Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ADEODATO BROTAS | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA OBRIGAÇÃO DE MEIOS ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1- A teoria da ilicitude da conduta enfatiza, ao contrário da orientação clássica, que a mera produção causal de um resultado proibido não chega para se afirmar a ilicitude, antes sendo imprescindível que esse evento se deva à violação da regra de conduta aplicáveis ao caso. 2- A jurisprudência vem entendendo que o médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e conhecimentos profissionais, assume uma obrigação de meios. Neste tipo de obrigações, o médico não responde pelo resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar. 3- No que toca ao ónus de prova da ilicitude – diferentemente do que sucede com a culpa - vem sendo entendido que cabe ao paciente provar o incumprimento, pelo médico, das regras profissionais que sobre ele incidem. Isto é não basta ao lesado provar qua não ficou em melhor estado de saúde ou que, por ventura esse estado se agravou; terá de provar que o médico não cumpriu os seus deveres de actuação técnica, não respeitou as leges artis. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO 1- GR instaurou acção declarativa, com processo comum, contra SAMS, e IM, pedindo: - A condenação das rés a repararem os dentes que indica, acrescida do pagamento da quantia de 3.190,55€, por danos patrimoniais e, na indemnização de 5.000€ por cada ano de sofrimento, entre 2014 e a data da reparação dos dentes. Alegou, em síntese, ter recorrido aos serviços SAMS, em 21/02/2014, para tratamento dentário, a prestar pela ré IM, ficando estabelecida a colocação de nove implantes dentários e remoção dos respectivos dentes; por excesso de anestesia aplicada a autora padeceu de enorme inchaço nos lábios; passados cinco dias os implantes caíram, causando-lhe enormes dores; em consequência, a ré IM decidiu fazer uma prótese fixa; só passado um ano, em 24/02/2015 é que foi atendida pela ré IM; a prótese fixa aplicada não resolveu a situação, tendo a autora dores, mordendo a língua e as gengivas; reconhecendo o seu erro, a ré IM decidiu que os futuros tratamentos de aplicação de novas próteses fixas, fossem sem custos. A prótese fixa continuava a cair. A autora entrou em depressão por ter perdido a autoestima e careceu de acompanhamento psicológico. Em Agosto de 2015 a ré IM deixou de prestar serviço no SAMS e a autora passou a ser seguida pelo Dr. AJ. A autora sentiu necessidade de procurar outra clínica, que lhe propôs submeter-se a novos procedimentos que lhe custariam 16.905€, o que era demasiado dispendioso para as posses da autora. Voltando à ré SAMS foi-lhe proposto colocar 13 coroas em zircónio. Até ao momento a autora despendeu 3.190,55€ com gastos de serviços médicos, farmacêuticos e apoio psicológico. Com danos não patrimoniais deve ser indemnizada em 5.000€ por cada ano de sofrimentos e, estando ainda em tratamento, perfaz já 20.000€ 2- Citada, a ré IM contestou e deduziu incidente de intervenção principal da sua seguradora, Ageas, SA. Na 1ª consulta, às perguntas feitas sobre se padecia de diversas doenças a autora respondeu negativamente. Só após a rejeição de cinco implantes e de novas questões sobre antecedentes médicos é que a autora informou ter feito tratamento à base de bisfosfanatos, medicação que está contraindicada para quem faz implantes. A rejeição dos implantes deveu-se não a qualquer negligência médica, mas à circunstância de o organismo da autora não os ter osteointegrado. A ré IM terminou o contrato com o SAMS em 2015 e a autora continuou a ser seguida por outros médicos daquela instituição. Pugna que os valores indemnizatórios peticionados além de desproporcionados, não têm fundamento. 3- Citado, o SAMS, contestou. Invoca a ilegitimidade da ré IM. O réu celebrou contrato de prestação de serviços com a S – Medicina Dentária, Lda e esta sociedade contratou a ré IM. Impugna, por desconhecer, no essencial, a factualidade alegada pela autora. Entre Setembro de 2015 e 28/10/2016 foram colocados à ré 12 coroas sobre dentes e implantes. Requereu incidente de intervenção principal provocada da Companhia de Seguros Tranquilidade, SA com quem celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil. Requereu incidente de intervenção de intervenção acessória da S – Medicina Dentária, Lda. 4- Por despacho de 30/01/2018, foram admitidas as intervenções principais da Ageas, SA. e, da Tranquilidade, SA. Mais foi admitido o incidente de intervenção acessória da S – Medicina Dentária, Lda. 5- Citada, a interveniente acessória S – Medicina Dentária, Lda., veio fazer seus o articulado e documentos da contestação da ré IM. 6- Citada, a interveniente principal, Tranquilidade, SA, actualmente Seguradoras Unidas, SA contestou. Argui a sua ilegitimidade, por os actos médicos em causa não terem sido praticados nas clínicas/instalações de que assumiu a responsabilidade civil, mas nas instalações da S – Medicina Dentária, Lda. Por impugnação, impugna, por desconhecer a factualidade invocada pela autora. 7- Citada, a Ageas SA, vem suscitar a questão da adequação do seu chamamento, defendendo dever tratar-se de intervenção acessória e não de intervenção principal, porque baseado no direito de regresso. No mais, por desconhecimento, impugna a factualidade invocada pela autora. 8- Em 05/06/2018 teve lugar audiência prévia na qual foi determinado que a autora aperfeiçoasse a petição inicial. 9- A autora veio esclarecer os factos invocados na petição inicial, apresentando nova petição inicial. 10- As rés e intervenientes responderam. 11- Realizada nova audiência prévia, foi saneado o processo, decidindo, além do mais pela improcedência da excepção de ilegitimidade da 2ª ré, indicado o objecto do litígio e os temas de prova. 12- Deferida a realização de perícia médico-legal à autora foi apresentado relatório pericial intercalar a 06/01/2020 e, relatório pericial final apresentado a 19/10/2020. 13- Teve lugar a audiência final, em duas sessões, na 1ª das quais houve assentada dos factos desfavoráveis admitidos da autora em depoimento de parte. 14- Com data de 23/10/2023 foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório: “V. Decisão Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se as Rés do pedido. * Custas pela Autora.” 15- Inconformada a autora interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: i) Absolveu o doutro Tribunal a quo os Réus do pedido formulado pela Autora, dando como provados, entre outros factos que: “4. No âmbito de consulta havida no SAMS entre a Autora e a Ré IM, esta questionou-a se era diabética, hipertensa, se padecia se osteoporose, se era fumadora e se fazia alguma medicação, e foi-lhe informado da possibilidade de não osteointegração dos implantes.” ii) Tendo, para justificar o facto 4. como provado, escrito que “Para consignar o facto 4) como provado, o Tribunal considerou as declarações de parte da 2ª Ré, e os testemunhos de CV, médica-dentista e colega da Ré no SAMS à data dos factos, e de SS e AP, ambas funcionárias do SAMS. As referidas testemunhas genericamente confirmaram as declarações prestadas pela 2ª Ré acerca do procedimento habitual desta nas consultas feitas por esta última – era sempre perguntado ao paciente sobre o seu histórico clínico, hábitos de tabagismo e se fazia ou não medicação, e da possibilidade da implantação dos implantes não ser bem-sucedida-. A própria Autora confirmou ter sido questionada acerca de tomada de medicação por parte da 2ª Ré. Tudo somado, nada leva a crer ao Tribunal que no caso dos autos tal questionário e esclarecimento não tenha ocorrido na situação dos autos, razão pela qual se deu esta matéria como provada.” iii) Acontece que a referida testemunha CC, que testemunhou sobretudo sobre o procedimento geral de tratamento de pacientes, ao contrário do que é escrito na douta sentença, não confirmou as declarações da Segunda Ré, tendo dito, a 5:05 minutos e seguintes do seu depoimento, que, quando o doente entra, pergunta-lhe se é alérgico a algum medicamento, se tem alguma patologia, se toma algum medicamento, perguntando também se é fumador, ou seja, não pergunta sobre a possibilidade de a implantação dos implantes não ser bem sucedida. Para além disso, resulta dos minutos 00:30 da testemunha SS e dos minutos 5:00 e seguintes da testemunha AP que nenhuma das referidas testemunhas presenciou de forma direta e presencial a recolha de dados clínicos da Autora por parte da Segunda Ré. iv) Resulta ainda de outras suprarreferidas passagens do testemunho de SS, nomeadamente a minutos 10:35 do seu depoimento que não foi perguntado diretamente à Autora se tomava Bisfofanatos. Cumpre ainda referir que a minutos 10:00 e seguintes do seu depoimento, quando o tribunal perguntou à Autora se lhe tinha sido perguntado alguma coisa pela Doutora IM, esta respondeu com um categórico “não”. v) Existe, portanto, uma categórica contradição entre as únicas duas pessoas que declararam estar presentes no ato médico aqui em causa, a Autora e a Segunda Ré, nomeadamente sobre a importante questão do dever de informação da possibilidade de não osteointegração dos implantes, pelo que não poderia, sem mais, dar o Tribunal como provado este facto. vi) Deste modo, impugna-se especificamente o facto 4 da matéria assente, devendo o mesmo, consequentemente, ser movido para a secção intitulada “B) Com interesse para a decisão da causa não se provou”. vii) Deu o Tribunal a quo como não provado que (…) “d) O cimento da prótese provisória da Autora não foi bem colocado, tendo acabado por cair”. viii) Acontece que resulta precisamente o contrário de vários depoimentos ouvidos em sede de audiência de julgamento. Desde logo, a Autora, no seu depoimento referiu que a prótese começou logo a cair, tendo sido tudo rejeitado e, quando questionada pelo Tribunal, a minutos 33:00 e seguintes do seu depoimento sobre se “com a Doutora IM não houve recolocação?”, a Autora respondeu que “não, ela disse que não dava e eu fui para outro médico (…) o Dr. AJ “que me colocou todos e correu tudo muito bem, até hoje, que estão cá, por isso não era o osso, era o procedimento, o procedimento foi totalmente diferente”. ix) Mas, também o depoimento da testemunha CC, que é médica dentista, de forma reiterada classificou o ocorrido com a Autora como uma falha no tratamento: logo a minutos 9:20 do seu depoimento “não era uma situação normal, depois acompanhei um bocadinho mais o caso, tal como a Doutora IM acompanhava os meus casos de insucesso (…) quando há uma falha nós não somos indiferentes a ela (…) tinha curiosidade de saber o que é que tinha acontecido, (…) quis saber da causa da perda dos implantes (…) medicação que poderia prejudicar a osteointegração dos implantes (…) bisfofanatos”. x) Disse também a testemunha CC, a minutos 10:30 e seguintes do seu depoimento que “quando havia alguma falha, alguma surpresa no plano de tratamentos, falávamos com o Dr. FM (diretor clínico); que, segundo a mesma testemunha, a minutos 11:10 e seguintes do seu depoimento, lhes sugeriu a procura de uma solução alternativa. xi) Deste modo, impugna-se especificamente a alínea d) dos factos considerados como não provados, devendo, consequentemente, ser a mesma movida para a secção dos factos provados. xii) Deu também o Tribunal a quo como não provado que (…) “g) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora deixou de frequentar aulas de gravação no vidro, de inglês e de informática”. xiii) Também aqui esta afirmação é contraditada pelo depoimento de várias testemunhas; nomeadamente da testemunha AP, que referiu a minutos 2:40 e seguintes do seu depoimento que “ela [GR] começou a inibir-se de sair de casa, ela é extremamente sociável e deixou de começar a estar, (…) ela dizia que não estava à vontade para estar com uma boca, que me sinto feia e sem capacidade para estar a mastigar, (…) aspeto físico que isto me gera, pareço uma velha”. xiv) Sendo que vai também no mesmo sentido o depoimento da testemunha CR, que referiu que a Autora fecha-se e não sai de casa com medo que lhe caiam os dentes, tendo referido, a minutos 2:30 e seguintes do seu depoimento que “a minha mãe tinha uma vida super ativa e super bem disposta, tinha muitos amigos, saía muito (…) após esta intervenção médica, em 2014, deixou de sair”. A mesma testemunha referiu também que a Autora tem convites de muitos sítios e não vai a nenhum, tendo a minutos 11:00 e seguintes do seu depoimento referido que “não vai a lado nenhum, porque caem-lhe os dentes e ela está a comer, tem vergonha (…) fazem-lhe perguntas sobre isso, mas ela não quer falar”. xv) Também a testemunha M contradiz o que foi dado como provado e aqui colocado em crise, pois disse, a minutos 2:40 e seguintes do seu depoimento que a Autora “sempre foi alegre, (…) sou amiga dela (…) notei que a partir do momento que foi fazer um procedimento nos dentes notei que ela não ficou bem, ficou deprimida, com uma depressão (…) deixámos de sair para almoçar, não se sentia bem, os dentes caíam, houve uma vez que os dentes caíram” (minutos 4:40) do seu depoimento, tendo esta versão sido confirmada pela testemunha AP a minutos 5:00 e seguintes do seu depoimento. xvi) Portanto, se a Autora deixou de sair de casa, por maioria de razão abandonou as atividades referidas na alínea g) dos factos não provados, indo a mesma especificamente impugnada e devendo, consequentemente, a referida alínea ser movida a secção dos factos provados. xvii) Deu ainda o Tribunal a quo como não provado que (…) “k) Apesar da instalação da prótese fixa na boca da Autora, a prótese continuava a cair.” xviii) As testemunhas M e AP presenciaram a queda de dentes da autora durante a refeição e o sofrimento que esse facto lhe causava e a testemunha CR disse expressamente, a minutos 6:00 e seguintes do seu depoimento “colocaram a parte de cima e 4 ou 5 dias depois aquilo caiu tudo, a médica acabou por ter de retirar o resto, porque disse que o osso não dava (…) foi no máximo uma semana depois de terem sido colocados, uns dias”. xix) Também a testemunha CC disse, a minutos 9:20 e seguintes do seu depoimento referindo-se à queda dos dentes, “Não era uma situação normal” xx) A AP referiu que a Autora chegou a ter dentes que caíram da sua boca enquanto estava a tomar refeições, tendo dito, a minutos 9:00 e seguintes do seu depoimento que se recordava de uma vez a autora ter engolido um dente e que noutra vez teria ficado desesperada. xxi) Razões pelais quais a alínea k) dos factos não provados vai especificamente impugnada, devendo consequentemente ser movida para a secção dos factos dados como provados. xxii) Considerou ainda o Tribunal a quo como não provado que (…) “l) As intervenções cirúrgicas provocaram um grande inchaço nos lábios da Autora”. xxiii) Ora, a testemunha AP referiu, a minutos 5:00 e seguintes do seu depoimento refere isso mesmo e a Autora (a minutos 51:00 e seguintes do seu depoimento) também o diz, o que fora ainda confirmado pela testemunha M, a minutos 8:00 se seguintes do seu depoimento, onde, referindo-se à aparência estética da autora, comentou que “estava esquisito esteticamente, como que desfigurada”, tendo também a testemunha Cláudia Rajani, a minutos 3:35 do seu depoimento dito que a mãe ficava “muito inchada, disseram-lhe que era de anestesia a mais”. xxiv) Razões pela qual esta factualidade devia ter sido, ao invés, dada como provada, pelo que se impugna especificamente a alínea l) da secção dos factos não provados, requerendo-se que a mesma seja movida para a secção dos factos provados. xxv) Por fim, o Tribunal a quo considerou como não provado que: (…) “o) Até à intervenção feita pela 2ª Ré, a Autora tinha os seus dentes naturais em óptimo estado de conservação.” xxvi) Ora, esta afirmação foi fortemente confirmada por CRE, que referiu, a minutos 2:00 e seguintes do seu depoimento, que a mãe desde sempre tinha tido muito cuidado com a higiene oral, frequentando o dentista de 6 em 6 meses. xxvii) Razão pela qual também se impugna especificamente a alínea o) dos factos dados como não provados, devendo a mesma ser movida para a secção dos factos dados como provados. xxviii) Face ao exposto, devem ser movidos da secção “B) com interesse para a decisão da causa não se provou” para a secção “A) com relevância para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos”: (…) “d) O cimento da prótese provisória da Autora não foi bem colocado, tendo acabado por cair. (…) g) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora deixou de frequentar aulas de gravação no vidro, de inglês e de informática. (…) k) Apesar da instalação da prótese fixa na boca da Autora, a prótese continuava a cair. l) As intervenções cirúrgicas provocaram um grande inchaço nos lábios da Autora. (…) o) Até à intervenção feita pela 2ª Ré, a Autora tinha os seus dentes naturais em óptimo estado de conservação.” xxix) Devendo, ao invés, ser movido da secção “A) com relevância para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos” para a secção “B) Com interesse para a decisão da causa, não se provou” o aposto como (…)“4. No âmbito de consulta havida no SAMS entre a Autora e a Ré IM, esta questionou- a se era diabética, hipertensa, se padecia se osteoporose, se era fumadora e se fazia alguma medicação, e foi-lhe informado da possibilidade de não osteointegração dos implantes.” xxx) Do domínio da prestação de serviços médicos, cabe ao devedor/médico provar que, no caso concreto, não existiu qualquer nexo de causalidade entre o dano e qualquer erro de diagnóstico ou de tratamento. xxxi) Tarefa essa que neste caso a Ré IM não conseguiu empreender, algo que, por via dos termos do disposto no artigo 800.º do CC tem repercussões na posição do Réu SAMS. xxxii) Note-se que a violação da legis artis foi de tal forma inesperada que a testemunha CC disse que fora anómalo o resultado, bem como a 2.ª Ré, IM referiu que nunca tinha ocorrido caírem todos os implantes, como foi o caso da Autora. xxxiii) Estando, portanto, verificados todos os requisitos de que depende a existência de responsabilidade civil, pois o único que se poderia colocar em causa, o nexo de causalidade, entre o facto ilícito e culposo e os danos sofridos pela Autora encontra-se mais do que provado [cfr. ponto 28 da matéria de facto provada e ainda alíneas g) e l), nos termos aqui supra impugnados], enquanto danos não patrimoniais; e os danos patrimoniais elencados no ponto 29 da matéria de facto provada e ainda conforme Doc. 9 junto com a Petição Inicial. xxxiv) Não existindo, portanto, dúvidas de que sem a (viciada) prestação de serviços aqui posta em crise, a Autora/Recorrente não teria sofrido os referidos danos. xxxv) Danos esses na quantia de 3.190,55€ (três mil cento e noventa euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais, e quantia não inferior a 10.000,00€ (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, atenta a sua duração (de março de 2014 até, pelo menos, para lá de agosto de 2016); tudo de forma solidária e com vencimento de juros de mora à taxa legal de 4%, contada desde a data das citações até à data do integral pagamento. xxxvi) Isto em respeito dos artigos 562.º e seguintes e 798.º e seguintes, todos do CC, erradamente apreciados pelo Tribunal a quo. Nestes termos e nos melhores de Direito deverá o presente recurso merecer o beneplácito do provimento e, em consequência, revogada deve ser a Douta Sentença que assim não entendeu e a mesma substituída por uma decisão que dê provimento à pretensão da Recorrente, tudo o mais com as consequências legais. Mais se requer que o facto 4. da secção “A) Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos” seja movido para a secção “B) Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou”. Requer-se ainda que os factos d), g), k), l) e o) da secção ““B) Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou” sejam movidos para a secção “A) Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos”. Devem, ainda, os Réus ser condenados solidariamente a indemnizar a Autora/Recorrente, por danos patrimoniais na quantia de 3.190,55€ (três mil cento e noventa euros e cinquenta e cinco cêntimos) e em quantia nunca inferior a 10.000,00€ (dez mil euros) por danos não patrimoniais; tudo perfazendo, no mínimo, a quantia de 13.190,00€ (treze mil cento e noventa euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% contados desde a data da citação até à data do integral pagamento. 16- A interveniente principal, Ageas, contra-alegou, sem formular conclusões, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença. Invoca que a recorrente não cumpre os requisitos de impugnação da matéria de facto estabelecidos no artº 640º do CPC. Advoga a manutenção da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto. 17- A Generali contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: I. Contrariamente ao que pretende a Recorrente não há qualquer prova documental, testemunhal ou pericial que permita alterar os factos provados e não provados colocados em crise pela Recorrente. II. Há uma adequação na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, que durante todas as sessões de julgamento se fez acompanhar por perito técnico para melhor esclarecimento das questões médicas. III. Quanto à alegada má prática, a ilicitude da atividade do médico será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das legis artis impostas a um profissional prudente da respetiva categoria ou especialidade (cf. Ac. da RP, de 28.03.2017, in www.dgsi.pt). IV. Atendendo à matéria de facto apurada não se mostra demonstrado que os Réus tenham, em algum momento, deixado de atuar em conformidade com as boas práticas, diligência e cuidados a que estavam contratualmente obrigados, nem tão pouco que o deixassem de fazer de acordo com as melhores práticas. V. Ainda quanto à responsabilidade entendemos ser de referir que a responsabilidade civil assenta sempre na verificação de determinados pressupostos, que são o facto; a ilicitude; a imputação subjetiva do facto. Os referidos pressupostos são cumulativos pelo que apenas a existência, em simultâneo, de todos poderá conduzir a uma condenação. No caso vertente a ação deve falecer logo pela falha do segundo e terceiro pressuposto – ilicitude e imputação subjetiva. VI. A intervenção realizada não encerra em si mesmo uma qualquer obrigação de resultado ou quase resultado como pretende a Recorrente. Chegar a uma conclusão diversa seria subverter as regras legais estipuladas, o que coloca em causa a segurança jurídica. VII. Toda a atividade médica comporta quase sempre uma certa álea que resulta da existência de um conjunto de fatores externos imprevisíveis ou incontroláveis que impossibilita os médicos de assegurar aos doentes um resultado certo da intervenção proposta, a saber: circunstâncias inerentes ao doente que condicionam a maior ou menor dificuldade do procedimento, equipamento utilizado e os riscos próprios do procedimento. VIII. Por isso é incontestável que a prestação em causa, nas concretas circunstâncias que resultaram provadas, não pode senão haver-se como uma mera obrigação de meios, no sentido da jurisprudência maioritária. A médica vinculou-se tão-somente a empregar o seu saber, experiência, perícia, cuidado e diligência. Foi o que fez! IX. Afastado que está o requisito da ilicitude então não poderá existir qualquer condenação. X. Quanto à culpa, no campo da responsabilidade contratual emergente de uma obrigação de meios, coloca-se a questão da distinção entre a vertente da ilicitude e a vertente da culpa, mormente para efeitos de repartição do ónus de prova, à luz das regras constantes dos artigos 342.º, n.º 1, 798.º e 799.º do CC. Assim, é comummente entendido pela doutrina e jurisprudência que, no quadro de uma típica obrigação de meios, tem-se entendido que impende sobre o credor lesado (o paciente) provar não só a falta de verificação do resultado pretendido, mas também a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, incumbindo, por seu turno, ao devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa. XI. A realidade é que no caso concreto a Recorrente não logrou fazer prova da violação das regras da arte, mas os Recorridos provaram a diligência com que atuaram. Sendo que a diligência que referimos, em direito civil médico, há-de aferir-se pelo conceito equivalente, não do bonus pater familias, mas do médico médio ou, como dizem os britânicos, do «reasonable doctor»! XII. Pelo que toda a causa de pedir da Recorrente cai por terra. XIII. Pelo que, não há qualquer facto ilícito ou culposo. Consequentemente, não podendo ser imputada qualquer responsabilidade ao Réu Hospital e, por maioria de razão, não há transferência de responsabilidade para a Recorrente Generali falecendo também quanto a esta os pressupostos da sua condenação. XIV. Ora, atendendo ao supracitado forçoso é concluir pelo não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil quanto ao Hospital e consequentemente quanto à ora também Recorrida Generali. XV. Parece-nos assim claro que a prova produzida só permitia concluir pela improcedência do pedido da Autora, ora Recorrente, ao comprometer, por um lado, o conteúdo das suas próprias alegações e, por outro, o indispensável preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, não permitindo, por isso, atribuir responsabilidade em primeira linha aos RR e consequentemente à Chamada, ora Recorrida. Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais considerações, deverá o interposto Recurso de Apelação ser julgado improcedente, por infundado, e, consequentemente, ser confirmada a Douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo. 18- A 2ª ré, IM, contra-alegou, formulando as seguintes CONCLUSÕES: 1.ª A A. recorrente desde logo não deu, neste seu recurso, cumprimento ao ónus estabelecido no art.º 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a) do CPC e como tal deve o mesmo recurso ser rejeitado. Por outro lado, 2.ª Mesmo que a decisão da matéria de facto fosse alterada em todos os pontos (errada e infundadamente) pretendidos pela A., nem tal teria virtualidade para sustentar a solução de Direito diversa da justamente consagrada na sentença, 3.ª Tal como resulta inquestionavelmente da matéria de facto dada como provada, e também, e em boa verdade, daquilo que da “não provada” consta (as quais mostram a completa falsidade da adulterada versão dos autos trazida a Juízo pela A. desde a p.i. inicial até à audiência de julgamento), 4.ª E que conduzem às inequívocas conclusões da inexistência de qualquer acto ilícito por parte das RR. e do completo e adequado completamento da reabilitação da A. nos serviços da 1.ª R. 5.ª A prova produzida foi correcta e devidamente ponderada pelo M.º Juiz a quo e a matéria de facto foi adequadamente decidida, de modo atento, rigoroso e devidamente fundamentado. 6.ª As pela A. pretendidas alterações não têm qualquer suporte noutros meios de prova que não as declarações da A. (que, até atenta a sua conduta, e as contradições das mesmas, não podem merecer a menor credibilidade) e são mesmo em absoluto contrariadas pela prova pericial e documental junta aos autos. 7.ª Consequentemente, devem o facto n.º 4 ser mantido como “provado” e os constantes das alíneas d), g), k), l) e o) ser mantidos como “não provados”, tal como acertadamente se decidiu na sentença apelada. 8.ª Inexistindo qualquer acto ilícito na conduta da 2.ª R. (como aliás na da 1.ª R.), inexiste também qualquer fundamento legal para o pedido indemnizatório da A. (tão curiosa quanto significativamente reduzido em sede do presente recurso para 13.190,00€). 9.ª A reiterada conduta da A., consistente em malversar uns factos e omitir do Tribunal outros – como resulta à saciedade das suas diversas intervenções processuais e da própria decisão da matéria de facto, e que lamentavelmente se prolonga para o presente recurso, persistindo na dedução de pretensão a que sabe não ter direito, não deve, igualmente, deixar de ser apreciada por este Tribunal Superior. 19- A 1ª ré contra-alegou, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: I – A recorrente falha no preenchimento do requisito formal e adjectivo de indicação exacta das passagens da gravação em que funda a impugnação a decisão sobre a meteria de facto, pelo que o recurso deve nessa parte ser desde logo imediatamente rejeitado, nos termos e com os efeitos previstos no Art.º 640º nº 2 a) do CPC II – Ainda que admitido, não pode o recurso deixar de improceder na sua substância, quer porque nos depoimentos a que a recorrente faz referência não se vislumbram quaisquer factos que imponham decisão diversa da proferida pelo M.mo Juiz a quo; quer porque dos demais meios probatórios, constantes do processo e do registo de gravação, decorre com clareza a factualidade que confirma a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. III – Deve permanecer no elenco dos factos provados o Ponto 4, uma vez que das declarações da própria A. e da 2ª Ré conjugadas com os depoimentos das testemunhas CC, SS e AP, decorre com certeza bastante que foi feita a anamnese a que se refere tal factualidade. IV –Não foi feita qualquer prova quanto á matéria constante da alínea d) do elenco dos factos não provados, pelo que aí se deve manter tal factualidade. V – Não foi feita qualquer prova quanto á matéria constante da alínea g) do elenco dos factos não provados, pelo que aí se deve manter tal factualidade. VI –Apenas a A. declarou que a sua prótese fixa caía, pelo que tal meio probatório por si só não é o bastante para levar tal matéria aos factos provados, devendo a alínea k) do elenco dos factos não provados aí ser mantida VII – A versão da A. no depoimento de parte é contraditada pela versão apresentada pela testemunha CD, pelo que havendo dúvida sobre o inchaço dos lábios da Autora subsequente às intervenções cirúrgicas, não pode a matéria constante da alínea l) do elenco dos factos não provados manter-se nessa categoria VIII –Das declarações prestadas pela A. no seu depoimento relativamente à extração de 9 dentes no passado e colocação de uma esquelética há vários anos, bem como dos registos constantes do processo clínico da Autora junto aos autos, decorre com clareza que o estado dos dentes naturais da mesma nada tem de bom, muito menos de “óptimo”, pelo que a matéria constante da alínea o) do elenco dos factos não provados aí se deve manter. IX – A A falhou grosseiramente na prova dos sucessivos e diferentes eventos danosos que foi trazendo para os autos, em diversas fases do processo – na petição inicial, no articulado de aperfeiçoamento, no depoimento de parte. X - A A. não logrou demonstrar, como lhe competia, que a R. violou as regras da arte, sendo que os RR. demonstraram à saciedade que agiram com a diligencia que lhes é exigível na execução da obrigação de meios a que se encontravam adstritos por via do contrato de prestação de serviços médicos que celebraram com a Autora. XI – Não estando verificado o requisito essencial da ilicitude, deve soçobrar a imputação de qualquer responsabilidade civil por acto médico e correlativa obrigação de ressarcimento sobre os RR relativamente à Autora Termos em que Deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se na íntegra a douta sentença recorrida. *** II-FUNDAMENTAÇÃO. 1- Objecto do Recurso. 1- É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida. Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir: a)- A Impugnação da Matéria de Facto; b)- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção. *** 2- Fundamentação de Facto. A 1ª instância decidiu a seguinte matéria de facto: A) Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. A Autora recorreu aos serviços de assistência médico-dentários junto seguida no SAMS PICS – Prestação Integrada de Cuidados de Saúde. 2. Nessa sequência, foi marcada uma consulta de implantologia, tendo sido assistida e acompanhada por médica dentista, a Ré IM. 3. A consulta de implantologia no SAMS é assistida por 2 assistentes dentárias. 4. No âmbito de consulta havida no SAMS entre a Autora e a Ré IM, esta questionou-a se era diabética, hipertensa, se padecia se osteoporose, se era fumadora e se fazia alguma medicação, e foi-lhe informado da possibilidade de não osteointegração dos implantes. 5. Nessa sequência, a Autora declarou que fazia análises de saúde regulares. 6. Ainda no âmbito da consulta médica, quando perguntada pela Ré IM se durante a menopausa a Autora teria feito alguma medicação, a Autora respondeu afirmativamente, tendo tomado um comprimido. 7. A Autora padecia de bruxismo. 8. Foi ajustado que à Autora seriam colocados três implantes no maxilar superior direito e dois do lado esquerdo, e no maxilar inferior, dois de cada um dos lados, num total de nove implantes. 9. A Autora teve indicação para extracção de dentes. 10. No âmbito das consultas havidas com a 2ª Ré, foi explicado os procedimentos à Autora, e esta aceitou ser submetida a cirurgia, tendo a mesma pedido orçamento junto dos serviços administrativos do SAMS. 11. A 12.03.2014, foi feita a cirurgia de 5 implantes no maxilar superior da Autora. 12. A 9.04.2014, a 2ª Ré colocou 3 implantes no maxilar inferior da Autora. 13. As intervenções descritas em 10) e 11) foram realizadas pela Ré IM, nas instalações da 1ª Ré. 14. A colocação dos implantes foi feita com anestesia local, com a cara desvendada, tendo a Autora noção do procedimento. 15. Em data não concretamente apurada, a Autora rejeitou cinco implantes dentários. 16. Inexistiu osteintegração dos implantes colocados à Autora pela Ré IM. 17. Na sequência da rejeição dos implantes, a Ré IM perguntou à Autora se poderiam encontrar uma solução à base de prótese fixa e ficando de parte a hipótese de implantes, ao que a Autora respondeu afirmativamente. 18. Na sequência da rejeição dos implantes, a Autora ligava à Ré IM e enviava-lhe mensagens. 19. Tendo a IM mostrado disponibilidade para ver a Autora. 20. A Autora não ficou com nenhum implante que a Ré IM lhe colocou. 21. A Autora não engoliu nenhum implante que a Ré IM lhe colocou. 22. Em Agosto de 2015, cessou o vínculo entre a 1ª e 2ª Ré, e, em consequência, a Autora deixou de ser seguida no SAMS pela Ré IM. 23. Em data não concretamente apurada mas seguramente após o descrito em 15), a Autora recolocou implantes dentários no mesmo SAMS, assistida pelo Dr. AJ. 24. O referido profissional médico colocou 7 implantes no maxilar superior e 4 implantes no maxilar inferior da Autora. 25. Em data não concretamente apurada, mas seguramente em data posterior ao descrito em 22) a 23), a Autora passou a ser seguida pelo Dr. JA, o qual reabilitou o maxilar superior. 26. A reabilitação dentária da Autora foi concluída nos serviços médicos do SAMS/ 1ª Ré. 27. Em 18.05.2016, a Autora solicitou um novo tratamento dentário junto da entidade MClinic, orçado em €16.905.00. 28. Pela queda dos implantes referida em 14), a Autora sentiu dores, desconforto, angústia, frustração e teve dificuldades a alimentar-se. 29. A Autora suportou o pagamento de consultas médicas, para colocação de próteses e prática de actos de estomatologia e para aquisição de medicamentos. 30. Por acordo denominado de “contrato de seguro do ramo responsabilidade civil”, titulado pela apólice …, foi transferido para a chamada Seguradoras Unidas S.A., a responsabilidade civil imputada à 1ª Ré por danos causados decorrentes de actos médicos praticados nas instalações hospitalares da segurada por médicos empregados ao serviço da segurada, até ao limite de €1.000.000,00, com uma franquia de 10%. 31. Por acordo denominado de “contrato de seguro do ramo responsabilidade civil profissional – modalidade ordens profissionais”, titulado pela apólice n.º …, foi transferida para a chamada AGEAS S.A. a responsabilidade civil imputável à 2ª Ré por danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de médica-dentista, até ao limite de €150.000,00, com uma franquia de 10%. * B) Com interesse para a decisão da causa, não se provou: a) A Autora não foi suturada pela Ré IM no local onde foram colocados os implantes. b) A Ré IM limou de tal forma os dentes naturais do maxilar superior que estes de tão fracos que ficaram, tiveram que ser posteriormente arrancados por aquela. c) Foram removidos nove dentes à Autora pela Ré IM. d) O cimento da prótese provisória da Autora não foi bem colocado, tendo acabado por cair. e) O Dr. AJ referiu-se à Autora quando a consultou nos seguintes termos: “Eu sou sempre o apaga fogos” “Tenho de andar a corrigir o trabalho dos outros” “Sou um tapa buracos”. f) No circunstancialismo consignado em 24), o Dr. AJ relevou dificuldades no tratamento que prestou à Autora. g) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora deixou de frequentar aulas de gravação no vidro, de inglês e de informática. h) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora sofreu complicações gástricas. i) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora perdeu o paladar. j) Cozinhar era um dos hobbies da Autora. k) Apesar da instalação da prótese fixa na boca da Autora, a prótese continuava a cair. l) As intervenções cirúrgicas provocaram um grande inchaço nos lábios da Autora. m) Pelos incidentes ocorridos no seu tratamento dentário, a Autora teve necessidade de recorrer a apoio psicológico. n) Previamente às intervenções cirúrgicas, a Autora tomou medicação à base de bisfosfanatos, tendo omitido a sua toma à 2ª Ré. o) Até à intervenção feita pela 2ª Ré, a Autora tinha os seus dentes naturais em óptimo estado de conservação. p) A não osteingração dos implantes ficou a dever-se à tomada de bisfosfanatos. q) A queda dos implantes ocorreu em menos de cinco contados desde a sua colocação. r) Face à rejeição dos implantes da Autora, a Ré IM optou numa fase inicial por recolocar um dos implantes. s) A Autora tinha periodontite instalada. *** 3- As Questões Enunciadas. 3.1- A Impugnação da Matéria de Facto. A autora impugna a decisão da 1ª instância quanto ao ponto 4 dos factos provados e quanto aos pontos d), g), k), l) e o) dos factos não provados. As apeladas Ageas, a 2ª ré e a 1ª ré, nas contra-alegações, defendem que a apelante não cumpriu os ónus de impugnação a cargo do recorrente que impugne matéria de facto, concretamente o previsto no art.º 640º nº 2, al. a) do CPC, por não ter indicado, com exactidão, as passagens da gravação em que funda o seu recurso. Será assim? Como é sabido, o art.º 640º do CPC impõe ao recorrente, que impugne matéria de facto, o cumprimento de certos ónus sob pena de rejeição do recurso quanto a essa impugnação. Concretizando. Estabelece o art.º 640º do CPC: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.” Por comparação com o art.º 685º-B do anterior código, verifica-se um reforço desses ónus de alegação que impõe ao recorrente, sob pena de rejeição: (i)- especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (ii) especificar os meios de prova constantes do processo que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; (iii) indicar a resposta que, no seu entender deve ser dada às questões de facto impugnadas. E, (iv) “…relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes…” (Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, 2016, Almedina, pág. 136 e segs, mormente a 139 e seg.). Esclareça-se que toca às Conclusões, apenas se exige que o impugnante da matéria de facto tenha de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. Não se exige que especifique, nas Conclusões, os meios de prova constantes do processo que, em seu entender determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos; não se exige que nas Conclusões indique a resposta que pretende para cada um dos factos; nem se exige que nas Conclusões, tratando-se de prova gravada, indique as passagens da gravação relevantes. Abrantes Geraldes (Recursos…, cit., pág. 142), sintetiza as situações de rejeição total do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto, quando se verifique alguma das seguintes situações: “a)- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artºs 635º nº 4 e 641º nº 2 al. b): b)- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artº 640º nº 1, al. a); c)- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g, documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.; d)- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e)- Falta da motivação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” Por outro lado, importa salientar que vem sendo entendimento constante do STJ considerar que os ónus que o legislador põe a cargo do recorrente que impugne matéria de facto, são de duas ordens: ónus primários e ónus secundários. Concretamente, de acordo com a orientação reiterada da jurisprudência do Supremo Tribunal, na verificação do respeito por estas normas não deve seguir-se um perspectiva formalista, devendo antes tal verificação pautar-se pelos critérios constantes do sumário do acórdão de 3 de Outubro de 2019 (proc. n.º 77/06, Rosa Tching) no qual foi expressamente referido: «I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.” Vejam-se ainda, entre outros, o Ac. STJ de 27/01/2022 (Pro. 225/16, Maria da Graça Trigo), em cujo sumário consta: “IV. Quanto ao ónus secundário da alínea a) do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC, há que distinguir: (i) no que se refere à impugnação da matéria de facto na parte fundada em prova documental, dúvidas não há de que esse ónus foi cumprido; (ii) no que se refere à impugnação da matéria de facto fundada em prova testemunhal – e de acordo com a orientação supra enunciada da jurisprudência do STJ, segundo a qual, «quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo», a rejeição da impugnação «só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso», verifica-se que a técnica de descrever detalhadamente o conteúdo dos depoimentos das testemunhas em discurso indirecto, ainda que sem indicar o início e termo da passagem relevante de cada depoimento, permitindo o exercício do contraditório pela contraparte, bem como o exame, sem grande dificuldade, pelo tribunal da Relação, leva a dar como substancialmente cumprido o ónus do art.º 640.º, n.º 2, alínea a) do CPC.” Vejam-se ainda, entre outros, Ac. STJ de 18/01/2022 (Proc. 701/19, Maria João Vaz Tomé); de 21/03/2019 (Proc. 3683/16, RosaTching); de 16/11/2021 (Proc. 84277/18, António Magalhães). Pois bem, no caso dos autos, as apeladas, apesar de defenderem a rejeição do recurso, por alegado incumprimento, pela apelante, do ónus de indicação exacta das passagens da gravação em que funda o seu recurso, a verdade é que, todos as três apeladas identificaram, perfeitamente, cada um dos pontos de facto impugnados pela recorrente e os fundamentos por ela usados na impugnação e, de resto, contrapõem razões que, segundo elas, levam à improcedência da impugnação de cada um desses pontos de facto. Significa isto que não se identifica qualquer limitação ou dificuldade para as apeladas em terem alcançarem, cabalmente, a impugnação dos pontos de facto pela apelante e as razões por que o fez. Por conseguinte, à luz da orientação jurisprudencial acima sintetizada, somos a entender não existir fundamento para rejeitar o recurso de impugnação de matéria de facto. Questão diferente é a de saber se os fundamentos invocados pela apelante são suficientes para levar por diante a alteração à matéria de facto pretendida. E, a este prepósito, convém que se faça, desde já, o seguinte comentário sobre a impugnação da matéria de facto em geral. Quando se fala em impugnação da matéria de facto pretende-se significar um juízo de discordância com a decisão do julgador acerca de determinado facto. Para alcançar esse desiderato importa que o impugnante demonstre, através dos meios de prova, que deve especificar, que o julgador não decidiu de acordo com a prova que foi produzida. No fundo, impõe-se que o impugnante convença o tribunal ad quem que, perante aqueles meios de prova, o resultado do juízo probatório deveria ter sido outro. Na verdade, como é sabido e decorre do art.º 341º do CC, as provas têm por função a demonstração da realidade de um facto. No fundo, a prova é sinónimo da actividade persuasiva da veracidade de certos juízos de facto, visando demonstrar a sua realidade. Com a produção da prova pretende-se, de acordo com critérios de razoabilidade, convencer o julgador da veracidade de certo facto. O destinatário da convicção que a prova tende a criar é o julgador. Nas palavras de Antunes Varela (et alii, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 436) “A prova, no processo, pode assim definir-se como a actividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjectiva) da realidade de um facto.” A demonstração dos factos mediante a actividade probatória reconduz-se a um processo cognitivo, através do qual o juiz acede a uma realidade existencial ou experimentável ou do foro psicológico, seja por via da percepção directa (inspecção judicial) ou indirecta (prova testemunhal) seja até por via de presunções apoiadas nas regras da experiência comum ou da própria lógica do pensamento. O juízo de apreciação da matéria de facto consiste, assim, numa actividade decisória objectivada no juízo de conformidade (ou desconformidade) entre os factos alegados e o correlativo acontecer fáctico, juízo esse que se estriba na convicção do julgador ou no valor legalmente atribuído ao meio de prova (Manuel Tomé Soares Gomes, Noções e Quadros Elementares do Direito Probatório Civil e Comercial, CEJ, edição policopiada, 1994, pág. 5). Portanto, à semelhança do que sucede na primeira instância, também na impugnação da matéria de facto junto da Relação, o apelante tem de convencer os juízes do tribunal de recuso de, perante aqueles meios de prova, o resultado ou juízo probatório deveria ter sido outro, o que ele pretende ver alcançado. Se, no caso dos autos, a apelante consegue lograr esse convencimento é o que veremos de seguida. Vejamos cada um desses pontos de facto. - Quanto ao ponto 4. A apelante discorda da decisão da 1ª instância de ter considerado provado que: “4. No âmbito de consulta havida no SAMS entre a Autora e a Ré IM, esta questionou-a se era diabética, hipertensa, se padecia se osteoporose, se era fumadora e se fazia alguma medicação, e foi-lhe informado da possibilidade de não osteointegração dos implantes.” Argumenta que o tribunal se baseou nas declarações de parte da própria 2ª ré e, nos depoimentos das testemunhas CC, dentista, SS e AP e que, no entanto, diz, nenhuma delas assistiu à 1ª consulta da autora e, por isso, não tiveram conhecimento pessoal do facto, não devendo os seus depoimentos terem sido valorados. Por sua vez, a autora disse não se lembrar de lhe ter sido informada a possibilidade de não osteointegração; remata que há oposição entre os depoimentos das únicas duas pessoas que estiveram presentes na 1ª consulta, a autora e a 2ª ré e, por isso, o facto não podia ter sido dado como provado. A 1ª instância fundamentou a sua decisão sobre o ponto 4 dos factos provados, escrevendo: “Para consignar o facto 4) como provado, o Tribunal considerou as declarações de parte da 2ª Ré, e os testemunhos de CC, médica-dentista e colega da Ré no SAMS à data dos factos, e de SS e AP, ambas funcionárias do SAMS. As referidas testemunhas genericamente confirmaram as declarações prestadas pela 2ª Ré acerca do procedimento habitual desta nas consultas feitas por esta última – era sempre perguntado ao paciente sobre o seu histórico clínico, hábitos de tabagismo e se fazia ou não medicação, e da possibilidade da implantação dos implantes não ser bem-sucedida-. A própria Autora confirmou ter sido questionada acerca de tomada de medicação por parte da 2ª Ré. Tudo somado, nada leva a crer ao Tribunal que no caso dos autos tal questionário e esclarecimento não tenha ocorrido na situação dos autos, razão pela qual se deu esta matéria como provada.” Ora bem, desde já se adiante que se concorda com a decisão e a fundamentação da 1ª instância. E isto por duas razões. Primeira. A convicção do juiz sobre os factos tem de ser suportada segundo juízos de probabilidade séria, baseados na análise do resultado de toda a prova produzida apreciada à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso. A probabilidade respeita à existência de razões válidas para julgar um enunciado de facto como verdadeiro ou falso. Há um limite mínimo de probabilidade a partir do qual opera a probabilidade lógica prevalecente. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja, em si mesma, mais provável que a versão negativa simétrica. E para que tal suceda, importa que quem impugna matéria de facto invoque meios de prova que sejam suficientemente convincentes da probabilidade prevalecente, ou seja, que a versão dos factos que pretende ver como provada, seja mais provável ser verdadeira que o seu contrário; ou, que a factualidade que entende que não pode ser considerada verdadeira é mais provável que o seu inverso. Ora, no caso dos autos, limitar-se a dizer que as testemunhas SS e AP não sabiam se assistiram à primeira consulta e, por isso não têm conhecimento directo dos factos e, que autora não se lembra de lhe ter sido dito que podia não ocorrer osteointegração, não nos parece suficientemente demonstrativo da versão negativa do facto que a autora pretende para o ponto 4 dos factos provados. Segunda razão e mais importante. Da audição das testemunhas resulta claro que é procedimento regra da 2ª ré – e de todos os médicos dentistas em geral – fazer a anamnese/historial do doente na 1ª consulta e, informar que pode ocorrer rejeição dos implantes. Isso foi afirmado pela testemunha AM (que disse trabalhar, com a 2ª ré, há 12 anos), SS (que disse ter trabalhado com a 2ª ré no “SAMS”), AP (que trabalhou com a 2ª ré no “SAMS”), CC (colega de profissão da 2ª ré e que trabalhou com ela no “SAMS”), AJ (colega da 2ª ré no “SAMS”). E disseram-no de modo convicto, como facto inequívoco e, por isso, foram convincentes. Também a 2ª ré o afirmou. Por sua vez, a autora, no seu depoimento de parte, confirmou ter-lhe sido feita a anamnese, perguntado se tinha doenças, hipertensão e diabetes e se fumava, quais os medicamentos e se fazia exames e ela disse que sim, que fazia exames todos os anos. Mais disse que, mais tarde, quando teve o problema com os implantes e a Dr.ª IM lhos retirou, foi-lhe dito que o osso não suportava os implantes e que a Dr.ª IM lhe perguntou se tomava comprimidos para a menopausa e ela disse que tomou um e, a Dr.ª lhe explicou que quem tomava esse comprimidos prejudicava os ossos (00:35:45). Enfim, do que se expôs resulta não haver fundamento para dar como não provado o ponto 4 dos factos provados. - Quanto ao ponto d) dos factos não provados. A 1ª instância decidiu dar como não provado o facto d), com a seguinte redacção: “d) O cimento da prótese provisória da Autora não foi bem colocado, tendo acabado por cair.” A autora/apelante invocando o seu depoimento de parte (e a “assentada”, nos pontos 4 e 5) e o depoimento da testemunha CC e, pretende retirar que a perda dos implantes se deveu a falha da 2ª ré porque a própria testemunha CC o terá admitido. Desde já se adianta que a autora/apelante não tem razão quanto a este ponto de facto. Na verdade, em primeiro lugar, como ela própria referiu no seu depoimento de parte e acima referimos, “…quando teve o problema com os implantes e a Dr.ª IM lhos retirou, foi-lhe dito que o osso não suportava os implantes e que a Dr.ª IM lhe perguntou se tomava comprimidos para a menopausa e ela disse que tomou um e, a Dr.ª lhe explicou que quem tomava esse comprimidos prejudicava os ossos (00:35:45)”. Além disso, o que a testemunha CC (médica dentista que foi colega da 2ª ré no “SAMS”) mencionou no seu depoimento foi que costumavam discutir os casos clínicos, trabalhavam em equipa, discutiam os casos de sucesso e de insucesso; tem ideia que os implantes colocados na senhora (autora) caíram, o que não é uma situação normal; tiveram de ver qual era o problema e que estava relacionado com a toma de bisfosfanatos; o director clínico, Dr. FM, disse para procurarem outra solução. Deste depoimento não decorre que a não osteointegração dos implantes na autora teve a ver com uma “falha” no tratamento, como pretende a autora. De resto, no Relatório da Perícia Médico-legal vem expressamente referido “Quanto à questão da não osteointegração dos primeiros nove implantes, tal parece estar relacionado com a medicação que a examinada fez. De facto, de acordo com a literatura disponível, a terapêutica com bisfosfanatos parece estar relacionada com u aumento da falta de osteointegração de implantes, sendo que a interrupção da medicação parece melhorar significativamente o diagnóstico. Será por isso que meses mais tarde se conseguiu a osteointegração dos novos implantes. Refira-se que a falta de osteointegração dos primeiros implantes não representou para a examinada qualquer prejuízo biológico, não originando qualquer sequela, não existindo, por isso, danos a valorizar.” Saliente-se que a testemunha, Dr. AJ - que mais tarde colocou implantes à autora, em 08/02/2016 os do maxilar e, posteriormente os da mandíbula (portanto, quase dois anos após os implantes colocados pela 2ª ré e em que não se verificou osteointegração) – esclareceu que se o doente parar a medicação com bisfosfanatos, um ano a um ano e meio depois podem ser colocados implantes. Além disso referiu não se recordar se os implantes que colocou na autora foram nas mesmas posições que os implantes que haviam sido colocados pela Dr.ª I. Do que se expôs, entende-se não haver fundamento para dar como provado o ponto d) dos factos não provados. - Quanto à alínea g) dos factos não provados. A 1ª instância considerou não provado que: “g) Pelos constrangimentos havidos no seu tratamento dentário, a Autora deixou de frequentar aulas de gravação no vidro, de inglês e de informática. A 1ª instância fundamentou a sua decisão quanto a este (e outros) pontos dos factos não provados, escrevendo: “Relativamente à factualidade não provada, concretamente a enunciada nos pontos a), b), d), g), h), j) e m) não se fez qualquer prova quanto a esta matéria, razão pela qual terá de ser dada como não provada.” A autora baseia a sua pretensão desse ponto de facto ser dado como provado, invocando o depoimento de AP que, segundo ela, referiu que a autora se recusa a sair de casa porque os dentes que foram colocados iam caindo e ela ficou em desespero, parecia uma pessoa que tinha envelhecido 20 anos, não ria e não abria a boca; no depoimento da testemunha CJ, filha da autora, que terá dito que após a intervenção cirúrgica a autora deixou de sair de casa; no depoimento da testemunha M referiu que a autora foi fazer um procedimento aos dentes e ficou deprimida. Vejamos. Pois bem, como bem salientam todas as apeladas nas suas contra-alegações, nenhuma das três testemunhas mencionadas pela autora – de que ouvimos, de resto, os respectivos depoimentos integralmente - fizeram qualquer referência a aulas de gravação no vidro, de inglês e de informática. Perante esta realidade probatória, sem necessidade de outros considerandos, conclui-se não haver fundamento para alterar o ponto g) dos factos não provados. - Relativamente à alínea k) dos factos não provados. A 1ª instância deu como não provado que: “k) Apesar da instalação da prótese fixa na boca da Autora, a prótese continuava a cair.” A autora pretende ver esse facto dado como provado, invocando o depoimento de sua filha, CR, que, segundo a apelante, disse que “…colocaram a parte de cima e 4/5 dias depois aquilo caiu tudo, a médica acabou por retirar o resto, porque disse que o osso não dava (…) foi no máximo uma semana depois de terem sido colocados, uns dias”. E referiu-se ao depoimento de CC que terá dito “De todo, não era uma situação normal” referindo-se à queda dos implantes. Menciona ainda o depoimento de AP que, segundo diz, testemunhou que “A autora chegou a ter dentes que caíram da sua boca enquanto estava a tomar refeições…recordando-se que uma vez engoliu um dente, noutro ficou desesperada.” Para fundamentar esta decisão, a 1ª instância escreveu: “Quanto à factualidade em k), produziu-se apenas prova por declarações da Autora quanto a esta alegação. E na esteira do entendimento jurisprudencial dominante, que acompanhamos, este meio probatório mostra-se insuficiente por si só se mostrar desacompanhado de qualquer outro elemento de prova que a sustente ou indicie. Daí a razão do Tribunal em dar este facto como não provado.” Vejamos então. Desde já uma primeira nota quanto às declarações de parte como meio probatório – isto sem prejuízo de se realçar que, no caso dos autos, o depoimento prestado pela autora foi mediante depoimento de parte (meio processual utilizado visando a prova por confissão judicial provocada) e não as declarações de parte - e qual a respectiva valia ou força probatória. Assim, decorre directamente do nº 3 do art.º 466º do CPC, que o tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão. Existe alguma divergência na doutrina e na jurisprudência sobre o valor probatório das declarações de parte, sendo possível encontrar, basicamente, três teses: (i) Tese do carácter suplectivo e restrito do conhecimento dos factos; (ii) Tese do princípio de prova; (iii) Tese da autossuficiência do valor probatório das declarações de parte. (Para outros desenvolvimentos, veja-se Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2ª edição, pág. 289 e segs). Segundo a opinião de Teixeira de Sousa “…em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova strictu sensu…Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação de prova, o tribunal tem de formar prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando” (Blog do IPPC, 20/01/2017). De resto, se o próprio legislador manda que o tribunal aprecie livremente a prova por declarações de parte (artº 466º nº 3 do CPC), à semelhança do que sucede com a prova pericial (artº 389º do CC), com a prova testemunhal (artº 396º do CC) e com a prova por inspecção (artº 391º do CC), não faz sentido que se inferiorize a prova por declarações de parte comparativamente com aqueles outros meios de prova a que a lei atribui a mesma força probatória. Concordamos assim, com a posição de Luís Filipe Sousa (Direito Probatório Material…cit., pág. 299) quando sintetiza: “(i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.” Propugnando pelo valor probatório próprio das declarações de parte que deve ser apreciado segundo a livre convicção do julgador vejam-se, entre outros, o ac. TRL, de 26/04/2017 (Luís Filipe Sousa); TRL, de 09/04/2019 (Micaela Sousa); TRG, de 13/09/2018 (Margarida Sousa); TRG, de 04/04/2019 (Maria João Matos), STJ, de 07/02/2019 (Rosa Ribeiro Coelho), STJ, de 11/07/2019 (Bernardo Domingos); STJ, de 28/01/2020 (Pinto de Almeida). Serve esta nota para salientar que as declarações de parte, enquanto meio de prova, devem ser valoradas como manda a lei que o sejam: de acordo com o princípio da livre convicção do julgador e não tidas como um meio de prova menorizado e meramente suplementar de outros meios de prova (para os quais, de resto, o legislador coloca o mesmo crivo probatório: livre convicção do juiz). Dito isto e regressando ao ponto de facto em questão. O depoimento de CR, mencionado pela apelante, para fundamentar a alteração do ponto k), reportou-se ao momento seguinte ao da colocação dos implantes (os primeiros implantes, pela “ré”, Dra. IM) e que terão caído 4 ou 5 dias depois da colocação (chegou a dizer que “viu os dentes num papel”). També referiu que há dentes da mãe que continuam a cair. Quanto ao depoimento de CC, indicado pela apelante para ver alterado o ponto k) dos factos não provados, também não é apto a fazer operar a alteração pretendida: já vimos acima em que circunstâncias esta testemunha se referiu à não osteointegração. Finalmente, no que toca ao depoimento de AP, invocado pela apelante, segundo a apelante a testemunha terá dito “…recorda-se que uma vez (a autora) engoliu um dente…” ; ora, esta afirmação foi negada pela própria autora e, de resto, foi objecto de assentada no ponto 9: “A autora não engoliu nenhum implante qua a ré IM lhe colocou.”. Finalmente, quanto ao depoimento de parte da autora, tem de reconhecer-se que foi algo confuso: disse que “…desde que o Dr. AJ colocou os implantes mantiveram-se sem cair.” E, “…colocaram-lhe espigões e estão cá.” E, “…o que está a cair é as pontes que estão por cima dos dentes…”. Finalmente, nos Relatórios de Perícia Médico-legal no capítulo dedicado às Queixas da autora é referido “A examinada refere que não gosta do seu aspecto físico, designadamente da posição dos dentes. Relata dificuldades de mastigação, principalmente de alimentos duros; relata trincar a bochecha e o lábio, quando come. Acrescenta que a médica “andou a limar os dentes” (sic) e que agora não gosta do seu aspecto.” E, mais adiante, nesse Relatório, no Capítulo das Conclusões é dito “1. Não existem danos a valorizar consequentes à reabilitação realizada. 2. A reabilitação realizada necessita de ajustes e correções, normais a este tipo de tratamentos.” Ou seja, a autora não se queixou de quedas dos dentes. Portanto, destes elementos probatórios decorre não haver fundamento para alterar o ponto k) dos factos não provados. - Relativamente ao ponto l) dos factos não provados. A 1ª instância deu como não provado que: “As intervenções cirúrgicas provocaram um grande inchaço nos lábios da Autora A autora/apelante pretende que esse facto seja dado como provado, invocando o depoimento de AP que, segundo a apelante, disse que a autora tinha um inchaço na cara; a própria autora disse que tinha um inchaço na cara e que isso a incomodava muito; que a testemunha M disse que “estava esquisito esteticamente, como que desfigurada”; que a própria autora disse que se queixou à Dr.ª IM e lhe mostrou a foto e ela disse que passava; e que a testemunha CR disse que a mãe ficava muito inchada e disseram-lhe que era de anestesia a mais. A 1ª instância fundamentou a sua decisão de considerar este facto não provado, escrevendo: “O facto l) resultou não provado ante à discrepância que resultou do depoimento da Autora e do testemunho de CD acerca desta factualidade. Ante às versões antagónicas que foram apresentadas em julgamento pelas referidas intervenientes processuais, criou-se a dúvida se após a intervenção cirúrgica os lábios da Autora sofreram um inchaço. Assim sendo, a dúvida resolve-se contra quem está onerado com esta prova, ou seja a A. Daí a decisão do Tribunal.” Vejamos. Existem duas fotos, juntas com a petição inicial, de metade da cara de uma pessoa, da zona da boca, em que se vêm o lábio inferior inchado e o lábio superior inchado. Não se vê de quem é a cara, se da autora ou não. Por outro lado, parece que as fotos foram tiradas em alturas diferentes: numa, a 1ª, a pessoa em causa apresenta o lábio inferior inchado, tem o cabelo solto e, veste uma blusa castanho escura ou preta; noutra, a pessoa em causa, tem o lábio superior inchado, tem o cabelo apanhado (não se vê) e veste uma blusa verde claro. Por estas fotos, não se percebe se se trata da autora. No depoimento de AP disse ela que a autora parecia que tinha envelhecido 20 anos, tinha um inchaço na cara e um estado de espírito de desânimo; e, quando instada, em instância, disse não saber localizar no tempo do inchaço da cara da autora. Por sua vez, a testemunha CR referiu que o inchaço era só nos lábios e não na cara e, que no dia seguinte, a mãe (autora) já não tinha nada. Estes dois depoimentos não são compatíveis: um refere a cara e que parecia que tinha envelhecido 20 anos e, o outro, localiza o inchaço apenas nos lábios e que desaparecia no dia da intervenção (no dia seguinte já não tinha nada). Por sua veza a testemunha M não referiu qualquer inchaço. A autora, no depoimento de parte, referiu que depois da anestesia ficava com a boca inchada e que foi mostrar à Dra. IM e ela disse que aquilo passava. Este alegado acto de ir queixar-se à Dra. IM não será compatível com o referido desaparecimento do inchaço logo no dia da intervenção. Além disso, não se percebe se o inchaço ocorreu em ambas as intervenções cirúrgicas para colocação dos implantes ou se apenas numa e em qual. A 2ª ré, IM, nada mencionou, nas suas declarações, sobre os invocados inchaços na cara ou lábios. Ou seja, verificam-se discrepâncias entre os depoimentos que colocam dúvidas sobre se as intervenções cirúrgicas provocaram um grande inchaço nos lábios da autora e, assim sendo, face ao que determina o artº 414º do CPC, não se critica a decisão da 1ª instância de considerar o facto como não provado. Deste modo, não se altera o ponto l) dos factos não provados. Quanto ao ponto o) dos factos não provados. A 1ª instância considerou não provado que: “Até à intervenção feita pela 2ª Ré, a Autora tinha os seus dentes naturais em óptimo estado de conservação”. Para fundamentar a sua decisão de considerar esse facto como não provado, a 1ª instância escreveu: “Prosseguindo e quanto ao facto o), da análise do registo fotográfico junto como doc. 3 (fls. 236v e 237) não se retira que os dentes da A. se encontravam em bom estado de conservação.” A apelante pretende que se considere o facto como provado, invocando o seu próprio depoimento “dizendo que nunca teve periodontite e tenho uma máquina em casa de limpar os dentes” e, o depoimento de sua filha, CR, que disse que a autora tinha cuidado com a higiene oral e de 6 em seis meses frequentava o dentista. Pois bem, sobre a periodontite, foi elucidativa a explicação dada pela Exma. Assessora Técnica, nomeada pelo tribunal para assessoria em julgamento (Prof. Dra. CPP) na 2ª sessão da audiência final. Por outro lado, da radiografia tirada a 24/03/2015 (junta como documento 4 no requerimento da 2ª ré, de 05/07/2018) decorre que à autora faltavam já muitos dentes naturais. De resto, quer a autora quer a sua filha referiram que antes de ter procurado a 2ª ré a autora usava uma prótese dentária esquelética, o que significa que lhe faltavam dentes naturais. Sem necessidade de outros considerados somos a entender não haver fundamento para alterar o ponto o) dos factos não provados. Em suma: improcede, totalmente, a impugnação sobre a matéria de facto. *** 3.2- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção. Entende a autora/apelante que em face da alteração dos factos que pretendia ver operada, deverá revogada a sentença em termos de as rés serem condenadas no pedido. Invoca, em síntese, que tratando-se de uma situação de responsabilidade civil contratual mostram-se verificados todos os requisitos desse tipo de responsabilidade, incluindo a ilicitude do comportamento da 2ª ré que se traduziu numa desconformidade entre a conduta que era devida e a que foi observada e que consistia na de colocação de 9 implantes na boca da autora que acabaram por ter que ser retirados; competindo à ré demonstrar que esse incumprimento não proveio de culpa sua. A falta de osteointegração dos implantes dentários, contrariamente ao que foi referido na sentença, não se deveu a acontecimento adverso, porque não ficou provado que a não osteointegração dos implantes ficou a dever-se a toma de bisfosfanatos. Não foi ilidida a presunção de culpa. Por sua vez, todas as apeladas defendem a improcedência do recurso e a manutenção do decidido pela 1ª instância. Na sentença ora sob impugnação, a decisão de improcedência da acção fundou-se na seguinte argumentação: “…na responsabilidade civil médica a ilicitude traduz-se na violação procedimentos médicos adequados, quando o agente não tenha actuado em conformidade com as boas práticas, diligência e cuidados a que estava obrigado, isto é, ser o acto praticado com violação da legis artis, sendo ainda relevante indagar do grau de risco e de incerteza inerentes a uma intervenção cirúrgica. No caso em apreciação, a Autora pretende responsabilizar os RR porque o tratamento de odontologia não correu bem, pelo facto de ser sofrido dores e prejuízos, e pela circunstância das suas expectativas não se terem cumprido (conclusão que se retira da circunstância de ter requerido a elaboração de orçamento para tratamento dentário noutra clínica). Ante à factualidade apurada, é forçoso concluir que estarmos perante uma complexa operação dentária, pois envolveu toda a boca da Autora, (maxilar inferior e superior) e implicou a realização de duas intervenções cirúrgicas. Sendo comum a necessidade de ajustes e correcções em tratamentos complexos como o dos autos, que não acabam com as intervenções cirúrgicas, necessitando os pacientes de observar medidas de higiene rigorosas e de serem consultados por profissionais médicos com regularidade. Ora, não obstante, a não implantação definitiva dos implantes dentários colocados pela 2ª Ré, do acervo factual apurado não resulta que esta tenha cometido algum erro na terapêutica aplicada, que tenha incorrido em erro na execução dessa terapêutica, ou que o tratamento proposto tenha sido desnecessário, inconveniente, desadequado ou até inútil. Da matéria de facto retira-se ainda que a Autora deu o seu consentimento informado às intervenções médicas. Não é, pois, possível concluir que a actividade do médico no tratamento prestado à Autora tenha sido defeituosa ou, dito de outro modo, desconforme às leges artis. A não implantação dos implantes dentários colocados pela 2ª Ré (por falta de osteointegração como se apurou) corresponderá não a uma falha ou negligência por parte da 2ª Ré mas antes à ocorrência de um acontecimento adverso (definido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.09.2011, Proc. 674/2001.P.L.S1, disponível em dgsi.pt, como uma “qualquer ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte”). Por outro lado, demonstrou-se que a reabilitação dentária da Autora foi finalizada por médicos-dentistas ao serviço da 1ª Ré (e de forma adequada conforme se concluiu no relatório pericial, ou seja, a reabilitação foi conforme as leges artis). Face a todo o exposto, é de concluir não estar verificado o requisito da ilicitude.” Vejamos quem tem razão. Fora de discussão que o caso em discussão se enquadra juridicamente no instituto da responsabilidade civil contratual. Sem necessidade de desenvolvimentos dogmáticos, que por ora não se justificam, podemos dizer, com Pessoa Jorge (Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 37), que “…a responsabilidade civil nasce da prática de um acto ilícito, que consiste (…) na violação de um dever. Este dever pode ser uma obrigação em sentido técnico ou outro dever: no primeiro caso, a responsabilidade diz-se obrigacional e no segundo extra-obrigacional, delitual ou aquiliana.” Embora não seja uniforme o entendimento sobre quais sejam os pressupostos constitutivos da responsabilidade civil – sobre a discussão, vejam-se as diversas posições da doutrina portuguesa mencionadas por Pessoa Jorge (Ensaio Sobre os Pressupostos…cit., pág. 52 e segs.) - admite-se que os pressupostos da responsabilidade e da consequente obrigação de reparação dos danos sejam, basicamente, idênticos entre a responsabilidade extracontratual e a responsabilidade contratual: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. Com efeito, a responsabilidade obrigacional encontra-se genericamente prevista no artº 798º do CC, que estabelece “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.”. Do preceito pode extrair-se a referência àqueles cinco pressupostos, uma vez que se menciona o facto voluntário do devedor (“…o devedor que…”); a ilicitude, que resulta do não cumprimento da obrigação (“falta...ao cumprimento da obrigação…”), a culpa (…culposamente…”; o dano (“…torna-se responsável pelos prejuízos…”; e, o nexo de causalidade entre o facto e o dano (“…que causa ao credor…”). Essencial, no caso dos autos, é o pressuposto ilicitude. Adiantando-se, desde já, que aqueles referidos 5 requisitos são cumulativos, significando isso que a falta de verificação de qualquer um deles afasta a responsabilidade contratual (e extracontratual). Seguindo a lição de Rui Mascarenhas Ataíde (Direito da Responsabilidade Civil, 2023, pág. 145 e segs.) a teoria da responsabilidade civil, no que respeita ao pressuposto ilicitude, tem-se dividido em duas correntes doutrinárias, uma com assento tónico no “resultado” e outra, na “conduta”. A tese da ilicitude do resultado considera que a violação de direitos ou disposições legais é suficiente para perfazer, por si só, a ilicitude, dispensando indagações suplementares. Já a tese da ilicitude da conduta sustenta que não basta que o comportamento tenha dado causa à violação de direitos, sendo imprescindível averiguar se a produção do resultado decorreu da infracção de um dever de conduta, só havendo ilicitude se o comportamento estiver em contradição com uma proibição ou imposição legal no próprio momento da acção. O conceito de resultado em causa não se reporta a uma alteração no mundo físico, mas, antes à criação de um estado juridicamente reprovado criado pela conduta para o bem jurídico. “O fundamento do juízo de ilicitude não pode ser a mera verificação de um resultado negativo como tal, mas apenas quando a sua produção resultar de uma infracção de uma ordem ou proibição de comportamento.” (Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade…cit., pág. 151). Quer dizer, não age de maneira ilícita quem não viola quaisquer deveres de comportamento. Ou seja “…não se pode de facto aceitar que todas as acções que se relacionem como causa e consequência sejam qualificadas como ilícitas apenas por terem conduzido à violação de bens jurídicos…” (A e ob. cit., pág. cit.). A teoria da ilicitude da conduta enfatiza, ao contrário da orientação clássica, que a mera produção causal de um resultado proibido não chega para se afirmar a ilicitude, antes sendo imprescindível que esse evento se deva à violação da regra de conduta aplicável ao caso (A e ob. cit., pág. 153 e seg.). E prossegue este Professor “ …do ponto de vista analítico, a estrutura da ilicitude é composta por três elementos nucleares: uma conduta orientada por vontade contrária à ordem jurídica, por se tratar de um comportamento doloso ou negligente; em segundo lugar, a produção de um resultado reprovado (…); e, em terceiro, a conexão juridicamente causal entre ambos de modo a que o evento ilícito se possa imputar em termos objectivos à conduta não cuidadosa.” (Ob. cit., pág. 154). Numa outra perspectiva e de algum modo relacionada com o entendimento que vertemos acima acerca da ilicitude na vertente da tese da ilicitude do resultado e na da tese da ilicitude da conduta, a jurisprudência vem entendendo que o médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e conhecimentos profissionais, assume uma obrigação de meios. Neste tipo de obrigações, o médico não responde pelo resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar (entre outros, veja-se o acórdão do STJ, de 16/09/2009, de 15/12/2011 (Gregório Silva Jesus); de 23/03/2017 (Tomé Gomes). Neste último acórdão é salientado “IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis). V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado. VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação. VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.” No que toca ao ónus de prova da ilicitude, vem sendo entendido que cabe ao paciente provar o incumprimento, pelo médico, das regras profissionais que sobre ele incidem. Isto é “…A prova do incumprimento do contrato, por sua vez, é que se afigura mais difícil: não basta, pois, ao lesado provar qua não ficou em melhor estado de saúde ou que, por ventura esse estado se agravou, ou mesmo que veio a falecer; terá de provar que o médico não cumpriu os seus deveres de actuação técnica, não respeitou as leges artis.” (André Gonçalo Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil, Centro de Direito Biomédico, 9, 2004, pág. 426; no mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova na responsabilidade civil médica, Data Vénia, 8, 2018 pág. 8). Igualmente, Pinto Monteiro, transmite este entendimento acerca da distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado “O efeito prático desta distinção residirá no seguinte: nas obrigações de meios, tanto a impossibilidade objectiva como a impossibilidade subjectiva não imputáveis liberam o devedor; nas obrigações de resultado, só a impossibilidade objectiva não imputável o exonera.” (Cláusula Penal e Indemnização, pág. 266). Ou seja, “…caberá ao autor alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano. O lesado tem de identificar e demonstrar a diligência devida, tem de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita)” (Carneiro da Frada, apud Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova…cit., pág. 8 e seg.). A jurisprudência do STJ vem entendendo no mesmo sentido. A título de exemplo, vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos: - Ac. de 22/03/2018 (Proc. 7053/12, Maria da Graça Trigo): “(ii) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou”. - Ac. de 23/03/2017 (Proc. 296/07, Tomé Gomes): “VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.” - Ac. de 06/01/2020 (Proc. 700/16, Rosa Ribeiro Coelho): VI - Só há violação ilícita do direito do doente se o médico executar a cirurgia à revelia das leges artis vigentes, caso em que poderia falar-se em cumprimento defeituoso da obrigação a que estava adstrito. VII - Só a alegação e ulterior demonstração, por um lado, das regras conhecidas pela ciência médica em geral como sendo as apropriadas à execução da intervenção cirúrgica em causa, considerando o estado do doente – as leges artis – e, por outro, da sua não utilização com perícia e diligência por parte do médico, permitiriam que se afirmasse a ilicitude da conduta deste. VIII - Como elemento constitutivo do direito invocado pelo doente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das leges artis ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde.” Do que se expôs podemos concluir que nos contratos de prestação de serviços de actos médicos, compete ao doente invocar e provar o requisito da ilicitude da conduta do médico. Ora, no caso dos autos, entendemos que a autora não provou o requisito ilicitude da conduta da 2ª ré. Na verdade, desde logo, ficou provado que a 2ª ré explicou à autora no que consistiam os procedimentos a que se iria submeter e esta aceitou submeter-se à cirurgia (ponto 10 dos factos provados). Mais se provou que a 2ª ré informou a autora da possibilidade de não osteointegração dos implantes (ponto 4 dos factos provados). Desta factualidade resulta que ocorreu o consentimento informado da autora. Por outro lado, a autora baseava a ilicitude da conduta da 2ª ré alegando que não foi suturada pela 2ª ré aquando da colocação dos implantes, que a 2ª ré limou excessivamente os dentes naturais do maxilar superior da autora, que o cimento da prótese não foi bem colocado tendo acabado por cair. Ora, a autora não provou, como lhe competia, esses factos, como decorre dos pontos a), b) e d) dos factos não provados. Ou seja, a autora não provou que a 2ª ré actuou ilicitamente, violando as leges artis. Ou dito de outro modo, a autora não provou que a não osteointegração dos implantes resultou de má prática clínica, de violação das leges artis. O problema da colocação dos implantes pela 2ª ré foi o de não ter ocorrido osteointegração desses implantes e, essa não osteointegração, não o demonstrou a autora, ter ficado a dever-se a qualquer actuação violadora das regras profissionais pela 2ª ré. Recorde-se o que acima dissemos: O fundamento do juízo de ilicitude não pode ser a mera verificação de um resultado negativo como tal, mas apenas quando a sua produção resultar de uma infracção de uma ordem ou proibição de comportamento. A circunstância de, posteriormente, mais de um ano depois da colocação dos primeiros implantes, que não osteointegraram, terem sido colocados novos implantes pelo Dr. AJ, que vieram a osteointegrar-se, não significa qualquer violação das leges artis pela 2ª ré. Na verdade, o Dr. AJ, como acima se referiu, esclareceu que a interrupção de medicação para a menopausa permite a osteointegração um ano ou ano e meio depois dessa interrupção. E no Relatório da Perícia Médico-legal admite-se que o problema da falta de osteointegração estivesse relacionado com a toma de comprimidos para a menopausa. Realce-se que em casos de tratamentos médico-dentários, o STJ chamado a pronunciar-se decidiu: - Ac. de 21/02/2019 (Proc. 3784/15, Oliveira Abreu): “IV - No contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis. V - Cabe ao paciente provar a falta de diligência do médico, a falta de utilização de meios adequados de harmonia com as leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o médico não praticou todos os actos considerados necessários para alcançar a finalidade desejada: é essa falta que integra erro médico e constitui incumprimento ou cumprimento defeituoso, importando que só depois dessa prova, funcionará, no domínio da responsabilidade contratual, a presunção de culpa do médico. “ - Ac. de 26704/2016 (Proc. 6844/03, Silva Salazar): “III - Embora no contrato de prestação de serviços definido no art.º 1154.º do CC se consagre a obrigação de uma das partes proporcionar à outra certo resultado, no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis. IV - O médico não responde pela falta de obtenção do resultado visada com a cirurgia, cura ou melhoramento do estado de saúde, visto que a aceitação ou rejeição pelo organismo aquele corpo estranho escapa ao seu controlo.” Portanto, a falta de osteointegração, não resultou da prática de acto ilícito pela 2ª ré, mas, nas palavras do STJ, de um “…o evento adverso (adverse event), definido pelos autores portugueses citados, como «qualquer ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte». (Ac. do STJ de 22/09/2011, Proc. 764/2001, Bettencourt de Faria). A esta vista, entendemos concordar com a decisão da 1ª instância quando julgou a acção improcedente por falta de demonstração do requisito da responsabilidade civil: a ilicitude. O recurso improcede. *** III- DECISÃO. Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso improcedente e, consequentemente, mantém a sentença sob impugnação. Custas na fase do recurso, pela autora/apelante. Lisboa, 12/09/2024 Adeodato Brotas Eduardo Petersen Silva António Santos |