca passados mais de três anos desde a sua celebração.
h) In casu, estamos perante um arrendamento, autorizado, pelo cônjuge marido, ainda na constância do matrimónio, e não se tratava da casa de morada de família, mas sim de uma segunda habitação sob a administração e posse da ora Recorrente.
i) Ora, o arrendamento foi celebrado por documento particular e o consentimento foi dado verbalmente, perante testemunhas.
j) Assim como, é válida a promessa de compra e venda feita por um só dos cônjuges, também é valido o arrendamento celebrado por um só cônjuge. Considerando-se o arrendamento um ato de administração ordinária – Cfr. artigo 1024.º, n.º 1 do CC.
k) Sendo que, tem legitimidade para dar de arrendamento um prédio a pessoa que é titular do gozo do imóvel, in casu, a ora Recorrente – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 8 de Novembro de 1994.
l) Veja-se, que andou mal, o Douto Tribunal a quo ao decidir que “o Autor apresentou a sua versão dos factos que logrou provar, ou seja, que não deu o seu consentimento.”
m) Ora, a única prova que o A. fez foi dar entrada da ação judicial, existe sim no processo falta de prova.
n) Ora, a locação constitui para o locador um ato de administração ordinária, expecto quando for celebrada por prazo superior a seis anos. – Cfr. artigo 1024.º, n.º 1 do CC.
o) Veja-se a esse propósito um excerto do acórdão do STJ de 13.03.2003 – Proc. 03B211 (disponível na Internet): “O art. 1024º do C.Civil estabelece, como regra, que a locação constitui, para o locador, um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrada por prazo superior a seis anos (nº 1). Prevê, porém, excecionalmente e no que concerne à situação de compropriedade, que o arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou consortes administradores só se considera válido quando os restantes comproprietários manifestem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento (nº 2). É certo que não está minimamente questionado que a Al.. alguma vez tenha posto em causa a validade do contrato de arrendamento. Todavia, se o fizesse, estaria a agir com claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” (artigo 334.º do C. Civil).
p) Concluiu-se, pois, no sentido de que o contrato é válido, assim como é o Contrato em causa nos presentes autos.
q) Pelo que, a decisão do tribunal a quo é nula, por interpretação desconforme dos factos e do direito, devendo para todos os efeitos ser revogada.
r) Não obstante, tudo quanto supra exposto, sempre se dirá que a sentença é nula, por falta de discussão prévia de facto e de direito, sendo que deveria ter sido convocada audiência prévia nos termos da aliena b), n.º 1, do artigo 591.º, do CPC.
s) Sendo que, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, se o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.
t) A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC).
u) A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.
v) In casu, foi intentada ação declarativa de condenação, apresentada contestação e de seguida resposta à contestação.
w) A 22 de Fevereiro de 2019, foi proferido saneador-sentença, em que, após se ponderar que o estado dos autos permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, com dispensa da audiência prévia, foram julgados procedentes os pedidos formulados pelo A. e consequentemente anulado o contrato de arrendamento, mais absolvendo o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.
x) Ou seja, foi proferida sentença sem que as partes fossem notificadas para a finalidade prevista no artigo 591.º, n.º1, al. b) do CPC, pelo que, foram confrontadas com um despacho saneador-sentença, relativamente ao qual nem tiveram oportunidade processual de se pronunciarem, nomeadamente, sobre a seleção da matéria de facto que serviu de fundamento à sentença ora impugnada.
y) A formulação legal determina que, não constituindo a decisão convocatória das partes para a audiência preliminar, caso julgado que vincule o juiz a tal apreciação, o juiz só estará habilitado processualmente a conhecer do mérito da causa, se convocar as partes, obrigatoriamente, para a audiência preliminar em despacho que expressamente contenha o objetivo e/ou finalidade previsto no 591.º, n.º1, al. b), do C.P.C., sob pena de o não fazendo, violar o disposto no art. 3.º n.º 3 do mesmo código.
z) Não tendo as partes sido convocadas com essa específica finalidade, existe uma nulidade processual, tendo a decisão recorrida violado o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C. e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa.
aa) Assim, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615.º, do C.P.C.
bb) Pelo que, o presente recurso deverá ser julgado procedente e por via disso, a sentença recorrida revogada.
cc) Foi, pois, cometida uma nulidade, traduzida na prolação de decisão final de mérito com dispensa de uma prévia diligência que era imposta por lei, suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa, considerando a omissão de convocação da audiência prévia, quando obrigatória, uma nulidade processual inominada. - vide Rui Pinto, “Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 369).
dd) Pelo exposto, deverão V. Excelências decidir a apelação procedente e consequentemente revogar a decisão de marcação de audiência previa apenas para os efeitos das alíneas a) e d), do artigo 591.º do CPC, no processo e, consequentemente, anular o saneador-sentença proferido, devendo, em substituição da decisão revogada, ser emitido despacho de convocação de audiência prévia nos termos e para os efeitos, também, da alínea b), n.º 1, do artigo 591.º, do CPC.
Pede assim que a recurso seja julgado por procedente e, em consequência, que seja revogado o despacho saneador-sentença.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Tribunal a quo ao admitir o recurso, pronunciando-se sobre a alegadas nulidades da sentença recorrida, deixou consignado o seguinte:
«Para efeitos de cumprimento do artigo 617.º do CPC, compulsado o teor da sentença proferida afigura-se que a mesma não padece de qualquer vício, nomeadamente da nulidade resultante da dispensa de audiência prévia, pelo que se indefere a invocada nulidade da sentença proferida nestes autos.»
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença;
b) A validade do contrato de arrendamento que tem por objeto um bem comum do casal, quando celebrado por um dos cônjuges, sem que o outro tenha consentido por escrito.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. O A. e a 1.ª R., B., celebraram casamento civil em 11 de Setembro de 2010, sem convenção antenupcial.
2. Encontra-se registado, pela ap. 1... com data de 23.11.2015, a favor do A. e da 1.ª R. a fração autónoma designada pela letra “AF”, correspondente ao 5.º andar (...), na Costa da Caparica, inscrito na matriz predial da freguesia da Costa da Caparica sob o artigo 1... e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número 1... deste freguesia.
3. Por acordo denominado de “Contrato de Arrendamento” e datado de 28.02.2018, a 1.ª R. deu de arrendamento ao 2.º R. e à Chamada e que estes aceitaram o locado sito no prédio identificado em -2.
*
Tudo visto, cumpre apreciar.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a ordem de precedência lógica, que não corresponde necessariamente à ordem por que foram apresentadas nas alegações de recurso.

1. Das nulidades da sentença.
A Recorrente invocou a nulidade da sentença recorrida por alegada violação do disposto no Art. 615.º do C.P.C., embora não especifique qual a alínea desse preceito que concretamente foi violada. E, não o fez, adianta-se já, por uma simples razão: é que nenhum dos fundamentos que alegou preenche a previsão do Art. 615.º do C.P.C..
Começando pela conclusão q) das alegações de recurso, aí se invocou que a decisão do Tribunal a quo era nula “por interpretação desconforme dos factos e do direito”, pretendendo com esse fundamento que a sentença seja revogada.
Ora, como escreveu com luminosa sapiência Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, 1984, pág. 122): «Temos (…) dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento, a segunda enferma de erro de atividade (erro de construção ou formação).» Neste pressuposto, só os erros formais “de atividade” se incluem na previsão do Art. 615º do C.P.C., pois só eles fulminam a sentença com o vício da nulidade. Os “erros de julgamento”, por regra, não permitem que o juiz corrija a sua decisão, porque com a sua prolação fica esgotado o poder jurisdicional e a sentença só pode ser alterada por via de recurso para o tribunal superior com o propósito de assim ser proferida decisão justa e conforme ao direito, que revogue a sentença recorrida.
Dito isto, a “errada” interpretação dos factos e do direito integra claramente uma situação de “erro de julgamento”, que não é redutível a nenhuma das previsões do Art. 615.º do C.P.C..
Quanto às demais alíneas seguintes das conclusões das alegações de recurso, centram-se as mesmas fundamentalmente no argumento de que a sentença será nula por “falta de discussão prévia dos factos e do direito”, o que é identificado como vício do processado relativo à ausência de convocação de audiência prévia, em violação do Art. 591.º n.º 1 al. b) do C.P.C., Art. 3.º n.º 3 do C.P.C. e Art. 20.º n.º 4 da Constituição.
Efetivamente, a Recorrente defende que a sentença é nula considerando que a ação foi contestada, tinha valor superior a metade da alçada da Relação e o juiz deveria convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes a prévia discussão de facto e de direito. Essa diligência poderia ser dispensada, no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (Art.s 547.º e 6.º n.º 1 do C.P.C.), se o juiz entendesse que a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, mas tal opção careceria sempre de prévia auscultação das partes (cfr. Art. 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do C.P.C.). Só que, no caso, tal não se verificou, tendo a decisão final ocorrido em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes. Assim, as partes teriam sido confrontadas com uma decisão surpresa, sem terem sido notificadas para a finalidade prevista no Art. 591.º, n.º 1, al. b) do C.P.C., em violação do princípio do contraditório estabelecido no Art. 3.º n.º 3 do C.P.C. e do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do Art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Invocou a Recorrente em seu abono a posição de Lebre de Freitas (in “A ação declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª Ed., pág. 172), Paulo Pimenta (in “Processo Civil Declarativo”, 2014, pág.s 231 e 232, pág.s 292 e 293, nota 673); Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, volume I, 2014, 2.ª Ed., pág. 536) e ainda Rui Pinto (in “Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 369), que defende que estamos perante uma nulidade processual inominada.
Por nós não temos a mínima dúvida de que a situação concreta dos autos se traduziu numa nulidade, mas não da sentença propriamente dita, porque não estamos perante qualquer dos vícios enumerados no n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C., mas sim do Art. 195.º do C.P.C.. Ou seja, não está em causa um vício de atividade formal intrínseco à própria sentença, mas antes de mais um vício na marcha do processo: uma omissão de ato integrado na tramitação processual estabelecida na lei, tal como estabelece o Art. 195.º do C.P.C..
Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª Ed., pág.s 25 a 26) identifica a dificuldade na distinção entre estes dois tipos de nulidade, precisamente quando em causa está a prolação de sentença por omissão de formalidade de cumprimento obrigatório prévio, nomeadamente por não cumprimento do princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa. Neste contexto, adianta que alguma doutrina admite o recurso dessas decisões seguindo o critério da decisão implícita (v.g. Lebre de Freitas Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Ed., pág.s 250 e 351; Anselmo de Castro in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág.s 133 a 135 e Manuel Andrade in “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 182), tendo inclusivamente o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 30/11/1995 (in C.J. – Tomo V, pág. 129), admitido que se a nulidade está a coberto de despacho judicial que a tenha sancionado, ainda que de modo implícito, o meio próprio para a arguir não é a reclamação, mas sim o recurso. No entanto, defende aquele autor que é mais seguro assentar em que sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação será a interposição de recurso fundado na nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. d) (no mesmo sentido: Amâncio Ferreira in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8.ª Ed., pág. 52).
Teixeira de Sousa (Jurisprudência 250 in https://blogippc.blogspot.pt/) também sustenta que: «o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre um questão de que, sem audição prévia das partes, não poderia conhecer (cf. Art. 615.º n.º 1 al. d), CPC)» de modo que «a nulidade só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que releva a nulidade) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um ato, mas também com o conteúdo do despacho».
Dito isto, com todo o devido respeito, do nosso ponto de vista, o vício verificado é antes de mais uma nulidade na tramitação do processado, a qual precede a decisão de prolação da sentença, sendo o recurso o meio adequado ao conhecimento dessa nulidade, uma vez que se tornou claro que o juiz decidiu definitivamente a questão relativa à conveniência da discussão da causa e dispensa de realização de audiência prévia, tornando a reclamação prévia da nulidade um ato completamente inútil. Aliás, o Tribunal a quo já sustentou que, no seu entendimento, inexiste de qualquer nulidade.
Ora, nos termos do Art. 195º n.º 1 do C.P.C., a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, «só produzem nulidades quando a lei o declare ou quanto a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
Esta nulidade do processo consiste, portanto, tipicamente num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.
A este propósito, relativamente ao teor do Art. 201º do Código de Processo Civil, que correspondia ao atual Art. 195º, escrevia Alberto dos Reis (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, pág.. 484) que: «O que (neles) há de característico e frisante é a distinção entre infrações relevantes e infrações irrelevantes. Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um ato ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infração, mas nem sempre esta infração é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se ver fica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». No segundo caso – continua o mesmo Autor – «é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».
No caso, não estávamos perante uma das situações compreendidas na previsão do Art. 592.º do C.P.C., que apenas admite a não realização de audiência prévia nas ações não contestadas (al. a) do n.º 1) e nos casos em que o processo deverá findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados (al. b) do n.º 1).
Também não estava em causa a possibilidade de dispensa de audiência prévia nos termos do Art. 593.º n.º 1 do C.P.C., pois essa hipótese dependente da conclusão de que a ação iria prosseguir para lá do despacho saneador e a audiência prévia só teria as finalidades previstas nas al.s d), e) e f) do n.º 1 do Art. 591.º do C.P.C..
Portanto, pretendendo-se conhecer de imediato sobre o mérito da causa, a dispensa de realização de audiência prévia só se justificaria no quadro legal do exercício dos deveres de gestão processual atribuídos ao juiz (Art. 6.º do C.P.C.), por se entender ser essa uma forma de agilização do processo, que contribuiria para a celeridade da resolução do litígio, evitando expediente dilatórios, com o propósito de simplificação do processado. Mas, para esse efeito, como decorre explicitamente no Art. 6.º n.º 1 do C.P.C., era efetivamente necessário ouvir primeiro as partes, no cumprimento do contraditório pleno, tal como decorre também do disposto no n.º 3 do Art. 3.º do C.P.C.. Ora, na verdade, não foi cumprida essa formalidade, tendo os litigantes sido confrontados com uma decisão imediata sobre o mérito da causa, sem possibilidade de discussão sobre a conveniência dessa decisão de dispensa de audiência prévia.
Sucede que, como referido, estamos perante uma omissão de ato processual cuja relevância anulatória está dependente do reconhecimento de que a irregularidade cometida influiu diretamente no exame ou na decisão da causa, tal como estabelece o Art. 195.º n.º 1 “in fine” do C..P.C..
Mas, para chegarmos a semelhante conclusão, teria a Recorrente que invocar quais os factos ou argumentos jurídicos novos que poderia ter trazido à discussão da causa na audiência prévia e que não tivesse já sido ponderados pela decisão recorrida. Ora, na verdade, nas presentes alegações de recurso, com exceção da citação de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que poucas semelhanças tem com o caso dos autos, repetem-se no essencial argumentos que já constavam dos articulados e que foram oportunamente apreciados de forma pormenorizada na sentença recorrida. Pelo que, só poderemos concluir que a convocação da audiência prévia para discussão dos factos e do direito, em repetição do que já constava dos articulados, era uma diligência inútil e, nessa medida, entendemos que a irregularidade cometida, de não colocar à discussão das partes a conveniência da dispensa de audiência prévia, não teve efetivamente qualquer influência no julgamento da causa.
Mesmo que se defendesse que em causa estava uma nulidade da própria sentença, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., ainda assim haveria que ponderar se o reconhecimento desse vício não se traduziria num mero expediente dilatório, sem qualquer utilidade prática, traduzido numa pura perda de tempo, para permitir às partes uma discussão fútil sobre os factos e o direito aplicável que conduziria inevitavelmente à prolação de um ato decisório de igual conteúdo. É também por esse motivo que consideramos que o enquadramento jurídico da situação dos autos é melhor traduzido na previsão do Art. 195.º n.º 1 do C.P.C., pois desse modo evita-se que o recurso seja instrumentalizado para a prática de atos inúteis, que são proibidos por lei (Art. 130.º do C.P.C.).
Em função do exposto, porque em causa está a utilidade do ato omitido, tornam-se irrelevantes quaisquer considerações relativas a alegadas violações ao princípio do processo justo e equitativo, garantido pelo n.º 4 do Art. 20.º da nossa Constituição.
A tese que sustenta a nulidade da sentença, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., é útil apenas nos casos em que exista efetivamente uma decisão-surpresa e se evidencie que a discussão da causa em audiência prévia, com cumprimento do contraditório, poderia ter influído na decisão do mérito da causa. Só que, nesse mesmo caso, chegaríamos a igual resultado, seguindo a tese da nulidade processual, nos termos do Art. 195.º n.º 1 do C.P.C..
Poderia ainda colocar-se a questão de haver conveniência na convocação das partes para a realização duma tentativa de conciliação, tal como foi invocada pela Recorrente. Mas, esse argumento, só seria válido se fosse demonstrado que havia qualquer intenção séria de todas as partes em por termo ao litígio por transação – o que não foi sequer alegado –, sendo que em qualquer caso as partes poderão sempre acordar na composição consensual da causa.
De referir ainda que, no contexto das alegações de recurso, a Recorrente faz também menção ao facto da sentença ter violado o dever de fundamentação da decisão de facto, pois não bastaria a enunciação genérica dos fundamentos da convicção do Tribunal, ficando a Recorrente impossibilitada de sindicar a prova e a legalidade da mesma (artigos 58.º a 60.º das alegações).
Apesar das conclusões de recurso serem omissas relativamente a este apontado vício, este era o único que poderia efetivamente integrar o Art. 615.º n.º 1 do C.P.C., nomeadamente nas suas alíneas b) e c), quando aí se determina que a sentença é nula quando “não se especifiquem os fundamento de facto” ou quando “ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível”.
Em qualquer caso, esse vício não se verifica no caso dos autos, porque estamos perante um despacho saneador-sentença, proferido após os articulados, sem que tenha havido qualquer outra produção de prova. Pelo que, o Tribunal só poderia relevar os factos que foram articulados pelas partes e os documentos por estas juntos até então. O que, sendo do conhecimento de todos os intervenientes no processo, permitiria facilmente às partes sindicar a decisão recorrida, apontando qualquer incoerência, inconsistência ou violação de direito probatório material.
Aliás, a Recorrente não impugna a matéria de facto provada e, na verdade, também não teria fundamento válido para tanto, pois esta reduz-se a 3 pontos: O casamento entre A. e a 1.ª R. (facto 1); o registo da propriedade sobre o imóvel a favor da A. e 1.ª R. (facto 2); e a celebração do contrato de arrendamento entre a 1.ª R. e o 2.º R. e a sua esposa (facto 3).
A tal acresce que a sentença recorrida discriminou de forma bem clara em que assentou a sua convicção, aí referindo explicitamente que: «A factualidade dada como assente, resultou da prova documental junta aos autos. Assim, para prova do facto 1 o tribunal atendeu ao teor do Assento de Casamento n.º 5...  do ano de 2010 da Conservatória de Registo Civil de Lisboa e junto a fls. 7. Relativamente ao facto provado 2, este teve por base a certidão de registo predial do imóvel em causa nestes autos (fls. 8 verso e seguintes). Por fim, quanto ao facto provado 3, o tribunal alicerçou a sua convicção no contrato de arrendamento celebrado e junto aos autos a fls. 63 e seguintes.»
Perante esta descrição dos meios de prova tidos em consideração e a sua imputação direta aos factos dados por provados, não vemos que nulidade possa ser apontada à fundamentação da matéria de facto, que é perfeitamente clara e percetível.
Em conclusão, em face do exposto, julgamos que não se verifica nenhumas das apontadas nulidades da sentença recorrida.

2. Da validade do contrato de arrendamento.
A presente ação foi instaurada pelo A. tendo em vista a declaração de anulabilidade do contrato de arrendamento celebrado entre a 1.ª R. e o 2.º R., por violação do Art. 1682-ºA n.º 1 al. a) do C.C., uma vez que esse contrato teria por objeto um bem comum do casal e foi celebrado por um dos cônjuges, a 1.ª R., sem que o outro, o A., tenha consentido nesse ato por escrito.
A 1.ª R. centrou a sua defesa no argumento de que o A. deu autorização ao arrendamento, mas de forma verbal e perante testemunhas, reconhecendo desse modo que o seu marido não consentiu nesse contrato por escrito.
O 2.º R. e a sua esposa limitaram-se a invocar que desconheciam o litígio entre o A. e 1.ª R., tendo celebrado o contrato de arrendamento de boa-fé.
A sentença recorrida partiu da constatação de que, por escrito datado de 28 de fevereiro de 2018, foi celebrado um contrato de arrendamento para fins habitacionais, que tinha por objeto a fração dos autos, sendo nele outorgantes a 1.ª R., na qualidade de senhoria, e o 2.º R. e a Chamada, na qualidade de inquilinos, constando desse acordo todas as obrigações típicas de um contrato de locação, tal como estabelecidas no Art. 1022.º do C.C.. No entanto, o imóvel dado de arrendamento encontrava-se registado em nome do A. e da 1.ª R. desde 23/11/2015, sendo um bem comum do casal, dado ter sido adquirido por compra, na constância do casamento de ambos, tendo em atenção que esse casamento estava subordinado ao regime de bens da comunhão de adquiridos (Art. 1724.º al. b) do C.C.). Logo, fazendo o imóvel parte do património comum do casal, seria aplicável o disposto no Art. 1682-A n.º 1 al. a) do C.C., nos termos do qual o arredamento sobre imóveis próprios ou comuns carece de consentimento de ambos os cônjuges. Ao que acresce que, nos termos do Art. 1684.º do C.C. o consentimento conjugal e seu suprimento deve ser especial para cada um dos atos (n.º 1), está subordinado à regra de forma exigida para a procuração (n.º 2), embora possa ser judicialmente suprido, desde que a recusa seja injusta ou se verifique impossibilidade, por qualquer causa, de o prestar (n.º 3). Como no Art. 262.º n.º 2 do C.C. é estabelecido que a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar e o contrato de arrendamento de imóvel para fins habitacionais está sujeito a forma escrita (Art. 1069.º do C.C.), o consentimento do cônjuge não outorgante do contrato de arrendamento deveria necessariamente observar a forma escrita. Ora, a 2.ª R. reconheceu que não houve consentimento escrito, tendo alegado que o A. apenas deu autorização verbal.
Partindo destes pressupostos de facto e de direito, a sentença teve em consideração que, mesmo que se fizesse prova de que o A. tenha dado autorização verbal, daí não se poderia retirar o efeito jurídico pretendido pelos R.R., porque o consentimento teria de seguir a mesma forma do contrato de arrendamento, ou seja, teria de ser reduzido a escrito. Sendo que a igual conclusão se chegaria se tivéssemos em atenção que o contrato de arrendamento se reportava a imóvel em compropriedade, tendo em atenção o disposto no Art. 1024.º n.º 2 do C.C., que impõe a necessidade do assentimento, por escrito, antes ou depois, pelo consorte que não tenha tido intervenção no contrato.
Portanto, concluiu a sentença que, não tendo o A. dado o seu consentimento por escrito, tal determina a anulação do ato, atento o disposto no Art. 1687.º n.º 2 do C.C.C..
A Recorrente não concorda com este entendimento, desde logo porque, não estando em causa a casa de morada de família e traduzindo-se a celebração de um contrato de arrendamento em ato de gestão ordinária, tal como decorre do Art. 1024.º n.º 1 do C.C., deveria ter-se em conta que esse ato foi autorizado pelo cônjuge marido, sendo que a 1.ª R. teria legitimidade para dar de arrendamento por ser titular do direito de gozo sobre o imóvel.
Em seu abono reproduz uma longa citação do acórdão do S.T.J. de 13/3/2003 (Proc. n.º 03B211, disponível na Internet), onde se traça a distinção entre invalidade e ineficácia do contrato perante os demais consortes que não consentem por escrito no arrendamento, para concluir pela validade desse contrato, quando celebrado por um dos cônjuges, mas tacitamente consentido pelo outro, num caso em que este inclusivamente até recebeu rendas do arrendatário. Nesse caso, é referido no acórdão que o cônjuge não teria sequer posto em causa a validade do contrato de arrendamento, mas se o fizesse estaria a agir em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (Art. 334.º do C.C.).
Sucede que, como é vidente, a jurisprudência citada não tem a mínima correspondência com o caso dos autos, desde logo por não haver a mínima evidência de que o A. tenha tacitamente consentido a posteriori na celebração do contrato de arrendamento, nem muito menos recebido rendas dos arrendatários (facto que não foi alegado em nenhuma das contestações).
A 1.ª R. limitou-se a alegar a existência de um acordo, após a separação do casal em 2017, no sentido de que este imóvel poderia ser arrendado pela R. (artigos 9.º e 16.º da contestação a fls 26 verso e fls 27), tendo existido depois também uma autorização do A., expressa perante testemunhas (artigos 10.º, 11.º e 17.º da contestação a fls 26 verso e fls 27). A mesma R. alegou ainda que, após ter conseguido arrendar, informou o A. das condições do arrendamento, por email que juntou como documento n.º 1 (artigo 19.º da contestação a fls 27).
Dito isto, em primeiro lugar, há que atentar que o que está em causa é o disposto no Art. 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.P.C., onde se estabelece que: «1. Carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens: a) A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns».
O consentimento assim exigido ao cônjuge não está dependente do imóvel servir ou não de casa de morada de família, pois sobre essa matéria regula apenas o n.º 2 do Art. 1682.º-A do C.C., que não está aqui em causa.
O estabelecido no Art. 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C. impõe-se por si mesmo independente da circunstância de o Art. 1024.º n.º 1 do C.C. estipular que o ato de celebração de um contrato de arrendamento por prazo inferior a 6 anos é tido por ato de mera administração ordinária.
Neste sentido, Pinto Furtado (in “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. I, 4.ª Ed., Atualizada, pág. 367), reconhece que o Art. 1024.º n.º 1 do C.C. estabelece que o arrendamento por prazo inferior a 6 anos é um ato de administração ordinária e que, segundo essa norma, detém legitimidade para arrendar quem seja o administrador do imóvel, mas logo de seguida ressalva que, em alguns casos, a lei recusa essa legitimidade para dar de arrendamento a quem seja administrador, sendo um desses casos precisamente o estabelecido no Art. 1682.º-A n.º 1 al.s a) e b) do C.C., ainda que os cônjuges tenham em geral a faculdade de administrar bens próprios ou comuns, nos termos do Art. 1678.º n.º 1, n.º 2 al. f) e n.º 3 do C.C..
A propósito da introdução deste Art. 1682.º-A no Código Civil pelo Dec.Lei n.º 496/77 de 25/11, escreveram Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. IV, 2.ª Ed. Revista e Atualizada, pág. 303): «Alargou-se assim a necessidade do consentimento de ambos os cônjuges a todos os casos de arrendamento de imóveis próprios ou comuns (…) seja qual a duração estipulada para o contrato».
A justificação para esta solução legislativa é apresentada pelos mesmos autores (Pires de Lima e Antunes Varela - Ob. Loc. Cit., pág. 304), quando referem: «A exigência do consentimento comum para a locação de imóveis estabelecida no n.º 1 do Art. 1682.º-A, insere-se numa linha de orientação que procede já da legislação anterior, no sentido de nem sempre se considerar o arrendamento como um mero ato de administração. Com efeito o artigo 10.º do Decreto 5.411 de 17 de abril de 1919 (aproximando o arrendamento sujeito a registo dos atos de alienação dos bens imobiliários: Rev. Leg. Jur. 53.º, pág. 219), exigia implicitamente a outorga do cônjuge não administrador para que o consorte pudesse (tomar ou) dar de arrendamento, quando este estivesse sujeito a registo. E estavam nessa altura sujeitos a registo  os arrendamentos por mais de um ano, com antecipação de renda, ou por mais de quatro, sem antecipação. Mais tarde o assento de 23 de julho de 1929 (Rev. Leg. Jur. 62.º, pág. 122) veio decidir que o consentimento da mulher era necessário quanto aos arrendamentos feitos pelo marido, por mais de quatro anos, anteriormente à vigência do Decreto n.º 5.411, por força do disposto nos artigos 1119.º e 949 § 2.º, n.º 6, 2.ª hipótese, do Código Civil de 1867.» E citando Braga de Macedo «O arrendamento (…) goza, na verdade, segundo a legislação moderna para o senhorio, um verdadeiro ato de alienação, que não pode ser praticado de ânimo leve».
Atualmente, Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XI, pág. 693) mantém a ainda mesma justificação quando escreve: «A locação, sobretudo na área dos arrendamentos vinculísticos, pode, na prática, traduzir um verdadeiro ato de disposição. Por isso, o legislador interveio, em zonas sensíveis. O arredamento de imóveis próprios ou comuns carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens – 1681.º-A / 1, a), introduzido pelo Decreto-Lei n.º 496/77 de 25 de novembro»
Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in Curso de Direito de Família”, Vol. I, 3.ª Ed., pág. 428) também sustentam que: «justifica-se a inclusão, neste regime [reportando-se ao Art. 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C.] da proibição de dar de arrendamento, ainda que a locação seja considerada, em princípio, um ato de administração ordinária. A verdade é que o exercício dos direitos de arrendatário também provoca uma privação considerável das faculdades do proprietário».
Portanto, não releva para o caso se a celebração de contratos de arrendamentos possa ser um ato de administração ordinária. O que releva é que o caso concreto preenche a previsão do Art. 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C., sendo necessário o consentimento de ambos os cônjuges, mesmo que o objeto do contrato não seja a casa de morada de família do casal.
Em segundo lugar, o consentimento tinha de ser escrito, pelas razões que já sumariámos por reporte ao referido na sentença recorrida (v.g. Art.s 1684.º n.º 2, 262.º n.º 2 e 1069.º do C.C.). Mas, mais do que escrito, deveria ser específico para o concreto ato de arrendamento que foi celebrado pelo cônjuge, tal como decorre do Art. 1684.º n.º 1 do C.C., não bastando por isso uma mera autorização ou consentimento genérico, tal como foi alegado na contestação pela 1.ª R..
Como dizia Antunes Varela (in “Direito da Família”, 1987, pág. 380) o consentimento: «tem que ser outorgado caso por caso. Precisa de ser especialmente referido ao ato singular, concreto, que o outro cônjuge pretende realizar. Só assim se garante a reflexão e a ponderação que, com perfeito conhecimento de causa, a lei exige do cônjuge que consente no ato». Ou ainda, no Código Civil Anotado (Vol. IV, pág. 308): «Não bastará, por conseguinte, uma declaração genérica de consentimento (…). É necessário concretizar o ato especificando a operação que se trata. «Dir-se-á, comenta Pereira Coelho (Ob. Cit. II, pág. 55), que a lei quer que o cônjuge que dá o seu consentimento pondere e reflita sobre a oportunidade de cada ato que consente».
Do exposto decorre ainda que a exigência da forma escrita do consentimento tem a sua justificação na preocupação que a lei tem, não só de assegurar a prova do ato em si, relativo ao consentimento, mas também, e fundamentalmente, para garantir que o cônjuge possa inteirar-se do ato e das suas consequências patrimoniais.
Segundo a tradição, a doutrina aponta que na base das exigências legais de forma negocial estão razões de solenidade, reflexão ou de prova. A solenidade prende-se com a necessidade de publicidade de determinados atos, com o propósito de lhes dar conhecimento público. A reflexão tem a ver com a gravidade que para os declarantes possam ter certos negócios, por forma a que não sejam feitos com ânimo ligeiro. E a prova liga-se à necessidade de demonstração de determinados factos (Vide: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português – I- Parte Geral – Tomo I”, 2.ª Ed., 2000, pág.s 377 a 378). Ora, as razões que determinam que o consentimento do cônjuge seja dado por escrito e de forma específica relativamente a cada concreto contrato de arrendamento que tenha por objeto imóveis próprios ou comuns estão ligadas essencialmente à reflexão sobre as consequências do ato, que se traduz numa oneração de imóvel, que é um bem comum do casal. Trata-se, portanto, de formalidade ad substantiam e não meramente ad probationem, implicando que à omissão da forma legal possa ter aplicação o disposto no Art. 220.º do C.C., não sendo a mesma suscetível de suprimento pela demonstração, através de prova testemunhal, de que houve uma autorização do cônjuge não outorgante, mas meramente verbal.
Quanto ao hipotético consentimento posterior, concordamos com o exposto na sentença recorrida sobre a inexistência de confirmação do contrato nos termos do Art. 288.º do C.C., fosse ela expressa, fosse ela tácita.
De facto, a 1.ª R. alegou que comunicou ao A. que celebrou o contrato de arrendamento por email e este não respondeu, concluindo assim que o seu marido consentiu nesse concreto contrato. Mas, a verdade é que o email está datado de 15 de março de 2018 (cfr. fls 29 verso) e a presente ação, destinada a obter a anulação do contrato de arrendamento, deu entrada em juízo logo no dia 23 seguinte (cfr. fls 13). O que não permite concluir de maneira nenhuma que houve consentimento ou confirmação posterior, com vista à sanação do vício do contrato. Nunca, nestas circunstâncias, o silêncio poderia ter o valor de declaração negocial com o sentido pretendido pela 1.ª R. na sua contestação.
Questão diversa desta é a do abuso de direito.
Efetivamente, temos de relevar que, segundo o que a 1.ª R. invocou na contestação, o A. havia autorizado que o imóvel fosse arrendado, ainda que verbalmente, sendo que depois veio instaurar a presente ação com fundamento na falta do seu consentimento escrito.
Curiosamente, a 1.ª R. não alegou a exceção do abuso de direito na sua contestação, limitando-se a invocar a litigância de má-fé, que se traduz na relevância de um comportamento processual censurável para efeitos meramente sancionatórios (Art.s 542.º e ss do C.P.C.) e sem consequências substantivas, no que se refere à eficácia dos direitos pretendidos fazer valer.
Por seu turno, o 2.º R. também não alegou a violação do princípio da boa-fé por parte do A., referindo apenas que os arrendatários desconheciam o litígio entre os cônjuges proprietários da fração e que outorgaram o contrato de arrendamento de boa-fé.
A sentença recorrida teve apenas em conta o princípio da boa-fé, tal como especificamente invocado pelo 2.º R. e pela Chamada, para concluir que a sua boa-fé não obstaria a anulação do contrato de arrendamento, porque não estava em causa a alienação de um móvel sujeito a registo (Art. 1687.º n.º 3 do C.C.), nem teria aplicação ao caso o disposto no Art. 291.º do C.C., sendo que o legislador não protegeu o terceiro de boa-fé quando esteja em causa um contrato de arrendamento celebrado sem o consentimento do outro cônjuge.
Este entendimento está certo no que estritamente se refere ao pedido de anulação do contrato de arrendamento. Já poderia não ser necessariamente assim se os arrendatários tivessem deduzido pedido de indemnização, nos termos do Art. 227.º do C.C..
Sem prejuízo, a sentença não ponderou que os factos alegados na contestação pela 1.ª R. poderiam ser suscetíveis de, segundo as várias soluções admissíveis em direito, integrar a exceção do abuso de direito.
Essa questão aparece colocada pela primeira vez nas alegações de recurso e de forma indireta, na medida em que se faz uma citação de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça onde essa questão foi apreciada.
Já vimos que esse acórdão do S.T.J de 13/3/2003 (Proc. n.º 03B211) trata de situação que não tem aplicação ao caso concreto. Ali estava em causa um cônjuge consorte do senhorio que, não tendo celebrado o contrato de arrendamento, e nem sequer pretendendo invocar a invalidade desse contrato, recebeu rendas do arrendatário, sendo assim patente que, mesmo que quisesse por em causa a validade do arrendamento, o seu comportamento anterior tornava ilegítima semelhante pretensão, nos termos do Art. 334.º do C.C.. Ora, nada disso se verifica no caso concreto dos presentes autos.
Ainda assim haveria que ponderar que relevância poderia ter sobre a apreciação do pedido de invalidade do contrato de arrendamento a prova do facto (controvertido) de que o A. haveria autorizado, perante testemunhas, que a 1.ª R. pudesse arrendar o imóvel em causa nestes autos a terceiros, tal como alegado nos artigos 11.º, 16.º e 17.º da contestação.
À primeira vista poderia parecer que dar autorização ao outro cônjuge para arrendar e vir depois invocar a invalidade do contrato de arrendamento que por ele foi outorgado sem o seu consentimento escrito, seriam comportamentos contraditórios entre si. Nessa medida, poderia colocar-se aqui também a questão de haver abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, tornando ilegítimo o exercício do direito invocado na presente ação, nos termos do Art. 334.º do C.C.. Mas a contradição é meramente aparente e pode ter justificação.
De facto, o que a 1.ª R. invocou foi uma alegada autorização de caráter genérico para poder arrendar o imóvel em causa nos autos, no quadro dum alegado acordo de repartição da administração dos bens comuns do casal após a sua separação de facto.
Ora, como vimos, a lei exige que o consentimento do cônjuge seja específico para cada ato (Art. 1684.º n.º 1 do C.C.) e, no caso, que respeite a forma escrita (Art.s 1684.º n.º 2, 262.º n.º 2 e 1069.º do C.C.). Ambas essas exigências legais são justificadas por razões relacionadas com a necessidade do cônjuge refletir e ponderar, em cada caso, as concretas implicações patrimoniais que o ato de oneração em causa irá determinar para os bens comuns do casal. Ora, nenhuma dessas exigências legais foram observadas no caso concreto, em função do que foi alegado na contestação da 1.ª R., sendo elas que justificam a consequência legal da invalidade do ato, na conjugação dos Art.s 1682.º n.º 1 al. a), 1684.º n.º 1 e n.º 2, 262.º n.º 2, 1069.º e 1687.º n.º 1 do C.C..
A autorização genérica e verbal para um arrendamento a celebrar com terceiros, tal como invocada na contestação da 1.ª R., não respeita a necessidade de reflexão e ponderação que a lei estabelece em benefício do cônjuge não outorgante no contrato de arrendamento. Pelo que, o contrato de arrendamento, celebrado nestas condições, apenas por um dos cônjuges, sem autorização escrita e especial para o concreto ato de oneração por parte do outro cônjuge, determina a necessária invalidade do ato.
A situação concreta dos autos justifica que o A., mesmo que tenha dado autorização genérica e verbal ao arrendamento, possa entender que o contrato de arrendamento que em concreto foi outorgado se traduza em oneração que não possa aceitar. Não poderemos deixar de admitir que a possibilidade de divórcio terá implicações na divisão dos bens comuns do casal e a existência de bens arrendados, ou livres de oneração, releva na composição dos quinhões e para efeitos de acordo sobre a partilha. Portanto, todos estes interesses são, em abstrato, atendíveis e devem ser ponderados.
Não vemos por isso que a autorização, nos termos invocados na contestação, seja só por si suficiente para justificar uma situação de confiança, que torne ilegítimo o exercício do direito de anulação do contrato de arrendamento, por força do Art. 334.º do C.C..
A existir a alegada autorização, ela poderá ser eventual causa de responsabilização do A. pelos danos que com a mesma possa ter causado, nomeadamente aos R.R. arrendatários, atento ao disposto no Art. 227.º do C.C.. Mas a mesma é claramente insuficiente para impor a inalegabilidade da invalidade do contrato por falta de consentimento especial e por escrito.
O contrato de arrendamento dos autos foi assim celebrado em condições que determinaram a invalidade desse negócio, ficando as partes nele outorgantes sujeitas ao risco da eventual propositura da ação tendente ao reconhecimento do vício verificado, no prazo estabelecido no Art. 1687.º n.º 2 do C.C., sem prejuízo do ato poder ser confirmado pelo cônjuge não outorgante.
Em suma, as conclusões apresentadas, que vão em sentido contrário ao exposto, não merecem acolhimento, sendo de confirmar inteiramente a sentença recorrida.

V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, quer quanto à nulidade da sentença, quer quanto ao mérito da causa, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
- Custas pela Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
*
Lisboa, 2 de julho de 2019

Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva – com voto vencido
Conforme declaração anexa

Declaração de voto de vencido
Julgaria procedente a apelação, anulando a sentença recorrida e determinando a remessa do processo ao tribunal recorrido para que ser facultada às partes a discussão de facto e de direito do mérito da causa.
Com efeito, o facto de o despacho recorrido ter sido proferido sem a prévia consulta das partes quanto à possibilidade de conhecimento do mérito da causa em saneador e sem que tenha sido efectuada a discussão dos factos e direito aplicáveis aos autos, leva a que a sentença recorrida peque por excesso de pronúncia e, seja, por conseguinte, nula, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Ana Rodrigues da Silva