Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10554/2005-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Na sua parte decisória, a sentença reconduz-se, no seu traçado lógico essencial, a um verdadeiro silogismo, podendo a sentença assentar sobre um único silogismo ou em vários silogismos que ajudam, cada qual com a sua contribuição, a encontrar a resposta completa à pretensão formulada pelo autor, à luz do direito aplicável. A contradição entre os fundamentos e a decisão analisa-se, assim, no plano do silogismo judiciário construído pela sentença e não naquele que em correcta aplicação do direito substantivo, porventura, devesse ser construído.
II - A causa da nulidade do artigo 668º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil reside nos fundamentos em que a sentença assenta, constitui um vício da estrutura da sentença que não pode ser confundido com o erro de julgamento, que se traduz na inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão.
III- Resulta do nº 2 do artigo 70º do Código Civil que à responsabilidade por ofensas à personalidade física ou moral são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483º e seguintes daquele código que regem em matéria de responsabilidade civil extracontratual, a qual tem como pressupostos o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (nº 1 do artigo 483º).
(F.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
A, intentou, em 8 de Outubro de 1998, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra Sociedade, Lda, pedindo o pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com fundamento em que, nos finais de Fevereiro de 1998, depois de já ter saído da loja da ré no Centro Comercial foi detido por seguranças da mesma por, alegadamente, ter furtado um telemóvel, tendo tal detenção sido efectuada em frente às pessoas que se encontravam no referido centro comercial, o que lhe causou humilhação, além de ter ficado impossibilitado de realizar e entregar um trabalho de tradução e vender uma peça de computador que tinha nessa data agendada.
Contestou a ré, alegando que o autor e mais três indivíduos, aparentemente amigos deste, foram detectados pelos serviços de segurança da ré a abrir uma caixa de telemóvel, donde mais tarde veio a constatar-se que fora retirado o telemóvel dentro dela, pelo que foi apenas pedido ao autor e ao amigo que voltassem ás instalações da ré para responderem a algumas perguntas, ao que este acedeu.

Foi concedido apoio judiciário ao autor, na modalidade de dispensa total de preparos e do pagamento de custas.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

Desta apelou o autor, formulando na sua alegação, em resumo, as seguintes conclusões:
1ª Nos seus fundamentos a douta sentença refere que "Resultou provado (..) um funcionário da R. e o segurança da S. interpelaram o A., no sentido de saber se tinha na sua posse um telemóvel, facto que o alegado amigo do A. confirmou, tendo mesmo introduzido o PIN no aparelho que exibiu. (..) tendo solicitado àqueles o favor de os acompanhar às instalações da loja, uma vez que se encontravam na via pública, o que o autor e o amigo acederam não tendo levantado quaisquer objecções.(...) Foi durante o percurso que o A. e o amigo tiveram que percorrer, detidos, desde as instalações da R. até à esquadra de polícia, que foram os mesmos reconhecidos por alguns colegas e pessoas amigas que circulavam, na altura, pelo Centro Comercial o que lhes terá causado constrangimento (...) O sucedido causou e tem causado ao Autor angústia e perturbações nervosas, motivados pela reacção de colegas e conhecidos que souberam da situação, pois, nos dias seguintes os alunos comentavam o sucedido, dirigindo-se, algumas dessas pessoas, em tom jocoso ao Autor."
2ª E entendeu a Ilustre Julgadora a quo que "É indubitável que qualquer pessoa que passe por situação semelhante se sentirá melindrado, sobretudo se for visto por pessoas conhecidas."
3ª Acrescenta ainda a Mª Juiz "a quo" que "A situação mais melindrosa terá sido no momento em que se dirigiam para a esquadra não só por terem que passar pelo meio do público que nessa altura era bastante, pois o Centro Comercial onde os factos ocorreram tinha acabado de ser inaugurado e, por isso, constituía uma novidade, aí fazendo acorrer um grande fluxo de pessoas, mas também porque a esquadra se situava nas traseiras do referido Centro Comercial, implicando o ter de calcorrear alguns metros acompanhados por agentes da polícia, o que desperta a curiosidade e os comentários dos transeuntes."
4ª No entanto, a douta sentença julgou improcedente a acção por entender ser a Apelada alheia ao facto de apesar de, na sequência desta ter solicitado a presença da PSP nas suas instalações sitas no Centro Comercial ..., e de ter colocado o Autor/Apelante nas mãos dos agentes, fazendo a participação de factos atinentes à prática de crime de furto de telemóvel, mesmo depois de constatar que o aparelho que o amigo do Autor/Apelante tinha em seu poder lhe pertencia, e do percurso que o Autor/Apelante e o seu amigo, conduzidos sob escolta policial, o que despertou a curiosidade e os comentários dos transeuntes, pelos corredores do Centro Comercial apinhados de público, já que a loja F..., propriedade da Ré/Apelada, tinha acabado de ser inaugurada e, por isso, constituía uma novidade, aí fazendo acorrer um grande fluxo de pessoas - até à esquadra de Carnide que se situava nas traseiras do Centro Comercial.
5ª Os fundamentos da douta sentença encontram-se em contradição com a decisão nela proferida, o que determina a nulidade da douta sentença, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea c), do nº 1 do art.° 668° do Código de Processo Civil,
6ª O Tribunal "a quo" entendeu erradamente que os procedimentos levados a cabo pelos funcionários da Ré/Apelada foram correctos, e que esta é alheia aos factos que conduziram à propositura da presente acção judicial.
7ª Do exposto resulta claro que, para além da existência fáctica, existe também um nexo de causalidade entre a conduta dos funcionários da Ré/Apelada e a ocorrência dos danos lesivos do bom nome, reputação, dignidade e integridade moral do Autor/Apelante. 8ª À luz dos referenciados normativos legais, estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil por parte da Ré/Apelada, atentos os mencionados efeitos que sofreu o Autor/Apelante por via da imputação que lhe foi dirigida no sentido do cometimento de crime de furto, resultante da conduta da Ré/Apelada.
9ª A sentença recorrida entendendo de forma diferente fez errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente dos arts. 70° e 483° ambos do Código Civil.
10ª Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao presente recurso, devendo a sentença recorrida ser revogada e ser substituída por outra que julgue a presente acção procedente por provada:

Contra alegou a ré, defendendo a confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
a) O A deslocou-se ao Centro Comercial a fim de visitar a loja da F, na companhia de um amigo (1º).
b) Depois de ter passado algum tempo a visitar os diversos sectores da R., o A. e o amigo dirigiram-se para a rua (2º).
c) O A. e outros três indivíduos, aparentemente seus amigos, foram detectados pelos serviços de segurança da R., dentro da loja F, a mexer na caixa de um telemóvel, tendo violado as cintas de plástico e manipulado o próprio aparelho (19º).
d) A caixa, após ter sido remexida, foi colocada no mesmo sítio mas os serviços de segurança da R. vieram a verificar, pouco tempo depois, que a mesma se encontrava vazia (20º).
e) Na sequência desta constatação, o referido funcionário da R. e o segurança da S., que se identificaram como guardas de segurança da R., interpelaram o A., então acompanhado apenas por um dos seus amigos, quando já se encontravam fora do Centro Comercial, mais precisamente no passeio público, no sentido de saber se tinha na sua posse um telemóvel, facto que o alegado amigo do A. confirmou, tendo mesmo introduzido o PIN no aparelho que exibiu (A), B), 3º e 21º).
f) O funcionário da R. e o segurança da S. disseram então ao A. e ao seu amigo que gostariam de esclarecer uma dúvida, relativamente a um telemóvel, tendo solicitado àqueles o favor de os acompanharem às instalações da loja, uma vez que se encontravam na via pública (22º).
g) O A. e o seu amigo não levantaram qualquer objecção e acompanharam aqueles funcionários às instalações da R. (23º).
h) Foram, então, o ora A. e o seu amigo, levados pelos mencionados guardas de segurança até às instalações da R (4º).
i) Onde foram submetidos a "interrogatório" (5º).
j) O A. esteve retido, por parte dos funcionários da R., para revista e interrogatório, entre as 14 h e as 17 h 30 m (9º).
k) Porque não se achasse satisfeito com as respostas dadas pelo A. e o amigo, o guarda de segurança da R. chamou a Polícia de Segurança Pública, tendo dois agentes aparecido pouco tempo depois (C) e 27º).
l) Foram, então, o A. e o amigo, conduzidos, sob escolta policial, pelos corredores
apinhados de gente, do Centro Comercial até à esquadra de Carnide (6º).
m) O A. e o seu amigo saíram do Centro Comercial sem irem algemados, na companhia de dois agentes da PSP (28º).
n) Durante o percurso que o A. e o amigo tiveram que percorrer, detidos, desde as instalações da R. até à esquadra de polícia, foram estes reconhecidos por alguns colegas e pessoas amigas que circulavam, na altura, pelo Centro Comercial (7º).
o) O sucedido causou e tem causado ao Autor angústia e perturbações nervosas, motivados pela reacção de colegas e conhecidos que souberam da situação (17º-A).
p) Nos dias seguintes os alunos comentavam o sucedido, dirigindo-se, algumas dessas pessoas, em tom jocoso ao Autor (17º-B).
q) Os acontecimentos que o Autor narra ocorreram no dia 5 de Março de 1998 (17º-C).
r) À data da entrada em Juízo da petição inicial o Autora tinha 19 anos de idade (F).
s) A Ré apresentou queixa-crime contra o Autor, tendo os respectivos autos sido arquivados (G).

2.2. De direito:
Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do apelante, delas emergem como questões a resolver saber se a sentença recorrida é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão e se ocorrem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual necessários à procedência da acção.

2.2.1. Encontra-se desde há muito radicada na doutrina a ideia de que, na sua parte decisória, a sentença se reconduz, no seu traçado lógico essencial, a um verdadeiro silogismo, podendo a sentença assentar sobre um único silogismo ou em vários silogismos que ajudam, cada qual com a sua contribuição, a encontrar a resposta completa à pretensão formulada pelo autor, à luz do direito aplicável(1).
A contradição entre os fundamentos e a decisão analisa-se, assim, no plano do silogismo judiciário construído pela sentença e não naquele que em correcta aplicação do direito substantivo, porventura, devesse ser construído.
A causa da nulidade do artigo 668º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil reside nos fundamentos em que a sentença assenta, constitui um vício da estrutura da sentença que não pode ser confundido com o erro de julgamento, que se traduz na inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão.
E o que os autos revelam aponta no sentido de que a decisão impugnada não enferma de vício de estrutura gerador da nulidade prevista no normativo referido, reconduzindo-se o que o recorrente apelida de oposição entre os fundamentos e a decisão ao erro de julgamento, que não cabe no elenco dos vícios da sentença previstos no citado artigo 668º.
Com efeito, a sentença recorrida apresenta-se estruturada numa sequência lógica de tal modo que a sua decisão surge como a conclusão natural da fundamentação.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade da sentença.

2.2.2. A presente acção inscreve-se no âmbito da tutela geral da personalidade.
Ao “...titular da personalidade humana é juscivilisticamente reconhecido no art. 70º do Código Civil um feixe de verdadeiros poderes jurídicos de exigir dos demais sujeitos o respeito da sua personalidade, não lhe sendo apenas outorgados meros poderes jurídicos de pretensão ou simples expectativas jurídicas de respeito”(2).
Nas relações jurídicas emergentes da tutela geral da personalidade, os sujeitos passivos devem abster-se de praticar actos que criem condições favoráveis ou preencham pressupostos necessários à ocorrência de lesões na personalidade de outrem ou que se traduzam em ameaças ou cominações de males futuros à personalidade alheia e caso “...os sujeitos passivos não observem tais deveres de abstenção, (...) expõem-se a sanções jurídicas, quando não se verifiquem causas de exclusão de ilicitude e ocorram os demais pressupostos da aplicação dessas sanções...”(3).
Assim, resulta claramente do nº 2 do artigo 70º do Código Civil que à responsabilidade por ofensas à personalidade física ou moral são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483º e seguintes daquele código que regem em matéria de responsabilidade civil extracontratual, a qual tem como pressupostos o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (nº 1 do artigo 483º).
No caso em apreço, o quadro factual desenhado nos autos, que não sofreu qualquer impugnação das partes, não evidencia que a conduta dos funcionários da ré e dos seguranças tenha posto em causa a honra e a imagem do autor.
Na verdade, tendo o autor e outros três indivíduos, aparentemente seus amigos, sido detectados pelos serviços de segurança da ré, dentro da loja F, a mexer na caixa de um telemóvel, tendo violado as cintas de plástico e manipulado o próprio aparelho, que desapareceu, ficando a caixa vazia reposta no sítio, não merece censura a indagação da ré sobre o sucedido feita junto do autor e do amigo que o acompanhava.
A sua interpelação quando se encontravam já no exterior do Centro Comercial, onde se situa aquela loja, decorreu, tanto quanto os autos mostram, sem incidentes e o autor e o seu amigo acompanharam o funcionário da ré e o segurança sem qualquer objecção, sendo certo que não está alegada nem provada qualquer factualidade susceptível de demonstrar que, posteriormente, nas instalações daquela loja tenha havido qualquer lesão dos direitos do autor. O período de tempo que ali ficou retido com o seu amigo desacompanhado de outros factos não é, por si só, integrador de acto lesivo de direitos de personalidade passível de tutela jurídica.
A circunstância de a ré ter solicitado a comparência da autoridade policial, que se concretizou na presença de dois agentes da Polícia de Segurança Pública na sua loja, constitui actuação perfeitamente legítima, sendo que a condução do autor e do seu amigo, sob escolta policial, pelos corredores apinhados de gente do Centro Comercial até à esquadra, percurso durante o qual foram reconhecidos por alguns colegas e pessoas amigas que por ali circulavam, na qual o autor fez radicar, essencialmente, o seu pedido indemnizatório, decorreu da actuação dos agentes da autoridade policial e não da ré ou dos seus funcionários.
A actuação da ré esgotou-se a partir do momento em que compareceram os referidos agentes da autoridade. A estes coube a decisão de conduzir o autor e o seu amigo à esquadra e definir os moldes em que esta se processou.
Logo, a conduta eventualmente lesiva dos invocados direitos do autor não pode ser imputada à ré.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recorrente na totalidade.

3. Decisão:
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante, tendo-se em atenção o apoio judiciário de que beneficia.
1 de Junho de 2006
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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1 Cfr. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, p.670/672, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 295).
2 Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág.394.
3 Rabindranath Capelo de Sousa, loc. cit., pág. 422.